1 Iuri Cavlak Walter Rodney: Socialismo Afro-Caribenho, Historiografia e Marxismo (1960-1980) Relatório de Pós-Doutorado realizado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), na Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília Supervisor: Prof. Dr. Marcos Del Roio Marília 2024 2 1) Introdução: Este relatório está centrado em três eixos de abordagens. Primeiro, Walter Rodney e sua militância e produção historiográfica enquanto estudante de posteriormente professor na West Indie University (WIU), na Jamaica, entre 1960 e 1968. Busco aí problematizar o contexto da ilha recém independente com a formação em História do autor, seu envolvimento com o movimento rastafari e o Black Power e as noções de marxismo que ele foi desenvolvendo ao longo desse período. Quando o governo jamaicano expulsou Walter Rodney do país, em outubro de 1968, uma rebelião popular eclodiu, ao meu ver delimitando um novo ambiente político que iria de fato desabrochar nos anos 1970 tanto na Jamaica quanto no Caribe. Num segundo momento, busco analisar as reflexões do autor sobre o marxismo enquanto professor na Universidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia, enquanto o país protagonizava uma experiência de governo socialista, batizada de ujamaa. O material analisado foi produzido entre os anos de 1968 e 1974, e avança hipóteses tanto para a viabilidade do espraiamento do marxismo na historiografia e na política africana, como a capacidade da Tanzânia de avançar na luta pelo socialismo. Basicamente, argumenta Walter Rodney que o Estado deveria proteger as vilas rurais comunitárias da desagregação proporcionada pela economia de mercado, e buscar ao mesmo tempo ajuda material da URSS e da China, de modo a saltar etapa e sair de uma condição de subdesenvolvimento para a abundância industrial e agrícola. Num terceiro momento, centro o foco num curso sobre a Revolução Russa ministrado pelo autor na Universidade de Dar Es Salaam, no ano letivo de 1971-1972. Busco refletir sobre a abordagem do evento no contexto da África e da Tanzânia naquele momento especifico, em que o partido único TANU, o movimento estudantil e as forças armadas esposavam uma clara ideologia socialista baseada na experiencia soviética. A Tanzânia era uma espécie de meca para os movimentos revolucionários de todo continente – forneceu logística para a luta de Ernesto “Che” Guevara no Congo - e sua universidade agregava o maior número de exilados políticos do entorno, além de quadros 3 docentes comprometidos com o socialismo. Milton Santos, Paulo Freire, Giovanni Arrigh, Immanuel Wallerstein, todos por al passaram. Nesse ano de pesquisa, não pude visitar o arquivo Walter Rodney sediado na Universidade de Atlanta, onde se localiza toda a documentação a respeito da vida e obra do autor. Não obstante, logrei acessar vários documentos on line, o que me franqueou um estoque de material primário que irei desenvolver nos próximos anos. Além disso, acessei e fichei toda obra do autor que já foi publicada. No Brasil, até os dias atuais, apenas uma obra de Walter Rodney foi editada, “Como a Europa Subdesenvolveu a África”, numa versão bastante elogiada da editora boitempo (livro escrito em 1972, com a versão brasileira de 2022). Todo o restante de artigos, livros, palestras e resenhas do autor se encontra em inglês. Optei por apresentar os resultados da minha pesquisa no formato de três blocos temáticos, com uma ligação cronológica e temática perpassando-os. Como afirmei acima, pretendo seguir desenvolvendo o trabalho com a bibliografia e as fontes primárias de modo a expandir a temática em torno de Walter Rodney, contribuindo para um melhor conhecimento do autor e de sua problemática na historiografia brasileira. 2) Jamaica A Jamaica se tornou politicamente independente da Inglaterra em 6 de agosto de 1962. Continuou como membro da Commonwealth e com uma profunda dependência econômica em relação ao mundo Ocidental. Os dois principais líderes políticos jamaicanos, Alexandre Bustamante e Norman Manley, identificados mais a direita e mais a esquerda do espectro político respectivamente, costumavam a concordar com o fato da Jamaica ser tão avançada politicamente que não teria necessitado lutar pela independência. A concessão dada pelos britânicos seria uma prova de maturidade e sucesso das estruturas e de seus agentes (LINDSAY, 1975). Entretanto, o ambiente no entorno regional a época era de tensionamento e constantes mobilizações da população mais pobre. Entre 1958 e 1962, a Jamaica viveu a experiência de ter participado da Federação das Índias Ocidentais, uma entidade política que estava então encaminhando a descolonização nas ilhas do Caribe britânico de maneira 4 unificada - Jamaica, Trinidad e Tobago, Barbados, Antigua e Barbuda, Dominica, Granada, São Cristóvão e Neves, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Cayman, Anguila, Ilhas Turcas, Monserrate -, com os territórios insulares, Belize e Guiana Inglesa, enquanto observadores. (SEWELL, 1978). Os dois principais partidos políticos da Jamaica, Jamaican Labour Party (JLP), de Alexandre Bustamante, e o People’s National Party (PNP), de Norman Manley, politizaram a questão no sentido em que a Federação pudesse assumir contornos mais liberais, totalmente afinados ao capitalismo, ou mais igualitários, com maior intervenção estatal no sentido de proteção econômica e distribuição de poderes. Ao fim e ao cabo, o experimento fracassou e os territórios britânicos se dividiram em países autônomos e entidades que permaneceram sob tutela de Londres. Algumas centenas de quilômetros dali, em Cuba, ocorriam lutas de caráter profundamente radicais. Em janeiro de 1959, se confirmara a vitória dos rebeldes guerrilheiros do Movimento 26 de Julho, tendo Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara a sua testa. Todo um processo de reorganização econômica, política e cultural passou a ocorrer nessa outra ilha. Em 15 de abril de 1961, com apoio norte-americano, uma força paramilitar invadiu o país, sendo rapidamente derrotada pelas forças do governo revolucionário. Nesses dias, o líder Fidel Castro anunciou o caráter socialista da revolução. No plano externo, a aproximação com os soviéticos e o embargo econômico estadunidense se seguiu, com a crise dos mísseis, em outubro de 1962, e o cerco permanente de sabotagem e embargo tensionando a região. Nesse contexto que a Jamaica emergiu enquanto país independente. A maioria dos estudos apontam para o caráter negociado e a continuidade das estruturas coloniais na nova nação, como dito acima, não obstante o cenário internacional. (LINDSAY, 1975). O sistema política bicameral facultou a permanência do Jamaican Labour Party (JLP) no poder, totalmente alinhado com a Inglaterra e os Estados Unidos, bem como comprometido com a economia de mercado e a manutenção da divisão social do trabalho tal como ela se encontrava naquele momento. O novo país seguiu exportando bananas, açúcar, minério, incentivando o aporte de capital internacional na área do turismo e articulando empréstimos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Internamente, o JLP manteve os sindicatos sob controle, passando a difundir uma imagem de unificação racial em torno das tradições britânicas. Out of Many, one people 5 tornou-se ideologia oficial, de sorte a tentar obliterar graves contradições. Por exemplo, a ilha era constituída por mais de 90% da população negra, tendo 21 famílias brancas proprietárias de todos os meios de produção, donas ou principais parceiras nas exportações e empreendimentos imobiliários (BARNES, 2012, p. 56). Uma das principais conquistas da população caribenha foi a formação da West Indie University (WIU), uma universidade multinacional que logrou estancar a necessidade da busca de formação e pesquisa na Inglaterra. Tornou-se autônoma em 1962, tendo recebido seu mais ilustre aluno do curso de História no primeiro semestre letivo de 1960.1 Walter Rodney, então com 17 anos, havia recém terminado com brilhantismo o ensino médio na Guiana Inglesa, e ganhado uma bolsa de estudos para Kingston (ZEILIG, 2022, p. 10). No decorrer de sua graduação, Rodney se mostrou extremamente ativo tanto na pesquisa e nos debates da sua universidade quanto na militância estudantil propriamente dita. Em 1962, pela União Internacional dos Estudantes, participou de atividades em Havana e Leningrado, em janeiro e agosto respectivamente. Além do mundo socialista e da perspectiva marxista, teve na investigação da história africana um ponto fulcral, num momento em que inexistia uma historiografia africana propriamente dita, dado que os países estavam a se libertar do jugo colonialista e ainda não haviam produzido em quantidade considerável investigações históricas no formato de livros (BARBOSA, 2008). Rodney se envolveu com o movimento rastafari, sendo um link entre o mundo acadêmico, a tradição religiosa jamaicana e a luta política. Ficou muito conhecido em Kingston, seguido de perto pelos serviços de inteligência tanto da Jamaica quanto dos EUA (ZEILLIG, 2022, p. 15). Se formou na primeira metade de 1963 e, novamente por se destacar nas notas, ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Londres. Optou pela Escola de Estudos Orientais e Africanos, desenvolvendo uma pesquisa sobre o tráfico da alta costa da Guiné. Ao mesmo tempo, passou a frequentar grupo de estudos sobre marxismo em Londres, então organizado pelo intelectual natural de Trinidad e Tobago Cyril Lionel Robert James (CLR James) e esposa (LEWIS, 1998, p.31). 1 A West Indie University a princípio foi uma extensão Universidade de Londres. Nos anos 1960 se firmou como uma universidade pública que passou cada vez mais a atender o Caribe britânico. Seus três principais campi eram na Jamaica, Trinidad e Tobago e Barbados. Seu papel na formação de uma elite acadêmica regional foi central. 6 Ao terminar o doutorado, em 1966, trabalhou na Tanzânia, participando da experiência socialista naquele país. Com Nyerere na presidência e Karume na vice, a Tanzânia se posicionou a princípio enquanto um país não alinhado, que buscava uma social democracia sem necessariamente reivindicar a tradição marxista. O regime foi batizado de Ujamaa, um sinônimo para o conceito amplo de família comunitária (Zeilig, 2022, p. 39). Internamente, o Estado tanzaniano plasmou-se num regime de partido único, centralizando a economia e fomentando uma estrutura produtiva não mercantil. Os conceitos da Ujamaa foram implementados no movimento estudantil e nas forças armadas. Os Estados Unidos romperam relações, ameaçando inclusive uma invasão armada (Wache, 2017, p. 72). No dia 5 de fevereiro de 1967, na cidade de Arusha, decretou-se oficialmente o caráter socialista da Tanzânia, na famosa Arusha Declaration (Zielig, 2022, p. 102). O país se tornou um apoiador e um refúgio para os grupos revolucionários do entorno. A luta de “Che” Guevara no Congo se deu com o auxílio do governo tanzaniano, que forneceu principalmente apoio logístico. Guevara e seu grupo entrou e saiu do Congo via Tanzânia em 1965. A Universidade de Dar Es Salaam, por muitos anos então, se transformou no maior polo acadêmico de intelectuais exilados na África Oriental. Foi naquele contexto que Walter Rodney passou os meses finais de 1966 e o ano de 1967. Em janeiro de 1968, voltou como professor full time da WIU na Jamaica, num contrato de quatro anos. Naquele momento é que os caminhos do país e de Rodney se interligaram com maior significado. Rodney seguiu com a docência e a pesquisa, articulados a militância política na universidade e a participação efetiva no movimento rastafari jamaicano. Versado no socialismo e na tradição do materialismo histórico, o autor desenvolveu a comunidade negra várias atividades, o que levou a sua expulsão do país em 15 de outubro de 1968. Após ser proibido de entrar na Jamaica pelo governo do Jamaican Labour Party, ao finalizar sua participação no I Congresso de Escritores Negros, no Canadá, uma rebelião popular estourou em Kingston, conhecido como Rodney Riots. Por três dias, uma luta incruenta entre estudantes, trabalhadores, desempregados e rastafaris contra a polícia parou o país. Muito provavelmente, Walter Rodney era a pessoa na Jamaica que mais conhecia a História Africana, no sentido historiográfico de historia rerum gestarum e no sentido de vivência res gestae, dado sua participação orgânica no socialismo tanzaniano. De 7 acordo com Daniel Pico, Rodney foi o primeiro marxista negro de todo o Caribe a tomar a sério o estudo da história africana (PICO, 2024). No domingo pela manhã, em Toronto, na participação no Congresso de Escritores Negros, dia 12 de outubro de 1968, três dias antes de ser impedido de entrar na Jamaica e deportado de volta ao Canadá, Rodney pronunciou um discurso intitulado African History in the Service of Black Revolution, destacando quais seriam os pontos principais da análise historiográfica a ser difundida na Jamaica objetivando uma transformação radical naquele contexto. Meu objetivo é analisar esse documento, entender o porquê da escolha de alguns elementos e não outros, e cotejar com o desenvolvimento da história da Jamaica e da própria trajetória do autor. O governo acabou dobrando o movimento e sustentando a expulsão de Rodney, o que não evitou o aumento da radicalização e a vitória, em 1972, do People’s National Party de Michael Manley, que acabou mudando as políticas públicas no sentido de maior participação popular e defesa dos trabalhadores e da tradição afro-caribenha. No front externo, a Jamaica se tornou um membro ativo do Movimento dos Países Não Alinhados e uma parceira de Cuba no Caribe. Esse desenho democrático duraria até 1980, com a volta do JLP ao poder e da hegemonia do neoliberalismo. Minha hipótese é que a influência de Rodney foi decisiva para que o movimento negro na Jamaica, embasado na prática do rastafari e do marxismo, fortalecesse seus laços socialistas, ao ponto de formatar grande parte da sociedade para um novo ciclo político nos anos 1970, uma correlação causal que acredito ser ainda pouco explorada pela historiografia. Sustento que a influencia do autor no cenário interno contribuiu para a cultura do reggae de Bob Marley e da negritude na política. Externamente, o entorno regional também foi sendo progressivamente levado por essa onda, como a República Cooperativa da Guiana, o movimento sandinista na Nicarágua, o golpe militar no Suriname, as lutas em El Salvador e a formação do regime socialista na ilha de Granada. Em comum todos eles tiveram no horizonte a crítica ao capitalismo e a valorização da cultura africana, nessa angulação antiliberal e de sinalização à URSS e Cuba. O PNP provavelmente não faria esse influxo a esquerda se não houvesse ocorrido a revolta contra a expulsão de Walter Rodney. 8 3) O Desenvolvimento Político da Jamaica A primeira década de independência acabou sendo marcada, entre outras coisas, por uma estabilidade na política institucional, com o Jamaican Labour Party (JLP) na liderança do governo e com maioria no parlamento. Seus três principais líderes se sucederam como primeiro ministros, Alexandre Bustamante (1962-1967), Donald Sangster (1967), Hugh Shearer (1967-1972). O partido de oposição, People’s National Party (PNP) ocupou um espaço de legitimação, operando sempre dentro das regras do sistema político estabelecido. O JLP, embora com maior inserção sindical, desenvolvera uma pauta de centro direita, enquanto o PNP encampara projetos e discursos de maior preocupação com as desigualdades sociais. Nenhum dos dois partidos pautou com assertividade a questão racial, tampouco a possibilidade de uma transformação radical da sociedade jamaicana. Meses antes da independência, Alexandre Bustamante viajara aos Estados Unidos, assinando compromissos para a venda de bauxita e açúcar aos norte-americanos. Na cerimônia de independência, que contou com a presença de membros da família real britânica, alguns navios ingleses e norte-americanos estiveram fundeados na Jamaica, garantindo a transição dentro da ordem. Dias após o 6 de agosto, Bustamante afirmaria estar “completamente com o Ocidente”, se referindo a Guerra Fria, oferecendo inclusive uma parte da ilha para a instalação de base militar dos EUA (BARNES, 2012, p. 29). A esquerda mais radical se organizou em torno do People’s Freedom Moviment (PFM), que atuou politicamente no período colonial. Alguns dias após a independência, o PFM se tornou o Socialist Party of Jamaica (SPJ): The primary end of the newly created party was to “introduce socialism by peaceful means” explicitly through the electoral process. The second goal of the party was to maintain and preserve religious freedom, while the tertiary objective was to sustain fraternal relations with other political organizations with similar social objectives (BARNES, 2012, p. 30). 9 Nesse sentido, embora mais à esquerda que o PNP, o SPJ se configurou na linha eleitoral enquanto caminho ao socialismo, buscando ser o partido aliado da URSS e de Cuba na Jamaica. A dificuldade de romper o bipartidarismo e a falta de aderência na questão racial prejudicou seu crescimento. O Socialist Party of Jamaica, com essa linha política majoritária não conseguiu se articular a radicalidade crescente da juventude nos anos 1960. Baseado em algumas reflexões de Frantz Fannon, Lindsay interpretou a falta de um movimento anticolonial como uma das principais características da sociedade jamaicana. Se mantendo na mesma posição na divisão internacional do trabalho – exportando bauxita, açúcar, banana, - sem nenhuma transformação em sua estrutura social interna, era como se na Jamaica a independência de fato não houvesse existido (LINDSAY, 1975). Jamaica fits easily into the category of those new states in witch formal independence was granted without the initiation of any kind of serious struggle against colonial rule. Indeed, Norman Manley, the widely acknowledged “founding father” of the modern Jamaican state, consistently emphasized that because of his own skill and he good sense of his people, Jamaica managed to secure its constitutional advance to self-government without having “to fight for it” (LINDSAY, 1975, p. 99). Norman Manley foi o líder histórico do PNP, pai de Michael Manley, o político que daria uma guinada significativa do país a esquerda nos anos 1970. Todavia, identificado com um partido de esquerda, Manley era um defensor do sistema parlamentar britânico, assegurando tratar-se do melhor possível. O fato de não necessitar uma ruptura pela independência era uma indicio, segundo ele, de que os desejos da Grã-Bretanha eram idênticos aos da Jamaica. Na década de 1960, essa era a situação econômica do país: The island’s leading sugar states were owned by a large British company, while the bauxite industry was in the hands of four American and Canadian corporations and many hotels were part of foreign business. Bank and insurance companies, a large section of the communications network, and even a number of basic public utilities were also in foreign ownership (PAYNE, 1983, pp. 159-160). 10 Embora a economia crescesse a uma média de 6% ao ano, a pobreza aumentava, fruto inclusive de uma migração da população rural para Kingston, em busca de novas oportunidades na troca da agricultura e mineração pelo comércio e indústria na capital. A média salarial era baixa em todos os setores. A economia seguia dominada pelas industrias estrangeiras. Milhares de jamaicanos optavam anualmente pela migração externa, rumo aos países centrais de língua inglesa como a própria Inglaterra, os EUA e o Canadá. Na medida em que a população jamaicana aumentava numa velocidade relativamente alta para o tamanho da ilha, atingindo a marca em torno de 1,6 milhões na década de 1960, o problema do emprego tornava-se chave. Grande parte da população economicamente ativa só conseguia trabalho no serviço público, o que ajudou a impulsionar um outro fenômeno chamado de garrison process, estudado de forma minuciosa por Figueroa e Sives. (FIGUEROA e SIVES, 2002). Basicamente, tratava-se de regiões estruturadas em clientelas políticas fixas, ou para o JLP ou para o PNP, contribuindo para que, nas eleições periódicas, o partido no governo garantisse a vitória. Por exemplo, em bairros onde havia 2 mil eleitores, eram registrados 1.999 votos para o um partido e apenas 1 para o outro, um coeficiente dificilmente atingível a não ser por alguma fraude. O garrison process significava tanto a adulteração pura e simples das urnas quanto a coerção dos chefes locais para que a população depositasse o voto num único partido. Muitas vezes as duas práticas caminharam juntas. Assim sendo, as revoltas foram constantes. Ainda antes da independência, em 1960, um grupo religioso, comandado pelo Reverendo Cladius Henry, baseado em Nova York, se armou e planejou a tomada do poder. Quando estavam treinando táticas de guerrilha perto da capital Kingston, o grupo foi descoberto e prontamente desbarato, no que ficou conhecido como Henry Rebelion. Em 1963, na região de Montego Bay, um grupo rastafari armado atacou uma plataforma de Petróleo e um quartel da polícia. Finalmente, em 1965, após uma mulher denunciar ter sido vilipendiada pelos patrões chineses num comércio, uma multidão passou a ir para as ruas e atacar os demais negócios comandados por chineses em Spanish Town Road, em Kingston. Oito pessoas foram baleadas e cerca de vinte foram presas pela polícia. Centenas participaram dessa revolta, um índice, de acordo com Payne, da 11 violência latente que fluía pela sociedade, a despeito do sistema político a princípio pacificado (PAYNE, 1983). Situação que pioraria em 1966, com uma guerra não declarada entre gangues rivais representando os dois partidos jamaicanos. Apoiadores do JLP e do PNP iniciaram uma briga, tudo indica antecipando movimentos e apoios nos bairros de Kingston visando as eleições gerais de 1967: Some of the incidents were very grave, involving knifes, shootings, and bombings. And a state of emergency was declared for a month in October 1966. Much of the political warfare in the area was sponsored by leading politicians of both parties as they fought for control of the ghetto (PAYNE, 1983, p. 163). O Estado de emergência decretado em outubro de 1966 mobilizou grande aparato repressivo, que implicou inclusive censura de publicações estrangeiras. Não se pode deixar de citar, nesse sentido, a visita do imperador da Etiópia, Haile Selassie ainda em abril de 1966. Embora não tenha havido violência por parte da polícia ou de manifestantes, foi a maior demonstração de massa daquela época, quando milhares de jamaicanos foram aguardar o imperador no aeroporto, gerando muita confusão, com várias pessoas feridas. Para o Rastafari, a monarquia etíope servia como um contraponto a monarquia inglesa: The counter-culture of Rastafari had constructed in-group values based on appropriation of Ethiopian aristocracy orthodoxy and rejection of the more recent British monarchy that had been associated with the subjugation of parts of Africa and black enslavement. (LEWIS, 1998, p. 91) O cerimonial de Estado jamaicano foi atropelado pela população. O líder rastafari, Mortimo Planno, foi quem ocupou a pista junto com a multidão, carregou o imperador etíope e dirigiu seu entourage para o lugar cerimonial, driblando todo o protocolo do governo evitando inclusive um desfecho trágico. O ano de 1967 fora ainda mais violento, registrando recordes de mortes por arma de fogo e manifestações de rua. Não obstante a turbulência histórica, o JLP foi reeleito para comandar o país por mais meia década. 12 4) Walter Rodney na Jamaica: Após um curso ginasial extraordinário no Queen’s College, o melhor colégio da Guiana Inglesa, no qual Rodney cursou graças a uma bolsa de estudos por excelência acadêmica, o autor escolheu cursar História na West Indie University (WIU), campus Mona, na Jamaica. Por conta de suas notas, Rodney também lá foi aceito com uma bolsa de estudos. Chegou em 1960, e logo passou a participar dos clubes de debates, uma prática comum no Caribe inglês. Representou a WIU num desafio em Pittisburg, sagrando-se campeão junto com outro colega. Diziam que Rodney levava muito jeito para uma carreira na área do direito. (LEWIS, 1998, p. 18). Cada vez mais envolvido nos assuntos estudantis, Rodney participou de uma delegação de estudantes que visitou Cuba, em janeiro de 1962. A delegação foi recebida em eventos especiais, chegando a travar conhecimento pessoal com Fidel Castro. Em agosto, participaram de um evento na URSS. Data daí os primeiros registros de Walter Rodney na documentação da Central Americana de Inteligência (CIA), que repassara aos serviços de inteligência do Estado jamaicano (ZEILIG, 2022, p. 13). Em 1962, em um dos seus primeiros artigos conhecidos, assinando junto com um colega de turma, Some Political Aspects of Independence, analisou tanto a situação da Jamaica quanto do Caribe em geral, vaticinando, entre outras coisas, por uma ferramenta metodológica que investigasse a situação sem as limitações da ideologia do partido trabalhista britânico, ou mesmo do marxismo-leninismo, ambos distantes da complexidade da situação caribenha (LEWIS, 1998, p. 22). Tratava-se das duas principais influências intelectuais do movimento estudantil da época. Além das questões do Caribe contemporâneo, Rodney se interessou pelo passado do tráfico de africanos escravizados. Tentando destacar, além do papel da Europa, o papel histórico da África, o então jovem estudante se viu sem um horizonte de pesquisa, na falta de material acadêmico ou mesmo tradição de investigação sobre o passado daquele continente. Num último artigo na graduação, refletiu sobre as possibilidades da classe média jamaicana conduzir o país para uma estrutura social mais justa. Sopesou o papel 13 da universidade na formação desses quadros políticos (LEWIS, 1998, pp. 13-29). Em 1963, ao se graduar com honras de primeira classe, fez jus a uma bolsa de estudos a nível doutoral, escolhendo a Universidade de Londres, especificamente a Escola de Estudos Orientais e Africanos Rodney defendeu sua tese de doutorado em 5 de julho de 1966, partindo para a Tanzânia alguns dias depois. A History of the Upper Guinea Coast (1545-1800) foi extremamente elogiada, tanto pelo pioneirismo na análise documental quanto na forma sóbria e cativante da escrita, além das relações com regiões mais amplas do continente e da Europa e América. 5) O retorno de Walter Rodney: Em janeiro de 1968, após um ano e mio na Tanzânia e três anos na Inglaterra, Walter Rodney retornou a Jamaica, naquela ocasião como professor full time da West Indie University (WIU), campus Mona, localizado uns 12 km do centro de Kingston, para um contrato de quatro anos. Para além da docência e da pesquisa, Rodney passou a frequentar as reuniões de alguns grupos rastafaris, participando ativamente das discussões e de certo modo de vida comunitário. Como conhecia profundamente a história da África, como disse acima, talvez o indivíduo no Caribe naquele momento com maior conhecimento a respeito, a todo momento era requisitado para dar explicações e subsídios sobre a ancestralidade e os sentidos possíveis da diáspora africana: The notion of black power was not new in Jamaica. Its roots lay in the movements that followed Bedward and Marcus Garvey in the early decades of this century and in the doctrine of Rastafarianism which grew in popularity in the 1950. Rodney revived this tradition of political analysis, but set it more firmly than even before within an economic framework which recognized imperialism as a key element conditioning the lives and prospects of the Jamaican people (PAYNE, 1983, p. 164). Era a politização que o governo jamaicano evitava a todo custo que ocorresse entre as classes populares, ou seja, a junção entre movimento negro e a consciência socialista. 14 Na Jamaica, Rodney desenvolveu um estilo de vida bastante articulado as classes baixas. A começar pelas suas vestimentas, simples, o cabelo black power e o sotaque que em nenhum momento tentava imitar a fala britânica, o que era comum nas camadas médias e altas. O mais extraordinário era a naturalidade com que o então Doutor em História se entrosava com a comunidade da cidade: Rodney had a very sharp mind and was an exceptionally gifted speaker with a mild but a very endearing manner. Young people felt that he was someone with whom they could reason. A brilliant lecture, in the few months he taught at Mona he made a deep impression in his students. His lectures were attended not only by history students but those from other faculties. His talks at the WIU Students Union on Black Power had both campus and off-campus support. He was not connected to any organization neither did he built any. He would accept invitations from youth and community groups, Rastafarian groups and high school students (LEWIS, 1998, p. 95). Sobretudo era nos groundings onde ainda mais Rodney influenciava e era influenciado pela população pobre da Jamaica. Groundings: nome dado para qualquer reunião informal e improvisada, num campo de futebol, na esquina de algum comércio, porta de igreja ou praça, etc. Era frequente sua estada nesses lugares. Duas semanas antes de sua expulsão, Rodney escreveu uma carta para seu amigo Gordon Rohler, então professor de inglês na West Indie University, campus de Trinidad e Tobago, exortando “Che” Guevara como um exemplo de vida revolucionária a ser seguida: Today, all that matters is the question of action: determined, informed and scientific action against imperialism and its cohorts. Just a Leonardo da Vinci was the archetype of Renaissance Man, so Che Guevara is the ideal of Revolutionary Man. All that is required is that one should extract the essence of his life’s experience, rather than attempt to embrace his suggestions concerning guerrilla warfare. The latter course has the serious limitation of being irrelevant to many objective situations (as Che knew). Right now I am grappling with the problem of appropriate revolutionary line within a Jamaica context. Mesmo sabendo que a revolução jamaicana se encontrasse distante no horizonte, Rodney queria viver e efetivamente vivia de uma maneira subversiva, para alguém inserido no seu campo profissional: 15 I doubt whether the situation is explosive, and I doubt whether I will be here long enough to witness the explosion, but as matter of integrity I must address myself to that question so long as I am here. Otherwise what will distinguish me from the Philistines? I live in the petty bourgeois area of Trafalgar Park, in a tree bedroomed house, I buy and eat goodies from the capitalist supermarket, I drive to work etc. This is a distinction which I must draw to have any self-respect and if its seen to be a difference by my black brothers, then this means that we are already on our way towards defining the revolutionary line (apud LEWIS, 1998, p. 111). Naquela altura, o governo já estava realizando gestões para expulsá-lo do país. Em agosto se deu a primeira reunião entre o gabinete e a reitoria da WIU no sentido de tratar da rescisão do contrato de Rodney com a universidade. Frente a negativa do vice- reitor, Philipp Sherlock, em realizar tal ato, o primeiro ministro em pessoa, Hugh Shearer, passou a tratar do assunto no inicio de outubro, com mais reuniões com o staff universitário. O primeiro ministro e todo o gabinete fez pressão contra Rodney, infrutífera para dobrar a posição da reitoria, que legitimamente argumentou não haver nada na universidade que desabonasse seu trabalho, nenhuma brecha legal para qualquer tipo de sanção. Inteirado, não obstante, que o autor estava no Canadá, Shearer de chofre expediu um decreto declarando-o persona non grata. Ao chegar na Jamaica, em 15 de outubro de 1968, as 14 horas, Rodney foi mantido no avião e obrigado a voltar para Toronto. Deu- se o início da rebelião (PAYNE, 1983, p. 164-165). 6) A História da África em Função da Revolução Negra No domingo, dia 13 de outubro de 1968, 48 horas antes de sua expulsão, na parte da manhã, Walter Rodney pronunciou seu último discurso no Encontro de Escritores Negros, no Canadá. Intitulado African History in the Service of Black Revolution, condensou muito do que o autor pensara até então sobre a relação entre História, historiógrafa e luta de classe, bem como o que viria no futuro tanto na sua vida pessoal quanto no desenvolvimento da Jamaica, do Caribe em geral e da própria África. Utilizo aqui da versão publicada em The Groundings with my Brothers, edição dos textos de 16 Rodney diretamente ligados aquela conjuntura política, lançados logo após a revolta. O exemplar em questão é de 1983. O autor considerava que, naquela época de revolução social, uma história da África umbilicalmente ligada as preocupações do presente seria essencial. Implicava dispensar uma narrativa apenas voltada para a erudição e mesmo uma “história voltada para os brancos”. Rodney afirmava que o passado da África para a revolução seria direcionado para o povo negro do Caribe. Os brancos revolucionários já estariam lado a lado dos negros por outros motivos, não necessitando, ao menos com a urgência que ele esperava, da exposição desse tipo de conhecimento. Significava igualmente tratar do dia a dia do povo simples nas centenas de milhares sociedades africanas que existiram através dos tempos. O pouco que existia até então sobre história era focado em alguns grandes impérios, e restrita a aspectos da vida das elites. Rodney descordava da dicotomia entre sociedades com Estado e sociedade sem Estado, em virtude de que, dentro dessa divisão, a força da narrativa sempre pender para o primeiro tipo: In reconstructing Africa civilizations, the concern is to indicate that African social life had meaning and value, and that the African past is one with which the black man in the Americas can identify with pride (RODNEY, 1983, p. 53). Rodney chamava a atenção para a hospitalidade dos grupos africanos, entendida como igualdade no tratamento entre ricos e pobres. A pessoa mais abastada dos clãs deveria sempre ter a casa aberta e compartilhar do alimento e vestimenta com as pessoas de menos posses. Embora o líder mais poderoso usufruísse de vantagens nessa relação, a obrigação de prestação de serviços intimidava o desenvolvimento de relações desiguais, mantendo um padrão mais justo e equânime no trato entre as pessoas. A presença europeia teria minado essa estrutura de comportamento social. Derivado disso havia o extremo respeito às pessoas mais velhas, em contraste com o tratamento dispendido pelos senhores brancos aos africanos escravizados nas Américas: An elder was learned and wise because he had had maximum exposure to life in that society, as well as to all of the formal education which was available … In a state system, elders tutored the prospective ruler and advised the ruling class, 17 while in “stateless societies” they where the sole repositories of historical, spiritual and legal knowledge. In both sets the situation they had to be informed and alert because of their responsibilities (RODNEY, 1983, p. 54). Nesse sentido, uma ausência de crimes contra o patrimônio e mesmo contra as pessoas entre elas era verificada por Rodney nas sociedades africanas com pouca ou nenhuma relação econômica com os europeus. Testemunhas de época deixaram escritos que vários bens de um grupo eram guardados eventualmente com outro grupo sem a mínima chance de serem roubados. Inexistiam prisões, e as desavenças, quando aconteciam, eram geralmente resolvidas através da sabedoria desses legisladores mais velhos. A tolerância religiosa era outro elemento em destaque. Os grupos politeístas respeitavam as outras crenças e jamais realizavam perseguições e guerras religiosas. Rodney escolhera o exemplo da religião Youruba, acrescentando que a forma de comportamento religioso refletia na forma de tratar as pessoas diferentes da média física, como albinos ou portadores de deficiência. Uma religião “não imperialista”, que inclusive teria aceitado com naturalidade o cristianismo e o islamismo nas suas margens. A Igreja Cristã da Etiópia seria um exemplo do sincretismo entre o monoteísmo revelado e a tolerância advinda do politeísmo (RODNEY, 1983, p. 55). A essa altura da argumentação, o autor justificava a necessidade de remover um senso comum que parecia existir nos afro-caribenhos daquele momento, qual seja, de que a história da África era pura selvageria e desorganização: To dispel this myth it is invariably necessary to begin the pointing out that Africa, too, had great buildings and great states similar to those which emerged in the history of those countries where our white oppressors and denigrators reside (RODNEY, 1969, p. 56). Mais que isso: “it is possible to compare the Western Sudan between the fifth and the fifteenth centuries with Europe in the Dark and Middle Ages, and the comparison is advantageous to Africa on many points” (RODNEY, 1969, p. 56). Somente quatro anos depois, em Como a Europa Subdesenvolveu a Africa, que o autor aprofundaria essa tese, demonstrando que o salto na economia de mercado teria levado a Europa a um patamar hegemônico na tecnologia de guerra, ultrapassando então as demais sociedades do planeta. Naquele ponto, a superioridade histórica dos africanos tinha a ver como um 18 melhor equacionamento dos conflitos sociais, de sorte a configurar uma vida menos violenta e injusta do ponto de vista econômico. Novamente através dos testemunhos escritos de viajantes que estiveram na África nos séculos anteriores as grandes navegações, o autor elencou uma serie de elogios expressados por eles, igualdade, respeito, tolerância, etc, inclusive atributos no sentido de barrar o advento do capitalismo no bojo dessas sociedades: The few studies which exist suggest that the two continents were fundamentally different in ethos and were not moving in the same direction. Even within the empires of Ghana, Mali and Songhai, the explosiveness of class contradictions was lacking … In the states of Ashante and Dahomey, whose growth was contemporaneous with European mercantilism, there was no concept of “market” in the sense of supply and demand, and the social redistribution of goods made accumulation impossible (p. 57). Com isso, Rodney parecia sugerir que inclusive culturalmente o continente africano detinha superioridade, na medida em que não haveria distinção entre arte popular e arte erudita, fomentando dessa forma uma circulação mais dinâmica e espraiada diariamente. Uma cultura orgânica por assim dizer. Ao passar para os pontos positivos do capitalismo, como Marx no Manifesto, Rodney preferiu destacar a capacidade do sistema em gerar milhares de africanos cada vez mais fortes e resistentes, retirados dos seus lares na África mas vivos e em luta na América naquele momento. Como se o tráfico e a escravidão tivessem feito ainda mais forte o povo negro habitante do Caribe. Ao invés de dissertar sobre a destruição econômica causada pelos Europeus, optou por um outro caminho: “We did survive not only in Africa, but on this side of the Atlantic – the greatest miracle of all time! And every day black people in the Americas perform the miracle anew” (p. 58). Apenas sobreviver na América não era o suficiente. Assim, Rodney exortava que o conhecimento da História africana, pela angulação abordada acima, daria o fomento e o encanto para que as lutas dos negros naquele momento ganhassem ainda mais força e possibilidade de vitória: “This is the main revolutionary function of African history in our hemisphere” (p. 58). 19 Não era uma história para os africanos na África, senão para os africanos nas Américas. Onde um grande acontecimento já havia assinalado o início dessas transformações, a Revolução Cubana: The Cuban revolution has already demonstrated in this hemisphere the role and the achievement of black people as participants in a people’s war against imperialism … Interest in the African revolution, in the African plastic arts and drama and the history of Africans in the New World, is cultivated in Cuba today at a level that is far above that of neo-colonialist Jamaica, which is 95 per cent black. (p. 51) Cuba havia superado a necessidade de distinção entre negros e brancos. Para Rodney, era a inspiração a ser seguida. 7) A Revolta Tanto o corpo docente quanto o corpo discente ficaram sabendo do banimento na noite do dia 15 de outubro de 1968, uma terça feira, dois dias após Rodney ter pronunciado o discurso acima analisado. Naquele momento, cerca de 900 estudantes se reuniram numa assembleia improvisada, deliberando por marchar, no dia seguinte, rumo ao gabinete do Primeiro Ministro Hugh Shearer e do Ministro do Interior, de sorte a entregar duas petições de protesto. Na manhã do dia 16 de outubro, quarta-feira, o governo se antecipou a marcha dos estudantes, que a essa altura se somavam alguns professores. Suspendeu a circulação dos ônibus que serviam nos pontos pertinentes. Dessa forma, formou-se uma grande multidão se deslocando a pé a caminho dos prédios administrativos. Logo, foram cercados por policiais que abriram a repressão com cassetetes e gás lacrimogênio. Centenas ficaram feridos e muitos se dispersaram. Os que conseguiram chegar em frente ao ministério de Interior, no centro de Kingston, organizaram um comício. A esposa de Walter Rodney, Patrícia, então grávida, pode dizer algumas palavras de protesto contra o banimento do marido, além de alguns professores da WIU (PAYNE, 1983, pp. 166-167). 20 Junto aos estudantes e professores se juntaram jovens desempregados, trabalhadores e membros do movimento Rastafari. Após as falas, a multidão se dirigiu ao gabinete de Shearer. No caminho, passaram pela sede da central sindical filiada ao JLP, onde foram atacados com pedras e garrafas. Novamente houve intervenção policial no sentido de desfazer a manifestação. Depois de muita violência por parte da polícia, resultando em vários estudantes e professores feridos, um estudante com o braço quebrado inclusive, a multidão se dispersou, sendo que alguns voltaram em ordem para o campus da WIU. Mas aí outro movimento aconteceu: As the student demonstration dissipated, however, so thousands of unemployment youth and members of the lumpenproletariat came on the streets of the city. They were inspired not by the issue of academic freedom, but bye the class and racial oppression which the banned Rodney had condemned (PAYNE, 1983, p. 167). Tratou-se do momento mais importante da revolta, com a união nas ruas entre estudantes, professores, desempregados e trabalhadores jamaicanos, como se o pensamento e a prática política de Walter Rodney estivesse se encarnando nas ruas. Os manifestantes se concentraram no ataque as sedes das grandes multinacionais, sobretudo bancos, companhias aéreas e empresas de Petróleo. Cerca de 50 ônibus pertencentes a uma empresa estrangeira foram queimados e ∕ ou danificados. As tarifas haviam sido recém majoradas, o que se tornou um motivo a mais para esse ato. Não houve registro de ações contra propriedade estatal ou de jamaicanos, sugerindo uma consciência política determinada na multidão. No final daquela quarta-feira, com os distúrbios contidos, o governo calculou em 1 milhão de libras os prejuízos materiais. Três manifestantes foram mortos, enquanto onze policiais ficaram seriamente feridos. The response of the security forces was nevertheless extensive … Heavily armed police riot squads and units of the Jamaica Defense Force, were deployed by a joint military police control center set up … Members of Jamaica National Reserve were called up … convened a meeting of all justices of the peace and members of service and guns clubs to discuss the security situation (PAYNE, 1983, p. 168). 21 Essa união do aparato repressivo do Estado contribuiu decisivamente para que a revolta fosse estancada. Não houve tempo ou capacidade, do lado dos revoltosos, no sentido da formação de lideranças com algum tipo de projeto alternativo de poder. Na noite de quinta-feira, dia 17 de outubro, o primeiro Ministro Hugh Shearer discursou em cadeia de rádio e televisão. Acusou Walter Rodney de ser um notório comunista estrangeiro, conspirador profissional e responsável pela desunião dos povos. Usou das duas visitas de Rodney a Cuba e de uma visita a União Soviética como prova das acusações. Utilizou de um discurso do autor sobre a necessidade de uma revolução para reforçar seus argumentos de que parte dos estudantes e dos professores da WIU eram estrangeiros e anti-jamaicanos, influenciados e portadores de uma ideologia e uma prática antinacional. Eram os verdadeiros culpados pelos distúrbios dos dias anteriores. Shearer’s performance effectively laid down the propaganda framework within which the government sought to anaesthetize the political impact of the riots. It fed on long-standing anti-communist feeling in the country, stimulated the latent anti-intellectualism of local society, fuelled traditional Jamaican hostility towards the rest of Caribbean, and appealed to national unity in the face of what was characterized as a subversive threat to the security of the state (PAYNE, 1983, p. 169). O partido de oposição, PNP, teve uma reação ambígua às atitudes do governo. Embora seu líder histórico, Norman Manley, tenha condenado a arbitrariedade da expulsão de Rodney, endossou as acusações de agente comunista internacional, questionando as razões do porque a expulsão não ter se dado mais cedo. Os principais jornais e rádios reforçaram a versão governista, enfatizando trata-se de um líder comunista que estava enganando a população negra jamaicana para um golpe de Estado vermelho. Os estudantes e professores foram tratados como peças meramente manipuláveis. 22 8) Considerações Finais Acredito que tal como Walter Benjamin, nas Teses sobre o Conceito de História, Rodney acreditava no poder do passado encantando as lutas revolucionárias do presente. No destaque que deu a história africana, preferiu desenvolver as questões de igualdade e humanidade, no contraponto à sociedade europeia. Entendeu superior a organização dos povos africanos, mais preocupados com o bem estar da comunidade e o livre desenvolvimento das pessoas, novamente em oposição a Europa das grandes desigualdades, absolutismos e guerras ininterruptas. Não tentou utilizar da história para propor estratégias de tomada do poder e direcionamento do Estado para o socialismo. Penso que o autor separava a luta moderna com o conhecimento do passado, embora tentasse articular ambas as coisas. O passado seria uma forma de animar e direcionar o povo negro da Jamaica para a formação de uma nova vida social, para isso utilizando dos exemplos ligados aos valores anticapitalistas. Não se tratava de simplificar ou mitificar, embora isso tudo estivesse presente, mas formatar essa análise para um determinado fim. Sabia da importância e dos aliados do movimento negro socialista, daí a sempre elogiosa referência a Ernesto “Che” Guevara e a revolução cubana. Tendo visto o socialismo se desenvolver na Tanzânia, percebeu as limitações intrínsecas para um país pobre e subdesenvolvido chegar a uma economia de abundancia. Por isso a chamada para a união entre todo o Caribe e a África. Embora materialista, Rodney nunca desdenhou da potência do Rastafári e da ligação com a ancestralidade espiritual africana, mais um ponto a liga-lo, penso eu, com as reflexões de Walter Benjamin num outro contexto. Nos anos 1970 o movimento negro com a pegada socialista se esparramou pelo Caribe, na música, na literatura e na política, seja num caminho progressista ou regressista. A Guiana, antiga Guiana Inglesa, independente da Inglaterra desde 1966, se declarou República Cooperativa em 1970, refundando seu Estado através da supremacia negra em relação aos outros povos. Essa resultante foi um Estado extremamente autoritário, contra o qual Rodney lutaria até o final da sua vida. Por outro lado, a ilha de Granada teve um desenvolvimento positivo, até a invasão de 1983 e o assassinato de Maurice Bishop, político que também havia sido educado na 23 tradição do socialismo africano. O New Jewel Movement veio à tona com uma estrutura leninista e marxista. O Suriname, independente da Holanda em 1976, protagonizou um golpe de Estado de caráter nacionalista, em 1980. Desi Bouterse, na primeira fase do novo regime, igualmente se identificou com o marxismo e o socialismo cubano. El Salvador e a Nicarágua tiveram movimentos que dialogaram com esse cenário. A própria Jamaica nos anos 1970 foi um exemplo de aprofundamento popular da política e da cultura. O turbulento ano de 1968, mundialmente importante, teve na Jamaica o influxo decisivo de Walter Rodney, suas ideias e sua prática política. A virada neoliberal dos anos 1980 foi derrotando um a um essas experiências, ora de forma violenta, ora de forma econômica processual. 9) Walter Rodney e o Marxismo Walter Antony Rodney foi um dos principais historiadores do seu tempo. Nascido na então Guiana Inglesa, em 1942, foi assassinado por motivos políticos na posterior Guiana independente (República Cooperativa da Guiana), em 1980.2 No campo historiográfico, escreveu verdadeiras obras-primas, tanto do ponto de vista empírico, argumentando através de exaustivas documentações primárias, muitas vezes inéditas no seu tempo, quanto do ponto de vista teórico, manejando a história global e o marxismo de modo criativo e rigoroso. A History of the Guyanese Working People (1881-1905), publicado postumamente, e Como a Europa Subdesenvolveu a África, de 1972, seriam exemplos disso (Rodney, 2022).3 No campo universitário, teve experiência de docência, pesquisa e orientação de alunos em vários continentes. Graduou-se em História na West Indie University (WIU), campus da Jamaica, em 1963. Na condição de um dos melhores alunos da turma, conquistou uma bolsa de estudos para cursar o doutorado na School of Oriental and African Studies (SOAS), da London University, onde defendeu sua tese, em 1966 (A 2 Em 1970, o então primeiro ministro Forbes Simpson Burnham, após quatro anos de independência, mudou o estatuto político da Guiana para uma república cooperativa, suspendendo o pagamento da divida externa e estatizando alguns setores econômicos. Para Walter Rodney e vários críticos, o novo regime se resumiu a uma ditadura disfarçada; de uma elite afro-guianesa sobre a própria população negra e de etnia indiana. Para as informações biográficas sumárias dessa introdução, me baseei em Zeilig (2022) e Lewis (1998), além do Walter Rodney Papers In: Robert, W. Woodruff Library, Atlanta University. Disponível em: https://findingaids.auctr.edu/repositories/2/resources/9. Acesso em: 16 jan. 2024. 3 Como a Europa Subdesenvolveu a África é o único livro de Walter Rodney traduzido no Brasil até hoje. Apareceu em 2022 numa importante edição da Boitempo. https://findingaids.auctr.edu/repositories/2/resources/9 24 History of The Upper Guinea Coast, 1545-1800). Optou pela docência na Tanzânia, então sob a experiência socialista de Julius Nyerere, no ano de 1967. Voltou para a Jamaica em 1968, na condição de professor full time, sendo expulso do país em outubro desse mesmo ano sob a pecha de subversivo. Retomou a carreira na Universidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia, trabalhando no Departamento de História junto com figuras como Giovanni Arrigh e Terence Ranger. Em 1974, decidiu se transferir ao seu lugar de nascimento, sendo impedido de assumir um posto no Departamento de História na Universidade da Guiana pelo governo de Burnham. No campo da militância, Rodney iniciou, como adolescente, entregando panfletos do PPP (People’s Progressive Party) de casa em casa na Guiana Inglesa. Seu pai, alfaiate, e sua mãe, costureira, eram militantes desse partido que reivindicava o marxismo- leninismo enquanto identidade e princípio organizativo. Na Jamaica, como estudante de graduação, vivenciou de muito perto o terremoto da Revolução Cubana, a invasão patrocinada pelos norte-americanos e a transformação da ilha em Estado socialista. Em 1962, presenciou a independência da própria ilha jamaicana. Como aluno, envolto nas questões da juventude, viajou para Cuba, onde conheceu pessoalmente Fidel Castro, e para o leste europeu até a URSS. Em Londres, na fase do doutorado, frequentou um grupo de estudos marxistas organizado pelo intelectual caribenho Cyril Lionel Robert James (CLR James) e esposa. Igualmente, ajudou, discursou e produziu volantes para a população caribenha da periferia londrina. De volta à Jamaica, no famigerado ano de 1968, se engajou no movimento black power, eletrizado, dentre outras coisas, pelo então recente assassinato de Martin Luther King Jr. Rodney optou por morar fora do campus e se tornou figura comum nos debates populares, dialogando e expondo ideias políticas nos grupos rastafaris. Após participar do I Congresso de Escritores Negros, no Canadá, teve sua volta à Kingston negada, gerando uma revolta popular conhecida como Walter Rodney Riots, em que grande parte da população negra e pobre da ilha incendiou carros e trancou ruas reivindicando a entrada do autor no país. Os discursos e intervenções públicas naquele contexto foram reunidos e publicados de imediato sob o título de The Groundings With my Brothers, primeiro documento escrito com suas ideias a circular em escala internacional (Rodney, 1969). Na Tanzânia, entre 1969 e 1974, para além das atividades de ensino e pesquisa, se envolveu em grupos de discussão política, greves e reivindicações por melhores condições de vida e salário, além de vários colóquios internacionais expondo as condições 25 do socialismo tanzaniano, então batizado de Ujamaa. Na Guiana, a partir de 1974, Rodney fundou, junto com professores, alunos e funcionários da universidade, mais alguns grupos de trabalhadores mineiros e açucareiros da zona rural, o WPA (Working People Aliance), que no final dessa década se transformaria num partido político de fato. A pedra angular era a conscientização da população guianesa na perspectiva marxista, a luta parlamentar e extraparlamentar visando à derrubada da ditadura de Forbes Burnham e a construção de um verdadeiro Estado socialista. Neste relatório, meu objeto é investigar a maneira com que Walter Rodney refletiu e utilizou efetivamente a perspectiva marxista no seu tempo durante sua segunda passagem na Tanzânia, entre 1969 e 1974. Minha hipótese principal é de que, embora plenamente inserido no campo acadêmico e na tradição ocidental, Rodney operou com um estilo de marxismo próprio, com teoria e prática umbilicalmente ligadas, fusionando a tradição clássica europeia com a tradição de luta caribenha, tanto negra quanto guevarista, e a situação concreta da África. Em finais de setembro de 1968, ainda na Jamaica, Rodney escreveu uma carta para um amigo, Gordon Rohlehr, afirmando: Today, all that matters is the question and action: determined, informed and scientific action against imperialism and its cohorts. Just a Leonardo da Vinci was the archetype of Renaissance Man, so Che Guevara is the ideal of Revolutionary Man. All that is required is that one should extract the essence of his life’s experience […] Right now I am grappling with the problem of appropriate revolutionary line within a Jamaica context (Rodney apud Lewis, 1998, p. 111). Diria que C. L. R. James, no Caribe e na Europa, e Amílcar Cabral, na África, teriam sido as influências mais diretas nesse sentido sob Walter Rodney, para além da obra marxiana em si mesma. A peculiaridade do autor, não obstante, repousou no fato de ter sido um historiador consagrado e teórico respeitado, inserido num continente distinto, num contexto de recém-independência política e numa configuração onde raça e subdesenvolvimento se apresentaram de maneira bastante particular. E que fez parte tanto da vida acadêmica quanto da construção de um novo regime através do Estado tanzaniano. Quando em Londres, frequentando o grupo de estudos sobre marxismo, Rodney estabeleceu contatos com o grupo da chamada New Left Review, como Eric Hobsbawm, Perry Anderson e Edward Palmer Thompson, historiadores como ele. Sobre esse grupo, Rodney testemunhou: 26 From my brief meetings with some of them and my readings of their materials, my impression was they tended to be very facile, within a tradition of attempting to be clever – the idea was who could put forth clever formulations. I was never convinced of any depth or any seriousness of purpose among these people… And there was always that latent racism, sometimes coming out a paternalism, sometimes coming out in hostile manifestations (Hill, 1990, p. 31). Um afastamento que, de acordo com os críticos, não defasou em nada o conhecimento histórico de Rodney e sua capacidade de exposição. O famoso sociólogo e historiador Immanuel Wallerstein, por exemplo, ressaltou que Rodney, nos estudos sobre economia mundo, agenciamento, natureza das lutas sociais na história, estrutura da classe trabalhadora e as inter-relações entre raça e classe, se destacou pela extrema qualidade de suas análises e pioneirismo em muitas delas, abrindo caminho para outros historiadores desenvolverem suas abordagens (Wallerstein, 1985, p. 331-332). O método que utilizei para verificar essa hipótese e desdobrar algumas considerações foi consultar quatro artigos ∕palestras que Rodney produziu no período em tela, localizados no arquivo Walter Rodney, na Atlanta University, sob os cuidados da Robert W. Woodruff Library (Walter Rodney Papers). São eles: A Brief Tribute to Amilcar Cabral, Marxism and African Liberation, Marxism as a Third World Ideology e, finalmente, Tanzanian Ujamaa and Scientific Socialism. Busquei entender os três primeiros artigos como um diálogo do autor com a tradição marxista, me esforçando em demarcar seus juízos sobre o marxismo e o respectivo emprego na realidade africana. O último artigo seria exatamente a aplicação concreta de um caso concreto, isto é, a situação do socialismo na Tanzânia tal como interpretada por Rodney naquele momento histórico, à luz de trechos específicos selecionados por ele da obra de Marx e Engels. As conclusões a que cheguei foram que o autor, no campo marxista, se filiou à questão ortodoxa do método enquanto universal heurístico, se assemelhando com o filósofo húngaro George Lukács, de História e Consciência de Classes (1923), no ensaio canônico “O que é o marxismo ortodoxo”, embora não o cite em nenhum momento (Lukács, 2003). Ao fundir, sem mais, o marxismo como sinônimo de Socialismo Científico, sempre grafado em maiúsculas, Rodney se afastou tanto do marxismo universitário quanto do socialismo africano e do pan-africanismo, plasmando, a meu juízo, um arcabouço original vazado justamente na sua experiência no Caribe e na África, e no background do campo da História enquanto disciplina acadêmica e área de pesquisa. 27 Inovou, outrossim, na medida em que justificou esse amálgama numa argumentação densa e numa prática política condizente com essa conceituação. A tudo isso chamo, ainda que de forma algo provisória, de marxismo revolucionário caribenho-africano. Reconhecendo a existência das mais diversas correntes no marxismo – trotskismo, maoísmo, estalinismo etc. – Rodney salientou ser contraproducente o debate sobre as mesmas, circunscrevendo o marxismo revolucionário caribenho-africano enquanto uma universal ideologia da classe trabalhadora e uma prática anti-imperialista e anticapitalista. Ao analisar a situação política na Tanzânia utilizando-se desse escopo, Rodney demarcou as diferenças profundas em relação ao chamado socialismo africano e ao pan- africanismo, considerados como ideologias heteróclitas e de fundo burguês, embora ambas dialogassem e aceitassem certos influxos do marxismo latu sensu. Hoje conhecemos a diversidade de experiências políticas que marcaram a África independente. A época, Rodney tendeu a tratar no nível de generalidade a crítica, a não ser em um ou outro caso em que citou o líder e o país africano em avaliação. O arquivo Walter Rodney em Atlanta faculta o acesso à totalidade da obra do autor, não permitindo a priori qualquer tipo de reprodução digital ou física. Ao consulente é permitida a entrada somente com uma caneta e um papel. Assim sendo, meu trabalho foi deveras facilitado após a publicação de Decolonial Marxism pela editora londrina Verso, que publicizou os documentos em tela (Rodney, 2022). Entre a versão original nos arquivos e essa versão impressa, as modificações foram de uma ou outra palavra, eventualmente ilegível no original, e o acerto de datas e citações. Assim, acompanho os textos publicados nessa coletânea, numerando a cada citação a página onde se encontra no exemplar em e-book. Os textos, como disse acima, foram produzidos entre 1971 e 1974, embora o livro não aponte data, uma insuficiência grave que deve ser corrigida nas próximas edições. Também aqui minha discordância com o título, na medida em que, como tentarei demonstrar, Rodney não se contrapôs a epstemologia ocidental de per si e nem ressaltou a questão racial enquanto um imperativo formatador de suas reflexões, o que o levaria de maneira mais objetiva ao universo da decolonialidade. Sustento que foi um revolucionário marxista de formação caribenha atuando em condições concretas na África Oriental, muito diferente da figura acadêmica militante dentro de um campo intelectual demarcado. Daniel Montanez Pico, por exemplo, no excelente livro Marxismo Negro: Pensamiento Descolonizador del Caribe Anglófono, elenca uma dezena de pensadores marxistas 28 nascidos no Caribe no século XX, de Oliver Cox a Stuart Hall, passando por Eric Williams a Rhoda Reddock. Apenas Walter Rodney foi encontrar a morte numa atividade revolucionária, um índice sintomático do que pretendo demonstrar. (Pico, 2020). O que não diminui e nem desqualifica a vida e a obra de todos os autores trabalhados por Pico, que aliás demonstra que as marxistas e os marxistas negros advindos do Caribe amiúde tiveram em vista a união entre teoria e prática, muitos tendo careiras e vida pessoal altamente prejudicadas por se organizarem e lutarem contra a sociedade de mercado. 11) Teoria e prática Walter Rodney dedicou um artigo para analisar, e de certa forma homenagear, o líder da independência de Cabo Verde, Amílcar Cabral, assassinado em 20 de janeiro de 1973. Considerou que o marxismo de Cabral era algo de vida e de morte, donde a ligação indissociável entre a teoria e a prática. Em uma passagem citada de algum discurso de Amílcar Cabral, sem data, o autor demonstrou a importância tanto da independência quanto da transformação social no sentido da modernização da tecnologia e, consequentemente, da cultura africana: Independence is not just a simple matter of expelling the Portuguese, of having a flag and a national anthem. The people must be secure in the knowledge that no one is going to steal their labour, that the wealth of the country is not going into somebody else’s pocket. Even today the Guinean people stand naked and are still afraid of the river, the rain and the forest. We tell the Guinean people that by their work the river will be tamed, and the rain will be put to good use (Rodney, 2022, p. 14).4 Isto é, não só uma independência política era necessária senão um salto econômico que retirasse o povo africano do que se entendia tratar de atraso e medo frente à natureza, propiciando maior produção de riqueza através de uma exploração racional dos recursos naturais. No final da reflexão, Rodney destacou a qualidade de Cabral no sentido de nunca delimitar a priori o elemento revolucionário e o elemento reacionário numa luta por independência. Todas as classes envolvidas nesse sentido carregariam em germe um 4 Como já comentado, nas demais citações em inglês constará apenas o número da página da obra em referência nesta citação. 29 potencial revolucionário, cabendo ao líder e ao movimento desenvolverem e consolidarem essa faceta (p. 15). 12) O marxismo na África Esse deve ter sido provavelmente o tópico em que por mais vezes Walter Rodney foi confrontado, tendo em vista a crítica daquele tempo, e que ainda hoje se faz presente, de que o marxismo se define por ser uma ideologia eurocêntrica, escrita e desenvolvida por homens brancos, sem valor real para o continente africano, para as lutas pela independência e contra o racismo. De maneira engenhosa, o autor assinala que o fato da pergunta sempre aparecer – o marxismo é relevante em tal século ou em tal área – já seria por si revelador de uma batalha no campo das ideias. Porque não seria acompanhada pela pergunta oposta, por exemplo: qual a relevância do pensamento burguês para a África? Assim, a consideração de uma perspectiva como universal, a burguesa, enquanto outra como particular, o socialismo científico ∕ marxismo, revelaria uma faceta da luta política. No caso da África de colonização britânica, o problema estaria mais aguçado, dado o fato da força de repulsão ou apagamento na cultura da tradição marxista: If you were to check on the continental tradition in Europe, you would find it is not the same. French, German and Belgian intellectuals, whatever their perspective, understand the importance of Marxism. They study it, they relate to it, they understand the body of thought that is called Marxism and they take a position vis-à-vis that body of thought. In the English tradition, which was also handed down to this part of the word, to the Caribbean, to many parts of Africa, it is fashionable to disavow any knowledge of Marxism. It is fashionable to glory in one’s ignorance, to say that we are against Marxism (p. 47-8). Rodney passa então a expor o porquê de entender tratar o marxismo de uma perspectiva universal de pensamento. 13) O marxismo como metodologia Primeiro, Rodney entende o marxismo como uma metodologia, portanto algo que não se restringe a um tempo e a um espaço circunscrito: “Because a methodology would, virtually by definition, be independent of time and place. You will use the methodology at any given time, at any given place” (p. 50). 30 O método é entendido como destaque primordial para a transformação ininterrupta da história através do trabalho, ou seja, da relação do homem com o mundo material. O marxismo, no século XIX, traria essa novidade de pensar o início da história através da atividade material e da intervenção produtiva do homem na natureza. Desse processo se manifestariam diferentes tipos de consciência: So, this is the crux of the Scientific Socialism perception. A methodology that address itself to man’s relationship in the process of production on the assumption, which I think is a valid assumption, that production is not merely the basis of man’s existence, but the basis for defining man as a special kind of being with a certain consciousness (p. 52). Rodney tratava como sinônimos marxismo e Socialismo Científico, grafando esse último sempre em letras maiúsculas. E completava que, ao contrário do texto bíblico, no início não era o Verbo, mas o Verbo teria derivado das relações humanas envoltas nos processos de produção material e manutenção da existência. Como produção e manutenção da existência através da produção e da circulação de valores de uso, e consequentemente do desenvolvimento da linguagem e da cultura, são processos que ocorreram em todo o planeta com o ser social, o método marxista, que se apega exatamente a esse esquema, seria universal, servindo tanto para Marx na Inglaterra no século XIX quanto para Amílcar Cabral na África no século XX. O conteúdo advindo do método de pesquisa histórica é que seria diferente em cada caso. Na questão de Cabral, Rodney argumentou que em Cabo Verde e Guiné Bissau não existia uma história escrita para que o método marxista fosse aplicado. Cabral, de maneira criativa, teria reconhecido tanto essa falta quanto a necessidade de supri-la, se propondo a escrevê-la através da análise da evolução tecnológica daquela sociedade. Todavia, reconhecia que, por conta das peculiaridades históricas locais, classes não havia na Guine Bissau, e, portanto, não seria uma “história da luta de classes”, mas tampouco uma história apartada do método marxista. Nesse ponto, Rodney passou a atacar uma forte vertente das argumentações antimarxistas na África, que considerava a não existência de classes sociais uma prova de que a questão chave para entender o passado do continente seria de raça, portanto, fora do horizonte do marxismo clássico. A meu juízo, o autor se aproximou de Caio Prado Junior, autor de Formação do Brasil Contemporâneo (Prado Jr., 2000), quando entrou a contestar a ojeriza de certos grupos de esquerda na África em relação ao marxismo sublinhando que a África moderna, colonizada outrora e em processo de descolonização, estaria configurada, acima de tudo, 31 como uma manifestação das contradições capitalistas, das formas de sua concretização naquele tempo e espaço (p. 56): Even without the translation in terms of time and place, it seems to me that if we have become part of the capitalism-imperialism world, then we owe it to ourselves to relate to, to follow, to understand, and hopefully adopt and adapt a critique of that capitalism system because that is essentially what Marx’s writing is about … If we want to understand the world in which we live, which is the world dominated by capitalism, then we must understand the centre of that system, the motor of that system, the types of exploitation which are to be found within the capitalism mode of production (p. 55-6). Rodney entendia que, sem uma intervenção consciente e coletiva no sentido contrário, o capitalismo iria adentrar mais e mais o continente, destruindo e substituindo todas as relações existentes, tanto no plano político-econômico quanto no plano da cultura. 14) O marxismo como ideologia Numa segunda vereda de argumentação, Rodney passou a tratar o marxismo enquanto uma ideologia revolucionária e uma ideologia de classe. Na sociedade capitalista, todas as ideologias seriam ideologias de classe. A ideologia da classe trabalhadora latu sensu seria o Socialismo Científico: I would suggest, historically, as Marx suggested himself, that the ideas we call Scientific Socialism arose within capitalist society to speak to the interest of the producers in that society, to speak to the interest of the oppressed, of the culturally alienated (p. 56-7). O marxismo, nesse sentido, teria seu núcleo na superação do capitalismo, ao contrário de sua corrente adversária, considerada genericamente como “idealismo”, a favor da manutenção do sistema como um todo. Rodney não estava alheio às discussões dos mais diversos calibres e das manifestações nas mais diversas correntes das ciências humanas da tradição marxista. Porém, não hesitava em destacar o núcleo revolucionário em detrimento do aspecto acadêmico e formal, por assim dizer: From time to time there are Marxists who have arisen, who have attempted to deny or denude Marxism of its revolutionary contend. That is true. There are Marxists who have become legal or armchair Marxists, who would like to see Marxism as merely another variant of philosophy and who treat it in a very eclectic fashion, as thought one is free to draw from Marxism as one draws from Greek thought and its equivalent (p. 58). 32 É muito semelhante essa crítica, como afirmei na Introdução, com o que ficaria conhecido como “marxismo ocidental”, tal como apareceu no livro escrito por Perry Anderson naquele mesmo período (Anderson, 1976). Isto é, o marxismo predominante na Europa no pós-segunda guerra seria aquele marcado pela derrota da tentativa de superação do capitalismo, com a teoria apartada da prática e com preocupação quase que exclusiva na filosofia, donde uma linguagem cifrada e de difícil entendimento para os não iniciados. Até o estágio atual da minha pesquisa não encontrei referência aos trabalhos de Perry Anderson nos textos aqui em análise e nem em outros documentos de Rodney, com exceção do excerto na introdução sobre a New Left. Para vários líderes e grupos considerados de esquerda na África, uma outra questão se colocava naquele momento da guerra fria e da emancipação política dos países do continente. A busca de uma alternativa entre o capitalismo e o socialismo, uma terceira via que, para Rodney, caracterizaria o chamado “pan-africanismo”. O exemplo utilizado pelo autor foi o do líder de Gana, Kwame Nkrumah, herói da independência de seu país e que se autointitulava, de acordo com o autor, de marxista, protestante e pan-africanista. Formando uma confusa mistura de pensamento e ação fadada ao fracasso: “Their conception of what was a variant different from bourgeois thought and different from socialist thought inevitably turned out to be merely another branch of bourgeois thought (p. 60)”. Me parece que Rodney, como um historiador e intelectual que era ao mesmo tempo um revolucionário, tinha em mente a necessidade de um caminho claro e distinto a ser traçado, com uma ideologia assertiva e despida de elementos de outras tradições: And this was the problem, that bourgeois thought, and indeed socialist thought, when we get down to it, can have a variety of developments or roads and aspects or paths. With bourgeois thought, because of its whimsical nature, and because of the way in which it prompts eccentrics, you can have any road, because, after all, when you are not going any place, you can choose any road (p. 60). Em outras palavras, tratar-se-iam de líderes importantes que, ao tentarem verdadeiramente romper com a tradição burguesa, por conta desse ecletismo, encontraram de outro lado novamente um arcabouço de pensamento e práticas burguesas. Rodney chamou a atenção para o fato de estar criticando líderes honestos, comprometidos com a causa da emancipação do povo africano. Nem caberiam considerações a respeito dos desonestos e ∕ ou aliados da dominação estrangeira. 33 Seguindo com o exemplo de Nkrumah em Gana, Rodney descreveu sua queda pelo fato de não entender as ligações do capital internacional com as elites locais, e não levar em conta a formação de uma pequena burguesia interna que teria assumido o compromisso de manejar os interesses imperialistas com os interesses capitalistas em Gana. Nkrumah percebeu esse contexto tarde demais, já expelido do poder e no exílio na Europa: Yes, there are classes in Africa. Yes, the petty bourgeois is a class with interests fundamentally opposed to works and peasants in Africa. Yes, the class interest off the petty bourgeois is the same or at least is tied in with the class interest of international monopoly capital, and therefore we have in Africa a class struggle within the African continent and a struggle against imperialism (p. 62). Apenas o Socialismo Científico daria conta de um entendimento mais correto dessa realidade, fornecendo os meios eficazes para a sua transformação. E a crítica de Rodney se fazia mais intensa contra os que acreditavam ou proferiam o pensamento de que Marx, pelo simples fato de ser europeu, não serviria para o verdadeiro interesse do povo africano: People have no difficult relating to electricity, but they say, “Marx and Engels, that’s European!”. Was Edinson a racist? But they ask the question, “Was Marx a racist?” They genuinely believe that they are making a fundamental distinction, whereas, in fact, they are obscuring the totality of social development (p. 63). Concluía com o problema da independência sem revolução. Para o autor, dada a configuração internacional e nacional, não era possível para a pequena burguesia africana se assenhorar do poder e garantir a participação política e na renda nacional das camadas de trabalhadores urbanos e camponeses nos marcos do capitalismo e da economia de mercado. Na revolução socialista repousaria a chave de um futuro promissor para as classes populares, e para tanto, a ideologia marxista teria que se espraiar para todo o continente: “As Cabral said: ‘There may be revolutions which have had a revolutionary theory and which have failed. But there has certainly been no revolution which has succeed without a revolutionary theory’” (p. 64). 15) O marxismo e o terceiro mundo Rodney se posicionou assertivamente na questão de que tipo de marxismo seria mais produtivo aos chamados países de terceiro mundo. Reconheceu que o marxismo 34 estava saturado de controvérsias, linhas de interpretação, tradições e pontos de divergência, tanto no campo da teoria quanto no da prática. Defendeu, todavia, que os marxistas dos países periféricos deveriam ignorar as polêmicas e mesmo as separações demarcadas entre trotskistas e estalinistas, ou soviéticos e chineses. A questão de definição seria única: o marxismo enquanto uma prática comum anti-imperialista e anticapitalista: “I will go on to suggest that, on principle, the introduction of Marxism factionalism into Third World political discussions in a priori fashion is usually destructive, and at best pointless” (p. 66). O argumento é que nos países periféricos o marxismo seria duplamente condenado pelo establishment internacional, por conta desses países, recém-independentes ou em processo de independência, não possuírem uma cultura burguesa consolidada ou instituições formais de cultura onde o marxismo pudesse ser algo domesticado e voltado exclusivamente para a teoria: It is generally true that while colonialists were hostile towards Marxism inside of their own countries, they were doubly hostile to Marxism and to Marxists who might appear in India, in parts of Asia, Africa, Latin America and the Caribbean. Quite obviously, it has not been an easy history for Marxism thought inside of the Western countries… But the bourgeois metropolitan system has certain capacity to accommodate. It sometimes, in fact, goes out of its way to incorporate some individuals who are outside of the so-called mainstream, and it will therefore give and take within the limits of its own maintenance and it will allow some Marxist thought to exist (p. 68). Ao não poder fruir desses espaços, os marxistas africanos, se quisessem realmente permanecer nesse lugar, estariam fadados à atividade prática revolucionária. Penso que Rodney sugeria tanto uma inevitabilidade quanto uma obrigação nesse sentido. Diante desse cenário, as ligações do marxismo com os países coloniais teriam sido extremamente censuradas. A primeira geração de intelectuais, no início do século XX, conservaria um forte idealismo, desconhecimento e mesmo preconceito com as questões do socialismo. Para o autor, essa situação fora reforçada com a propaganda ocidental a respeito da pobreza nos anos iniciais da URSS e da China comunista. Não obstante, com a consolidação desses regimes e, na visão do autor, da sucessiva melhora econômica e social respectivas, ficaria muito mais difícil esconder os êxitos de uma sociedade organizada na inspiração marxista (p. 70). Assim, novas táticas estariam sendo desenvolvidas para desautorizar o marxismo na África. A primeira seria a campanha de tratar o marxismo como algo válido, mas não adaptável às especificidades do continente: 35 Marxism in the Third World – I’ve seen this in Africa, it’s happening in the Caribbean, it happens in Asia – is counterposed against some other version or vision the world. Africans or West Indians will be told: “We understand that Marxism has some validity, but we do not think that Marxism is relevant for us. We have to look for our own solutions” (p. 71). A segunda, algo derivado da objeção acima, seria a concepção de que ambas as sociedades, capitalista e socialista, ofereceriam igualmente inspirações para que as sociedades atrasadas copiassem: A second variant on the same theme that is often interconnected, is that one can be told that there is some strength in Marxism and in socialism on the one hand, and there is some strength in capitalism and capitalism theory on the other hand; and that one of our tasks is to borrow intelligently from the two systems (p. 72). Rebatendo a primeira linha de raciocínio, Rodney admitiu que, num contexto de emancipação política frente a uma metrópole estrangeira, o apego ao local em oposição ao internacional calaria fundo no imaginário popular. Retomou, não obstante, a concepção universalista do marxismo no sentido engelsiano de um campo de conhecimento não só voltado para a sociedade e a história, senão igualmente para a natureza e as ciências físicas. O marxismo só com má fé seria tido como não utilizável para qualquer lugar. Todas as sociedades humanas padeceriam da contradição – umas mais, outras menos - entre um grupo que apropria o excedente econômico, mas não está diretamente ligado ao trabalho produtivo, e um grupo maior que produz todo o excedente, mas é apartado das decisões políticas e do usufruto da riqueza. Marx: He made it very clear that that which he and Engels had been dealing with a systematic and detailed formulation of the development of capitalism within Western Europe; and that they had attempted to describe and understand the specific features of capitalism specific to Western Europe. So that the universality which both he and Engels claimed, was not the universality that applied to Western Europe. The ‘universality’ is the universality of contradiction; the universality which can be determined by utilizing the historical materialist method with relationship to any given society (p. 75). Considerando o marxismo uma ciência em progresso, agregando sempre novos conteúdos através da pesquisa e potencializando sua capacidade de análise e ação, o autor sopesava que o terceiro mundo fertilizá-lo-ia ainda mais. “Just like with any body of science, it is not static; it takes in new ideas, it has new discoveries, it responds to the variation as scientific enquiry continues” (p. 76). 36 E a constatação era que, com os movimentos de libertação na África e no Caribe e na Ásia, o marxismo terceiro mundista se encontraria em plena ascensão. Rodney fazia questão de registrar a necessidade de separar claramente os elementos capitalistas dos elementos socialistas na fase de lutas e implantação de novos regimes: It becomes immediately obvious that one cannot have a foot in both camps; it is not possible to talk about the coexistence indefinitely of a socialist and capitalist system. There may be, at a certain point of transition, the incorporation of elements which are capitalist in a socialist system and vice versa. But if that is so, then we will have to examine the tendency; we will have to examine which of the contradictions features is manifesting itself ultimately to become the dominant system (p. 77-8). Uma crítica dirigida também à chamada política da coexistência pacífica entre EUA e URSS, que, de um certo modo, tendia a congelar a correlação de forças internacional e impedir ou dificultar a radicalização de regimes de inspiração socialista. Como exemplo histórico, o autor citava Senegal sob a liderança de Leopold Senghor, localizado no campo da esquerda com essa coloração de um sistema misto entre socialismo, capitalismo e africanismo. A conclusão de Rodney era de que, na prática, a mistura era falsa, e o capitalismo senegalês seguia como momento predominante do processo. A derrota de N’Krumah em Gana havia o levado, no exílio, a desenvolver uma análise marxista da prática política na África, reforçando a tendência revolucionária em detrimento da conciliação com elementos capitalistas. A China, na visão de Rodney, demonstrava que o marxismo podia ser “amarelo”, colocando na ocasião quase 1 bilhão de pessoas sob seu tacão. As guerrilhas na África portuguesa, as novas universidades africanas, e a própria existência do Leste europeu e de Cuba, Vietnã e Coréia do Norte eram provas de que o marxismo avançava no terceiro mundo, tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista teórico. Rodney enxergava a si mesmo como uma peça nesse movimento ascensional da revolução e do anti-imperialismo, vaticinando por novos tempos que estavam se desenhando no horizonte. 16) O marxismo aplicado na África: o caso da Tanzânia A emancipação política da Tanzânia foi bastante peculiar, se comparada aos outros países de seu entorno. A figura central foi Julius Nyerere, apenas o segundo 37 indivíduo nascido naquela região a completar um curso superior, no caso, em História. Antes de se lançar na política se consolidou na carreira de professor (Mwalimu), o que lhe rendeu um profundo respeito em todas as etnias (Zeilig, 2022, p. 38). Em 1954, Nyerere foi um dos fundadores do TANU (Tanganyka African National Unioun), partido de inspiração socialista. Ascendeu a cargos dentro da estrutura colonial britânica, que então administrava o território da Tanganica. Em 13 de dezembro de 1962, após um processo bem-sucedido de negociação, a Tanganica se emancipou politicamente da Inglaterra, se tornando o mais novo membro da Commonwealth. Em janeiro de 1964, a ilha de Zanzibar, vizinha, já independente igualmente dos britânicos, foi palco de uma revolução popular liderada por Abeid Karume, do Partido Afro Shirazi (ASP). O sultão foi derrubado e um regime de esquerda foi rapidamente instalado na ilha. Coincidindo seus interesses e alianças, Nyerere e Karume estabeleceram uma fusão, fazendo nascer assim a República Unida da Tanzânia, em 23 de abril de 1964 (Barbosa, 2019, p. 92). Com Nyerere na presidência e Karume na vice, a Tanzânia se posicionou a princípio enquanto um país não alinhado, que buscava uma social democracia sem necessariamente reivindicar a tradição marxista. O regime foi batizado de Ujamaa, um sinônimo para o conceito amplo de família comunitária (Zeilig, 2022, p. 39). Internamente, o Estado tanzaniano plasmou-se num regime de partido único, centralizando a economia e fomentando uma estrutura produtiva não mercantil. Os conceitos da Ujamaa foram implementados no movimento estudantil e nas forças armadas, através de um vigoroso trabalho educativo e de formação capitaneado pelo TANU. Em 1965, ao estabelecer plenas relações diplomáticas com a Alemanha Oriental, a Tanzânia se viu num imbróglio internacional, sendo atacada pela Alemanha Ocidental e tendo suas relações cortadas com a mesma. Para além disso, Nyerere viajou à China comunista e iniciou um processo de aproximação com Mao Tsé Tung. Também se posicionou contra o regime de Apartheid na África do Sul e na Rodésia, resultando num desgaste irreconciliável com Londres, rompendo relações também com a Inglaterra, sendo o primeiro país da Commonwealth a fazê-lo. O embaixador da Tanzânia em Kinshasa, no Congo, interceptou uma mensagem secreta que sugeria o preparo de uma intervenção norte-americana para derrubar Nyerere, o que acabou não se concretizando (Wache, 2017, p. 72). Naquele cenário, o líder tanzaniano acelerou ainda mais as transformações, estatizando toda a indústria e organizando fazendas coletivas país afora. No dia 5 de fevereiro de 1967, na cidade de 38 Arusha, decretou-se oficialmente o caráter socialista da Tanzânia, na famosa Arusha Declaration (Zielig, 2022, p. 102). O país se tornou um apoiador e um refúgio para os grupos revolucionários do entorno. A Universidade de Dar Es Salaam, por muitos anos então, se transformou no maior polo acadêmico de intelectuais exilados na África Oriental. Foi naquele contexto que Walter Rodney viveu e escreveu, entre tantos outros trabalhos, Tanzanian Ujamaa and Scientific Socialism, o qual passo a analisar adiante. Rodney considerou a Ujamaa em dois sentidos. O desenvolvimento do senso comunitário e igualitário impresso nas tradições dos povos que compunham a Tanzânia e também a organização, via Estado, da agricultura tanzaniana, pontos que afinal de contas eram convergentes: “The relation between the two is that the Ujamaa villages seek to recapture the principle of joint production, egalitarian distribution and the universal obligation to work with were found within Africa communalism” (p. 244). Na prática tratar-se-ia de uma engrenagem na posição anti-imperialista e anticapitalista do país, diferente, de acordo com o autor, de líderes de nações que se localizavam no espectro da esquerda, como Leopold Senghor, de Senegal e Tom Mboya, do Quênia, políticos que fomentariam o socialismo apenas enquanto uma ideologia de Estado, que na prática se mantinha na esfera capitalista. Rodney assegurou que pensar o Socialismo Científico apenas possível através de uma revolução proletária em um país industrializado seria um grande equívoco. O caminho efetivo tomado pela Tanzânia seria o Socialismo Científico na medida em que mantinha a socialização dos meios de produção num contexto de abundância como destino último, buscando esse objetivo através de transformações efetivas dentro dos limites e das peculiaridades da situação africana. Outros socialismos na África é que seriam utópicos: Utopian socialism, or at least utopian elements in socialism thought, have persisted and reappeared from time to time. ‘African Socialism’ is utopian in its refusal to come grips with the class relations in which Africans are enmeshed and its romanticized ignorance of the stages of African historical development (p. 247). O autor polemizava com alguns líderes e intelectuais africanos que diziam não existir classes na África e que, portanto, nenhum investimento estrangeiro poderia corromper ou promover desigualdades sociais. No processo tanzaniano, de fato, havia ocorrido uma desapropriação de uma pequena burguesia de origem indiana, controladora de grande parte do comércio 39 internacional e das finanças no período colonial. A nacionalização posterior das indústrias e da agricultura havia levado a um atrito profundo com a Inglaterra e os Estados Unidos, fazendo com que as multinacionais ligadas a esses países se retirassem ou esfriassem as relações econômicas. A Arusha Declaration, que Rodney citava, dizia ser inconciliável o capitalismo com o socialismo, portanto, se afastava do ideário “utópico” da mistura entre ambos. Os elementos privados, sistema de salários e hierarquia, eram vistos por Rodney como componentes passageiros da nova sociedade que estava sendo construída, e não permanências valorizadas, como parecia ser o caso do “socialismo africano”. No interior do país havia várias regiões que a organização comunal não tinha alcançado, por conta da falta de força do Estado, mas também da variação étnica que compunha a nação. Assim, em muitos lugares ainda havia médios e pequenos proprietários de terras que praticavam uma agricultura que abastecia o mercado interno e que igualmente exportava parte da produção, facultando o assalariamento de trabalhadores sem-terra. Nyerere, em seus discursos, acusava essa situação como negativa, tendendo a recrudescer a desigualdade herdada do tempo colonial. “Marx and Engels attacked ‘Proudhonism’ because, among other things, Proudhon saw socialism as being based on independent petty producers of the artisan class” (p. 249). Pequenos e médios produtores independentes explorando mão de obra assalariada não constituiriam um caminho para a Ujamaa. Rodney passou a expor o debate sobre a questão agrária russa, tal como ocorrida nas cartas de Marx aos populistas no século XIX, indicando que a possibilidade do salto ao socialismo poderia ocorrer caso a igualdade da comunidade agrária russa fosse salva por uma revolução no Ocidente: For purposes of an analogy with Tanzania and Africa, what is crucial is that the founders of Scientific Socialism seriously and enthusiastically contemplated a variant of socialism very much akin to Ujamaa, and they indicated the conditions under witch it might be realized. The most important requirements were: first, that the “traditional” forms should exist in real life and have some social vitality; and second, that international conditions should be favorable owing to a socialist breakthrough in some part of the world (p. 254). Rodney, após um estudo exaustivo da história africana, refletiu que o comunitarismo africano havia sido quase que totalmente desmontado pelo passado feudal e pela organização da empresa colonial europeia. Uma ação consciente e enérgica do Estado poderia evitar ainda mais essa degeneração. A continuidade da inserção africana 40 no mercado internacional cuidaria por reforçar a desigualdade no mundo rural e a consequente estratificação hierárquica. A possibilidade de evitar a degeneração comunal e desenvolver o núcleo comunitário estaria na revolução mundial, inexistente no século XIX em relação à Rússia, todavia, presente na segunda metade do século XX, com o campo socialista e sua relação comercial com os países aliados na África. Estaria na seara do Socialismo Científico a Ujamma, ao intervir fortemente no campo e organizar as vilas de maneira comunista, ao combater a estratificação e o dinheiro e ao mesmo tempo articular relações políticas e comerciais cada vez mais aprofundadas com os estados socialistas já existentes: After Marx’s time, new (Scientific) Socialist ideas have been elaborated out of revolutionary experience. Their accuracy and relevance have been tested by nothing less than the experience of building socialism in economically backward countries in the teeth of imperialist opposition. Ujamaa has not yet been fully tested in this sense and there are a wide range of “social engineering” problems which have still to be tackled in the creation of new structure, new values and ultimately a new socialist man (p. 259). Seguindo o raciocínio do autor, seria impossível uma África com os padrões de vida para grande parte de sua população tal como nos países centrais do sistema, dado o papel do continente na divisão internacional do trabalho. Também impossível seria uma passagem natural ao socialismo, baseado em tradições animistas e baixo nível tecnológico da agricultura, sem o enfrentamento ao mercado mundial do Ocidente e sua pressão financeira e militar. Embora também a Ujamaa, transformando radicalmente a sociedade tanzaniana, não ser uma garantia de sucesso ou um processo sem contradições e recuos. Rodney repetiu mais de uma vez a questão de não haver modelo a ser seguido em Marx e Engels. E destacou que, ao atacar o baixo nível tecnológico e a organização hierárquica da agricultura, num projeto umbilicalmente ligado com as grandes cidades e a indústria, a Ujamaa se situaria em pé de igualdade com outros desenvolvimentos práticos do socialismo no século XX: Even the more progressive African political and ideological leadership long neglect countryside, and opted for a one-sided industrialization strategy. Tanzanian Ujamaa is a unique contribution to the African socialism and to socialism theory as a whole because of its solid connections with the observable data in the Tanzanian countryside. This is the characteristic which causes “Leninism” and “Maoism” to be considered as having enriched the Scientific Socialism of which Marx and Engels were the founders (p. 260). 41 Para o autor, o poder das vilas comuniais e do próprio socialismo repousaria nos camponeses enquanto sujeitos cada vez mais conscientes, levando ao destaque igualmente da intelligentsia africana comprometida de corpo e alma com o novo regime. Não importava, na visão de Rodney, que o presidente Julius Nyerere não professasse abertamente o marxismo. Isso seria uma questão de forma: “In the final analysis, simple honesty is vital ingrediente to Scientific Socialism – honesty in the cause of man, the workers and dedication to his emancipation” (p. 263). A questão da consciência era chave para a transformação, e daí a afirmação da importância dos grupos de educação popular nas vilas, desenvolvendo uma subjetividade e uma ética de novo tipo. 17) Considerações finais Evidentemente, o autor parece ter se equivocado em várias de suas previsões. Ao invés de evoluir para mais países e se aperfeiçoar internamente, o socialismo momentaneamente entrou em crise, sofrendo um baque de proporções catastróficas com o desaparecimento dos regimes do leste europeu, a partir de 1989, e da URSS em 1991. Assim também as condições de política externa dos países africanos aliados ao campo socialista se deterioraram, fazendo com que muitos dos ganhos sociais e econômicos dos anos 1970 fossem perdidos nas décadas seguintes. Internamente, na Tanzânia, a Ujamaa entrou em declínio, e o Estado foi progressivamente se adaptando às relações mercantis, abandonando os batalhões de ensino nas vilas e a organização política e cultural nos termos da Arusha Declaration. Penso que, malgrado o futuro pró