UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Campus Experimental De Ourinhos BEATRIZ MORETO DE CAMPOS GEOGRAFIA E O ESTUDO DO MEIO: UMA METODOLOGIA INTERDISCIPLINAR PARA ALÉM DA SALA DE AULA OURINHOS - SP 2016 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Campus Experimental De Ourinhos GEOGRAFIA E O ESTUDO DO MEIO: UMA METODOLOGIA INTERDISCIPLINAR PARA ALÉM DA SALA DE AULA BEATRIZ MORETO DE CAMPOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora para obtenção do título de Bacharel em Geografia pela Unesp – Campus Experimental de Ourinhos. Orientadora: Carla Cristina Reinaldo Gimenes de Sena Ourinhos – SP 2016 3 Banca examinadora Prof.ª Drª Carla Cristiana Reinaldo Gimenes de Sena ___________________________________________________ Prof. Dr. Amir El Hakim de Paula ___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Waldirene Ribeiro do Carmo ____________________________________________________ Ourinhos, 21 de Dezembro de 2016. 4 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Visita ao córrego – Ourinhos - SP.......................................................................... 30 Figura 2 – Visita ao lago artificial – Ourinhos – SP ............................................................... 31 Figura 3 – Visita ao Parque Olavo Ferreira de Sá – Ourinhos ................................................ 31 Figura 4 – Visita à Fazenda Tozan – Campinas – SP ............................................................. 32 Figura 5 – Visita à Paranapiacaba – Santo André – SP .......................................................... 34 Figura 6 – Visita à Santos – SP ............................................................................................... 35 Figura 7 – Visita à Ouro Preto – MG ...................................................................................... 36 Figura 8 – Visita à Mariana – MG .......................................................................................... 38 Figura 9 – Visita à Congonhas – MG ..................................................................................... 38 5 SUMÁRIO 1. Introdução .................................................................................................................. 7 2. Trabalho de Campo e Estudo do Meio .................................................................... 10 2.1 Importância do trabalho de campo para o ensino ........................................... 10 2.2 Estudo do Meio .................................................................................................... 14 3. Escolas Anarquistas .................................................................................................. 20 4. Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo 24 4.1 Trabalho de campo com a E. E. Domingos Camerlingo Caló.......................... 29 4.2 Estudo do Meio com o 8º ano EF – Escola de Aplicação ................................. 32 4.3 Estudo do Meio com o 2º ano EM – Escola de Aplicação ................................ 35 5. Considerações finais .................................................................................................. 40 6. Referências bibliográficas ......................................................................................... 43 6 Apresentação Esta pesquisa surgiu durante a licenciatura em Geografia em meio às atividades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Dentre elas, um trabalho de campo realizado com alunos do 1º do Ensino Médio da Escola Estadual Domingos Camerlingo Caló: parte do grupo do PIBID realizou a ida a campo com os alunos para que fossem trabalhadas algumas questões ambientais do município de Ourinhos – SP. Três pontos da cidade foram visitados, todos contavam com alguma especificidade ambieltal: poluição, mau uso, descaso, etc. As reações dos alunos foram diversas, desde “a aula podia ser sempre assim”, a “nossa, eu nunca tinha percebido isso aqui na cidade”, revelando a importância de uma atividade fora do ambiente escolar para a aprendizagem. Desta atividade surgiram reflexões a respeito da relevância do trabalho de campo como uma prática que aproxima o aluno da realidade, principalmente para conteúdos abordados na disciplina de Geografia. Meses após a realização dessa prática o ingresso no mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) fez com que os planos mudassem e a pesquisa adquirisse um caráter teórico. Contudo, o projeto da pós- gradução seguia o mesmo viés, e para tanto, foram acompanhados estudos do meio na Escola de Aplicação da FEUSP (EAFEUSP). Aprofundou-se então tanto a teoria, quanto a prática, no que se refe as temáticas de trabalho de campo, estudo do meio, interdisciplinaridade e seus assuntos relacionados, como as escolas anarquistas e a trajetória da EAFEUSP. Este trabalho busca então unir estas duas experiências com alunos, demonstrando a história e a importância da atividade do trabalho de campo e da metodologia do estudo do meio para o ensino, principalmente de geografia. 7 1. INTRODUÇÃO Diferentes teorias sobre o ensino vêm sendo propostas para que trabalhemos com nossos alunos com a utilização de diferentes metodologias para melhor processo de ensino- aprendizagem. Por mais que muitas dessas atividades que fogem da dupla “giz e lousa” funcionem e por mais que se pareça verdadeiro desafio para os professores do ensino básico da rede pública, talvez nenhum seja tão complexo e completo como a prática do estudo do meio. Deixemos claro que o estudo do meio não se trata apenas de levar o aluno a um museu ou um parque, voltar para a sala de aula e esquecer aquilo que fora visto, mas ao contrário. Essa prática envolve uma extensa e intensa organização por parte dos professores envolvidos, começando pela organização dos temas que serão abordados, os locais a serem visitados, a distribuição das aulas para que o grupo de professores tenha tempo de trabalhar os temas, a organização do caderno de campo e as propostas de trabalho pós campo. Além dos percalços e imprevistos encontrados durante a saída a campo. Tanto quanto a organização, um estudo do meio exige esforço dos professores envolvidos, além de necessitarem de contribuições de funcionários e da gestão da escola para que as atividades possam ser bem sucedidas. A Geografia e o trabalho de campo mesmo antes de receberem tais nomenclaturas já faziam parte de uma mesma forma de pesquisa. O ir a campo mostrou-se necessário para muitas das áreas desta ciência. Por muito tempo tido como um método, caro somente aos trabalhos realizados em laboratório ou útil para constatações de cunho biogeográfico, morfológico ou climático, no século XX o trabalho de campo ganha adeptos também na escola de ensino básico. Começando seu caminho pela Europa, na França e na Espanha, chega ao Brasil com os imigrantes anarquistas e é então chamado de estudo do meio. Em razão do interesse pela execução do estudo do meio e sua influência no processo de ensino-aprendizagem de Geografia surgiu esta pesquisa. Desenvolvida em duas escolas com muitas diferenças entre si: Escola Estadual Domingos Camerlingo Caló – Ourinhos/SP e na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EAEUSP). Na primeira as atividades tiveram início em 2014 com o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) e se estenderam até o primeiro semestre de 2015, a escola não contava com organização e incentivos para a realização de muitas atividades, principalmente aquelas que necessitavam ser realizadas fora do local, como um trabalho de campo ou mesmo estudo do meio. Ainda assim, em 2014 realizamos uma saída a campo com os alunos, com 8 apoio da UNESP – Ourinhos e visitamos 3 pontos da cidade que chamavam a atenção por alguma questão ambiental e também social. Na EAFEUSP ao longo de todo o ano de 2016 foram acompanhadas as atividades que diziam respeito aos estudos do meio do 8º ano do Ensino Fundamental (EF) e do 2º ano do Ensino Médio (EM), conforme projeto de mestrado apresentado à direção da escola. O contexto era outro, pois trata-se de uma instituição com décadas de experiência em trabalhos de campo e estudos do meio, contando com apoio e envolvimento de funcionários, professores e direção/coordenação. A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação e poucas foram as intervenções nas atividades já organizadas pelos professores das diferentes disciplinas envolvidas. O principal objetivo do trabalho consiste em analisar o estudo do meio como uma metodologia de ensino de Geografia para a educação básica, sendo importante para a formação pedagógica do aluno e para a formação continuada do professor. Os objetivos do trabalho são:  Organizar uma saída a campo com os alunos da E. E. Domingos Camerlingo Caló, acompanhar a organização e o desenvolvimento de um estudo do meio na Escola de Aplicação;  Analisar o impacto dessa atividade no ensino de Geografia para as turmas selecionadas, principalmente através dos cadernos de campo dos alunos;  Investigar como se processa a interdisciplinaridade em um trabalho coletivo com a participação de professores de diferentes áreas do conhecimento, a fim de salientar a importância dessa prática contra a fragmentação dos conteúdos escolares. Para tanto, foram organizadas as seguintes atividades: revisão bibliográfica de autores que trabalham com o ensino de Geografia na Educação Básica, a interdisciplinaridade, o estudo do meio e as diferentes teorias de ensino e aprendizagem, colóquios com a orientadora, participação em um trabalho de campo com alunos da escola de Ourinhos e em dois Estudos do Meio na EAFEUSP, sendo um com alunos do Ensino Fundamental II e um com alunos do Ensino Médio e realização de atividades com ambas as turmas antes e depois da ida a campo, para sabermos de cada um destes grupos suas percepções e avaliações a respeito do estudo do meio, principalmente no que tange as diferenças entre o ensino dentro e fora de sala de aula, tanto de geografia, quanto das demais disciplinas. No que diz respeito ao ensino da geografia, o trabalho de campo é bastante valorizado por Sternberg (1946). O autor destaca dois objetivos didáticos que são alcançados: “[...] 9 correlacionar as atividades escolares com problemas reais, aumentando o interêsse (sic) do estudante pela ciência geográfica e ensinar a interdependência dos fenômenos estudados pela geografia” (p. 14). Quanto à organização de um trabalho de campo, ela pode ser dividida em três etapas que se sucedem e se complementam: “[...] o planejamento e a organização, a realização e a elaboração dos resultados” (p. 17). Tanto nessa questão das etapas, quanto na didática, chegamos ao ponto em que trabalho de campo e estudo do meio convergem e seguem pelo mesmo caminho. Em obra de 1971, o sociólogo Buford H. Junker discorre a respeito da relevância do trabalho de campo para as Ciências Sociais, ressaltando o quanto este trabalho é importante para o próprio pesquisador que o realiza: [...] as tarefas de observar, registrar e relatar o comportamento de pessoas vivas, em situações contemporâneas, sem qualquer intenção de mudá-las ou suas situações, de qualquer forma direta, e, pelo contrário, com a intenção de evitar perturbações em suas atividades naturais. Êsse trabalho de campo procura influenciar apenas quem está empenhado no progresso do conhecimento nas Ciências Sociais (sic) (1971, p.2). No mesmo trabalho, a respeito da situação de observação no trabalho de campo, Junker diz haver pelo menos 4 partes: o observador, os fenômenos observados, as informações buscadas e o papel do observador. Esses componentes complementam-se, formando os diferentes momentos do trabalho de campo: [...] saber que informação na sociedade é necessária para a sua ciência social [...], saber com as pessoas na sociedade [...] que papel social como observador lhe permitirá obter delas [...] as informações relevantes sôbre a sociedade; [...] acomodar-se a êsse papel, “introduzindo-se” [...], “permanecendo” [...], e “retirando-se” [...] (sic) (JUNKER, 1971, P. 11). Para Venturi (2011, p. 21) “o trabalho de campo é uma experiência insubstituível”, é neste momento que o geógrafo poderá compreender a complexidade da realidade e então fazendo uso dos principais conceitos (agora materializados - paisagem, espaço, lugar e região) tanto consegue dar sentido a ela, quanto dela obter sentido. Além disso, cada observação é singular, Não há possibilidade de dois estudantes passarem pelas mesmas experiências de aprendizado, com os mesmos resultados, sejam quais forem as tarefas padronizadas impostas. O aprendizado de trabalho de campo é um 10 empreendimento individual ao qual se pode e se deve emprestar valor positivo pelas recompensas de melhoria na comunicação efetiva com os outros, sôbre experiências que não podem deixar de ser idiossincráticas mas que, mesmo assim, podem ser transformadas em relato explícito útil [...] (JUNKER, 1971, p. 7). 2. TRABALHO DE CAMPO E ESTUDO DO MEIO 2.1 Importância do trabalho de campo para o ensino Quando se fala em trabalho de campo a Geografia é a primeira disciplina que nos vem à tona. Fazer levantamento de campo, observar a paisagem, realizar croquis e entrevistas, coletar dados, voltar para à universidade e sistematizar tudo o que fora visto. Essa prática que nos é tão cara tem uma longa e rica história na geografia brasileira. Ainda em 1946, sob o título de “Contribuição ao Estudo da Geografia”, o geógrafo brasileiro Hilgard Sternberg traz contribuições importantes sobre a teoria e a prática do trabalho de campo. O autor coloca que “a concepção da geografia como uma lista interminável de nomes, que nenhuma conexão apresentam além de sua coexistência, e eventual justaposição, é, sem dúvida, coisa do passado” (p. 13). Para ele, ainda que um local já tenha sido estudado por outras ciências “periféricas” da geografia, “[...] os objetivos específicos desta ciência exigiriam contato direto do geógrafo com a região” (idem), procurando correlacionar in loco fenômenos que eram até então tomados de maneira isolada. No momento do trabalho de campo, o aluno tem contato direto com a realidade, e este contato pode ocorrer em qualquer ambiente (urbano, rural, natural, e outros) e a observação ocorre orientada por conceitos já apreendidos em aula, além disso, fora da sala de aula o aluno pratica uma análise integrada, podendo articular e relacionar os fatos observados (VENTURI, 2011). Entre as características do trabalho de campo, podemos destacar a imprevisibilidade, resultado do contato direto com a realidade, e a necessidade do planejamento e da flexibilidade, ou seja, a necessidade de um “plano B”. Sobre o papel do trabalho de campo na pesquisa em Geografia, Venturi afirma que: “Em termos gerais, trabalho de campo é uma técnica ampla que incorpora outras mais específicas (atreladas aos diferentes objetos de estudo) e, de tão fundamental para a análise geográfica, é considerada por alguns como método, assim como o é para os antropólogos” (2011, p. 21). 11 A desarticulação entre método e teoria pode levar à banalização do trabalho de campo. O surgimento da Geografia como ciência muito deve aos relatórios de campo elaborados por naturalistas, viajantes e outros pesquisadores que reuniram importantes informações as quais foram fundamentais para a construção das bases da ciência. Esse fato fez com que a Geografia adquirisse uma marca empirista forte, tornando o trabalho de campo no próprio método, muitas vezes desprezando a teoria e considerando somente a descrição da realidade como critério de verdade. As realizações das observações feitas separadamente entre aspectos naturais e aspectos sociais, levou ao surgimento de uma dicotomia entre a Geografia dos homens e a da natureza, sendo tratadas como realidades totalmente diferentes (ALENTEJANO; ROCHA-LEÃO, 2006). No Brasil, por conta da forte influência francesa e de naturalistas no desenvolvimento dessa ciência o resultado não foi diferente, e a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) em muito contribuiu para a consolidação dos trabalhos de campo no país. Mais tarde, outra dicotomia dificulta as articulações entre teoria e prática: Geografia física e humana; resultando em trabalhos com abordagens de cunho somente social ou natural, sem integrá-los no momento de análise dos fenômenos manifestados na superfície da Terra. Dessa maneira, sociedade e natureza são estudadas com métodos específicos e as pesquisas de campo tendem a se aproximar de apenas um dos campos da Geografia, “negligenciando a própria missão original e integradora” (idem, p. 56). O trabalho de campo é parte do processo de produção do conhecimento, não podendo prescindir toda teoria, pois pode tornar-se sem conteúdo que colabore para revelar-nos o cerne dos fenômenos geográficos, articulando as escalas e sendo possível efetivas construção e interpretação geográficas da realidade, do particular ao geral, voltando a este, bem como da teoria à prática e vice-versa. A pesquisa de campo é um meio e não um objetivo em si mesma. É a pesquisa indispensável à análise da situação social. Trata-se, repetimos, de situação social e não de situação espacial. O espaço não pode ser estudado pelos geógrafos como uma categoria independente de vez que ele nada mais é que um dos elementos do sistema social. São as relações dos homens com o espaço ou a respeito do espaço que preocupam hoje os geógrafos modernos: preocupação ou polarização científica insuficiente, de vez que não se pode compreender estas relações sem conhecer e compreender as relações dos homens entre si, quer dizer, as relações sociais (KAYSER, 2006, p. 97). No tocante ao ensino de Geografia no Ensino Básico, se o trabalho de campo for previamente preparado, incentivando os alunos a problematizarem o que verão, preparando-se para entrevistas e observações acerca do local visitado, haverá uma representativa 12 contribuição para a formação deles como pesquisadores. Sendo este momento fora da sala de aula bem aproveitado, outro ponto importante para a formação dos alunos será a compreensão integrada dos fenômenos sociais e naturais, os quais convergem na realidade do campo, pois esses aspectos da realidade são indissociáveis. Nesse sentido, o trabalho com as diferentes escalas de análise dos acontecimentos torna-se de grande relevância, pois muitos dos processos observados em campo complementam outros, os quais encontram-se em escalas espaço-temporais distintas, resultando na realidade geográfica contemplada (ALENTEJO, ROCHA-LEÃO, 2006). Uma das características mais relevantes da ida a campo é a concretização do espaço (em seu sentido leigo). Trazendo à tona uma importante questão para a Geografia: a localização. Em seu texto no Boletim do Conselho Nacional de Geografia La Blache afirma que: É necessário deixar impresso nos nossos alunos o hábito de cada vez que se pronuncie o nome de uma localidade sintam a necessidade e o desejo de saber onde se encontra, em que parte do globo, em que posição em relação à que eles ocupam, em que condições de extensão e distância em relação com aquelas que podem apreciar diretamente por si próprios. Muitos dos preconceitos e ideias falsas deste mundo procedem que não sabemos localizar (1943, p. 19). Para a realização de um trabalho de campo é necessário, segundo Sternberg, planejamento e organização, assegurando o preparo técnico dos participantes, elaborando o programa de trabalho (onde irão, o que será visto, qual é a finalidade das visitações) e também organizando os equipamentos que serão necessários. Para tanto, a ida prévia do professor ao local do campo é fundamental, “[...] essa visita preliminar aumenta extraordináriamente (sic) o valor didático dos trabalhos de campo, pois fornece ao professor uma visão geral da área a estudar e lhe permite prever boa parte dos problemas que poderão surgir durante a excursão” (p. 18). Quanto ao conhecimento prévio a respeito da área, fica a cargo do professor definir se ele será necessário ou não, pois pode influenciar de maneira não desejada na coleta e na interpretação dos dados e das informações. Os objetivos gerais, o preparo psicológico, a ciência do tipo de atividade que será desempenhada em campo e a curiosidade, segundo o autor, devem fazer parte da bagagem do estudante que parte para um trabalho de campo. No que diz respeito às técnicas necessárias ao trabalho em campo, Venturi (2011) disserta sobre a “[...] dimensão científica da técnica enquanto apoio operacional às pesquisas 13 geográficas [...]” (p. 14). No texto o autor assimila a necessidade da relação entre a geração de dados da realidade, que por sua vez, possibilitarão os caminhos empíricos a serem seguidos pelo método: “[...] Se o método, dispondo de fundamentação teórica, auxilia o pesquisador na organização do raciocínio, as técnicas, por sua vez, auxiliam-no na organização das informações que lhe darão subsídio” (p. 15). Ainda que muitas vezes separados para análise de suas características e funções, as teorias, técnicas, os métodos e instrumentos constituem, segundo o autor, as diferentes facetas do mesmo processo científico. Os croquis sem dúvida são uma forma de registro muito usual e de grande utilidade para os geógrafos em campo. Através dele o pesquisador representa suas primeiras observações e impressões da paisagem em vista, podendo adicionar notas pessoais e enfatizar características locais; muitas vezes tornando-se um registro mais importante do que uma fotografia. Outro registro de grande relevância no trabalho de campo são as entrevistas. Sternberg faz uma ressalva dizendo que “[...] não devemos fiar demasiadamente em tais informes, reservando-nos sempre o direito de verificá-los, [...] pela comparação das declarações de diferentes pessoas” (p. 55). No mais, as entrevistas são a maneira mais fiel de se ter acesso às histórias locais, fazendo-nos conhecer os nomes populares dos lugares, as gírias, o sotaque, podendo questionar diretamente aquele que vive a realidade quais são suas expectativas e o seu dia a dia. Contudo, Serpa (2012) alerta para um possível problema na coleta de dados, principalmente quando estes advêm de outras pesquisas, pois podem ter sido coletados através de técnicas e procedimentos que não são compatíveis com as questões de pesquisa e com o recorte do espaço definidos pelo pesquisador. No caso do estudo do meio nem sempre os alunos terão prática e habilidade no momento de representação daquilo que é observado. Sobre as técnicas de desenho, Fiori (2011) argumenta que esse procedimento ganhou força nos estudos geográficos no século XIX através das grandes expedições realizadas pelos europeus ao continente americano. “O desenho é um recurso gráfico que possibilita representações em um plano bidimensional [...], utilizando-se de apenas algumas ferramentas como lápis, caneta, pincel [...]” (2011, p. 382). É a partir do uso de representações gráficas auxiliadas por textos que, segundo autor, entendem- se os fenômenos naturais e antrópicos que ocorrem na paisagem. Além de servirem como lembranças daquilo que fora visto em campo e do que mais chamou a atenção do pesquisador no momento, um registro pessoal, afinal “qualquer tipo de ilustração resulta de escolhas, recortes e enfoques de porções da realidade [...] que são previamente estabelecidos pelo desenhista” (idem, p. 383). 14 Outro importante aspecto do trabalho de campo é o relatório de campo. Para Venturi (2011), é necessário ter atenção sobre três eixos principais: o tipo da redação, o detalhamento das informações e sua estrutura. O relatório tratará daquilo que fora observado em campo, desde o percurso, até as entrevistas e momentos mais significativos. Porém, a autora alerta para os cuidados com a escolha da informação que será enfatizada, “o nível de detalhamento tende a aumentar à medida que o observador aproxima-se do objeto ou fato a ser estudado” (Mª A. VENTURI, 2011, p. 487). Apesar do campo (quase) sempre reservar surpresas, é importante que o redator tenha claro quais são os objetivos do trabalho e os principais fatores a serem observados e destacados. O registro fotográfico também faz parte desse documento (assim como os croquis e mapas, por exemplo), e apesar de todo o grupo observar uma mesma paisagem, nenhum relatório será idêntico ao outro, principalmente no que diz respeito à redação, pois nenhum observador é neutro, assim, não há textos neutros ou genéricos a ponto de não demonstrarem impressões de quem o escreveu. Para a autora, podemos destacar três tipos de redação: descritiva, narrativa e dissertativa, ao passo que, a narrativa “capta o mundo em sua mudança, no dinamismo de suas transformações, com enunciados expostos em progressão temporal” (idem, p. 486), enquanto a dissertativa “expõe propriedades e aspectos de um ser particular, numa relação de simultaneidade, como são vistos num determinado momento” (idem). Deste modo, Venturi caracteriza o relatório de trabalho de campo como um texto descritivo-narrativo em sua predominância, além dos aspectos interpretativos. Segundo Serpa (2006), o trabalho de campo em Geografia possibilita revelar as diferentes possibilidades de recortar, analisar e conceituar o espaço, conforme questões, objetivos e métodos definidos pelo pesquisador, não priorizando somente fatores naturais ou humanos, mas sim possibilitando uma leitura ampla do local estudado, contribuindo para a produção do conhecimento geográfico. “É necessário recortar adequadamente os espaços de conceituação para que sejam revelados e tornados visíveis os fenômenos que se deseja pesquisar e analisar na realidade” (SERPA, 2006, p. 9). 2.2 Estudo do Meio O Estudo do Meio não é uma novidade como metodologia pedagógica na educação brasileira, hoje utilizado como metodologia por escolas do ensino básico com o intuito de distanciarem-se da racionalidade técnica e em busca da educação formadora, segundo Lopes e 15 Pontuschka (2009) resulta de uma tradição escolar inspirada em educadores como Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909) e Céléstin Freinet (1896-1966); esta prática visa proporcionar aos estudantes uma aprendizagem com um contato direto com a realidade estudada. Definido por Lopes e Pontuschka (2009, p. 173) como: [...] um método de ensino interdisciplinar que visa proporcionar para alunos e professores o contato direto com determinada realidade, um meio qualquer, rural ou urbano, que se decida estudar. Esta atividade pedagógica se concretiza pela imersão orientada na complexidade de um determinado espaço geográfico, do estabelecimento de um diálogo inteligente com o mundo, com o intuito de verificar e de produzir novos conhecimentos. Entende-se, e este é o objetivo deste trabalho, que a realização dos Estudos do Meio, em todos os níveis de ensino, mas particularmente na educação básica, pode tornar mais significativo o processo ensino-aprendizagem e proporcionar aos seus atores o desenvolvimento de um olhar crítico e investigativo sobre a aparente naturalidade do viver social. Para os autores, apesar da disseminação e popularização dos Estudos do Meio nos anos de 1960 no interior do movimento da Escola Nova, representando uma atividade do método intuitivo e desenvolvida nos anos 60 no Brasil em escolas experimentais, como nos Ginásios Vocacionais ou nas Escolas de Aplicação, registros de décadas anteriores mostram sua realização nas escolas fundadas por grupos de imigrantes europeus anarquistas, os quais no início do século XX fixaram-se principalmente em São Paulo e ocuparam postos de trabalho na indústria brasileira emergente. Estas escolas basearam-se nas ideias pedagógicas de Ferrer e “tinham como princípio oferecer um ensino racional, fundamentado em observações de campo, em discussões e na formação do espírito crítico sobre o meio circundante, ou seja, o contexto social do entorno da escola da qual pertenciam os alunos” (PONTUSCHKA 2004b apud LOPES e PONTUSCHKA, 2009: 176). Uma das características do estudo do meio é a interdisciplinaridade, uma vez que, [...] pretende desvendar a complexidade de um espaço determinado extremamente dinâmico e em constante transformação, cuja totalidade dificilmente uma disciplina escolar isolada pode dar conta de compreender. O Estudo do Meio, além de ser interdisciplinar, permite que o aluno e professor se embrenhem num processo de pesquisa. Mais importante do que dar conta de um rol de conteúdos extremamente longo, sem relação com a vivencia do aluno e com aquilo que ele já detém como conhecimento primeiro, é saber como esses conteúdos são produzidos (PONTUSCHKA; PAGANELLI; CACETE; 2007, p. 173). 16 Nesse mesmo sentido, Fazenda (1991), afirma que o pensar interdisciplinar promove o diálogo com as diferentes formas de conhecimento. Por outro lado, Ferreira (1991), no mesmo livro organizado por Ivani Fazenda, acrescenta que essa construção do conhecimento integrando as diferentes ciências não garante sua perfeita execução, assim, a interdisciplinaridade é uma possibilidade de enriquecer e ultrapassar a fragmentação do conhecimento. A atitude interdisciplinar necessita de uma consciência clara e objetiva por parte daqueles que a praticam; com ela aprende-se que um fato nunca é isolado, mas sim consequência da relação entre muitos outros fatos e saberes. Frigotto (1995), afirma que a necessidade da interdisciplinaridade na produção do conhecimento está fundamentada no caráter dialético da realidade social, a qual é ao mesmo tempo una e diversa na natureza intersubjetiva de sua apreensão. Este caráter uno e diverso nos impõe distinguir quais são os limites reais dos sujeitos que investigam e os limites do objetivo investigado. Para o autor, delimitar um objetivo para investigação não significa fragmentá-lo e abandonar as múltiplas determinações que o constituem, pois mesmo delimitado um fato não perde sua totalidade, pois esta é parte indissociável. Delizocov e Zanetic (1993, p.13) alertam para que a interdisciplinaridade não seja confundida com outras formas de abordagem que também procuram “extravasar as fronteiras extremamente rígidas das diversas áreas do conhecimento normamente presentes nos currículos escolares”. Conforme experiência vivida na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo entre os anos de 1989 e 1992, os autores trazem a concepção de trabalho interdisciplinar que fora adotada: [...] a concepção de trabalho interdisciplinar adotada [...] pressupõe um procedimento que parte da ideia de que as várias ciências deveriam contribuir para o estudo de determinados temas que orientam todo o trabalho escolar. Respeita a especificidade de cada área do conhecimento, isto é, a fragmentação necessária no diálogo inteligente com o mundo e cuja gênese encontra-se na evolução histórica do desenvolvimento do conhecimento (idem, p. 13). Para eles, respeitando-se os componentes dos saberes, procura-se também estabelecer a relação – que deve ser perseguida – entre a totalidade em construção e a ampliação continuada na busca de novos fatos e relações. Para este movimento pressupõe-se a 17 colaboração integrada dos diferentes especialistas que trazem as contribuições para trabalhar determinado tema, dessa forma, a integração das disciplinas permitirá a melhor compreensão do fenômeno ou situação. A dialogicidade caminha juntamente com a interdisciplinaridade, e ambas fazem parte do trabalho dos professores que articulam uma metodologia interdisciplinar, como mostra Pontuschka (2015, p. 192): A dialogicidade exige permanente colaboração entre os vários sujeitos sociais, pois o pensar e o agir disciplinares constituem tarefe árdua, pois é preciso que os professores passem de um trabalho individual, solitário e compartimentado, no interior de uma disciplina ou de um dos ramos da ciência, para um trabalho coletivo, orientado para o interdisciplinar, em que, em um esforço individual e coletivo, vá em busca da totalidade, somente conquistada por meio de uma construção; em que olhares diferenciados incidam sobre um objeto e as pessoas dialoguem sobre ele, iluminadas pelos fundamentos teóricos e conceitos básicos de suas disciplina, na busca incessante de compreendê-lo melhor. Para a autora, uma postura interdisciplinar engloba a interação entre os sujeitos e os objetos (pessoas e grupos em suas relações e dimensões sociais culturais) do conhecimento enriquece as representações sociais dos indivíduos, realizando um movimento de ir e vir. A observação de fatos e aspectos da realidade percebidos pelos sujeitos sociais é o ponto de partida para essa construção, os quais serão analisados e historicizados no tempo e no espaço (PONTUSCHKA, 2015). A Geografia é a ciência que estuda a relação dos homens com o espaço habitado por eles, abarcando sua construção, desenvolvimento, relações econômicas, sociais e ambientais. Porém, aprofundar qualquer uma dessas temáticas só é possível com a colaboração de outras disciplinas. Há também a questão de quais são os objetivos de determinado Estudo do Meio, quais são os temas norteadores das atividades e que caminhos metodológicos os professores escolherão seguir. Contudo, a interdisciplinaridade não consiste somente em ser colocada em prática no momento do Estudo do Meio, é necessária uma integração ao longo do ano, pensando e refletindo de maneira conjunta sobre as ações a serem realizadas nas atividades pedagógicas. É preciso promover de fato um rompimento com a fragmentação isolada dos conhecimentos escolares, com os temas e com o trabalho desenvolvido. No estudo do meio, a pesquisa de campo e a organização do conhecimento são fundamentais para a análise da realidade estudada, dessa forma o aluno pode construir seu 18 conhecimento a partir da observação direta da realidade, pois ele conhece sua dimensão prática e consegue analisá-la em seus diversos aspectos de forma integrada, facilitando o entendimento do cotidiano, na relação teoria e prática e de relacionar os conhecimentos escolares com a prática vivenciada no cotidiano. O aluno tem a oportunidade de observar as aparências dos fenômenos e buscar a essência, perceber as múltiplas fontes de informações que existem à disposição, vivenciar um trabalho fora do convencional, mas que está planejado, desmistificar falsos valores através da compreensão da realidade, trabalhar com a ideia de permanências e mudanças, vivenciar atividades que contemplam as dimensões do coletivo e do individual e superar a fragmentação do conhecimento. A História e a Geografia eram o centro da proposta curricular para os Estudos do Meio e as demais disciplinas teriam então de se adaptar e organizar conforme as questões propostas por essas disciplinas centrais para a realização do trabalho de campo. Essa integração um tanto quanto forçada entre as disciplinas foi um aspecto que passou a ser criticado. Na década de 1960 a prática popularizou-se com as escolas experimentais e os colégios vocacionais, porém, nesta mesma década com a tomada do poder pela Ditadura Militar, o Estudo do Meio sofreu uma interrupção nestas escolas, as quais foram fechadas. Isso porque práticas educacionais eram consideradas perigosas pelas novas propostas que se baseavam na tecnologia educacional, útil para motivar ou ilustrar algum conteúdo, em especial na disciplina denominada Estudos Sociais. No final da década de 1970, em razão da fragilidade da ditadura, buscou-se retomar o Estudo do Meio em algumas escolas públicas. Pouco depois, já na década de 1980, os professores do ensino básico puderam voltar às universidades, as quais mesmo durante a ditadura continuaram com pesquisas e avanços nos diferentes campos do conhecimento, em contato com esta produção, foi possível levar novos desafios metodológicos e epistemológicos para o cotidiano escolar. Entre os anos de 1989 e 1993, a então prefeita Luiza Erundina implementou mudanças, e na área da educação os responsáveis passaram a ser os educadores Paulo Freire e, mais tarde, Mário Sérgio Cortella. Entre as mudanças estavam: aumento do salário dos professores da rede municipal, bem como sua capacitação e os MOVAs (Movimentos de Alfabetização – voltado para adultos). Essas alterações trouxeram novas possibilidades e maior amplitude para os professores exercerem suas atividades. No que tange ao ensino de Geografia, no momento do estudo do meio o tempo e o espaço podem ser atingidos, uma vez que, as observações sensíveis possibilitam uma 19 aproximação entre esta disciplina e a História; todos os elementos integrantes de um espaço (a escola, uma indústria, um córrego) podem ser pontos de partida para uma reflexão acerca do espaço. Além da descrição desses locais é importante ir além, pois nos lugares escolhidos para visita há o que refletir em Geografia e não há lugares “pobres” ou “privilegiados”, é necessário saber “ver” e “dialogar” com o espaço, principalmente porque as explicações podem estar no interior daquela realidade, sendo visíveis ou não. O diálogo com o espaço – que não é autoexplicável - move professor e aluno a irem além, fazendo com que eles percebam que o meio não é imóvel, mas sim dinâmico. No momento em que o aluno retornar para a sala de aula pós-saída a campo ele terá a oportunidade de aprofundar muitas das questões surgidas e documentadas em seu caderno de campo. O espaço poderá ser então melhor compreendido, pois as informações obtidas serão analisadas juntamente com outros documentos escritos. Esse momento faz com que seja evitada a fragmentação de informações em diferentes fontes escritas, jornais e revistas; o aluno poderá realizar leituras mais profundas, pois agora ele possui novos parâmetros para contextualizar os fatos e as informações. Para Cavalcanti (2002), o estudo do meio é um procedimento de tradição nas práticas de ensino em geral, principalmente nos estudos geográficos na escola, pois entende o meio como um processo de interrelação entre a natureza e a sociedade. No que diz respeito à elaboração conceitual, pode-se pensar na construção dos conceitos a partir dos conhecimentos prévios dos alunos para conduzi-los à elaboração do conceito científico. Dessa forma, o estudo do meio permite ao aluno uma análise espacial, a tarefa principal da Geografia. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997) adquirir conhecimentos básicos de Geografia é algo importante para a vida em sociedade, principalmente para o desenvolvimento da cidadania. Dessa forma, o objeto de estudo dos alunos deve ser a paisagem local, o espaço vivido, entretanto, a compreensão das relações entre a realidade local e o contexto global deve ser desenvolvida durante toda a escolaridade de modo cada vez mais abrangente e aprofundado. O estudo da Geografia aborda, principalmente, a relação que a sociedade estabelece com a natureza, buscando a historicidade da construção do espaço geográfico, uma vez que, o espaço para aquele que estuda a Geografia nunca lhe parece neutro, pois não há neutralidade na construção do espaço. Quando se fala do estudo do meio como uma metodologia de ensino, trata-se de trabalhar com uma perspectiva integradora quanto à matriz curricular. Uma das maiores contribuições desse procedimento está nas “possibilidades do fortalecimento da postura investigativa e do espírito científico” (FERNANDES, 2013: 13). As três atividades centrais do 20 estudo do meio - planejamento inicial, saída a campo e sistematização do material coletado - ampliam a visão de mundo do aluno, e é no momento em que ele está em campo que realiza-se a coleta de material: entrevistas, fotos, croquis, vídeos servem de material para a produção de material no retorno à sala de aula. Assim, para Fernandes (2013), o estudo do meio não é apenas uma visita para observar aquilo que já se sabe, mas requer um trabalho de investigação apurado, com muitas leituras prévias, levantamento de questões e uma atitude investigativa durante a atividade. Com as saídas a campo fica muito mais fácil e claro para o aluno compreender uma série de temas, uma vez que, ele terá contato direto com eles e realizará uma análise, uma reflexão sobre aquilo que fora visto. Sobre o estudo do meio, sua importância para o ensino interdisciplinar comprova-se: Quando analisamos um dado espaço, se nós cogitamos apenas dos seus elementos, da natureza desses elementos, não ultrapassamos o domínio da abstração. É somente a relação que existe entre as coisas que nos permite realmente conhecê-las e defini-las. Fatos isolados são abstrações, e o que lhes dá concretude é a relação que mantêm entre si (SANTOS, 2014, p. 14). Dessa forma, ressalta-se a importância da compreensão do espaço enquanto dinâmica e processo, relacionando seus elementos e não perdendo de vista o contexto. Conforme afirmam Lopes e Pontuschka (2009), a realização de estudos do meio permite tornar o processo de ensino-aprendizagem mais significativo, contribuindo assim para que desperte nos alunos a curiosidade empírica e pesquisa científica. Podemos ainda acrescentar que a ida ao campo enriquece a vivência acadêmica e escolar, pois aproxima os geógrafos e os alunos, tornando a pesquisa geográfica mais legítima do ponto de vista científico e o aprendizado de Geografia mais eficaz. 3. Escolas anarquistas Ao final do século XIX os anarquistas passaram a tomar espaço no Brasil, fazendo parte da imigração europeia da época, principalmente italianos; eles saíram à frente de movimentos operários e o meio encontrado para a disseminação de sua ideologia foi a criação de suas próprias escolas. Para eles, a educação englobava os aspectos culturais e distanciava- se da Igreja e do Estado. A educação para os anarquistas era vista de 3 pontos: Educação formal, desenvolvida no interior da escola, com conhecimento sistematizado e direcionado por um professor; 21 Educação não formal, a qual não necessita de um local e tempo fixos e possibilitando temas livres e debates, sem necessitar de uma certificação; e Educação informal, diz respeito a toda forma de aprendizado e práticas educativas do dia a dia. Os anarquistas tinham como meta a mudança de consciência, ou seja, buscavam ações que pudessem discutir os valores tradicionais da sociedade e transformassem os valores presentes na consciência do homem contemporâneo. Assim, eles consideravam a ação educacional imprescindível para a transformação das relações sociais e econômicas, com a intenção de instituir uma sociedade fraterna, igualitária e democrática, por isso a proposta educacional anarquista defendia o ideário racional-libertário. (MARTINS, 2008, p.1). Ainda nas primeiras décadas do século XX, as escolas fundadas por militantes anarquistas tinham como um de seus princípios pedagógicos fornecerem um ensino racional, mas que também fosse atraente, baseado na observação, discussão e formação do espírito crítico. A Escola Moderna de João Penteado que funcionou na década de 10, do século passado em São Paulo era inspirada na Pedagogia de Ferrer y Guardia; em meio à rotina escolar estavam incluídas “excursões”, condizendo com o método da Escola Moderna de Barcelona. Essas excursões serviam para que os alunos tivessem aulas ao ar livre, situação que gerava diferentes momentos de ensino-aprendizagem: visita a locais históricos que geravam explicações sobre história e geografia, o encontro com animais provocavam discussões sobre zoologia, esses são alguns exemplos. Segundo Paula: As aulas na Escola Moderna muito se diferenciavam dos estabelecimentos laicos e religiosos existentes, visto que as salas de aula eram mistas, a relação professor e alunos era pautada no diálogo e, para se ensinar ciências naturais e Geografia, o estudo do meio era a todo momento incentivado. Ou seja, enquanto na maior parte das escolas daquele período as salas de aula eram separadas por gênero, o professor era o único vetor do saber, sendo comum o uso da violência, nas Escolas Modernas se projetava um ensino mais humano e coerente com as premissas anarquistas. (2014, p. 244). Dois nomes que muito contribuíram para a inserção do estudo do meio como uma prática de ensino de Geografia foram os geógrafos e anarquistas Elisée Reclus (1830 – 1905) e Piotr Kropotkin (1842 – 1921). O segundo entendia o estudo do meio como uma atividade 22 essencial para a compreensão das ciências naturais e da Geografia. Este, que hoje é tido como metodologia, permitiria outra compreensão dos aspectos físicos e humanos, buscados pelo homem para adquirir domínio sobre a natureza. Esse método de ensino foi largamente usado nas escolas racionalistas que surgiam na Rússia no início do século XX, opondo-se a uma educação geográfica baseada na memorização de nomenclaturas. Para que fosse possível aprender Geografia, era necessário sair da sala de aula, realizando trabalhos ao ar livre, estudando a fauna e a flora, bem como o espaço e o papel da humanidade sobre ele, com suas ocupações e mudanças, levando o aluno a se interessar pela disciplina. O intuito das escolas anarquistas estava na percepção e estudo da realidade circundante no sentido de transformá-la. Ao estudar seu meio, o aluno aprenderia a criticar suas imperfeições e injustiças e poderia, então, participar da realização de uma sociedade mais justa. Uma das diferenças entre os anarquistas e os escolanovistas estava nas propostas referentes ao estudo do seu entorno, pois os segundos acreditavam que a participação do aluno deveria ser no sentido deles se adaptarem “ao meio social”, entendendo sua comunidade como um espaço sem conflitos e com pessoas vivendo para a concretização de um único ideal. Segundo Martins (2008): A pedagogia racional libertária tinha como pressuposto enfrentar o processo de dominação e criar uma nova mentalidade, pautada em valores tais como: solidariedade, cooperação, igualdade e liberdade. Era necessário desenvolver as aptidões naturais dos educandos, de maneira que eles ampliassem suas potencialidades e, assim, formar-se-ia um ser humano pleno que atuaria em diferentes segmentos: artístico, produtivo, e social. (p. 8). Segundo Gallo (1996): Metodologicamente, a proposta anarquista de educação vai procurar trabalhar com o princípio de liberdade, o que abre duas vertentes de compreensão e de ação diferenciadas: uma que entende que a educação deve ser feita através da liberdade e outra que considera que a educação deva ser feita para a liberdade; em outras palavras, uma toma a liberdade como meio, a outra como fim. Mesmo com pontos discordantes, o estudo do meio tornou-se um tema privilegiado nas referidas escolas. Inspiradas principalmente pelos franceses, a Escola de Aplicação retirou parte dos métodos do grupo Freinet e também de Cousinet. Nesse caso o meio era entendido como o conjunto de realidades externas ao sujeito, sendo que um age sobre o outro, 23 procurando nunca perder de vista o contexto total do meio humano e natural. Para Paula (2014): Não se trata, como ele mesmo (Tolstoy) demonstra, de desenhar os mapas para se fixar nomes de países e suas respectivas capitais. Qual o interesse em saber o que ocorre em Barcelona, se não conseguimos entender os problemas do nosso local de moradia? E, se o interesse aumenta pela Geografia quando abordamos temas mais voltados à nossa realidade, como trabalhá-los? (p. 241). Sobre o mesmo período, relacionando o ensino anarquista com o de Geografia, Paula (idem, p. 133) afirma que: Essa postura educativa estava baseada no ensino racionalista do pedagogo catalão Francisco Ferrer y Guardiã, em que as aulas de Geografia tinham uma dinâmica influenciada quase em sua totalidade pelas propostas de dois geógrafos anarquistas: o russo Piotr Kropotkin e o francês Elisée Reclus. Na prática isso significava um rompimento quase total com o ensino de Geografia da época, que tinha como principais pressupostos a defesa do nacionalismo e de uma competição entre os países pela busca de recursos, que aceitava como algo natural o processo “civilizatório” sobre as chamadas “raças inferiores” pelos países europeus mais avançados economicamente. No que diz respeito ao ensino de Geografia, especificamente, o mesmo autor afirma que o ensino de uma Geografia libertária e mais crítica nas escolas possibilitava uma maior participação dos alunos nas discussões. Nesse sentido, seria uma disciplina que contribuiria para a compreensão dos fatos mundiais, e também e da realidade local, o que justificava as saídas a campo com os alunos. Dessa forma, a maneira de se apresentar os conteúdos deve levar em consideração “o grau de compreensão dos alunos, a sua aptidão para o tema e, principalmente, a escolha de meios e materiais para que o conteúdo seja transmitido ludicamente, proporcionando uma grande receptividade dos discentes” (PAULA, p. 236), de maneira que a aula não seja algo tedioso para os alunos e para o professor, pois isso faria surgir casos de indisciplina, gerando a necessidade do uso de métodos coercitivos e o aparecimento do desgaste entre alunos e professor. Ao comparar as escolas tradicionais da época – regidas pelo Estado ou pela Igreja -, o mesmo autor aponta diferenças importantes e que resultavam em um impacto direto no 24 momento de ensino-aprendizagem. Segundo ele, na Escola Moderna “as salas de aula eram mistas, a relação professor e alunos era pautada no diálogo e, para se ensinar ciências naturais e Geografia, o estudo do meio era a todo momento incentivado. Ou seja, [...], nas Escolas Modernas se projetava um ensino mais humano e coerente com as premissas anarquistas” (p. 244). Para os anarquistas, os valores que orientavam as escolas à época eram vistos com desconfiança, pois promoviam valores que eles consideravam inapropriados para o ambiente escolar, como a competição – através da atribuição de notas – e também o respeito à hierarquia, fazendo-se corriqueira a prática de punição dos alunos (PAULA, 2012). Na mesma obra, o autor disserta sobre o perfil do professor de Geografia para os anarquistas: O papel do professor de Geografia deveria ser oposto àquele demonstrado acima: incentivar na criança o espírito crítico, para que melhor entendesse a realidade em que vivia, com todos os seus encantamentos, sem esquecer jamais também de suas mazelas, frutos de uma sociedade desigual (idem, p. 146). As ações dos anarquistas passam a ter um explícito caráter político na educação, desejando que esta não fique mais somente a serviço da manutenção de uma ordem social, mas pela transformação, realizando denúncias sobre as injustiças sociais e expondo os sistemas de dominação, na tentativa de fazer surgir nos indivíduos a consciência da urgência de uma revolução social. Para tanto, segundo Gallo (1996), esses objetivos justificam o posicionamento anarquista de que “a única educação revolucionária possível é aquela que dá- se fora do contexto definido pelo Estado, sendo esse afastamento mesmo já uma atitude revolucionária”. O ideal é a organização advinda da própria sociedade, sem intervenção do Estado, advindo de si mesma a aplicação de seus recursos e organizando uma gestão direta, com um sistema de ensino que reflita seus interesses e desejos; organização esta chamada por eles de autogestão. 4. Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EAFEUSP) A história daquilo que mais tarde seria a Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, hoje reconhecida como uma escola pública com ensino e infraestrutura de qualidade teve início, conforme trabalho de Gordo (2010) e do site 25 da escola, na criação do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo “Professor Queiroz Filho” (CRPE-SP) no ano de 1956. A partir de uma classe de 1º ano primário, foi constituída em 1958 a Escola Experimental, a qual tinha como objetivo realizar ensaios de técnicas de ensino e oferecer cursos de aperfeiçoamento para professores. Desde então a instituição foi reconhecida por suas experiências e propostas pedagógicas diferenciadas. Em 1962 passou a ser denominada como Escola de Demonstração, extinguiu-se o CRPE e a Escola passou a vincular-se à Faculdade de Educação, sendo que no ano de 1973 recebeu o nome que possui hoje, também conhecida como EA ou EAFEUSP. Manteve sua característica de importante centro para pesquisas na área da educação e um espaço excepcional para estagiários e professores. Somente em 1985 foi implantado o curso de 2º grau, o que oferecia maior amplitude para a continuidade dos estudos dos alunos. Com isso a área ocupada pela escola foi ampliada na década de 1990. Mais tarde, em 2006 a escola atualizou-se implantando a primeira turma do Ensino Fundamental de Nove Anos. Desde então a EA vem se renovando, reavaliando suas propostas didático-pedagógicas e atualizando os temas e os projetos desenvolvidos ao longo do ano com uma intensa participação de toda a comunidade escolar (professores, funcionários, membros da Associação de Pais e Mestres (APM), alunos, coordenação e direção). Ainda segundo Gordo (2010), os colégios de Aplicação caracterizavam-se pela preocupação com uma formação humanista de seus alunos, bem como o desenvolvimento da consciência crítica destes. Portanto, a prática do Estudo do Meio foi recorrente desde o ano de 1963 e segue até hoje como uma das características metodológicas da Escola. O estudo do meio é hoje uma prática disseminada nas escolas na cidade de São Paulo, porém, está muito mais presente nos colégios particulares do que na rede pública. Isto se deve às dificuldades advindas de todos os setores: falta de tempo dos professores, afinal, trata-se de uma atividade que demanda meses de organização; apoio da diretoria da escola e da diretoria de ensino; ausência total de verbas a serem destinadas; ausência da prática de pesquisa por parte dos docentes; falta de interesse em buscar novas práticas pedagógicas e a ausência de união entre os membros da escola – professores, direção, alunos e APM. Desde o início desta pesquisa foram acompanhados todos os momentos que diziam respeito à organização do estudo do meio, aos poucos passei e me tornar ativa no grupo dos professores, contribuindo para alguns dilemas nas reuniões, detalhes da organização da viagem, organização das atividades em campo e colaboração para os estudos pós-campo. Dessa forma, minha pesquisa caracterizou-se por uma pesquisa-ação. Para Tripp (2005), uma 26 pesquisa-ação possui as seguintes características: continuidade, participação, intervencionismo, problematização, documentação e disseminação. Conforme apresentado neste trabalho, a pesquisa na Escola de Aplicação contempla estes adjetivos, estando todos eles dentro de nossos objetivos. A pesquisa-ação é considerada pelo mesmo autor como um tipo de investigação-ação, aprimorada através da prática e da variação entre ora agir, e ora investigar aquilo que se pesquisa, sendo possível aprender cada vez mais no correr do processo. Porém, antes de mais nada é necessário que o pesquisador tenha clareza a respeito do que ele faz e porquê ele faz, assim, seus objetivos e suas perguntas serão os norteadores do trabalho. Sobre o mesmo tema, Franco (2005), completa essa caracterização com outros pontos: abordagem de pesquisa associada a uma estratégia de intervenção que evolui num contexto, partir do pressuposto de que ação e pesquisa podem estar reunidas, contar com a participação de todos os participantes em todas as etapas, ter procedimentos flexíveis do ponto de vista metodológico, ajustando-se aos acontecimentos e estabelecer relações dinâmicas com o vivido, entre outros. A reflexão não é destacada como uma característica deste modelo de pesquisa, pois para Tripp (2005) ela deve ocorrer durante todo o ciclo, sendo essencial para o planejamento, para a implementação e para o monitoramento. A dimensão ética é outro momento fundamental para a realização da pesquisa-ação, sem deixar que aqueles que participam, ou, são atingidos pela pesquisa não sejam enganados, explorados ou manipulados. Um dos obstáculos apontados pelo autor refere-se à suposição do que será encontrado na pesquisa, uma vez que sua variabilidade não pode ser medida por não acontecer em um ambiente controlado e por lidar diretamente com pessoas. Neste trabalho houve muitas surpresas (na maioria positivas) que em momento algum estariam no cronograma ou dentro das expectativas. Os resultados a serem alcançados só serão conhecidos no decorrer do caminhar do projeto. Mesmo que algumas etapas deem a impressão de que gerarão resultados e respostas óbvios, a organização de atividades com os alunos e com os professores pode somente endossar uma ideia ou desmistificar um pensamento que vinha sendo construído. Ou seja, somente a prática nos leva às respostas concretas, somente nossa presença in loco nos permite tirar conclusões e refletir sobre aquilo que foi realmente vivido e experimentado. A Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EAFEUSP) foi escolhida para a realização de minha pesquisa por contar com a metodologia do estudo do meio desde seus primórdios, construindo assim uma importante reputação nessa atividade. 27 Dentre os objetivos presentes no Plano Escolar Anual de 2014 e também no Regimento Interno, constam que a Escola deve “Sediar e executar pesquisas de interesse próprio ou da Faculdade de Educação, de seus cursos e docentes, que visem ao aperfeiçoamento do processo educativo e de formação docente”. A partir dessa afirmativa percebemos o valor que a Escola dá às pesquisas realizadas junto a ela. Segundo consta no site da escola, o estudo do meio faz parte da história da Escola de Aplicação, tratando-se de uma metodologia muito rica para o ensino-aprendizagem de diferentes conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais que nem sempre podem ser abordados dentro da sala de aula; a Escola privilegia essa metodologia para a estruturação de parte do seu currículo escolar, pois esta possibilita diversas formas de investigação e de produção do conhecimento, em especial no que tange à interação de múltiplos olhares e estratégias de pesquisa. O estudo do meio consta no Plano Escolar de 2014 em diferentes disciplinas (Arte, Geografia, Ciências, História, etc) a partir do 4º ano do Ciclo 2. O estudo do meio do 8º ano EF teve como foco a história do café no município de São Paulo, principalmente na região do litoral, parte do interior e da capital. Dessa temática surgiram outras, como a escravidão, os colonos, os meios de transporte, a produção atual, a cultura afro, entre outros. As visitas possibilitaram aos alunos uma visão ampla da importância desse fruto para a história e economia do Brasil desde muitos séculos atrás. A visita com o 2º ano EM aos locais escolhidos ressalta a importância da região do Quadrilátero Ferrífero na história atual. A riquíssima produção artística, reconhecida mundialmente, os museus repletos de objetos históricos e as igrejas que muito tem a dizer sobre o nosso passado levam os alunos e os demais visitantes a uma viajem no tempo, procurando entender que relações ali se deram, como elas podem ser lidas hoje e que novas histórias estão sendo produzidas naquele espaço. A exploração nas minas que hoje apresenta outro objetivo, segue explorando também a mão de obra e o meio ambiente. Esta experiência de estudo do meio reforçou a importância da interdisciplinaridade e do trabalho coletivo de professores no planejamento e execução das atividades que levam os alunos a viverem experiências que não seriam possíveis dentro da sala de aula, ou mesmo da própria escola. São eles (os professores) que encaram com disposição a difícil tarefa de recortar e conceituar os espaços na realidade para então apresentá-los aos alunos, estando de acordo com os acontecimentos que desejam explorar. [...] a realidade está presente em todos os recortes espaciais possíveis; [...] o recorte dos espaços de conceituação não fragmenta a relidade; [...] os 28 diferentes recortes podem revelar qualidade diversas dos fenomenos que se deseja estudar; [...], o recorte serve para explicitar e dar visibilidade àquilo que se deseja pesquisar e analisar, [...] não há hierarquia entre os diferentes recortes espaciais possíveis, nem recorte mais ou menos válido para a pesquisa e o trabalho de campo em Geografia. (SERPA, 2006, p. 12). No que diz respeito à Geografia, os momentos tornam-se ainda mais enriquecedores, pois no trabalho de campo é possível ter dimensão das relações entre a sociedade e o espaço, entre a ação da sociedade humana e a modificação da paisagem, entre os interesses do capital e a sobrecarga ao meio ambiente. É no trabalho de campo que a Geografia se mostra, é nesse momento que ela se revela como importante ferramenta na leitura do mundo, auxiliando o aluno na crítica e na interpretação sobre o meio e a sociedade. A enumeração de etapas necessárias para a realização da atividade em questão foi possível ser notada e acompanhada com o desenvolvimento da pesquisa de mestrado realizando-se in loco na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP (EAFEUSP). Instituição esta que tem um longo e rico histórico na prática do estudo do meio, sendo que este se encontra presente em seu Projeto Político Pedagógico, mas infelizmente vem perdendo espaço a contragosto de muitos professores e da gestão da escola. Isso se deve em razão da ampla política de cortes e/ou contingenciamento de recursos da atual gestão da Reitoria que atinge a USP como um todo, e parte desse repasse destina-se à Faculdade de Educação, responsável, por exemplo, pelas verbas para a locação de ônibus e das diárias para os professores em campo. Há também outros dois pontos ligados a esse contingenciamento e que desestimulam participações nas saídas de campo (principalmente nas mais extensas e com pernoite): o primeiro diz respeito aos “alunos assistidos”, os quais através da avaliação socioeconômica recebem bolsas, entre elas a de atividades didáticas, custeando as despesas das idas a campo. Acontece que, cada vez mais, menos alunos têm recebido esta e outras bolsas, levando-os a desistirem das idas a campo por não poderem arcar com todas as despesas. O segundo ponto refere-se ao quadro de professores. A EAFEUSP não tem conseguido contratar professores para repor aqueles que se aposentaram ou aderiram ao Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), fazendo com que a carga didática daqueles que permaneceram se eleve, não permitindo que participem do estudo do meio ou fazendo com que tenham pouco tempo para se dedicar ao projeto. Durante o primeiro semestre de 2016, foram acompanhadas a maioria das atividades desenvolvidas pelos professores envolvidos no planejamento dos Estudos do Meio do 8º ano 29 do Ensino Fundamental II e do 2º ano do Ensino Médio: reuniões para a organização das aulas e da saída a campo, aulas pré-campo, ida a campo e para o 2º semestre, 2016, acompanhei os trabalhos pós-campo. Uma das características mais relevantes da ida a campo é a concretização do espaço (em seu sentido leigo). Ao sair da sala de aula, após aulas de preparação, imaginando como seriam as igrejas barrocas, a extração do minério de ferro, as formas dos minerais e a configuração das cidades a serem visitadas, tudo isso se concretiza. E a feição dos alunos revela a importância desse olhar de perto, do tocar, do ouvir, explorando os seus sentidos. A expectativa para a realização do trabalho de campo no estudo do meio instiga também os jovens a pensarem: será que este lugar é como nas fotografias? Será que as ruas são assim mesmo? Trazendo à tona uma importante questão para a Geografia: a localização. 4.1 Trabalho de campo com a E. E. Domingos Camerlingo Caló Em 2014 um grupo de bolsistas do PIBID, juntamente com o professor supervisor e a professora coordenadora realizaram uma saída a campo com alunos do 1º ano EM durante cerca de duas horas por três pontos da cidade de Ourinhos, cada qual apresentava características a respeito de questões ambientais que afetavam diretamente os moradores da cidade. A iniciativa surgiu de atividades que já estavam sendo desenvolvidas pelos bolsistas a respeito da temática ambiental com os alunos da referida série. O trajeto e os temas a serem abordados foram elaborados em conjunto: bolsistas, professor supervisor e professora coordenadora. Com um roteiro pronto através da realização do levantamento de campo feito com os bolsistas e com a professora coordenadora, foi necessário conversar com a direção da escola e acertar os melhores dia e horário para a saída, momento de certa dificuldade, principalmente em razão da instituição não estar habituada a realizar este tipo de atividade, sendo necessário um remanejamento imprevisto de aulas e professores. As diferenças entre os relatos das duas escolas deve-se, sobretudo, às suas diferentes trajetórias. Não é o objetivo deste trabalho realizar um juízo de valor a respeito de qual atividade fora melhor aproveitada, mais importante ou qual escola deve ser mais ou menos destacada. O que nos cabe aqui é a análise de cada uma delas, suas contribuições para o ensino de Geografia e a relevância da ida a campo. Em razão da grande quantidade de alunos no 1º ano EM da escola, no período matutino, apenas uma sala foi escolhida pelo professor para que participasse das atividades, 30 mesmo não sendo esse o objetivo do grupo. No dia da saída a campo a maior parte dos alunos compareceu e saindo da escola foi feita a primeira parada, em um bairro residencial e de classe média. No local há um córrego canalizado recentemente (Figura 1), a canalização deu-se após anos de reclamação dos moradores, alegando que o mato que crescia em volta atraía animais peçonhentos, lixo e doenças. Contudo, desde a canalização o bairro passou a ser um dos maiores focos de dengue da cidade. Em meio à visita foi o constatado que a canalização não fora realizada da maneira correta, o que fez surgir empoçamentos em trechos do córrego, ou seja, criadouros para mosquitos como o transmissor da dengue aedes aegypti. Figura 1: Alunos, bolsistas e professor visitam córrego canalizado em bairro residencial. Fonte: autora, 2014. O segundo local visitado foi um lago artificial localizado em frente ao condomínio de alto padrão da cidade (Figura 2). No local os alunos souberam de muitas informações das quais não estavam a par, por exemplo: o lago, apesar de apresentar alguns peixes, é poluído e a pesca não deve ser realizada ali, duas vezes na semana um caminhão pipa retira água do lago para regar os jardins do condomínio (o que não poderia acontecer), muito lixo é despejado ali, parte do esgoto do condomínio desemboca no lago, etc. Essa visita suscitou muitos comentários dos alunos a respeito do uso indevido de um espaço que poderia ser usufruído de maneira correta por todos. Atentamente, eles anotavam as falas dos bolsistas e as explicações do professor, o que alimentava mais seus questionamentos sobre os cuidados com o local. 31 Figura 2: Alunos, bolsistas e professor visitam lago artificial. Fonte: autora, 2014. A terceira e última parada foi feita do lado de fora do Parque Olavo Ferreira de Sá (figura 3), conhecido por receber todos os anos uma grande feira de agropecuária e também ser um espaço comum aos moradores para praticar exercícios físicos e visitar aos finais de semana. No caso, o problema apontado foi a enchente que atinge parte do bairro e também do parque, principalmente pelo fato de seu lago estar localizado em uma área mais baixa do terreno. Quando ocorrem chuvas fortes, lixo, folhas e pedaços de madeira são levados e danificam parte do lugar, pois a enxurrada tem como destino certo a parte mais baixa do bairro, inundando algumas casas e causando transtornos. Neste momento alguns alunos comentaram já terem ouvido falar dessas ocorrências, mas que não tinham se dado conta da amplitude do problema. Figura 3: Alunos, bolsistas e professor visitam área externa do Parque Olavo Ferreira de Sá. Fonte: autora, 2014. 32 No decorrer das paradas os alunos animaram-se com a nova experiência de estarem próximos de seu objeto de estudo, tanto no sentido de se tratar de locais frequentados por eles, quanto por poderem constatar muito do que foi falado em sala de aula, sendo uma oportunidade de aproximá-los da realidade da própria cidade, muitas vezes tão desconhecida. Mesmo a atividade tendo ocorrido de maneira reduzida, foi de grande significado para alunos, professores e bolsistas, atingindo de fato o principal objetivo, a sensibilização sobre a importância do trabalho de campo como forma de contribuir no processo de ensino- aprendizagem, no caso, de conteúdos de geografia, mas que pode se dar com qualquer outra disciplina. Inclusive de maneira interdisciplinar e com um planejamento ao longo do ano, caracterizando um estudo do meio. 4.2 Estudo do Meio com o 8º ano EF – Escola de Aplicação O trabalho de campo realizado com as duas turmas do 8º EF da Escola de Aplicação ocorreram nas cidades de Campinas (dias 11/05 e 25/05), Paranapiacaba (09/06) e Santos (10/06). No primeiro dia foi visitada a Estação de Trem Anhumas, que fora restaurada e hoje recebe visitas de estudantes e também turistas. A visita foi guiada e neste dia foram trabalhados com os alunos temas como: a história da ferrovia no Brasil, os diferentes tipos de locomotivas e seu modo de funcionamento, a história da estrada de ferro que ligava a região de Campinas ao porto de Santos e sua importância para a economia cafeeira no século XX e a história dos grande cafeicultores da região. Figura 4: Alunos observam antiga senzala e casa dos colonos na Fazenda Tozan, Campinas/SP. Fonte: autora, 2016. 33 No dia 25 de Maio, em Campinas, foi visitada a fazenda Tozan, produtora de café. Esta visitação também contou com a presença de um guia, que nos levou primeiramente ao ponto mais alto da propriedade para que os alunos pudessem observar a dimensão da fazenda e a quantidade de pés de café ali cultivados. Em meio à visita, a guia comentava a quantidade de café produzida não só pela fazenda Tozan, mas também por todo o Brasil, além de detalhes do plantio e da colheita do fruto realizados por eles. Após ida ao mirante da fazenda, os alunos foram para área central, neste momento os alunos observaram um funcionário realizando a abanação dos grãos, além de ouvir mais histórias sobre o café e sobre o local. Seguimos nossa visita para a antiga senzala, para as casas dos colonos, para a casa grande e também o terreiro. Em meio a estes locais a guia seguia comentando a respeito da chegada da mão de obra na fazenda, o clima propício, a fertilidade do solo e a vinda do café para o Brasil. Em uma parte do cafezal foram comentadas informações mais específicas acerca do plantio, cultivo e da colheita do café: irrigação, controle de pragas, quantidade de pés atualmente, etc. No mesmo dia, após o almoço, fomos para a fazenda Roseira, a qual hoje não mais produz café e também não possui grande parte de sua extensão original, somente a parte que era destinada a antiga sede administrativa. O local hoje abriga um centro de encontro e de cultura de uma comunidade local de Jongo. Fomos recebidos por membros da comunidade, que estão bastante habituados a receber escolas, e iniciaram nossa visita com músicas, palmas e contos afro. Na visitação os alunos foram divididos em 3 grupos para que vivenciassem 3 oficinas diferentes: música, jogos e contos. Ao final, realizamos um lanche cedido pela comunidade da fazenda e também uma roda de Jongo, quando os alunos puderam experimentar um pouco mais dessa cultura. No dia 09 de Junho o campo ocorreu na Vila de Paranapiacaba com o objetivo de complementar a compreensão dos alunos sobre o antigo trajeto do café entre o interior de São Paulo e o litoral. Em mais uma visita guiada, foram abordados os principais pontos presentes no caderno de campo, foram contemplados temas como: a história da vila, sua relevância ambiental, as características climáticas da região e de sua população antiga e atual, a construção da ferrovia que passa pelo local, o sistema funicular de transporte e sua história e visita aos pontos históricos da cidade. No final da tarde partimos para a cidade de São Vicente, na qual fizemos o pernoite para a realização das atividades do dia seguinte. 34 Figura 5: Alunos visitam área com densa vegetação no distrito de Paranapiacaba, Santo André/SP. Fonte: autora, 2016. O último dia de campo ocorreu em 10 de Junho, na cidade litorânea de Santos. Neste dia as duas turmas se separaram e realizam diferentes roteiros de visitação. Uma das turmas iniciou o dia com uma visita monitorada ao museu Pelé, com o objetivo de tratar das presenças negras no esporte, nesta visita surgiram muitas dúvidas, não só as que estavam presentes no caderno de campo, como também curiosidades sobre o tema. Em seguida visitamos o Museu do Café. A visita não pode ser guiada em razão do atraso do grupo para chegar ao local, o que causou defasagem no momento de responder algumas das questões do caderno de campo. No mais, os alunos puderam conhecer mais sobre o café no Brasil e principalmente sobre sua importância econômica. Após o almoço os alunos foram à Praça Visconde de Mauá, na qual realizaram entrevistas com os transeuntes em busca de informações sobre a cidade, principalmente sobre os pontos turísticos e também a origem dos entrevistados. 35 Figura 6: Alunos caminham no centro histórico de Santos/SP. Fonte: autora, 2016. O dia terminou com ambas as turmas reunidas em uma escuna, a fim de conhecer mais sobre a zona portuária de Santos. O capitão e também guia explicou acerca da quantidade de contêineres, as empresas nacionais e estrangeiras que atuam no porto, as quantidades de produtos que chegam e que saem dali e a relação entre o porto e os moradores da cidade. Ao final, houve música e um momento de descontração, complementado por 1 hora e meia na praia, quando os alunos puderam praticar esportes na areia e lanchar. 4.3 Estudo do Meio com o 2º ano EM – Escola de Aplicação Entre os dias 20 e 24 de junho de 2016 foi realizada a saída a campo do estudo do meio do 2º EM da EAFEUSP. Foram visitadas as cidades de Mariana/MG (na qual nos hospedamos), Ouro Preto/MG e Congonhas/MG. Contamos com a presença de 57 alunos, 1 pesquisadora, 4 estagiários de Geografia, 2 de História e 2 de Ciência Sociais, 4 professores (Matemática, História, Geografia e Física) e 1 funcionária que auxiliava no cuidado com os alunos e na prestação de contas com a Escola. Nosso primeiro dia (20/05) foi todo na estrada, e apesar de não haver paradas específicas para observações, ao cruzarmos a divisão entre os estados de São Paulo e Minas Gerais muitos alunos passaram a chamar a atenção para as diferenças na paisagem e na composição do relevo. Nos dias que se seguiram as turmas foram separadas para a realização das atividades. Nós (estagiários e pesquisadora) também fomos divididos, conforme escolha dos professores, para que pudéssemos participar de todos os momentos. Uma das turmas, na manhã do primeiro dia realizou uma visita à Vale S.A. A visita foi monitorada e foi possível conhecer 36 parte do complexo da Mina de Alegria no município de Mariana. Os alunos ficaram surpresos com a extensão de terra ocupada pela mineradora e pela presença intensa e constante de barro, terra e caminhões de enormes proporções. A monitora conduziu o grupo para um pequeno auditório no qual contou um pouco da história da empresa, seus principais produtos, países compradores, valores e a atual “crise” vivida no ramo da mineração. Este ponto (a respeito do lucro da empresa) foi bastante comentado pelos alunos quando voltamos ao ônibus, muitos comentaram em tom de deboche a queda no lucro da empresa que, apesar da dita crise, continua na casa dos bilhões de reais. Apesar de questionada sobre o incidente com distrito de Bento Rodrigues e outros, a monitora foi breve nos comentários e limitou-se a dizer que a Vale colaborou em vários sentidos e que a empresa não sabe o que causou o acidente e que estão aguardando os resultados da perícia e o pronunciamento da Samarco. A última atividade na mineradora foi a observação da extração do minério de ferro. A partir desta, os alunos desenvolveram um croqui em seus cadernos de campo. Nesse momento contamos com a presença e a explicação de outros dois funcionários da empresa, que esclareceram as dúvidas dos alunos a respeito do volume, do ritmo, do formato e do modo de extração do minério. Ainda neste dia, ao voltarmos para o hotel, foram realizadas entrevistas com pessoas que foram atingidas diretamente pelo rompimento da barragem. Os alunos foram divididos em pequenos grupos e fizeram as perguntas que já haviam estruturado em aulas preparatórias para o campo. Muitos alunos se emocionaram e ficaram um tanto surpresos com algumas declarações, como a de um então morador de Bento Rodrigues que afirmou estar desempregado desde o incidente e que agora espera que a Samarco volte logo a operar para que ele e a esposa possam, possivelmente, serem contratados pela empresa. Ao fim das entrevistas, os alunos encerraram as atividades do dia e estavam dispensados. Foram visitados a Igreja São Francisco de Assis, o Museu Casa dos Contos, a Igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar (Figura 7), - nas quais foram importantes a visualização dos trabalhos de Aleijadinho e seus alunos. Essas visitas foram conduzidas pelo professor de História, que enfatizou as características barrocas das igrejas e as mudanças no país, assim como seus reflexos na moeda e na relação com os escravos. 37 Figura 7: Alunos observam do lado de fora a Igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto/MG. Fonte: autora, 2016. No mesmo dia foi visitado também o Museu da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Museu da Ciência e Técnica. No local os temas abordados foram mineralogia, metalurgia e siderurgia; os alunos obtiveram noções sobre a formação dos minerais, sua extração, uso e também suas cores e formas, expostos em uma sala específica. Quanto à metalurgia e à siderurgia, o monitor fez explanações acerca dos processos de produção do aço, do alumínio, o uso de diferentes fornos e as técnicas de lavra. No dia seguinte na Mina da Passagem (Figura 8) os alunos foram guiados por um monitor e vivenciaram a permanência in loco de uma jazida de extração de minério de ferro. Muitos deles comentaram as condições dos trabalhadores à época, quando o calor e a falta de ar eram intensos. No subterrâneo eles puderam se informar acerca do que já fora extraído dali e por que as atividades daquele lugar chegaram ao fim. 38 Figura 8: Alunos observam e fazer anotações dentro da Mina da Passagem, Mariana/MG. Fonte: autora, 2016. Na sequência, no centro comercial da cidade de Mariana foram realizadas observações sobre a arquitetura colonial, entrevistas com moradores que por ali passavam, sendo questionados sobre o acidente do rompimento da barragem de lama. No Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, os estagiários de História colaboraram muito para o entendimento das obras, contribuindo para que os alunos fizessem as anotações no caderno de campo. No último dia estivemos em Congonhas (Figura 9), para lá visitarmos o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Neste local o barroco foi mais uma vez bastante explorado, os alunos puderam observar a igreja, contemplar em detalhes as imagens e apreciar a localização e distribuição das obras em 6 capelas. Figura 9: alunos na chegada ao Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas/MG. Fonte: autora, 2016. 39 A mescla de temas e atividades das 4 disciplinas presentes tornou possível a criação de relações entre os diferentes assuntos abordados, alguns tão caros a somente uma matéria. A sequência das atividades também teve relevância nesse sentido, permitindo o momento de observação, reflexão, uma segunda experiência no mesmo sentido (como a visita a uma atual mineradora e a uma mina desativada) e então outro momento de reflexão, levando os alunos a compararem as vivências e concretizarem suas visões nas respostas das questões propostas no caderno de campo. Sobre o papel do professor, La Blache diz: A perfeição dos livros e dos instrumentos de trabalho serve para facilitar a tarefa do mestre; tal é o fim da esperança daqueles que se consagram a tal obra. Mas nenhum espírito sensato pensará que o livro pode substituir a ação direta e pessoal do mestre. Se é certo que o ensino de geografia deve despertar o espírito de observação, apoiar-se em realidades sensíveis, recorrer às impressões e à experiência, este programa não atribui aos mestres obrigações particulares? (1943, p. 24). É também o professor que trará aos alunos antes, durante e depois da saída a campo a problematização dos assuntos tratados, gerando uma nova relação entre alunos, professores, conteúdos, conceitos e linguagens colaborando para que a organização conteudista dos temas a serem tratados ganhe outro olhar e contribua para que os alunos vejam os processos de outrora com outros olhos. De acordo com Girotto: [...] a apropriação dos conteúdos e conceitos da Geografia vão ressignificando a forma dos alunos verem e viverem a realidade. O “mato da beira do rio” se transforma em mata ciliar. A concepção de segregação socioespacial é construída como uma das formas de se interpretar as contradições presentes naquela realidade. Todos estes elementos vão permitindo ao aluno juntar os pontos de uma história que se encontra ainda bastante confusa em suas experiências cotidianas de vida, organizando assim uma forma de raciocínio que acentua o elemento geográfico da realidade. [...], o olhar sobre determinadas situações recebe novos contornos a partir de sua projeção em um croqui, em uma carta, em um mapa. (2015, p. 241). Ainda sobre o papel do professor, Paula afirma que: A liberdade na escola e na sala de aula só é possível se o professor demonstrar que seu conhecimento, embora de extrema importância, nada significa se não conseguir atingir os principais interessados, e isso só é possível quando a 40 proposta de trabalho envolver um diálogo constante entre a sua prática docente e os objetivos dos alunos em sala de aula (2014, p. 236). O papel da Geografia é exaltado pelo geógrafo anarquista Piotr Kropotkin: Sem dúvida alguma, raramente pode existir outra ciência que possa tornar-se tão atrativa para a criança como a Geografia, um instrumento tão poderoso para o desenvolvimento geral da mente, para familiarizar o estudante com o autêntico método de raciocínio científico, e para despertar o gosto por todas as ciências naturais. ( 2014, p.36) O trabalho de campo constitui-se em uma metodologia, mas conforme Lacoste “é uma prática indispensável, mas não suficiente” (2006, p. 90). Aplicando-se isso ao ensino de Geografia na educação básica, o retorno para a sala de aula e as reflexões que a partir daí surgirão, serão etapas tão importantes quanto aquelas já vividas. O trabalho pós-campo irá então sintetizar e organizar o que foi visto, trazendo uma leitura do aluno a respeito de determinado tema. 5. Considerações finais Acredito que dentre os objetivos lançados para este trabalho, todos puderam ser contemplados. Isto porque era importante demonstrar através de experiências tão diferentes entre si a relevância de metodologias que deem conta de ampliar o olhar do aluno sobre os meios natural e social que o cercam, salientando sua participação como agente ativo nas mudanças possíveis de serem feitas. A bibliografia selecionada possibilitou uma análise com profundidade dos principais temas abordados, permitindo a aproximação dos assuntos e demonstrando a importância desse debate no ensino de geografia. As três experiências relatadas no texto trazem à tona os percalços e as gratificações da realização de saídas a campo com alunos do ensino básico, seja em um formato mais enxuto, seja com todas as características que um estudo do meio exige. Os comentários dos alunos durante e após a visita ao(s) objeto(s) de estudo enaltecem a riqueza de nos aproximarmos do espaço vivido e buscarmos nele respostas para as indagações que surgem na sala de aula. Quando realizado em conjunto com diferentes disciplinas, a ida a campo ganha força, maior números de temas a serem trabalhados, melhor integração entre conceitos de diferentes áreas e contribui para o rompimento da fragmentação do conhecimento, que tanto se faz presente no dia a dia escolar. 41 Sabemos que a Geografia ainda é vista como uma disciplina mnemônica e de pouca importância no dia a dia dos alunos, cabe então aos professores despertarem um maior senso crítico e um olhar mais profundo sobre a realidade que cerca os jovens. Mostrar-lhes que eles têm papel relevante nos processos que configuram o lugar ao qual pertencem, seja em qual escala for. O estudo meio apresenta-se como uma abordagem alternativa bastante ousada, mas é esta ousadia em seu diálogo com o ensino que a torna também tão atraente e é capaz de despertar nos alunos e professores o interesse de ir além nas pesquisas sobre os mais diversos temas, trazendo olhares que abarcam as diferentes abordagens de um mesmo assunto. Contudo, conforme observado nas atividades realizadas em ambas as escolas, nota-se a ausência da “voz” do aluno, sua interferência, opinião e participação direta na metodologia que busca ser diferente daquelas já praticadas no dia a dia. Em alguns momentos, tanto o Estudo do Meio, quanto o trabalho de campo, parecem ser somente uma aula fora das 4 paredes, sem que haja um verdadeiro estímulo para a participação dos jovens. Será possível então que em todas as suas ocorrências o Estudo do Meio de fato ultrapassa a metodologia tradicional? Ou ainda deixa a desejar e é preciso se desapegar de vícios de ensinar, de quem fala e quem escuta. A presença dos geógrafos anarquistas neste trabalho serve não somente para embasar a história do estudo do meio no Brasil, mas também para mostrar sua influência para um ensino mais crítico da Geografia, ampliando as reflexões sobre a disciplina ao longo das décadas. A vivência do trabalho de campo tenha esse a duração de poucas horas ou de dias, traz reflexões acerca das relações entre professor e aluno, uma vez que, fora da sala de aula as relações sofrem alteração, pois não há mais uma hierarquia entre quem está sentado ouvindo e quem está de pé falando e detendo o saber. Fora do ambiente habitual é necessário também lidar com imprevistos, dúvidas repentinas que surgem com a observação de novas localidades, havendo uma maior liberdade nas conversas e mesmo nas explicações colocadas. O incentivo à pesquisa é outra característica que se mostrou presente no trabalho, tanto a necessidade do professor pesquisar a respeito daquilo que será dito antes, durante e depois da saída, quanto por parte dos alunos, que não devem chegar sem nenhum conhecimento dos temas a serem tratados ou do local visitado. O trabalho com idas a campo, estudo do meio, interdisciplinaridade e professor e alunos pesquisadores nunca chega a um fim, pois há sempre o que se descobrir, é sempre tempo de iniciarmos uma nova pesquisa, sabermos mais sobre um assunto e desejarmos – por 42 natureza humana – conhecer aquilo que nos rodeia e que faz parte de nossas vidas. Alimentar essa vontade é papel do professor, e seguir esse caminho é uma ótima escolha dos alunos. 43 6. Referências bibliográficas ALENTEJANO, Paulo Roberto Raposo; ROCHA-LEÃO, Otávio Miguez. Trabalho de campo: uma ferramenta essencial para os geógrafos ou um instrumento banalizado? In: Boletim Paulista de Geografia. 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