Luís Otávio Araujo Leal de Souza Mundo e narrativa, tempo e ética os limiares da fantasia contemporânea como ramificação da grande épica São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto Luís Otávio Araujo Leal de Souza Mundo e narrativa, tempo e ética os limiares da fantasia contemporânea como ramificação da grande épica Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientador: Prof. Dr. Márcio Scheel São José do Rio Preto 2022 A663m Souza, Luís Otávio Araujo Leal de Mundo e narrativa, tempo e ética: os limiares da fantasia contemporânea como ramificação da grande épica / Luís Otávio Araujo Leal de Souza. -- São José do Rio Preto, 2022 158 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientador: Márcio Scheel 1. Literatura. 2. Fantasia na Literatura. 3. O Fantástico na Literatura. 4. Espaço e tempo na literatura. 5. Ficção Fantástica. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Luís Otávio Araujo Leal de Souza Mundo e narrativa, tempo e ética: os limiares da fantasia contemporânea como ramificação da grande épica Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Nome do Programa, junto ao Programa de Pós-Graduação em Nome do Programa, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profª. Drª. Márcio Scheel UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Pablo Simpson Kilzer Amorim UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Prof. Dr. Fábio Lucas Pierini UEM – Câmpus de Maringá São José do Rio Preto 08 de novembro de 2022 AGRADECIMENTOS Aos amigos que me acompanharam durante a graduação, por tornar menos árdua a jornada. A cada um dos professores, pelo conhecimento dividido. À minha família e minha namorada, pelo apoio incondicional. Ao meu orientador, não só pelo acompanhamento acadêmico, mas pela amizade e por mostrar que a burocracia e o enfado são dispensáveis na produção intelectual. Por fim, a todos nós que insistimos em fazer ciência no Brasil, apesar dos infindáveis pesares. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, à qual agradeço. “Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.” Fernando Pessoa (2019, p. 160) RESUMO Este trabalho visa a estudar a fantasia contemporânea como narrativa e, partindo das teorias da narrativa, do fantástico e do romance, colocá-la em paralelo com gêneros da grande épica, como o romance e a epopeia, partindo de obras do gênero, a saber, O nome do vento (2009), O temor do sábio (2011) e A música do silêncio (2014), de Patrick Rothfuss, As mentiras de Locke Lamora (2014), de Scott Lynch e O Circo Mecânico Tresaulti (2016), de Geneviéve Valentine. Tais obras, depois de devidamente expostas as bases teóricas que alicerçarão este trabalho, serão analisadas a partir dos escopos formal (o narrador, o ponto de vista, os personagens, a organização temporal, as ferramentas narrativas utilizadas para criação de efeitos de sentido etc.) e temático (a representação do mundo, o conceito de real, a ética, os conflitos dramáticos, os elementos sobrenaturais etc.) e contrastadas com obras pertencentes a gêneros já consolidados da grande épica, com o intuito de compreender se a fantasia contemporânea melhor seria descrita como um gênero, uma corrente, um modo ou um subgênero do romance ao qual é imanente certa carga temática, bem como de situar a fantasia em relação ao fantástico e ao maravilhoso, de forma a compreender quais papeis são desempenhados pelos elementos sobrenaturais na fantasia contemporânea e quais de seus efeitos de sentido e artifícios formais poderiam ser reproduzidos ou replicados separadamente do elemento sobrenatural e de outros fenômenos temáticos e formais que vierem a se mostrar mais ou menos inerentes à fantasia contemporânea. Por fim, é também do interesse deste trabalho compreender quais das características das obras selecionadas como objetos de estudo mostram-se uma espécie de tendência entre narrativas de fantasia e quais mais parecem uma peculiaridade do autor ou de dita obra, para que seja assim possível traçar os limites da fantasia contemporânea, seja como gênero, modo, corrente ou simples carga de elementos temáticos. Palavras-Chave: Literatura. Fantasia na literatura. O fantástico na literatura. Espaço e tempo na literatura. Ficção fantástica. ABSTRACT This work intends to study contemporary fantasy as a narrative form and to compare it with different genres of epic literature, such as the novel and the epic poem. For this purpose, this work is going to base itself on the works O nome do vento (2009), O temor do sábio (2011) and A música do silêncio (2014), from Patrick Rothfuss, As mentiras de Locke Lamora (2014), from Scott Lynch, and O Circo Mecânico Tresaulti (2016), from Geneviéve Valentine. These works will be analyzed inside the spectrums of the form (such as narrator, point of view, time, narrative tools and its effects) and the theme (such as the depiction of the world, the concept of reality, ethics, conflict, supernatural elements). These analyses will be compared to works from already solidified epic genres in order to know if contemporary fantasy is better described as a genre, a current, a mode or a subgenre of the novel that contains a determined theme. It will also make it possible to establish the relations contemporary fantasy has with the fantastic and the marvelous, intending to determine which roles are played by the supernatural in contemporary fantasy and which of its tools and effects could be replicated or reproduced without the supernatural element and other themes that come out being more or less inherent to the contemporary fantasy. Finally, this work also intends to define which characteristics of the works that will be analyzed end up being some kind of tendency between diverse narratives of fantasy and which of these characteristics are more of a peculiarity of its author or of the work itself, in order to make it possible to define the limits of contemporary fantasy, be it as a genre, a mode, a current, or simply as a set of themes. Keywords: Literature. Fantasy in literature. Fantastic in literature. Time and space in literature. Fantastic fiction. SUMÁRIO Introdução 8 1. O que faz do romance o romance? 15 1.1. A temática do romance 16 1.2. A forma do romance 20 1.3. O efeito do romance no leitor 25 2. O que é a fantasia? 29 2.1. O fantástico e o maravilhoso 30 2.2 O mundo da narrativa e a transformação do sobrenatural 33 2.3 A fantasia contemporânea 37 3. Rothfuss, Lynch, Valentine 40 3.1. Patrick Rothfuss 40 3.2. Scott Lynch 73 3.3. Geneviéve Valentine 85 4. As estruturas da fantasia e as estruturas do romance 95 4.1. A presença do sobrenatural em outros gêneros narrativos 95 4.2. O tempo como ferramenta narrativa 104 4.3. A metalinguagem 112 5. O personagem, a moral e o mundo 117 5.1. As camadas do sobrenatural e a transgressão das realidades 118 5.2. O mundo como sistema fechado 133 5.3 A moral e a ética engendrando (ou não) conflitos dramáticos 138 CONCLUSÃO 148 REFERÊNCIAS 151 8 INTRODUÇÃO Há poucas atividades mais inerentemente humanas do que a de contar histórias. As narrativas fazem parte da interação social do homem desde as mais rudimentares organizações sociais, e evoluíram e reorganizaram-se junto da sociedade. O homem conta e escuta histórias numa tentativa de compreender o mundo, e é justamente por isso — porque os limites de seu mundo e o que há ou não para se compreender a respeito de tais limites são variáveis eternamente mutáveis — que há o que se chama literatura. Quando o homem começou a compreender o funcionamento de seu espaço e não precisou mais se apoiar nos mitos de criação, as narrativas passaram a levá-lo para outras épocas e lugares. Quando os limites do mundo tornaram-se próximos demais para o homem, a narrativa passou a levá-lo a outros mundos. Quando, finalmente, o espaço e o tempo se tornaram por demasiado alcançáveis, a narrativa tratou de levar os homens para dentro de si mesmos. A arte de contar histórias, no entanto, não passa por uma evolução linear, e o surgimento de uma nova corrente, gênero ou movimento não encerra de forma alguma correntes, gêneros e movimentos pré-existentes, tampouco são as narrativas perfeitamente delimitadas por apenas um desses conjuntos, ou perfeitamente equivalentes a outras que ocupem o mesmo espaço. Tendo em mente essas questões e a recente e constante ascensão, tanto a nível de produção quanto de estudos direcionados, da fantasia na literatura, este trabalho propõe as seguintes perguntas: a fantasia contemporânea ainda faz parte do romance como gênero? A fantasia contemporânea é um gênero da grande épica por si só? A fantasia contemporânea está mais próxima de qual gênero da grande épica? Quais características compõem a fantasia contemporânea como gênero, modo ou corrente e quão presentes elas estão nas obras que compõem esse gênero, modo ou corrente? Quão semelhantes entre si são as obras da fantasia contemporânea? Para tal, servirão de objeto de estudo as obras O nome do vento (2009), O temor do sábio (2011) e A Música do Silêncio (2014), de Patrick Rothfuss, As mentiras de Locke Lamora (2014), de Scott Lynch, e O Circo Mecânico Tresaulti (2016), de Genevieve Valetine. O nome do vento e O temor do sábio fazem parte da trilogia A crônica do matador do rei, ainda não encerrada, e contam a história de Kvothe, uma lenda de seu mundo, que protagoniza histórias e lendas contadas pelos Quatro Cantos da Civilização, ora como herói, ora como vilão, sob pseudônimos como “O Sem-Sangue”, “O Arcano” e “O Matador do Rei”. A narrativa de Rothfuss divide-se em dois pontos de vista: o de um narrador onisciente, que 9 trata do presente e mostra Kvothe vivendo como um taverneiro numa pequena vila, sob o nome de Kote, e o do narrador-protagonista Kvothe contando seus próprios feitos para dois outros personagens: Bast, seu aprendiz, que é, na verdade, membro do povo dos Encantados, e Devan, conhecido como O Cronista, famoso por coletar histórias de célebres figuras de seu mundo. Conforme a narrativa avança, no entanto, o leitor descobre que Kvothe não está simplesmente disfarçado de taverneiro, mas foi reduzido a nada mais do que isso. É uma sombra do que já fora, e não tem mais direito à própria identidade. A crônica do matador do rei é a história de um homem que se tornou lenda e decaiu até menos do que um homem, consumido por rancores e arrependimentos, e cabe ao leitor tentar desvendar como se deu essa queda. Para este trabalho, duas características da obra comporão a argumentação. A primeira delas é a grande presença da metalinguagem no texto: A crônica do matador do rei (ROTHFUSS, 2009, 2011) é a história de um homem contando sua história para um homem famoso por coletar histórias. Kvothe é um músico e um contador de histórias nato, e sua narrativa é repleta de canções, poemas, anedotas e, é claro, de outras histórias. Kvothe conta e ouve histórias desde a infância. Devan coleciona histórias há décadas. Bast, sendo do povo dos Encantados, povoa diversas histórias dos humanos. Os próprios agricultores que se reúnem na taverna de Kote, a Marco do Percurso, ao fim do expediente, fazem-no para dividir histórias. A obra de Rothfuss é uma história sobre histórias. A segunda característica importante da obra para este trabalho também está ligada às histórias contadas: no mundo de Rothfuss, plenamente fantasioso por si só, nem tudo é possível. Há o que é sobrenatural para o leitor, mas real no mundo de Rothfuss, e há o que é sobrenatural mesmo no mundo de Rothfuss. Há o que povoa histórias e crendices do mundo fictício de Temerant e há a parcela do real (para aquele mundo) em tais histórias, capaz de transgredir a realidade dos próprios personagens. A crônica do matador do rei sobrepõe camadas de real e sobrenatural para criar a atmosfera de sua narrativa. A música do silêncio (2014), também de Rothfuss, passa-se no mesmo universo d’A crônica do matador do rei, mas não faz parte da trilogia. A obra conta a história de Auri, uma personagem secundária na história de Kvothe, e pode ser melhor apreciada por leitores que já conhecem as outras duas obras de Rothfuss; primeiro, porque a história de Auri se passa nos Subterrâneos, a intrincada rede de encanamentos sob a Universidade, capital do conhecimento e dos mistérios do mundo de Rothfuss, e cita indiretamente diversos personagens relevantes para a trilogia. Segundo, porque a obra revela detalhes a respeito do âmago de Auri aos quais o leitor não tem acesso a partir da história de Kvothe. 10 Contada por um narrador onisciente que se deixa contaminar o tempo todo pelos valores, comentários, sensações e palavras de Auri, A música do silêncio se passa num intervalo de uma semana, análogo ao gênesis, em que Auri se prepara para receber a visita de um ilustre convidado (que o leitor pode intuir tratar-se de Kvothe). A peculiaridade da obra, no entanto, é que Auri é seu único personagem, e interage apenas com um vagalume (a quem ela dera o nome de Foxen e que não parece, na verdade, capaz de interagir com ela de volta, nem demonstra qualquer sintoma de racionalidade) e com lugares e objetos, a quem dá nomes e cujas vontades se julga capaz de intuir. Do começo ao fim da narrativa, a rigor, nada acontece, e todos os conflitos e obstáculos só são conflitos e obstáculos para Auri, que segue um código de ética bastante peculiar: ao imaginar-se capaz de compreender o estado de espírito, a personalidade e os desejos de lugares e objetos, ela trata de agir conforme o que imagina serem as vontades do mundo e fazer com que as coisas sejam como devem ser. Essa estranha filosofia faz com que detalhes como um botão sob o tapete ou um lençol que — segundo a percepção de Auri — não quer sair da gaveta se tornem obstáculos reais para a garota, e o leitor só é capaz de vê-los dessa forma porque o narrador se deixa contaminar o tempo todo pelas palavras da protagonista. Para este trabalho, são relevantes a forma como a peculiaridade da narração, a saber, a frequente presença do estilo indireto livre, faz com que o leitor seja capaz de compreender um código de ética tão contraintuitivo quanto o de Auri; e a figura dos Subterrâneos como um mundo fechado, de limites bem-definidos e pleno de sentido — seja do ponto de vista da ética, da virtude, do significado da vida — em si mesmo. As mentiras de Locke Lamora (2014), de Scott Lynch, primeiro volume da série de livros ainda não terminada Nobres Vigaristas, tem um narrador onisciente contando a história daqueles que dão nome à saga, os Nobres Vigaristas, que, liderados por Locke, aplicam golpes elaborados na nobreza da cidade fictícia de Camorr, onde se passa a narrativa. Camorr é uma cidade governada por um nobre e um chefe da máfia igualmente corruptos, o duque Nicovante e o Capa (título que designa o chefe de várias gangues) Barsavi, que estabeleceram um acordo chamado Paz Secreta: ambos evitam interferir nos negócios um do outro, os homens de Barsavi não atentam contra os homens do duque nem contra a aristocracia e, em troca, o duque faz vista grossa para alguns dos crimes de Barsavi. Locke e seu bando, no entanto, atentam diretamente contra a Paz Secreta, e enquanto fingem não ser mais do que uma gangue de ladrões pequena e pouco ambiciosa, roubam diretamente dos nobres com golpes que envolvem planos intrincados e grandes valores em dinheiro. 11 A história divide-se em duas narrativas paralelas: a narrativa que se passa no que se pode considerar o presente, com duração de algumas semanas, e que conta como um dos golpes da gangue gera complicações que causam a morte de alguns dos membros e provocam em Locke uma sanguinária busca por vingança, quando a chegada de uma figura misteriosa conhecida como o Rei Cinza muda completamente o funcionamento do submundo de Camorr. A outra narrativa, que seria equivalente ao passado, dura décadas e conta os primeiros detalhes da infância de Locke, desde o momento em que perdera, quando pequeno, seus pais numa epidemia, passando por seus primeiros crimes, e então, por sua chegada ao templo do Padre Correntes — que educaria ele e os outros membros da gangue para que fossem capazes de desenvolver os golpes que viriam a cometer —, atravessando toda a formação e adolescência de Locke e dos outros. No decorrer deste trabalho, serão importantes, dentre as características da obra de Lynch (2014): a atmosfera iníqua, dominada pelo crime, e o imoral código de ética, baseado na prosperidade do crime e na honra entre ladrões, seguido pelos personagens da obra; a divisão entre as duas linhas narrativas, em que os interlúdios do passado servem para fornecer ao leitor informações e características dos personagens que serão imediatamente utilizadas quando a narrativa central for retomada, mas que, fazendo o leitor acostumar-se com essa organização temporal aparentemente simples, subverte-a para criar quebras de expectativa; a forma como os conflitos morais na obra, não obstante a imoralidade que reina como atmosfera, são solucionados pelos personagens sem gerar uma racionalização profunda e alongada. O Circo Mecânico Tresaulti (2016), de Geneviéve Valentine, usa um misto de narrador- protagonista (que mais parece, na maior parte do tempo, um narrador-testemunha), onisciência pura e onisciência seletiva múltipla para contar a história do Circo Tresaulti a partir da visão de diversos personagens. Passada num cenário pós-apocalíptico a respeito do qual quase nada é explicado para o leitor, a narrativa retrata o Circo Mecânico Tresaulti sobrevivendo como uma espécie de mundo fechado, alheio ao mundo externo, que, destruído por diversas guerras, vê governos tentarem se firmar e cederem um atrás do outro. O Circo é comandado por uma mulher misteriosa chamada Boss, capaz de devolver e tirar a vida dos membros do Circo a seu bel-prazer. É ela quem realiza nos artistas modificações corporais — como a substituição dos ossos por canos ocos de metal — que lhes dão capacidades físicas sobre-humanas e os tornam imortais e facilmente consertáveis. Com o passar das eras — que os membros mais antigos do Circo não são mais nem mesmo capazes de contar —, no entanto, os artistas perdem completamente a noção dos acontecimentos do mundo externo e da 12 passagem dos anos, já que levam décadas antes de se apresentarem novamente numa mesma cidade. A própria cronologia e a história do Circo e de seus artistas é difícil de intuir, uma vez que a narração não só muda de ponto de vista, mas também de narrador, e as ramificações que partem da narrativa central, que se poderia chamar o presente, viajam livremente pelo tempo, sem respeitar uma trajetória linear. Em verdade, as narrativas secundárias mais servem para desnudar traumas, segredos e desavenças referentes aos artistas do Circo do que para criar uma linha do tempo clara e confiável: é comum que os capítulos comecem com uma frase expositiva como "Isso é o que ninguém sabe sobre Alec:" (VALENTINE, 2016, p. 65) ou terminem com um juízo de valor, uma contradição e/ou um segredo, como em: Bem, ela pensou quando estava sozinha, agora esse pequeno sentimento tem um nome, e esta é a última vez que terei de pensar nele. (Não era verdade.) (VALENTINE, 2016, p. 181) As características inerentes à obra que se fazem relevantes para esse trabalho são: a existência do Circo como um sistema fechado e impassível ao caos do mundo externo, um sistema cujos habitantes tentam preservar a todo custo; as alternâncias de ponto de vista, a intrincada linha temporal e as peculiares construções frasais como mecanismos para engendrar uma narrativa nebulosa, que adensa um enredo aprioristicamente simples ao nos mostrá-lo não iluminado, mas à meia-luz. O primeiro capítulo deste trabalho tratará das características definidoras do romance como gênero — já que é está a forma da grande épica que mais notavelmente perdura na contemporaneidade —, traçando paralelos com a epopeia para caracterizar o romance quanto a predominância temática, valores universais, representação ética, representação do mundo, espírito do tempo e ferramentas narrativas (sejam referentes ao tempo, ao narrador, ao ponto de vista, aos personagens) utilizadas para a produção de efeitos de sentido. Para isto, as principais bases teóricas serão Schüller (1989) e Reuter (1996), para uma primeira caracterização do romance, Lukács (1965) e Wood (2009), para o entendimento das estruturas componentes da narrativa, e Lukács (2000, 2011), Auerbach (1971) e Benjamin (1994) para uma análise comparativa do romance. O segundo capítulo deste trabalho tem como tema a fantasia, partindo de teorias que tratam dos gêneros fantástico e maravilhoso para, compreendendo os efeitos buscados e alcançados com os diferentes usos de elementos sobrenaturais na literatura, acompanhar a evolução vivenciada pela imaginação de tais elementos na literatura em paralelo com a 13 evolução da sociedade e do conhecimento humanos e, assim, definir as características que compõem a literatura que contemporaneamente se chama de fantasia. Tais argumentações apoiar-se-ão em Todorov (2019) e Roas (2014), para compreender o fantástico e o maravilhoso como gêneros literários, Tolkien (2010) e Pierini (2015, 2017), para a contextualização do fantástico e do maravilhoso a partir de gêneros literários a eles relacionados, e Mantangrano e Tavares (2018), para uma contextualização histórica das correntes e movimentos que, a partir do fantástico e do maravilhoso, vieram a desembocar na fantasia contemporânea. O terceiro capítulo deste trabalho tem como objetivo elencar brevemente gêneros onde se fizeram e/ou fazem presentes elementos sobrenaturais e a contribuição de tais elementos para as estruturas formais de tais gêneros, e então, analisar as estruturas e artifícios formais componentes da narrativa nos objetos de estudo selecionados em paralelo com obras de outras formas da grande épica para estabelecer semelhanças e diferenças entre os objetos de estudo e gêneros já cristalizados da grande épica. Para esta análise, servirão de embasamento Wood (2009), Reis (2013) e Barthes (1973), para as estruturas componentes da narrativa, Lukács (1965) e Barthes (2004) para as relações entre narração e descrição, Genette, Pouillon (1974) e Nunes (1991), para a função do tempo na narrativa, e Chiapinni (1989) e Friedman (2002), para a compreensão do foco narrativo. O quarto e último capítulo deste trabalho tratar-se-á de análises dos objetos de estudo a partir de um ponto de vista temático, partindo da ética, da representação do mundo, dos conceitos de real e sobrenatural, para situar os valores, a moral, os conflitos dramáticos, a representação e racionalização do mundo na fantasia contemporânea em relação a outros gêneros da grande épica, novamente comparando os objetos de estudo a obras de tais gêneros. Tais análises embasar-se-ão em Nussbaum (2009) e Trilling (2008), para a análise de valores éticos e morais, Lukács (2001), Benjamin (1994) e Auerbach (1971), para uma comparação com os valores presentes e ausentes em outros gêneros da grande épica, e Tolkien (2011), para a contextualização do mundo maravilhoso. O presumido resultado final desta pesquisa é que se configure possível mensurar ou intuir quanto das características definidoras dos objetos de estudo situa-se ainda na esfera do romance e quanto denota uma evolução da fantasia como um gênero da grande épica mais ou menos autônomo, bem como que parcela do que constitui cada uma das obras, em qualquer dos domínios que venha a tanger o narrador, o ponto de vista, os personagens, o enredo, o tempo da narrativa, o estilo, o mundo, a ética, são marcas particulares do autor ou da obra, que parcela é inerente a uma narrativa análoga à fantasia contemporânea como gênero e que parcela toma 14 para si emprestados elementos de outras formas da grande épica. Em suma, a real questão é quanto dos temas, valores e artifícios formais de obras componentes da fantasia contemporânea seria reproduzível ou replicável em formas da grande épica que não tenham acesso a ferramentas ligadas diretamente ao que define a fantasia como narrativa; e quanto destes temas, valores e artifícios formais é suficientemente inerente à fantasia para que se possa classificá-la como algo mais do que uma variação temática do romance como grande épica. 15 Capítulo 1 — O que faz do romance o romance? Se este trabalho tem como objetivo pensar a fantasia contemporânea como uma forma de narrativa, um gênero narrativo ou uma variação do romance ou, ao menos, da grande épica, é lícito investigar, antes de qualquer coisa, o gênero narrativo mais proeminente da história da literatura: o romance moderno. Uma das características mais marcantes da teoria literária como ciência e da literatura como arte é a volatilidade de suas definições. O romance, mais estudado do que qualquer outro gênero, demonstra esse fenômeno, e as características que o definem como gênero não são unanimidade, e variam desde definições simples e objetivas que o caracterizam como uma narrativa longa com muitos personagens até definições abstratas como a de Walter Benjamin (1994, p. 214): “O que seduz o leitor do romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro”. Outros autores, como Yves Reuter (1996) e Donaldo Schüller (1989), ligam o surgimento do gênero diretamente ao crescimento da acessibilidade da leitura e do letramento, que, ao abranger tais práticas para além da elite, desvencilhou-se dos compromissos com a tradição, que antes definiam a produção literária. É natural também, portanto, que, com diferentes definições do que é um romance, variem também as obras que são assim classificadas, bem como os requisitos para tal classificação. Para Lukács (2000, 2011), por exemplo, o romance como gênero está diretamente ligado à evolução do capitalismo e à industrialização da sociedade, que refletem na mecanização do trabalho e num sentimento de irrelevância perante um mundo cujos limites se alargaram até que não se pudesse atribuir facilmente sentidos para a vida, para a ética, para a épica. “A epopéia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida.” (LUKÁCS, 2011, p. 60). Já para Benjamin, ainda em “O Narrador” (1994), o romance está ligado à solidão e à perda da capacidade humana de transmitir experiências. No entanto, parece haver uma constante entre diferentes teóricos: o romance como gênero está intrinsecamente relacionado a sentimentos como a inadequação frente a um mundo rápida e constantemente mutável, cujos limites alargam-se para além da compreensão do indivíduo, e a incompletude do sentido da vida numa realidade em que as relações sociais e de trabalho configuram-se automatizadas, desumanizadas e propensas a sobrepujar valores que não estejam direta ou indiretamente ligados a funções sociais e/ou econômicas. “A grandeza da arte”, dirá, afinal, Debord (1997), “só começa a aparecer no ocaso da vida.” (p. 188) 16 Este capítulo tem como objetivo intuir, a partir da comparação de diversos embasamentos teóricos, as características relativamente imprescindíveis do romance como gênero, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista temático. 1.1 — A temática do romance “De todo modo — disse —, foi apenas pessoal.” (FITZGERALD, 2020, p. 149). É assim que Gatsby, no romance O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, publicado originalmente em 1925, refere-se a seu relacionamento com Daisy, um amor da juventude que ele reencontra muito mais tarde, e com quem tenta sem sucesso reatar o relacionamento. Tudo o que o impulsiona a fazê-lo, no entanto, é meramente pessoal e sentimental, incapaz de superar obstáculos de ordem moral e social, como, no passado, a falta de dinheiro de Gatsby, e no presente, o fato de Daisy já estar casada. O romance enquanto gênero não retrata, como retratava a epopeia, o mundo como um sistema fechado e as relações humanas como fenômenos do interesse conjunto, mas sim, as pessoas e os relacionamentos “apenas pessoais” em conflito com um mundo cada vez mais globalizado, cada vez mais automatizado, com relações sociais e de trabalho cada vez mais desumanizantes. O romance não retrata o conflito de mundos fechados ou dentro de mundos fechados, mas sim o conflito entre o personagem e um mundo que não é completo em si mesmo, que não faz sentido para ele e não o acolhe. Como diz Magris (2009, p.5), “O romance é com frequência a história de um indivíduo que busca um sentido que não há, é a odisseia de uma desilusão”. Isso acontece porque a relação entre a narrativa e o mundano muda drasticamente com a modernidade: na épica antiga, como atesta Auerbach, em Mímese (1971), o cotidiano, o mundano, a realidade comum, não podem carregar consigo um aprofundamento psicológico e/ou simbólico, são tratados apenas sob um viés cômico. No romance moderno, a narrativa pode alcançar o aprofundamento, a seriedade, o sentido dramático com qualquer personagem, em qualquer situação, por mais mundanos ou risíveis que sejam. Mais do que isso, o romance faz surgir consigo o mediano. A narrativa não mais se limita aos extremos do cômico e do trágico, nem mesmo à mistura de elementos antagônicos como o grotesco e o sublime; tudo adquire um tom mediano, elementos de ambos os extremos se mesclam e diluem indistintamente. O preto e o branco tornam-se escassos, e quase toda narrativa mergulha em diferentes tons de cinza. Isso ocorre, também, porque o romance não é um gênero profundamente comprometido com uma função didática e/ou história. O significado da grande épica, ainda segundo Auerbach, atém-se aos acontecimentos, e essa é uma das razões pelas quais esse tipo de narrativa possuía, 17 quando na forma da epopeia, utilidade e sentido históricos em seu meio, com valor quase documental. O romance moderno, por outro lado, mesmo quando se apoia em fatos, períodos e/ou personagens históricos, fá-lo como um meio para um fim; e este fim está ligado ao conflito dramático. Em “O romance como epopeia burguesa”, Lukács (2011) descreve o romance e sua evolução como um fenômeno engendrado pelas reações adversas produzidas pelo avanço da sociedade burguesa. Seria, portanto, um gênero revolucionário que se alimenta da revolta dos escritores perante os rumos tomados pela sociedade e do sentimento de impotência em relação a tal revolta. O romance socialista, por outro lado, ainda segundo Lukács, aproximar-se-ia cada vez mais da antiga epopeia, porque, com o fim da sociedade burguesa, o proletariado se uniria novamente num mundo completo e fechado, pleno de sentido e eticamente apriorístico em si mesmo, e teria o interesse comum de erradicar os vestígios e sequelas do capitalismo. Seja por razões internas ou externas à literatura, no entanto, o idealizado romance socialista nunca alcançou tal grandeza, e a contribuição mais importante de Lukács continua a ser o que ele tinha a dizer a respeito do romance produzido dentro dos limites ideológicos, culturais, estéticos e políticos da sociedade burguesa. Mas o romance não é uma ode à revolução, e com a virada do século XIX para o século XX, as obras do gênero, como um todo, passaram a tratar de acontecimentos cada vez mais mundanos, cada vez mais internos. Em outras palavras, a narrativa do romance tornou-se cada vez mais introspectiva, mais alheia a um mundo externo que não funciona como gostariam os personagens e não tem para eles sentido intrínseco e apriorístico. Essa espécie de afastamento do mundo, Debord (1997) atribuirá ao que chama de sociedade do espetáculo, que produz uma arte dissociada de acontecimentos reais, de realidades históricas. O encolhimento em direção ao mundano, no século XX, é um dissociar-se do mundo externo. O romance, assim como o coronel Aureliano Buendía, personagem de Cem anos de Solidão, “[...] promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas” (MARQUEZ, 2019, p. 105). No entanto, em vez de perecer diante do pelotão de fuzilamento, seu ar revolucionário transmutou-se num cinismo para com o funcionamento do mundo moderno, numa introspecção que se aprofunda no banal e no mundano até que consiga deles espremer um sentido, mesmo que este seja a ausência de qualquer significado. Benjamin (1994) observa o romance em paralelo à narrativa oral, e classifica-o como uma arte solitária e com um fim em si mesma, que não tem o intuito de transmitir experiências ou ensinamentos, tampouco de compreender o sentido da vida, mas sim de aquietar uma 18 sensação de não-pertencimento ao racionalizar justamente a falta de sentido do mundo como um todo. A narrativa oral faz parte do mundo e modifica-se com ele, está sujeita às mudanças, ao ritmo de trabalho, à reminiscência, ao próprio contador de histórias. O romance, por outro lado, existe à parte do mundo, e terminada a última página, não faz sentido inquirir o que acontece a seguir; a narrativa está completa e finalizada, como — ao contrário do mundo moderno — um sistema fechado. Talvez ainda mais definidor do romance, no entanto, do que o conflito entre o personagem e o mundo, a moral, a sociedade, é a forma como a narrativa retrata a influência de tais conflitos sobre o próprio personagem, os efeitos internos de tais embates; é cada vez mais internamente, em vez de externamente, que eles realmente acontecem, e o personagem do romance, por não ver em seu meio e em sua existência um sentido pleno, racionaliza cada acontecimento e hesita a cada conflito. Se suas ações são, quase sempre, incapazes de alterar o mundo de forma relevante, que alterem, então, a maneira como o mundo e os acontecimentos do mundo incidem sobre sua própria existência. Em “Narrar ou Descrever”, Lukács (1965) atribui a preferência do romance moderno pelo corriqueiro e pelo mundano a diversos fatores, dentre eles, uma tentativa de atenuar a realidade, um sentimento de revolta fracassada frente aos males do mundo e da sociedade e, talvez o fator decisivo, a perda do significado épico. Não são mais as ações em tempos de crise que definem os personagens, mas sim o conjunto de ações tomadas pela sociedade em situações rotineiras, a práxis1 humana. A verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais [...] As palavras dos homens, seus pensamentos e sentimentos puramente subjetivos, revelam-se verdadeiros ou não verdadeiros, sinceros ou insinceros, grandes ou limitados, quando se traduzem na prática, isto é, quando os atos e as fôrças dos homens confirmam-nos ou desmentem-nos na prova da realidade. Só a práxis humana pode exprimir concretamente a essência do homem. (LUKÁCS, 1965, p. 57-58) A práxis humana nada mais é do que um reflexo de seu tempo, da sociedade que rege os homens à época. A essência do homem do romance, a essência do indivíduo da modernidade, é a de alguém que perambula por um mundo que se tornou tão grande que Deus (ou os deuses) não é mais capaz de abarcar em si todo o seu sentido, todo o seu significado. A capacidade de se apoiar numa metafísica absoluta e superior ao indivíduo murcha cada vez mais. A práxis do 1 Tem-se como práxis humana o conjunto de ações do homem em sociedade; não ações pontuais em momentos singulares, nem ações mundanas e repetitivas, mas o todo das ações do homem em determinada organização social. 19 romance é a práxis da desilusão, da busca por um amparo no mundano quando foge ao homem o amparo que outrora tivera no épico e no sublime. [O indivíduo no romance] se singulariza, complexifica-se psicologicamente, é digno de existir independentemente de seu nascimento. Os heróis diversificam-se de vez e não aparecem mais como representantes exemplares de sua comunidade. Esta mutação é considerada um dos fatores de transição entre a epopeia e o romance. (REUTER, 1996, P. 15) O personagem do romance não é um herói imperfeito, porque não é um herói. Pode, sim, ser bom ou mau, pode ser moral, intelectual ou fisicamente superior, mas não é capaz de alçar-se mais do que infimamente acima dos demais. Na maioria das vezes, não supera os obstáculos e adversidades, e por vezes, nem mesmo reage externamente ao mundo. O indivíduo épico, o herói do romance, nasce desse alheamento em face do mundo exterior. Enquanto o mundo é intrinsecamente homogêneo, os homens também não diferem qualitativamente entre si: claro que há heróis e vilões, justos e criminosos, mas o maior dos heróis ergue-se somente um palmo acima da multidão de seus pares, e as palavras solenes dos mais sábios são ouvidas até mesmo pelos mais tolos. (LUKÁCS, 2000, p. 66) O herói do romance não define o mundo externo, mas é por ele definido. E como esse mundo é marcado pela globalização, pela dissolução dos indivíduos numa massa quase amorfa, os homens são todos feitos da mesma coisa, e pouco podem diferenciar-se qualitativamente entre si. Cria-se um ciclo vicioso, em que a iniquidade do mundo produz figuras por demais medianas para alterá-lo significativamente. Não há transformação do mundo porque “No espetáculo [...] o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (DEBORD, 1997, p. 17). E assim, o romance continua a desenrolar-se em torno de si mesmo, e o mundo de sua narrativa permanece inalterado da primeira à última página. É com o romance que surge a figura do flâneur2, o personagem cujas impressões transbordam para o narrador e, portanto, para o leitor; que vaga e observa os arredores, reflete acerca deles com uma vagarosidade maçante, e não engendra, a rigor, nenhum acontecimento relevante. E porque sua percepção nos transborda, porque seus temas são mundanos e intrínsecos, estamos mais próximos do personagem do romance do que dos personagens de gêneros como a epopeia, por exemplo. Em Como funciona a ficção, Wood (2009, p. 133) fala sobre o efeito causado por tal proximidade: “No romance, podemos ver o eu melhor do que em 2 A figura do flanêur, inicialmente concebida por Flaubert, é a de um indivíduo que perambula e observa, retido nas próprias reflexões, e não age ou interage com o mundo que não de forma sutil e pouco drástica. 20 qualquer outra forma literária; mas não é demais afirmar que o eu enlouquece sob esse escrutínio tão invisível e cerrado”. O mundo do romance, dirá Donaldo Schüller (1989), deixa de ser organizado verticalmente, como era o mundo na narrativa até a Idade Média, em que os personagens buscavam pelo sublime e pela presença do divino, e o sagrado aparecia como essa espécie de refúgio do mundo, bem como a fé e a busca pela divindade eram elevadas a um nível sobre- humano. O mundo do romance é organizado horizontalmente, sem essa perspectiva de ascensão ao divino ou, que seja, de aproximação do sagrado. Os homens estão entregues à sua subjetividade e reduzidos ao mesmo nível, sem que os heróis e aqueles ligados ao sagrado se elevem sobre os demais. De volta a Auerbarch (1971, p. 430), sobre a temática do romance, pode-se dizer que: O tratamento sério da realidade quotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemático-existencial por um lado — e, pelo outro, o engarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea, do pano de fundo historicamente agitado — êstes são, segundo nos parece, os fundamentos do realismo moderno, e é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos. Essa escolha temática até então descrita incide diretamente nas ferramentas narrativas que constituem o romance, e em razão disso, é mister compreender sua estrutura formal como um fenômeno particular e vital para sua concepção. 1.2 — A forma do romance Na Poética, Aristóteles refere-se aos personagens do drama como atores, porque na narrativa da época, era exatamente essa sua função: fazer com que a ação se desenrolasse. Era pelas ações, pelo desfecho dos acontecimentos, que o sentido e os conflitos da obra eram construídos, e os personagens não eram mais do que ferramentas para o desenrolar dos acontecimentos. Com o avanço dos séculos, e principalmente a partir do século XIX, a narração cede cada vez mais espaço para a descrição, até que a narrativa do romance se torne, no século XX, predominantemente descritiva. Lukács (1965) contrapõe narração e descrição não como escolhas mutuamente exclusivas, mas sim como dois componentes presentes em qualquer narrativa, em diferentes proporções. Quanto mais presente a narração, mais a narrativa tem a ação como efeito de 21 sentido; quanto mais presente a descrição, menos relevantes são os acontecimentos na narrativa. Na Ilíada, de Homero, são os acontecimentos — o desentendimento entre Aquiles e Agamémnone, a morte de Pátroclo, o suplício do cadáver de Heitor — que incorrem no andamento da narrativa. Num romance como Um retrato do artista quando jovem (JOYCE, 2016), por outro lado, os acontecimentos mundanos e esparsos desencadeiam reflexões e conflitos internos no personagem, como quando, ao ouvir na escola uma pregação que descreve pitorescamente o inferno, o protagonista, Stephen Dedalus, decide, dominado por um medo imensurável, levar uma vida plenamente temente a Deus. Essa predominância descritiva faz surgir no romance um poderoso efeito de sentido: o detalhe. Não o detalhe vital para a trama, que servirá para desencadear algum acontecimento fundamental para o enredo, mas o detalhe com um fim em si mesmo, o detalhe do excesso, que tem como única função emular a existência do acaso na realidade ou ilustrar a passagem do tempo: “Se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe” (WOOD, 2009, p. 77). O detalhe no romance é uma espécie de significante excessivo e transbordante que, embora não elucide uma informação vital para a compreensão da trama, nunca está ali por acaso, nunca é completamente ocasional, completamente aleatório. O autor do romance (como de qualquer outro gênero narrativo) sabe que não é possível descrever por completo uma cena ou situação, com cada um dos elementos presentes, e portanto, seleciona, afunila os elementos que são relevantes o suficiente para serem mostrados ao leitor. E ainda assim, dentre esses elementos, há os detalhes aparentemente irrelevantes. É assim, também, que acontece na realidade: nossa consciência não se prende apenas ao necessário, mas também toma conhecimento de elementos que nada nos adicionam. O romance não é a realidade, mas é o primeiro gênero narrativo que busca emular não apenas seus sentidos, mas também sua falta de sentido. A extensão da descrição, sua passagem a método dominante da composição épica, é fenômeno que ocorre num período em que se perde, por motivos sociais, a sensibilidade para os momentos essenciais da estrutura épica. A descrição é um sucedâneo literário destinado a encobrir a carência de significação épica. (LUKÁCS, 2011, p. 61) Também é com o romance que a narrativa adquire maior complexidade do ponto de vista temporal, e a manipulação do tempo da narrativa torna-se uma importante ferramenta para a criação de sentido. Em Figuras III, Genette (2017) divide a narrativa em narrativa primeira — linha central da história — e narrativa segunda — linha(s) que se desdobra(m) a partir da narrativa primeira —, e chama de anacronias as variações temporais que fazem o romance 22 transitar entre uma e outra narrativa: as prolepses seriam anacronias em direção ao futuro, ou seja, antecipações, e as analepses seriam anacronias em direção ao passado, ou seja, rememorações. Por fim, Genette adiciona os conceitos de acronia (acontecimento não situado no tempo) e anisocronia (variações temporais não de sucessão, mas de ritmo). Dentro das anisocronias, Genette contrapõe a elipse — velocidade temporal infinita, ou seja, um corte temporal — e a descrição (ou comentário do narrador) — suspensão do tempo, ou seja, uma pausa na narrativa. Num romance como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1994), de Machado de Assis, por exemplo, as variações temporais perpassam todo o sentido do romance: a história é contada por um personagem já morto, e portanto, qualquer comentário do narrador a respeito do além — bem como a narração de sua própria morte — é uma prolepse em relação à narrativa primeira. Quando Brás Cubas nada diz no capítulo 139, “De Como Não Fui Ministro d’Estado” (p. 131), a elipse tem uma carga de sentido imensamente reveladora do âmago do narrador e da natureza da narrativa: o narrador cínico e frustrado nada tem a dizer a respeito de sua própria incapacidade de conseguir o cargo que era um de seus objetivos de vida (em verdade, quase todos os objetivos e ambições de Brás Cubas foram frustrados, e é justamente em razão de trabalhar com tais fatos que o narrador é tão evasivo ao contar sua história). A frase que inicia o capítulo seguinte, “Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior” (ASSIS, 1994, p. 131), escancara exatamente a função da elipse no trecho: dizer mais sobre o efeito de tal fracasso no âmago do narrador, bem como a respeito do âmago do narrador em si, do que seria capaz de dizer um capítulo descritivo. As anacronias encobertam, até certo ponto, a lacuna deixada pela falta de sentido épico, ou seja, a falta da ação como ponto central da narrativa; são uma das ferramentas que o romance moderno utiliza para dar sentido à banalidade mundana e desesperançosa que perpassa suas narrativas. Como a epopeia opera com um herói que, por toda sua psicologia, cresceu sem problemas no seio da sociedade em que vive, a figuração épica não carece de nenhuma espécie de explicação genética; por conseguinte, ela pode ter seu começo no ponto mais favorável ao desenrolar dos eventos épicos. [...] No romance, ocorre precisamente o contrário: o passado é absolutamente necessário para explicar geneticamente o presente, o desenvolvimento ulterior do personagem. (LUKÁCS, 2011, p. 202-203) Não só a narrativa em si, com maior foco na descrição do que na narração e maior profundidade quanto à organização temporal, altera-se conforme o romance surge e evolui como gênero, mas também o fazem as ferramentas de transmissão da narrativa: o narrador — 23 e é preciso sempre ressaltar que o narrador não é o autor, mas uma criação dele, como qualquer outro personagem — e o foco narrativo acompanham a evolução do gênero e são, ao designar o ângulo a partir do qual o leitor terá acesso à história, vitais para a criação dos efeitos de sentido da narrativa: Escolher um ponto de vista é escolher um modo de transmitir valores. Isso demonstra que a técnica está articulada com a visão do mundo. Ela não é inocente e está articulada com todos os outros aspectos da narrativa, isto é, com os temas. (ARRIGUCI JR, 1998, p. 20) Se os valores com que a narrativa trabalha mudaram drasticamente com a ascensão do romance moderno, é natural que mudem, também, as ferramentas utilizadas para transmiti-los. Não por acaso, o romance é, muito provavelmente, o gênero que trabalha com a mais vasta gama de possibilidades quanto à focalização da narrativa. Com o romance, a onisciência neutra gradualmente perde espaço, e eventualmente, também ganha força o narrador-personagem, em primeira pessoa. Em suma, o foco narrativo no romance abre espaço para a consciência, para os comentários, para os juízos de valor do narrador, mas também dos personagens, mesmo que disfarçados de comentários do próprio narrador. E o narrador torna-se uma ferramenta mais complexa e versátil, por meio da qual o autor pode destilar visões de mundo que sejam ou não condizentes com as suas. Anteriormente ao romance, as narrativas só explicitavam comentários e juízos de valor dos personagens em relação ao mundo com quebras na narração, majoritariamente por meio do diálogo. Com o romance, tais impressões dos personagens mesclam-se à narrativa, e por vezes, não é possível identificar se quem fala ou pensa é o narrador ou o personagem, tão contaminada é a narração pela linguagem, pelos valores do personagem. A esse fenômeno, chama-se estilo indireto livre. “Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade.” (WOOD, 2009, p. 23) É com o estilo indireto livre que o narrador começa a ceder espaço aos personagens no romance. A primeiro momento, a maior parte das narrativas do romance será apresentada por um narrador onisciente, que a observa sob um viés impassível e/ou irônico e que tende a ter para com a história um interesse distanciado, quase documental. Tal narrador, dirá Lígia Chiapinni (1989), pode ser dividido em Onisciente Neutro — que se encarrega de mediar a história entre os personagens e o leitor, mas não traça comentários e oculta o máximo possível juízos de valor — e Onisciente Intruso — que, ao mediar a história, invade a consciência dos 24 personagens, desvela-lhes segredos, tece comentários e juízos de valor. É interessante ressaltar, no entanto, que o narrador onisciente intruso e o narrador onisciente neutro não são mutuamente exclusivos: pode-se trabalhar, num texto, com diferentes graus de intrusão, diferentes graus de comentários e juízos de valor, diferentes graus de pretensa neutralidade. A tendência seguinte do romance, prezando pelo cada vez mais ascendente ideal de realismo, é a de fazer o narrador desaparecer e deixar a narrativa contar a si mesma o máximo possível. Com isso, desenvolve-se o que virá a ser chamado, por Chiapinni (1989) e vários outros teóricos, de onisciência seletiva: embora narrada em terceira pessoa, a narrativa onde ocorre a onisciência seletiva emula a ausência de uma mediação do narrador, como se a consciência e as percepções dos personagens narrassem a si mesmas. A onisciência seletiva costuma ocultar marcas de incerteza, pensamentos e afins: para a onisciência seletiva, as coisas não “parecem que”, “dão a entender que”; é a consciência do personagem que perpassa a narrativa em terceira pessoa, então é como as coisas lhe são que elas aparecerão para o leitor. A consciência mental é, portanto, dramatizada de maneira direta, em lugar de ser relatada e explicada indiretamente pela voz do narrador, muito da mesma forma que palavras e gestos podem ser dramatizados diretamente (cena), em vez de serem resumidos pelo narrador (panorama). (FRIEDMAN, 2002, p. 170) Sendo a onisciência seletiva essa narração que emula percepções, sensações e pensamentos, com enfoque muito maior na cena e no mostrar do que no sumário e no contar, as sensações e percepções do personagem são retratadas por tal tipo de narração enquanto ocorrem, enquanto um narrador onisciente que vê a história de fora sintetizaria posteriormente tais sensações. A onisciência seletiva pode prender-se a um único personagem ou transitar pela consciência de vários, caso em que é chamada de onisciência seletiva múltipla. Posteriormente, esse apagamento do narrador virá a ser levado adiante com formas de narração como o narrador câmera, que supostamente não narra, apenas retrata cenas que perpassam sua visão; cenas, essas, que esse narrador nem mesmo escolheria, levando ao extremo a impassibilidade, o desinteresse, a imparcialidade, a falta de mediação para com os acontecimentos da narrativa. É claro que, no entanto, há, por parte do autor, uma seleção quanto ao que narrar ou não. Retratar uma cena é sempre, deliberadamente, retratá-la em detrimento de outra. Ao se escolher contar determinada história, deliberadamente descarta-se contar as demais, e o mesmo vale, como dirá Carvalho (2012, p. 14), para a onisciência seletiva. Deve ser encarada com cuidado a afirmação de Friedman (1967) de que no caso da onisciência seletiva o leitor ‘ostensivamente não ouve ninguém’. 25 Concordamos que ostensivamente não, mas veladamente sim, pois na verdade o leitor ouve alguém, que implicitamente lhe diz: o que estou afirmando não é o que vejo, mas o que o personagem sente. É esse alguém que diz que o personagem ‘suspirou’ alguma coisa, ‘pensou’ algo. Se o romance como gênero narrativo passa por radicais transformações nos âmbitos formal e temático, é natural concluir que essas transformações influenciam não só na construção e nos sentidos da obra, mas também na experiência do leitor. 1.3 — O efeito do romance no leitor Praza ao céu que o leitor, encorajado e momentaneamente feroz como o que está lendo, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem, através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, se não investir em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito igual, pelo menos, à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua alma como a água ao açúcar. (LAUTRÉAMONT3, 2015, p. 61) É assim que Maldoror abre seu primeiro canto: falando diretamente ao leitor e dizendo que tipo de papel espera que ele desempenhe. Embora escrito durante a ascensão do romance moderno, na segunda metade do século XIX, Os Cantos de Maldoror são comumente classificados como uma poesia em prosa, e não um romance; mas, se não parte do gênero, são ao menos uma obra profundamente influenciada por ele, o que se ilustra justamente por essa relação constante com o narratário. Maldoror, um personagem insano, vil, incompreensível e obcecado com uma guerra pessoal contra Deus, é o narrador criado por Lautréamont, e dirige- se com frequência ao leitor; ora para convencê-lo, ora para dissuadi-lo, ora para ofendê-lo ou elucidá-lo. E o próprio leitor é, também, um personagem criado pelo autor, porque é alvo e centro de muitos dos cantos de Maldoror, e porque, caso queira chegar ao fim da obra, há de lê- la com “uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito igual, pelo menos, à sua desconfiança”. É isso o que se espera do leitor do romance: que, na falta ou na obscuridade de um sentido completo, ele junte impressões incompletas, introspecções nebulosas e ações mundanas para decifrar a (ou uma das) mensagem da obra. Em Figuras III (2017), Genette tratará, dentre outras questões referentes ao narrador e à focalização, do conceito do leitor/narratário como um personagem fictício — semelhante ao narrador, por estar justamente do lado oposto da mesma via — idealizado pelo autor. 3 Comte de Lautréamont era o pseudônimo de Isidore Ducasse (1846-1870). 26 Como o narrador, o narratário é um dos elementos da situação narrativa e se coloca necessariamente no mesmo nível diegético: ou seja, ele não se confunde a priori mais com o leitor (até mesmo virtual) do que o narrador se confunde necessariamente com o autor. (GENETTE, 2017, p. 341) A diferença, no entanto, é que o personagem do leitor tende a ser mais difícil de traçar e visualizar concretamente do que o personagem do narrador, que, seja para corroborá-las, ironizá-las ou antagonizá-las, interage diretamente com as visões de mundo e valores do autor — e, numa relação quase oposta, também do narratário. O leitor como personagem, por outro lado, não atrita, convencionalmente, suas visões e valores nem com os do leitor real, nem com os do autor, porque, embora seja necessário que o autor idealize mais ou menos concretamente tais valores em seu leitor, os valores do leitor-personagem idealizado não tendem a ser explicitados na narrativa, e quando o fazem, é apenas por intermédio do próprio narrador. O leitor do romance precisa, portanto, estar inserido numa sociedade que enfrente, em maior ou menor grau, os problemas da modernidade, como a falta de completude do mundo, a automatização das relações de trabalho, a falta de um sentimento de pertencimento ao todo; e esses sentimentos são quase unânimes na sociedade globalizada do século XXI. Portanto, a figura idealizada do leitor do romance como personagem é a de alguém que se encaixe quase unanimemente nos indivíduos da sociedade da pós-modernidade; ainda assim, o romance no século XXI não tem a mesma força que possuía nos dois séculos anteriores. Esse fenômeno é causado por uma série tão extensa de fatores que não cabe a um trabalho de cunho formal/imanentista explicá-lo, mas Benjamin (1994, p. 203), em “O Narrador”, levanta um interessante fator que influencia neste fenômeno: “quase nada do que acontece [atualmente] está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação”. Com o avanço da globalização e da internet e outras tecnologias, o imediatismo tornou-se um sintoma cada vez mais presente na sociedade, e, ainda segundo Benjamin, é a informação que causa efeito imediato, enquanto o efeito da narrativa é sentido lenta e gradativamente. O utilitarismo e o fim do ócio também prejudicam o romance como gênero, porque não há nele nenhum conhecimento ou ensinamento prático que vá a ser direta e imediatamente útil ao leitor ou a um grupo ao qual pertence o leitor. O leitor do romance é uma figura solitária, e “O que seduz o leitor do romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro” (BENJAMIN, 1994, p.214). O autor do romance também espera, via de regra, que seu leitor esteja consciente, e não relutante, quanto às mazelas que o desenvolvimento da sociedade burguesa provocaram no homem como entidade individual e pensante em busca de um sentido pleno da vida. O leitor do 27 romance deve aceitar como realidade, mesmo que se finja alheio a ela, os sentimentos de não- pertencimento ao mundo, de inadequação frente à sociedade, de uma individualização desumanizante frente às relações automatizadas de trabalho, engendrados pelas revoluções industriais e pelas mudanças socioeconômicas que delas foram consequência. Aquilo a que aspiram os grandes escritores enquanto representantes das tendências histórico-universais progressistas da revolução burguesa contradiz as exigências instintivas feitas à literatura pelo homem médio da sociedade burguesa. O que faz a grandeza dos clássicos do romance burguês é precisamente o que os afasta da maioria dos membros de sua própria classe: é o caráter revolucionário de suas aspirações que os torna impopulares no ambiente burguês. (LUKÁCS, 2011, p. 227) Isso não quer dizer que o leitor do romance há de ser um revolucionário propriamente dito, disposto a agir no mundo real contra o status quo do mundo em que vive. Mesmo alguém que tire proveito de tais mazelas — um burguês, como diria Lukács —, mas que sabe que o faz, é capaz de apreciar um romance como leitor. O romance não é o gênero que vem para incitar a revolução no mundo real, é o gênero que vem para mostrar-se crente na necessidade e na impossibilidade de uma revolução. Mais do que um chamado para a guerra, o romance é um chamado para o cinismo, e o leitor, se não naturalmente cínico, tem de ser ao menos capaz de identificá-lo e apreciá-lo, quando não no mundo real, ao menos como fenômeno estético. Esse chamado para o cinismo é correspondido pelo leitor quando este aprecia a narrativa do romance e, ainda mais, seus personagens, que não são heróis, não se alçam moralmente acima dos demais. Essa mundanização do personagem do romance faz com que o leitor o veja como um igual, e não um modelo, e portanto, reaja a ele com uma proximidade que é, ao mesmo tempo, maior, em razão dessa identificação, e mais desinteressada, uma vez aceito o acordo tácito que se faz com o romance. Qualquer característica […] que na vida real me fará amar ou odiar outros homens funcionará da mesma forma na ficção. Mas há uma grande diferença. Como não estamos numa posição em que seremos beneficiados ou prejudicados por um personagem ficcional, nosso julgamento é desinteressado, até mesmo irresponsável. Podemos facilmente nos ver entretidos por personagens que seriam intoleráveis no mundo real. (BOOTH, 1983, p. 98)4 4 Any characteristic [...] which in real life will make me love or hate other men will work the same effect in fiction. But there is a large difference. Since we are not in a position to profit from or be harmed by a fictional character, our judgement is disinterested, even in a sense irresponsible. We can easily find our interests magnetized by characters who would be intolerable in real life. [Tradução nossa] 28 O pacto autor-leitor no romance moderno é o pacto do desinteresse. Não há o compartilhamento de grandes valores morais, não há uma busca pelo sagrado, pelo sublime. Não há uma virtude universal a ser perseguida. O narrador convida o leitor a uma jornada que não chegará a lugar nenhum; e, conhecendo o destino, o leitor embarca. “O romance é com frequência a história de um indivíduo que busca um sentido que não há, é a odisseia de uma desilusão” (MAGRIS, 2009, p. 5). Como o leitor e o autor conhecem o destino final dessa odisseia, compartilham a desilusão engendrada pela narrativa com esse “julgamento desinteressado”, sob o véu do cinismo. A apreciação desinteressada da desilusão que a narrativa produz é o que une autor e leitor no romance. É esse pacto que torna a jornada suportável. 29 Capítulo 2 — O que é a fantasia? Esclarecidas as nuances, características, tendências e ferramentas do romance realista como gênero, resta-nos agora compreender a categoria que com ele entrará em contraste aqui neste trabalho: a fantasia, seja como gênero, seja como modo, seja como corrente. Para isso, partamos, então, de suas raízes. Em “Do insólito como um gênero narrativo”, Fábio Lucas Pierini (2015, p. 14) dirá: [...] nenhum gênero novo surge do nada. Todo novo gênero tem suas raízes em um gênero praticado anteriormente, o qual, por necessidades de expressão de vários indivíduos dotados de uma visão de mundo semelhante, diante de contextos sócio-históricos comparáveis, é adaptado, às vezes muito profundamente, para reaproximar suas mentes de um mundo que, por diversas razões, tornou-se estranho demais para eles. É necessário, portanto, para a compreensão da fantasia contemporânea, que sejam compreendidos os gêneros que lhe dão origem. Tão logo um fenômeno, um acontecimento, uma entidade que faz parte de determinado texto escapa daquilo que se compreende como uma realidade verossímil, ou seja, quando não há para tal elemento um referencial mais ou menos exato no mundo do leitor, é neste despertada a noção de estar diante do insólito, do estranho, do fantástico, do maravilhoso ou de qualquer outro nome que designe algo que não o possível e/ou provável. Como afirma Todorov (2019), a literatura é uma representação de um referencial semelhante ao mundo, e não um recorte do mundo em si. Nasce, portanto, da própria literatura, e existe em seu próprio bioma. Por conseguinte, quando Kafka (2010) escreve que Gregor Samsa metamorfoseou-se num inseto gigante, pouco importa se há no mundo do leitor a possibilidade de um ser humano transformar-se num inseto gigante: a transformação do personagem é real, dentro do mundo da narrativa, tão logo suas páginas assim o dizem. A palavra fantasia traz consigo a noção de criar a partir da imaginação; isso poderia abranger virtualmente qualquer gênero da literatura, quiçá, das artes como um todo. A noção de fantasia na literatura, no entanto, é bastante recente, e não se faz presente em obras de teóricos renomados do fantástico, como Todorov e Roas. Em Fantástico Brasileiro (MATANGRANO; TAVARES, 2019), a fantasia é descrita como uma espécie de evolução do conto maravilhoso, surgida no fim do século XIX, inicialmente em literaturas de língua inglesa, e que englobaria dentro de si diversos subgêneros 30 (o steampunk, a fantasia urbana, a alta fantasia etc.) cujos limites são voláteis e evanescentes. Para uma classificação — embora elementar — mais clara, Matangrano e Tavares sugerem dividir a fantasia em três categorias: a fantasia imersiva, cujo mundo não é o nosso; a fantasia de portal, em que um ou mais personagens de nosso mundo são transportados para outro mundo; e a fantasia intrusiva, em que nosso mundo é invadido por elementos que não o compõem naturalmente. Para que essa definição faça sentido, no entanto, e possamos começar a traçar limites para a fantasia como gênero, é preciso, antes de tudo, que sejam compreendidos os conceitos de fantástico e maravilhoso. 2.1 — O fantástico e o maravilhoso Quando se pensa o fantástico como gênero literário, a primeira coisa que se deve ter em mente é que não se trata de um gênero com limites e definições unânimes: a própria compreensão do fantástico como um gênero não é absoluta, e Todorov (2019) não pensa no fantástico como gênero que não partindo da compreensão de que diferentes gêneros podem coexistir dentro da mesma obra. Roas (2014) diz que essas divergências quanto ao fantástico devem-se, primeiramente, a duas questões: ao fato de um maior interesse da crítica pelo fantástico ser relativamente recente e ao fato de tal interesse partir de diferentes correntes teóricas, cujas tentativas de definição do fantástico, embora por vezes sejam iluminativas e complementares, não raro acabam por ser contraditórias e/ou excludentes entre si. Mesmo as obras de Roas e Todorov, alicerces teóricos para a elaboração deste trabalho, divergem em alguns pontos quanto ao que define o fantástico como gênero. Comecemos, portanto, de um ponto em comum, a característica mais mandatória para qualquer definição de fantástico: a presença de um elemento sobrenatural. Para que haja qualquer coisa parecida com um efeito de fantástico, é necessário, antes de tudo, ao menos um fenômeno, elemento ou acontecimento sobrenatural. Em outras palavras, é necessário que haja algo que fuja ao que se compreende como natural, algo que pareça, à primeira vista, impossível ou, ao menos, profundamente improvável, e esse elemento tende a ser o epicentro dos conflitos dramáticos e dos efeitos de sentido da narrativa. Tamanha importância do elemento sobrenatural no fantástico se explica em Barthes (1974, p. 219): “O sentido (ou a função) de um elemento da obra é sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos desta obra e com a obra inteira”. Se há, então, a inserção de um elemento 31 fantástico, é porque ele terá relação com os demais elementos da obra, e portanto, terá um caráter definidor em seus conflitos dramáticos. Mas a simples presença do sobrenatural não é o suficiente para a definição do fantástico: o sobrenatural, por si só, é um fenômeno demasiado presente na literatura, abrangente demais para compor um único gênero; portanto, algo mais é necessário para a existência do fantástico. Para Todorov (2019), esse “algo mais” é uma hesitação compartilhada pelo leitor com o narrador e/ou algum(ns) do(s) personagens. Para Roas (2014), é uma transgressão do real que faz com que o leitor hesite perante a própria realidade. Embora suficientemente próximas para que a maior parte das obras que componham o fantástico se encaixe em ambas, tais definições não são intercambiáveis. Todorov vê o fantástico como um gênero evanescente, uma espécie de muro entre o estranho e o maravilhoso. Para que um texto esteja no fantástico, é indispensável, segundo Todorov, a permanência de uma dúvida compartilhada pelo leitor, pelo narrador e/ou por um ou mais personagens: “há aqui a presença do sobrenatural?”. Tão logo o texto aponta uma resposta para essa questão, despenca de cima do muro do fantástico e cai sobre um de seus lados: o maravilhoso, caso a resposta seja positiva, e o estranho, caso a resposta seja negativa. “O fantástico [...] pode se desvanecer a qualquer instante. Ele antes parece se localizar no limite de dois gêneros, o maravilhoso e o estranho, do que ser um gênero autônomo.” (TODOROV, 2019, p. 48) Roas, por sua vez, entende o fantástico como um gênero que causa em seu leitor uma reação, uma sensação específica: a inquietação perante a própria realidade. Essa ruptura que o fantástico, segundo Roas, abre no mundo real é o suficiente para que o leitor, acometido pelo medo, pela hesitação ou por alguma outra forma de inquietação, acabe por confrontar-se com a própria realidade. Roas acredita que é do conflito, e não da dúvida, que nasce o fantástico: [...] o fantástico se define e se distingue por propor um conflito entre o real e o impossível. E o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não é a vacilação ou a incerteza em que muitos teóricos (a partir do ensaio de Todorov) continuam insistindo, e sim a inexplicabilidade do fenômeno. (ROAS, 2014, p. 89) Visando a chegar às respostas para as perguntas propostas por este trabalho, ambas as definições serão utilizadas para uma melhor compreensão das obras que aqui servirão como objeto de estudo. Tanto para Roas quanto para Todorov, o leitor é o ponto central da definição do fantástico, e é sob o olhar do leitor que se determina se uma obra se encaixa ou não no gênero. 32 É necessário, afinal, um conceito de realidade para que se estabeleça um sobrenatural capaz de criar o efeito do fantástico ou do maravilhoso, ou seja lá de qual seja o gênero onde se faz presente o insólito, o improvável e/ou o impossível. Esclarecidas as definições de fantástico que serão aqui utilizadas, entremos agora num gênero literário cujos limites são mais solidamente definidos: o maravilhoso. Tratando-se de um gênero mais ampla e demoradamente estudado do que o fantástico, uma vez que os contos maravilhosos são uma das mais longevas dentre todas as formas de literatura, poder-se-ia encontrar uma infinidade de definições mais ou menos convencionadas do maravilhoso. Observemo-lo, no entanto, em contraste com o fantástico; para isso, voltemos a Roas (2014) e Todorov (2019). Para ambos os autores, uma das características mais marcantes do maravilhoso nada mais é do que a ausência do elemento que define o fantástico — a hesitação, para Todorov, e a transgressão, para Roas. No maravilhoso, o sobrenatural é recebido e/ou aceito com algum grau de naturalidade. Todorov delimita, ainda, dois gêneros diversos: o fantástico maravilhoso, que se trataria de uma obra que evoca inicialmente a hesitação do fantástico apenas para aceitar — ou seja, para que um ou mais dos personagens e/ou o narrador aceitem — posteriormente a presença do sobrenatural; e o maravilhoso puro, onde a hesitação não existe em momento algum e o sobrenatural é aceito desde o começo da obra. Esta distinção, no entanto, não existe para Roas, que não compreende o fantástico como um gênero evanescente. Para ele, o maravilhoso seria um gênero onde tudo é possível, onde o sobrenatural se torna natural e a realidade não é em momento algum ameaçada, uma vez que não é nem mesmo trazida ao texto. Para este trabalho, a noção mais importante de maravilhoso a ser retomada, além da noção de um gênero, antes de tudo, intensamente povoado pelo sobrenatural, é a de um gênero em que se faz ausente a contraposição definidora do fantástico. Há ainda teóricos como Komandera (2010) que falam do Insólito como gênero literário, que se daria como uma espécie de intermédio entre o fantástico e o maravilhoso, em que o elemento sobrenatural não é tido como parte incontestável de uma realidade onde tudo seja possível nem causa um efeito de transgressão da realidade, mas apenas um pequeno incômodo. No insólito, não há nem mesmo a antecipação misteriosa frente à possível presença do sobrenatural, visto que ela é denunciada desde o início. Esse gênero ou modo conversaria 33 diretamente com obras de outros gêneros, de forma a subvertê-las ou parodiá-las, trazendo o sobrenatural como uma espécie de contestação da própria natureza da realidade. 2.2 — O mundo da narrativa e a transformação do sobrenatural Os lugares do romance podem ‘ancorar’ a narrativa no real, dar a impressão que eles o ‘refletem’. Nesses casos, nos prenderemos às descrições, à sua precisão, aos elementos ‘típicos’, aos nomes e às informações que remetem a um saber cultural recuperável fora do romance, aos procedimentos realizados para produzir este efeito realista [...] Ao contrário, algumas narrativas utilizam o espaço para outros fins: pela ausência de descrição ou a redução a lugares simbólicos, elas constroem uma dimensão universal, parabólica [...] ou mesmo crítica quando o poder político proíbe um questionamento direto. Ainda de modo diferente, um gênero como a ficção científica cria universos imaginários mas com procedimentos e uma precisão tais que dão também uma impressão realista; quanto ao terror, ou ao estranho, eles ‘funcionam’ numa base realista, estabelecendo uma comunicação entre ‘nosso’ mundo e outros mundos. O efeito de real está mais ligado à apresentação textual do espaço do que à sua realidade. (REUTER, 1996, p. 59) Quando um gênero literário toca o sobrenatural, o mundo acaba por se lhe tornar um fator profundamente mais definidor do que o é em obras onde não se faz presente coisa alguma que fuja ao natural. É, portanto, de suma importância para tratar do fantástico e do maravilhoso compreender os mundos que os compõem. Muito embora o fantástico seja esse gênero de difícil definição, o conceito de mundo é, tanto para Roas quanto para Todorov, relativamente estável dentro do fantástico: para que uma narrativa faça parte do gênero, é necessário que se passe num mundo com o qual o leitor seja capaz de se identificar. Em outras palavras, é preciso que se passe numa representação do mundo real do leitor, uma vez que tanto a hesitação defendida por Todorov quanto a transgressão da realidade defendida por Roas só podem ocorrer quando o sobrenatural (ou o aparentemente sobrenatural) se choca diretamente com o real. Há no fantástico, portanto, um profundo compromisso com o realismo, tendo em mente que o leitor não será capaz de se identificar com um mundo que não referencie o seu com o máximo de exatidão possível. Em The liberal imagination, Lionel Trilling (2008, p. 46) diz: “As ilusões da arte são feitas para servir ao propósito de uma relação mais próxima e verdadeira com a realidade.5”. O sobrenatural é indissociável do mundo real, porque é uma espécie de simbionte: só existe na presença do natural. 5 The illusions of art are made to serve the purpose of a closer and truer relation with reality. [Tradução nossa] 34 No entanto, o mundo externo à literatura e a própria noção de realidade são percepções humanas em constante evolução, o que faz com que a relação dos mundos dessas obras com a realidade esteja em constante mudança; essa é uma das razões para tamanha volatilidade por parte do fantástico como gênero. Mais do que isso, dirá Trilling, é a razão da volatilidade da literatura como um todo: Não há um único significado para qualquer obra de arte; isso é verdade não apenas porque é melhor que seja verdade, ou seja, porque isso enriquece a arte, mas porque experiências subjetivas e históricas mostram que é verdade. Mudanças no contexto histórico e no estado subjetivo mudam o significado de uma obra e mostram-nos que a compreensão artística não é uma questão de fato, mas de valor.6 (TRILLING, 2008, p.48) Alicerçado no real como é, portanto, o sobrenatural, estando sempre à margem do que compõe as fronteiras do mundo e a própria concepção de realidade, é natural que o próprio sobrenatural molde-se a qualquer alteração do real. As fronteiras do real se alargam, e o sobrenatural acossa-se mais ao longe. A consciência humana alcança novos limiares, e o sobrenatural esgueira-se, sob uma nova indumentária, por entre seus dedos. É assim que o fantástico se mantém vivo. Mas essas mudanças não afetam o maravilhoso, que não assume compromisso algum com o mundo real. Roas (2014, p. 34), a respeito do mundo maravilhoso, dirá: O mundo maravilhoso é um lugar totalmente inventado em que as confrontações básicas que geram o fantástico (a oposição natural/sobrenatural, ordinário/extraordinário) não estão colocadas, já que nele tudo é possível [...] Cada gênero tem sua própria verossimilhança: colocado como algo normal, “real”, dentro dos parâmetros físicos desse espaço maravilhoso, aceitamos tudo aquilo que acontece ali sem questioná-lo (não confrontamos com nossa experiência do mundo). Quando o sobrenatural se converte em natural, o fantástico dá lugar ao maravilhoso. Esta definição, é importante ressaltar, não significa que uma narrativa maravilhosa precise se passar num mundo novo, sem ligação alguma com o real. Primeiro de tudo, porque é impossível a criação de um mundo que não se relacione com o nosso: uma vez que a literatura é um construto da linguagem, precisa apoiar-se num referencial real para construir as imagens que constituem uma narrativa, e portanto, mesmo para a construção do sobrenatural e do maravilhoso, os alicerces continuam sendo o natural e o real. 6There is no single meaning to any work of art; this is true not merely because it is better that it should be true, that is, because it makes art a richer thing, but because historical and personal experience show it to be true. Changes in historical context and in personal mood change the meaning of a work and indicate to us that artistic understanding is not a question of fact but of value. [Tradução nossa] 35 A própria definição do gênero que Todorov (2019) chama fantástico maravilhoso corrobora essa ideia: para que uma obra possa começar dentro do gênero fantástico, ou seja, despertar temporariamente no leitor a hesitação entre natural e sobrenatural, ter como ponto de partida a evanescência entre maravilhoso e estranho, mesmo que para cair, com o decorrer da narrativa, no domínio do maravilhoso, é necessário que haja em algum momento determinado grau de identificação com o mundo. É preciso que haja determinada influência do real. No entanto, como dirá Schüller (1989, p.54), “Anulados tempo e espaço, necessários à orientação, convivemos com o fantástico, por mais referencial que seja a linguagem”. O real a influenciar a narrativa, portanto, não precisa ser diretamente referenciável. O mundo maravilhoso distancia-se o máximo possível de referenciais de tempo e espaço, é como uma redoma ilocalizável no eixo dessas duas localizações. O mundo maravilhoso é essa ideia de mundo criado a partir do nosso, mas que não tem um caminho que leva diretamente de volta ao real. Ainda assim, não há como negar que é do real que surge qualquer subversão da realidade. Provavelmente todo escritor que faz um mundo secundário, uma fantasia, todo subcriador, deseja em certa medida ser um criador de verdade, ou espera estar se baseando na realidade: espera que a qualidade peculiar desse mundo secundário (senão todos os detalhes) seja derivada da Realidade, ou flua para ela. (TOLKIEN, 2010, p. 79) Em suma, seja qual for o mundo retratado numa narrativa, não se pode romper a relação com o referencial, o mundo real. Tal relação pode ser eclipsada, enturvecida, ou desviada, pode tornar-se mais distante e menos direta, mas mundo algum pode desprender-se do real, porque o próprio conceito de mundo é intrinsecamente ligado à realidade. Acontece que o mundo real não é uma noção constante, unânime e imutável. Seus limites são definidos pelas pessoas, pelas sociedades, pelo zeitgeist7; alargam-se e estreitam-se conforme buscamos em diferentes lugares no tempo e no espaço. Se a narrativa insólita/fantástica quer situar-se exatamente na fronteira do mundo real como é concebido, precisa acompanhar o movimento dos limites da consciência humana. Se quer trazer como justificativa para a presença do elemento sobrenatural um lugar exótico no tempo ou no espaço, precisa buscar cada vez mais longe conforme as fronteiras do mundo tornam-se mais alcançáveis pela sociedade e pela consciência do homem. A nova literatura a ser produzida 7 O espírito do tempo, conjunto de valores que se fazem mais ou menos universais para determinado grupo em determinado período. 36 abastece-se não apenas dessas fontes, mas também das literaturas engendradas por tais mudanças, como dirá Trilling (2008, p. 126): A literatura, então, é histórica no senso de que é necessariamente conhecedora de seu passado. Não o é sempre de forma consciente, mas sempre o é num sentido prático. A obra de qualquer poeta existe em razão de sua conexão com obras anteriores, tanto em ressonância quanto em dissonância, e o que chamamos de sua originalidade é simplesmente sua relação especial com a tradição.8 Quando o fantástico começara a se solidificar como gênero — e antes mesmo que isso acontecesse —, os lugares ermos e exóticos onde se escondia o sobrenatural eram os cantos mais isolados da Europa e do Oriente, e em seguida, o Oceano. Com as grandes navegações, o recém-descoberto “Novo Mundo” passou a abrigar o sobrenatural, e conforme esse era desbravado, o insólito era cada vez mais acossado para o coração do novo continente. Os limites de nosso planeta, no entanto, logo tornaram-se estreitos demais, e aí, o sobrenatural passou a desbravar o espaço. A respeito da concepção de mundo do escritor, Lukács (2011, p. 80) dirá que “[...] não é, no fundo, outra coisa que não a síntese elevada a certo grau de abstração da soma das suas experiências concretas”. Com a alteração — leia-se “ampliação” — das experiências concretas acessíveis ao homem (e, portanto, ao escritor), sua consciência, ao sintetizar diferentes experiências, produz uma diferente concepção de mundo. Experiência, consciência, real e sobrenatural formam uma relação omnidirecional de interdependência. Não há transformação em um de seus componentes que não reverbere — seja como causa, seja como consequência, seja como ambos — em todos os outros. Quando os dedos da civilização humana começaram a se esticar e tocar o espaço, o fantástico voltou-se para dentro do próprio homem, explorando os limites da própria realidade e o absurdo do cotidiano: a consciência humana, afinal, não é capaz de avançar na mesma velocidade da tecnologia, e portanto, é um terreno cujos limites estendem-se num ritmo muito mais vagaroso. O absurdo da realidade, a inconstância dos próprios conceitos de mundo e de real, os confins da mente humana foram desbravados até que, nas últimas duas décadas, com a globalização, a sobrecarga de informação trazida pela internet e a reconfiguração das próprias relações humanas fizessem com que o absurdo se tornasse menos chocante, e o âmago do ser humano, menos tentador. 8 Then literature is historical in the sense that it is necessarily aware of its own past. It is not always consciously aware of this past, but it is always practically aware of it. The work of any poet exists by reason of its connection with past work, both in continuation and in divergence, and what we call his originality is simply his special relation to tradition. [Tradução nossa] 37 É então que surge a fantasia contemporânea. Capítulo 2.3 — A fantasia contemporânea Quais são as origens das “histórias de fadas”? Isso, é claro, deve significar a origem ou as origens dos elementos fantásticos. Perguntar qual é a origem das histórias (não importa como estejam classificadas) é perguntar qual é a origem da literatura e da mente. (TOLKIEN, 2010, p. 23) Como ressalta Tolkien, os “elementos fantásticos” — ou insólitos, ou sobrenaturais — em muito antecedem o fantástico como gênero, e estão presentes desde os confins da sociedade humana, na forma de mitos de criação. Tais mitos não produziam o efeito de fantástico porque não transgrediam a realidade, não causavam sensação alguma de hesitação. Mas, embora hoje estejam no terreno do maravilhoso, não o estavam à época: surgiram como explicações para o funcionamento do mundo — não um outro mundo, que Tolkien chama de Belo Reino, mas o mundo real em si, habitado pelo contador de histórias. A realidade dos povos que deram origem aos mitos de criação abarcava em si a veracidade de tais mitos. As histórias de fadas — também muito anteriores ao fantástico como gênero —, por outro lado, produzem pela primeira vez um sentimento mais ou menos análogo à transgressão e à hesitação. Pois que a realidade e o mundo em que eram produzidas a primeiro momento eram estreitos e turvos, e o Belo Reino poderia muito bem estar comportado às margens dessas fronteiras. Um efeito análogo ao fantástico é produzido, pelas histórias de fadas, a primeiro momento, como se na própria realidade, e não no interior da estrutura da narrativa. É só quando o alcance da consciência humana começa a se esticar que as histórias de fadas adquirem, finalmente, o caráter maravilhoso, e o Belo Reino torna-se um mundo à parte do nosso. E é então que, no Belo Reino, como diz Roas (2014), tudo passa a ser possível, porque não há uma realidade a ser transgredida: há o maravilhoso, e o maravilhoso não tem limites. Esse tipo de histórias serve, segundo Tolkien (2010), como uma espécie de escapismo positivo e benfazejo, adoçando a crueza da realidade com as maravilhas do Belo Reino, que, para Tolkien, pode soar tão ou mais real do que o mundo que cerca a sociedade na modernidade, com a automatização das relações humanas e de trabalho, que o autor vê como causadora de um efeito de despersonalização, de desumanização, de perda de identidade, de desconexão com o mundo. O escritor de histórias de fadas sacia o desejo de emular-se criador, e o leitor, caso a construção da narrativa seja bem-sucedida, recebe e faz-se recebido neste recém-nascido mundo maravilhoso. 38 Tolkien faz uso, em Sobre Histórias de Fadas (2010), do termo Fantasia, que não é comum entre os teóricos do fantástico de sua época. Não por acaso, é o criador daquele que é possivelmente o mais influente entre os mundos da fantasia: a Terra Média9 (e o universo onde esta se situa). Se a fantasia, na obra de Mantangrano e Tavares (2019), é descrita como uma evolução do maravilhoso, faz sentido que Tolkien, o mais célebre escritor do gênero, estivesse profundamente imerso nas narrativas do Belo Reino. Mas o mundo da fantasia não é o Belo Reino. O mundo da fantasia não é o mundo maravilhoso, e nele, nem tudo é possível. Mesmo que não entre em conflito com a realidade do leitor, é detentor de uma realidade conflitante em si mesma. Quando o fantástico levou o homem aos limites do mundo e do próprio homem para poder saciar seu desejo pela transgressão, a fantasia buscou tal sensação em outros mundos. E é provável que a tenha encontrado. Usando como exemplo a própria obra de Tolkien, a Terra Média é um mundo já decadente, uma sombra do que fora outrora, e as criaturas que ainda possuem um vínculo com o sublime e o divino, que deixaram de habitar aquele continente, partem em número cada vez maior para o além-mar, onde os deuses, semideuses e afins residem. O que fica para trás são povos cuja força está decaindo, como os elfos e os anões, e povos que precisam desempenhar um papel acima de sua grandeza, como os homens e os hobbits. São esses povos que devem enfrentar a figura maligna de Sauron e suas hordas e impedir que o mundo se perca em brutalidade e obscurantismo. Figuras longevas e imortais, como os magos Gandalf e Saruman e os elfos Galadriel e Celeborn, não pertencem mais à realidade da Terra Média na Terceira Era, período em que se passa a narrativa, e sua simples presença causa uma transgressão, de onde advém a necessidade de que sua verdadeira natureza seja reduzida a uma figura mais mundana — como ocorre com Gandalf — ou que vivam isolados em seu próprio refúgio — como os outros três. Enquanto tais figuras sublimes são recebidas com estranheza, ameaçando a própria noção de realidade dos demais habitantes do continente, a figura maligna de Sauron, igualmente antiga e grandiosa, produz um rompimento não ao vincular a realidade ao passado, mas sim ao destruir a falsa sensação de segurança e tranquilidade daqueles que são jovens demais para se lembrar do terror que ele causara eras antes. O mundo da fantasia, portanto, não é completo em si mesmo, como o da epopeia ou o das histórias de fadas: é um mundo que abriga diversos círculos fechados, que, via de regra, para que a narrativa se desenvolva, precisam ser rompidos, transgredidos uns pelos outros. 9 Universo em que se passa a trilogia The Lord of The Rings, ou O senhor dos Anéis, publicada originalmente entre 1954 e 1955. Para este trabalho, usaremos a tradução da Editora Martins Fontes, publicada no ano 2000. 39 Diferente do Belo Reino, onde tudo é possível, o mundo da fantasia abriga personagens com concepções de realidade muito diferentes, porque é como se abrigasse vários pequenos mundos, cujas fronteiras se atritam até que se esfacelem. A fantasia não retrata, como o romance, a inadequação do personagem frente a um mundo que o desumaniza e lhe priva de sentido a vida. A fantasia retrata a inadequação do personagem perante os mundos que invadem o seu, fazendo com que o sistema fechado e pleno de sentido que seu mundo fora até então, agora que invadido por outros sistemas, a priori, igualmente fechados e completos, desfaleça até a incompletude e a falta de sentido. 40 Capítulo 3 — Rothfuss, Lynch, Valentine Muito embora este trabalho tenha como enfoque a fantasia como gênero ou corrente, e as obras que aqui servirão de objeto de estudo não contenham em si a totalidade dos problemas e hipóteses aqui levantados — uma vez que, ao comparar obras, este trabalho visa a, num nível macroscópico, comparar correntes, gêneros ou modos da grande épica —, é de suma importância para as análises que serão aqui desenvolvidas um conhecimento mais profundo das obras e autores que compõem os objetos de estudo. A literatura, afinal, é composta por produções literárias, e trabalhar a literatura desvencilhando-a de sua confecção tenderia a ser uma esquematização conflitante com os pressupostos mais elementares da arte como produção humana. Isto posto, é importante ressaltar que os dados biográficos aqui reproduzidos não servirão senão como um pano de fundo, uma vez que este é um trabalho de caráter — embora predominantemente intertextual — imanentista, e não visa a encontrar nas vidas dos autores as respostas para quaisquer de suas perguntas. 3.1 - Patrick Rothfuss Nascido em Madison (Wisconsin - EUA), em 1973, Patrick Rothfuss é graduado em Inglês pela Universidade de Wisconsin-Stevens Point, e tem como únicos livros publicados os três que servirão de objeto de estudo neste trabalho, a saber, O nome do vento (2009), publicado originalmente em 2007, O temor do sábio (2011), publicado originalmente em 2011, e A música do silêncio (2014), publicado originalmente em 2014. Os dois primeiros fazem parte da trilogia inacabada A crônica do matador do rei, e o terceiro é um spin-off do mesmo universo. Suas duas primeiras obras já venderam, segundo o jornal Hollywood Reporter, mais de dez milhões de cópias ao redor do mundo, tornando-se uma das maiores franquias da fantasia contemporânea. Rothfuss é uma figura um tanto peculiar. Ao mesmo tempo em que mantém um contato próximo com seus leitores por meio de transmissões ao vivo e se mostre, por vezes, espirituoso e bem-humorado, limita-se quase sempre a tratar de assuntos triviais com seus espectadores, e recusa-se, na maior parte do tempo, a fazer qualquer menção ao último livro da trilogia, frequentemente ofendendo-se com perguntas a respeito. Rothfuss diz que a trilogia foi escrita inicialmente — a partir de 1994 — como um único livro, e que já estava finalizada quando da publicação de O nome do vento, mas que seu processo de revisão e reescrita é por demais minucioso e perfeccionista, o que seria a razão para o intervalo de mais de dez anos entre o 41 segundo e o terceiro (ainda sem data de publicação) livros da trilogia. Essa razão, no entanto, parece convencer cada vez menos a terceiros, e não é incomum encontrar opiniões de que Rothfuss nunca terminará a série. O próprio editor de Rothfuss nos EUA, onde a obra é publicada pela DAW Books, declarou em 2020 que jamais lera qualquer trecho do livro ainda por lançar. A relação de Rothfuss com seus leitores é um interessante paralelo para a situação de Kvothe, o protagonista d’A crônica do matador do rei. A forma como os leitores da saga veem em Rothfuss uma figura proeminente, que realizou grandes feitos no passado, com o estrondoso sucesso de suas obras, mas que parece cada vez mais dissociar-se dessa glória passada ao deixar-se impactar pela pressão externa que seria fazer jus a ela, é exatamente como A crônica do matador do rei leva o leitor a ver Kvothe, seu protagonista. Kvothe é uma lenda de seu mundo, uma figura que povoa histórias contadas pelos Quatro Cantos da Civilização, mas que deixou-se reduzir a um mero estalajadeiro numa cidadezinha, amargurado e arrependido, considerando-se indigno da eminência que outrora possuíra. A obra de Rothfuss (2009, 2011) é uma narrativa sobre a decadência de um homem que, acuado e desesperançoso, conta a história de sua ascensão até o caráter lendário que outrora possuíra. O leitor é apresentado, logo de cara, a quem foi Kvothe, e aos poucos, conforme ele conta a própria história, a como o protagonista adquiriu tamanha grandiosidade. No entanto, o leitor não faz ideia de — e lhe resta apenas imaginar — como Kvothe tornou-se o que é apresentado, não mais do que um fiapo da figura de outrora. A primeira obra da trilogia — e primeiro romance de Rothfuss —, O nome do vento (2009), inicia-se deixando claro que seu protagonista, Kvothe, é um homem misterioso. Refugiado há algum tempo num pequeno vilarejo, assume o nome de Kote e abre a pousada Marco do Percurso, onde vive com seu amigo, funcionário e aprendiz, Bast, que é, secretamente, um membro do povo dos Encantados: figuras que habitam o que se poderia entender como um outro plano, e que povoam o imaginário dos humanos nos Quatro Cantos da Civilização. Num dia aparentemente comum, em que o povo simples do vilarejo reúne-se na taverna para contar histórias, um habitante local, Carter, chega ao local gravemente ferido. Ao contrário do que se espera, diz que não foi atacado por bandidos, mas sim por uma criatura que matou sua égua e, por sorte, morreu esmagada por ela. Kvothe reconhece a criatura, “uma aranha do tamanho de uma roda de carroça, negra como uma lousa” ( ROTHFUSS, 2009, p.14), como um scrael, mas não dá nenhuma explicação 42 (nem aos demais personagens nem ao leitor) sobre o que isso quer dizer. No fim, os camponeses chegam à conclusão de que se trata de um demônio e levam-na à igreja, onde o padre dá fim ao cadáver. Nesse mesmo dia, Devan Lochees, o Cronista, é assaltado à plena luz, no meio da estrada. Os assaltantes, surpreendentemente civilizados, levam sua égua e seu dinheiro, mas deixam-lhe o suficiente para não passar fome. O Cronista não se deixa abater pelo roubo, já que a maior parte de seu dinheiro permanecia escondida consigo. No que parece ser o dia seguinte, Kvothe vai visitar a ferraria. Lá, ele conversa sobre os últimos acontecimentos da cidade com o ferreiro, Caleb, e compra uma barra de ferro, um avental e uma luva velhos do ferreiro. No fim da tarde, sai escondido da taverna enquanto Bast dorme. O Cronista, que não conseguiu comprar um novo cavalo, vê sua viagem a pé cada vez menos produtiva. Perambulando à noite pela estrada, percebe a luz de uma fogueira e a segue. Encapuzado sob a luz da fogueira, cozinhando algo que espalha pelo ar um cheiro pútrido, está