Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários RESSURREIÇÃO E O ROMANCE URBANO ROMÂNTICO: APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS Carlos Rocha Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP para obtenção do título de Mestre. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Dr. Wilton José Marques Bolsa: CAPES Araraquara – São Paulo 2012 _____________________________ Orientador Prof. Dr. Wilton José Marques Dedico este trabalho à memória de meu pai Leonildo José da Rocha AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Wilton José Marques, amigo e orientador, pela oportunidade de desenvolver este trabalho, pelas discussões sobre o assunto e pela dedicação e paciência que teve comigo. Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FCLAr pelo auxílio na realização deste estudo. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa concedida no período de maio/ 2010 a maio/ 2012. À banca de exame de qualificação, composta pela Profa. Dra. Lúcia Granja e pela Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi, que me fez repensar, de forma profícua e imprescindível, os rumos e os objetivos da pesquisa. Aos amigos do grupo de estudos do Prof. Dr. Wilton José Marques em especial Júlio Cezar Bastoni da Silva, Natália Gonçalves de Souza Santos e Franco Baptista Sandanello, que me proporcionaram boas discussões acerca dos conceitos teóricos da Literatura e da Sociologia. A Parla Camila dos Reis de Souza, pelo seu companheirismo e amor durante todo o percurso, tanto nos momentos tranquilos como nos mais conturbados. Aos meus pais Leonildo José da Rocha (in memorian) e Maria José da Rocha, pela lição de vida e ensinamento de valores. Aos meus irmãos Antônio, Almir (in memorian) e, em especial, Nilsa Rocha, pelo incentivo e apoio. RESUMO O romance urbano romântico brasileiro do século XIX tem uma relação, de certa forma, diversa com o modelo europeu, que o influenciou. Enquanto na Europa o romance assumiu uma postura de crítica da sociedade burguesa, justamente a partir dos valores e dos costumes dessa classe, no Brasil, o gênero serviu como instrumento de idealização da realidade, camuflando as contradições das relações sociais. Assim, os valores e os costumes da classe dominante, formadores de um discurso pretensamente homogêneo, tentaram esconder as debilidades das instituições brasileiras da época e, por conseguinte, todos os contrastes da efervescência diária. Por meio dessa inversão de perspectiva do romance moderno, a vertente romântica formou uma tradição, que consubstancia os modismos europeus com a cor local. Isto é, uma representação da realidade divergente da sociedade que tencionava recriar. Com efeito, esse processo é a chave da aproximação e de afastamento entre o romance urbano romântico brasileiro e o europeu. O presente estudo tem por finalidade analisar, exatamente, a representação da realidade do romance Ressurreição, o primeiro de Machado de Assis, no que diz respeito a essa consubstanciação da tradição da vertente urbana do romantismo brasileiro. Para tal investigação, dar-se-á atenção à elaboração do narrador e do protagonista de Ressurreição, bem como à relação entre eles. Mediante isso, procurar-se-á estabelecer a aproximação e o afastamento do referido romance a essa mesma tradição. Palavras-chave: Romance moderno; Romance romântico brasileiro; Ressurreição; Narrador; Suspensão da realidade. ABSTRACT The Brazilian romantic urban novel of the nineteenth century has a different relation to the European one, which influenced it. While in Europe, the novel took a critical attitude towards bourgeois society, precisely from the values and morals of this class, in Brazil, the gender served as a kind of idealization procedure of reality that masked the contradictions of social relations. Thus, the values and customs of the ruling class, forming a speech supposedly homogeneous, tried to hide the weaknesses of Brazilian institutions of the time and, therefore, all the contrasts of daily effervescence. Through this reversal of perspective of the modern novel, the Brazilian romantic novel formed a tradition, substantiating the aesthetical European-like fashion with the local color. That is, a representation of reality that diverges from the society that it intended to recreate. Indeed, this process is the key to the approach and the separation of the Brazilian romantic urban novel from the European one. The present study aims to analyze, precisely, the representation of reality in the novel Ressurreição, the first of Machado de Assis, regarding this substantiating of the tradition in the urban dimension of Brazilian romanticism. For this research, the purpose is to give attention to the development of the narrator and the protagonist of Ressurreição and the relation between them. Through this, the intent is to establish the approach and the separation of the mentioned novel from this tradition. Keywords Modern novel; Brazilian romantic novel; Ressurreição; narrator; suspension of reality. Sumário Introdução................................................................................................................08 Capítulo I 1. O romance e a representação da realidade...........................................................14 2. O romance no Brasil.............................................................................................27 Capítulo II 1. Representação da realidade em três romances urbanos do Romantismo Brasileiro...................................................................................................................35 Capítulo III 1. Machado de Assis: O aprendizado do ofício........................................................52 2. A tradição crítica e Ressurreição..........................................................................72 3. Ressurreição: O narrador, o protagonista e a suspensão da realidade..................79 4. Diálogo com a tradição do romance urbano do Romantismo Brasileiro..............97 Capítulo IV 1. O menino é pai do homem..................................................................................105 Referências Bibliográficas......................................................................................111 8 Introdução O romance Ressurreição (1872), o primeiro de Machado de Assis, instaura, de certa forma, uma nova temática no rol da incipiente tradição romanesca brasileira: a dúvida. Por meio de uma narrativa que, ao mesmo tempo, explica os seus expedientes e conta a história do protagonista, o narrador consegue confluir para o campo da incerteza não só o próprio ponto de vista como também a perspectiva do herói, provocando, propositadamente, a suspensão da realidade na representação da sociedade que tenciona recriar. O presente estudo procurará demonstrar como se dá a construção dessa suspensão e como ela pode caracterizar-se como um eixo de aproximação e de afastamento entre a referida obra e a tradição do romance urbano do romantismo brasileiro. Dada a relevância da produção dessa tradição para a história literária brasileira, buscou-se entender a sua relação com o romance moderno, que, de algum modo, foi o seu modelo. Com essa finalidade, portanto, adotou-se o percurso que se segue. O desenvolvimento do romance moderno, na Europa, demonstra a relevância do gênero consonante à franca ascensão social da burguesia. De meados do século XVIII até a sua consolidação, no século seguinte, o romance adquiriu status de gênero burguês por expressar os valores, os costumes e os anseios desta classe. Para além de fomentar e reproduzir os princípios burgueses, o gênero romance tornou-se um instrumento de análise da nova civilização do capital. Em um processo dialético de exposição e crítica do universo burguês, o romance, na sua especialização, redefine seus próprios procedimentos estruturais e reelabora sua temática, sofisticando, cada vez mais, sua percepção da realidade. Promove, com isso, uma densa análise crítica dos indivíduos e de seus interesses subjacentes às interações sociais. Cria-se, com o romance, uma produção literária capaz de incorporar, com maior rapidez, as transformações sociais às bases da urdidura textual. Enganam-se, contudo, aqueles que o têm apenas como reflexo da sociedade, ou como documento da realidade de uma época. O gênero por si rejeita tal função, porque é uma elaboração a posteriori dos acontecimentos de uma sociedade, e esta ‘tradução’ literária das circunstâncias temporais é pautada sempre por um viés ideológico. O objetivo do romance não é reunir o maior número de detalhes dos fatos verídicos para legitimar o seu diálogo com o mundo real. Sua aproximação com este se dá a partir da 9 interpretação dos costumes e valores comuns a um mesmo grupo social, bem como da sua organização político-econômica. Daí ele ser considerado como uma representação da realidade, a qual depende mais do perfeito arranjo dos elementos não literários na economia interna da obra para ser bem sucedida (CANDIDO, 2006a). É isso que, por sua vez, lhe configura o seu caráter verossímil, a sua verdade. Em outras palavras, o caminho percorrido pelo gênero pode ser pensado na homologia entre forma literária e processo social, sugerida por Ian Watt (1996). É nesse sentido que se compreende o romance como representação da realidade, uma tradução literária das complexas relações sociais. Desse modo, o intuito do primeiro capítulo é entender como, de fato, se dá a relação entre a literatura e a realidade, procurando estabelecer as bases em que o gênero constrói essa homologia1 e, por conseguinte, como ele se torna um instrumento de interpretação de um “novo contexto histórico”, como sugere Sandra Vasconcelos (2002). Para isso, tentou-se edificar uma relação coerente entre a literatura e a realidade, a qual encontra sustentação teórica nas discussões arroladas por Antoine Compagnon (2006) para consolidar que a literatura está para além do entretenimento ou para o simples deleite da sociedade. A partir das indicações de Compagnon, procurou-se incorporar à discussão a relação entre linguagem e realidade, centrada nos estudos de Beth Brait sobre os conceitos chave da enunciação pelo viés bakhtiniano (2005). Assim, constatou-se que até se consagrar como gênero digno de ser lido, o romance sofreu muito mais um julgamento moralista, portanto ideológico, do que uma condenação estética, já que ele foi tornando-se mais verossímil. Paralelamente, investigaram-se as questões essenciais que promoveram a ascensão da classe média inglesa, correlacionando-as para o fortalecimento do gênero. Dentre elas, a formação de um novo público leitor, reivindicante de uma literatura mais próxima a seu tempo e espaço, convergiu para o mesmo ponto propulsor, gênero e classe social (HAUSER, 1972). Entendido como epopeia burguesa, o romance passa a diferenciar-se dos outros gêneros por introduzir em sua estrutura os ideais e o espírito desta classe, fazendo com que o leitor se reconheça na história que lê. Desse modo, na sua caracterização moderna, o romance é um “gênero inacabado” porque seu 1 Entende-se aqui este termo de modo mais flexível (de acordo com os postulados de Ian Watt) do que a homologia rigorosa proposta por Lucien Goldmann na obra Sociologia do romance (1967). 10 nascimento e sua formação “realizam-se sob a plena luz da história”; com ele se permitiu um “deslocamento do centro temporal da orientação literária”, em que o autor, “sob todas as suas máscaras e aspectos”, moveu-se “livremente no campo do mundo que é representativo” (BAKHTIN, 1988, p. 417). Em suma, as bases do individualismo no universo literário encontraram correspondência com o liberalismo econômico, reconfigurando, assim, a verdade do universo ficcional a um mundo mais próximo da realidade. Depreendendo-se o percurso e o papel desempenhado pelo romance moderno, na Europa, passou-se a investigar as bases deste gênero no Brasil. Em terras brasileiras, o romance moderno sofreu alguns ajustes para alinhar-se ao projeto romântico brasileiro, que tencionava criar uma imagem de país livre (CANDIDO, 2006c); por conta disso, ele vai expressar uma representação da realidade com circunstâncias diversas das do modelo europeu. As condições socioeconômicas brasileiras também contribuíram muito mais para uma elaboração da realidade fundindo a expressão da cor local com os modismos europeus do que propriamente para uma análise das contradições das suas instituições. Ideologicamente, o romance brasileiro estava propenso a cantar as cores da recente nação, preterindo, dessa forma, uma tradução artística de seu atraso e de suas debilidades institucionais. Nesse contexto, o romancista brasileiro vivenciava questões políticas e socioeconômicas de outra ordem das dos seus inspiradores europeus. Por outro lado, a produção romanesca brasileira enfrentava questões específicas: rearranjo do modelo, concorrência com as traduções de romances europeus, já conhecidos e consagrados pelo exíguo público, e baixa qualidade das obras de seus escritores. Portanto, a melhoria tanto na produção quanto na qualidade dos seus romances passaria, primeiramente, por uma profunda relação entre o entendimento de suas contradições e a adaptação do modelo europeu (SCHWARZ, 2005). Como a intenção é analisar a consubstanciação dos modismos europeus e dos costumes da elite brasileira, aspectos geradores da tradição da prosa romântica no Brasil, o segundo capítulo concentra-se na vertente urbana do romance, por entender que, nela, a realidade do universo ficcional é mais representativa. Desse modo, fez-se um breve estudo sobre a composição textual dos romances A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, Memórias de um Sargento de Milícias (1852-3), de Manuel Antônio de Almeida, e Lucíola (1862), de José de Alencar, com o propósito de estabelecer em que medida as bases dessa tradição podem compor uma representação da 11 realidade brasileira daquele momento. A escolha desses romances pauta-se em dois critérios: a) por serem obras representativas da produção da prosa literária da época em questão; e b) por eles terem sido publicados antes de Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, objeto de análise desta pesquisa. O foco da análise desses romances recaiu sobre os seus respectivos narradores e protagonistas, buscando compreender a relação entre esses entes ficcionais na construção efetiva do universo fictício e, por conseguinte, da representação da realidade. No terceiro capítulo, passa-se a interpretar o romance Ressurreição, por meio dessa mesma chave de leitura: a relação entre o narrador e o protagonista. Procurou-se demonstrar, através dessa relação, a suspensão da realidade que se opera na narrativa. Narrador e protagonista, cada um a seu modo, tentam instaurar no eixo da verdade ficcional o seu ponto de vista sobre os fatos. Construção e desconstrução de imagens dos personagens formam os dois lados dessa gangorra entre narrador e herói. Por isso, a oscilação de perspectiva torna-se a coerência do enredo de Ressurreição. A partir do desenvolvimento desse estudo sobre o romance Ressurreição, constituíram-se elementos plausíveis para compará-lo e conferir-lhe um lugar nessa mesma tradição. Uma vez composta a comparação com a tradição do romance urbano do Romantismo brasileiro, passou-se a estabelecer o papel de Ressurreição dentro do projeto romanesco de Machado de Assis. O intuito, nesse caso, é sugerir que o narrador do primeiro romance do escritor forja um método peculiar de construir e desconstruir a visão do herói. Esse procedimento cambiante consegue atrair para o seu centro de reconfiguração o modismo estético do Romantismo, que era o gosto vigente. Nesse sentido, o narrador repugna a perspectiva egocêntrica do herói, ao mesmo tempo em que tenta purgar os exageros da escola romântica. Partes constitutivas da idealização do país, herói e escola literária representam a hipocrisia nas relações sociais e o atraso intelectual. Guardadas as devidas proporções de amadurecimento intelectual do romancista e a condição de emergência discursiva, entende-se que a essência de tal método será reutilizada nos romances da fase madura do escritor. A partir da demonstração textual de todo o processo composicional desse método, suscita-se que a suspensão da realidade expressa nesse procedimento possa adquirir status de crítica social, quando o narrador desmonta a visão de realidade do herói. Isto é, sugere-se que Machado de Assis, em seu primeiro romance, ensaie a “pintura da sociedade brasileira”, ao criar um narrador dissimulado que se aproxima e se 12 afasta, a todo o momento, da perspectiva do membro da classe dominante com a explícita intenção de criticá-la. 13 Capítulo I 14 1. O Romance e a Representação da Realidade A noção de romance moderno pode ser entendida a partir do modo como se dá a representação da realidade. É nela que se percebe o quanto uma obra literária reflete sobre a sua época, podendo, portanto, aproximar-se (ou não) significativamente da sociedade que tenta recriar. Com efeito, por meio dela, o romance moderno se distingue das narrativas anteriores – a prosa de ficção (WATT, 1996). Ao percorrer um caminho diverso ao longo do tempo, o romance foi constituindo-se como gênero sério a partir do momento em que foi aumentando o seu grau de “imitação” da realidade. Com isso, o gênero se opôs cada vez mais aos romances “incrivelmente longos, cheios de complicações, com enredos frouxos, e apresentando um mundo aristocrático, artificial e idealizado, onde quase não havia lugar para os comportamentos humanos comuns, já que nele imperavam o amor elegante, o heroísmo, o decoro” (VASCONCELOS, 2002, p. 9). Notadamente, essas características recobrem os romances medievais e o romance francês do século XVII. Entre avanços e recuos, o romance que inicia um marco de modernidade na literatura ocidental é, sem sombra de dúvidas, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha (1605-1615), de Miguel de Cervantes, embora existissem romances, antes dele, de vertente realista, como os de costumes ou picarescos. Sergio Givone defende que em Dom Quixote já há uma “espécie de duplo sentido [que] confunde o protagonista” (GIVONE, 2009, p. 459). O que se coloca aí é a problemática da noção de realidade: Quanto mais o mundo se afigura uma miragem para este irremediável sonhador, tanto mais a miragem lhe aparece verossímil, carregada de múltiplos segredos ocultos; inversamente, quanto mais o sublime e o extraordinário se mostram inquietantes, tanto mais o pobre louco se perde em arroubos fantasiosos. Prova disso é a necessidade de dar novos nomes às pessoas, aos animais e até às coisas (2009, p. 460). Nesse sentido, “o cotidiano é entregue à fábula. E, portanto, libertado da banalidade e da insignificância, visto ser a fábula mais verdadeira do que a verdade” (GIVONE, 2009, p. 460). Os planos são invertidos justamente para questionar o sentido de verdade. Em busca disso, com uma sátira corrosiva, há na obra um decalque vexatório não só de um gênero literário – romance de cavalaria –, como também dos valores aristocráticos, postos no romance por Cervantes, como ultrapassados e 15 incoerentes já no século XVII. Por esse e, evidentemente, outras características, Dom Quixote pode ser considerado como o primeiro romance moderno. Bem antes mesmo dessa discussão vir à tona, já no século XVIII, Clara Reeve, segundo Márcia Abreu, ao refletir sobre a diferença entre romance moderno e prosa de ficção, definiu o primeiro da seguinte maneira: o romance é uma narrativa, centrada na vida real, próxima do leitor no tempo e no espaço, que trata de coisas que podem acontecer a qualquer um em sua vida cotidiana, escrita em linguagem comum, elaborada de forma a convencer o leitor de que a história relatada realmente aconteceu e de modo a provocar reações de identificação, fazendo aquele que lê se colocar no lugar do personagem e com ele sofrer ou se alegrar (ABREU, 2005, p. 5). Tal definição já demonstra, de alguma forma, qual seria a finalidade do romance moderno. Ainda que Reeve exagere na correspondência direta entre o romance e a realidade, sua diferenciação entre esses dois textos fictícios encontrou ressonância entre os críticos literários. Já no século XX, na obra A Ascensão do Romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding (1957), Ian Watt recorre àquilo que ele chama de realismo formal para explicar a ascensão do romance inglês do século XVIII como sinônimo de romance moderno, diferenciando-o de seu antecessor. Watt acredita que o estilo narrativo específico do romance desse período na Inglaterra, marcadamente na produção dos três romancistas que ele estuda, “é a soma das técnicas literárias através das quais o romance imita a vida seguindo os procedimentos adotados pelo realismo filosófico em sua tentativa de investigar e relatar a verdade” (WATT, 1996, p. 31). O crítico chama a atenção para tais técnicas, uma vez que elas não eram encontradas em outros gêneros literários. Segundo Watt, a expressão narrativa do realismo formal está ancorada numa premissa ou convenção básica, pela qual o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias (1996, p. 31). Orientando-se pelos dados histórico-filosóficos sobre o conceito de realismo e ainda o individualismo nas instâncias política e econômica, Watt explica que o romance também enveredou por uma espécie de individualismo como forma de se opor ao trato abstrato das categorias da narrativa (personagem, tempo, espaço entre outros) da prosa 16 de ficção. Daí a recorrente nomeação dos personagens, tornando-os indivíduos, de certa forma, representantes das pessoas comuns da vida cotidiana demarcada também por uma particularização do espaço e do tempo: “o romance coloca de modo mais agudo que qualquer outra forma literária – o problema da correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita” (WATT, 1996, p. 13). Desse modo, Watt entende que o romance, por meio do conceito de verossimilhança, não só tem uma relação com o mundo real, como também seu desenvolvimento está associado às transformações operadas na Inglaterra do século XVIII nas instâncias sociais, políticas e econômicas. Em seu livro Dez Lições sobre o romance inglês do século XVIII (2002), Sandra Vasconcelos faz uma análise sobre as teorias que tentam explicar a ascensão do romance, diferenciando-o da prosa de ficção. Dentre as abordagens propostas pelos teóricos – Ian Watt, Michael Mckeon, Lennard Davies e J. Paul Hunter –, Vasconcelos comenta que todas as quatro consideram “o contexto histórico em que surgiu o novo gênero” e, segundo ela, à exceção de Mckeon, que defende a “continuidade histórica entre romance e romanesco”, os demais “argumentam em favor da ruptura radical entre os dois gêneros narrativos” (VASCONCELOS, 2002, p. 22). Contudo, de acordo com Vasconcelos, “Watt é o único que planta de modo firme esse fenômeno no terreno das mudanças sociais em curso na Inglaterra do século XVIII, enquanto Davies e Hunter buscam suas causas na relação ou convivência do romance com outros tipos de texto contemporâneo e Mckeon as procura nos seus antecedentes” (2002, p. 22-23). A partir das convergências e divergências que pretende demonstrar sobre o referido assunto, Vasconcelos, antecipadamente, deixa entender que o romance inglês não ignora os seus antecedentes; entretanto, ele, como novo gênero, surge “em cena como uma forma histórica para dar conta de um novo conteúdo social”, tentando “exprimir uma certa visão de sociedade que os romancistas procuraram traduzir em termos artísticos” (2002, p. 11). Ela ainda salienta que “o novo gênero não se limitou a refletir os valores de seu tempo, mas ajudou a criá-los” (2002, p. 12). Nessa mesma perspectiva, Terry Eagleton comenta que os romances foram “instrumentos que contribuíram para constituir interesses sociais mais do que lentes que os refletiram” (EAGLETON apud VASCONCELOS, 2002, p. 12). De certo modo, Vasconcelos, ao refletir sobre a formação do romance, retoma o conceito de Watt de homologia entre forma literária e processo social, muito embora proponha outros elementos na construção dessa homologia. 17 Pode-se compreender, portanto, o conceito de romance moderno a partir do modo como se constrói a representação dos mais recônditos interesses subjacentes à interação social, dos valores, dos costumes, das disputas pelo poder, que concorrem para as perenes transformações temporais de determinada sociedade. Nessas bases é que se configura a realidade na literatura. Isto é: problematizando-a, como em Dom Quixote. Literatura e Realidade A relação entre literatura e realidade sempre causou divergências em torno da própria definição de realidade, e de como a linguagem a expressa. Em seu livro O demônio da teoria: literatura e senso comum, Antoine Compagnon faz um percurso estabelecendo a diferença entre duas grandes linhas teóricas que tratam do assunto: Segundo a tradição aristotélica, humanista, clássica, realista, naturalista e mesmo marxista, a literatura tem por finalidade representar a realidade, e ela o faz com certa conveniência; segundo a tradição moderna e a teoria literária, a referência é uma ilusão, e a literatura não fala de outra coisa senão de literatura (COMPAGNON, 2006, p. 114). Por essa divisão sugestiva de se tratar o impasse, é possível compor um caminho para se entender a função da literatura, a saber. Na Poética, Aristóteles não define estritamente o conceito de verossimilhança como imitação direta da realidade, uma vez que “a função do poeta não é dizer aquilo que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, aquilo que é possível segundo o provável ou o necessário” (2006, p. 67). À poesia (entendida como literatura) cabe dizer “antes o que é geral, enquanto a história, o que é particular” (ARISTÓTELES, 2006, p. 68). O que “poderia acontecer” não pressupõe nem uma completa nulidade do “ocorrido”, nem tampouco uma verdade inventada pela linguagem, mas a ressalva aristotélica pode ser compreendida como uma interface. Assim, o interesse essencial da literatura não é a imitação estrita da realidade, mas a sua efabulação. Isto é, o acontecimento literário se constrói com aquilo que se crê que possa suceder ou ocorrer, mediante o mundo sensível. Em outras palavras, é a instauração do verossímil (SPINA, 1995). Com ele, a noção de realidade é dilatada, criando um momento de reflexão não exatamente sobre o fato real, mas sobre como este se edifica e se propaga na sociedade. Nesse contexto, a literatura vai além de uma imitação pura e simples da realidade, ou melhor, representa-a, justamente, quando incorpora à sua configuração a ideologia que permeia todas as relações sociais. 18 A problemática, portanto, parece residir no modo como o enredo dá conta de representar ou não, em suas especificidades técnicas, os aspectos que suscitam a realidade para convencer o leitor, pois em poesia “é preferível o impossível convincente ao possível que não convence” (ARISTÓTELES, 2006, p. 122), já que não “é tão- somente o acúmulo de detalhes, nem sua exatidão ou sua perfeita correspondência com a realidade, que confere à obra literária caráter realista” (VASCONCELOS, 2002, p. 31), mas aquilo que é “possível segundo o provável ou o necessário”. Nessa mesma perspectiva, Antonio Candido argumenta que, na narrativa ficcional, “a realidade do mundo e do ser” precisa tornar-se componente da estrutura literária (CANDIDO, 2004a, p. 9). É mediante o processo de incorporação dos elementos não literários (elementos externos, não estéticos) à economia interna da obra que se efetiva a representação da realidade (CANDIDO, 2006a, p. 14). Ainda, na visão de Erich Auerbach, segundo Compagnon, desde o Renascimento até o final do século XIX, “o realismo identificou- se sempre, cada vez mais, ao ideal de precisão referencial da literatura ocidental”. O crítico francês compreende que Auerbach esboça a história da literatura ocidental “a partir do que ele definia como objeto próprio: a representação da realidade” (COMPAGNON, 2006 p. 106). É nesse sentido, conforme comentário de João Roberto Faria, que “os três termos da equação aristotélica – real, possível [provável] e verossímil – [servem] de base para reflexões sobre as relações da obra de arte com a realidade e sobre as leis internas de sua constituição” (FARIA, 1999, p. 146). Na segunda tradição, apoiada no linguista estruturalista Ferdinand Saussure, que entendia o signo como uma arbitrariedade, e no semioticista Charles Sanders Peirce, que compreendia a ligação original entre o signo e seu objeto como quebrada, a teoria literária apreende que o referente não existe fora da linguagem, mas é produzido pela significação, depende da interpretação. O mundo sempre é já interpretado, pois a relação linguística primária ocorreu entre representações, não entre a palavra e a coisa, nem entre o texto e o mundo. Na cadeia sem fim nem origem das representações, o mito da referência se evapora (COMPAGNON, 2006, p. 99) Nesse contexto, a literatura só falaria de literatura em si sem estabelecer relação com o mundo real. A realidade, assim, é entendida como uma ilusão referencial. Ao refletir sobre as diferentes materialidades da linguagem, Bakhtin, segundo Beth Brait, compreende que “a linguagem é concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva 19 e os sujeitos e discursos nela envolvidos” (2005, p. 65). É somente a partir da “interação social entre os participantes da enunciação” que se tem aquilo que ele define por “enunciado concreto” (BRAIT, 2005, p. 65). Quer dizer, “o enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes” (BAKHTIN apud BRAIT, 2005, p. 61). Se a concepção de enunciado concreto, para Bakhtin, surge impreterivelmente com a interação social, pensa-se, portanto, o quanto é importante a relação entre enunciador e seu destinatário, justamente porque o “índice substancial do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém, estar voltado para o destinatário” (BRAIT, 2005, p. 71). Desse modo, o destinatário desenvolve uma função essencial não só no auxílio para “compreender a composição e o estilo dos enunciados”, como também na instauração do “extraverbal na constituição do verbal” (BRAIT, 2005, p. 72). É desse ponto de vista que a literatura “explora as propriedades referenciais da linguagem”. Ainda que “seus atos de linguagem” sejam fictícios, o seu funcionamento instalado na literatura “é exatamente o mesmo que o dos atos de linguagem reais, fora da literatura” (COMPAGNON, 2006, p. 135). Assim, o conteúdo da literatura estabelece uma relação com o mundo real, como sugere Pavel: Em muitas situações históricas, os escritores e seu público consideram como ponto pacífico que a obra literária descreve conteúdos que são efetivamente possíveis e têm relação com o mundo real. Essa atitude corresponde à literatura realista, no sentido amplo do termo. Considerando assim, o realismo não é, pois, unicamente um conjunto de convenções estilísticas e narrativas, mas uma atitude fundamental referente às relações entre o universo real e a verdade dos textos literários. Numa perspectiva realista, o critério de verdade ou falsidade de uma obra literária e de seus detalhes é baseado na noção de possibilidade [...] em relação ao universo real (PAVEL apud COMPAGNON, 2006, p. 136). Nesse sentido, “o fato de a literatura falar da literatura não impede que ela fale do mundo. Afinal de contas, se o ser humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem” (COMPAGNON, 2006, p. 126). A ideologia pode ser considerada uma das outras ordens da linguagem. Interposta na própria linguagem, configurando-se como uma espécie de mensagem implícita, ela estabelece uma relação estreita com a estrutura de juízos de valores sociais figurados no texto literário “não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros” (EAGLETON, 20 2006, p. 24). O papel da ideologia no texto literário é de manter e de reproduzir o poder social, como comenta Terry Eagleton: Não entendo por “ideologia” apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social (2006, p. 22-23). Constituinte complexa do impasse entre literatura e realidade, a ideologia serve de interface entre ambas. Reconhecer seus meandros na linguagem literária já é uma maneira de compreender a correlação entre esta e as circunstâncias temporais. Pois, com seu procedimento ambíguo, a ideologia oscila entre “mascarar” a realidade e explicá-la a partir do seu próprio mascaramento. Em outras palavras, é a contrapelo que ela expõe as contradições, engendrando a crítica através dos mais nobres valores e costumes de determinada sociedade. Se no primeiro momento a ideologia materializa as aspirações do discurso vigente, camuflando, em parte, a realidade, no outro, ela desconstrói, por dentro, as bases e intenções desse mesmo discurso. Assim, encarnada de ideologia, a linguagem literária resiste à “falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos”, imaginando “uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia” (BOSI, 2008, p. 169). Mesmo porque, ainda conclui o crítico, [a] lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade, é discreta, não obstrui ditatorialmente o espaço das imagens e dos afetos. Antes, combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela dá à palavra um novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos (2008, p. 173). Desse modo, a arte é o lugar de confrontos ideológicos. Ela sempre se revitaliza a partir de uma ruptura com o discurso vigente, ainda que o propague de alguma forma, evitando a homogeneidade dos discursos e dos pensamentos. Assim, a arte não se isenta de refletir criticamente sobre a realidade, mesmo quando repensa seus próprios processos de composição – fato que lhe dá autenticidade e força. Com efeito, qualquer produção artística, neste caso a literária, para se estabelecer, tende a confrontar-se com o gosto e os interesses vigentes. É nesse sentido que, antes mesmo de se consolidar como novo gênero e ser apreciado pelo público leitor do século XVIII, o romance enfrentou rejeição de ordem epistemológica e de ordem moral. Os detratores do romance acusavam-no de ser inverossímil, de sua leitura ser uma perda de tempo, de corromper o gosto, de influenciar outros gêneros, de sua linguagem ser rude e, portanto, de não privilegiar a eloquência, e de ser moralmente 21 condenável (ABREU, 2005, p. 2). Tais acusações sucedem em razão do gosto da aristocracia, marcadamente expresso pela leitura das belas letras, já que elas formavam um estilo, ampliavam a erudição e, principalmente, aprimoravam o espírito, indicando o caminho da salvação e da virtude. Conforme os detratores, da perspectiva moral, havia vários problemas nas narrativas: Elas ensinavam a fazer coisas reprováveis, favoreciam o contato com cenas de adultério, incesto, sedução, crimes, possibilitando ao leitor aprender como levar a cabo situações semelhantes, como evitar riscos, como burlar as leis. Mesmo que não se pusessem em prática os atos condenáveis representados nos romances, sua leitura provocaria sensações físicas pouco recomendáveis no leitor, inflamando desejos, despertando a volúpia, excitando os sentidos (ABREU, 2005, p. 3). Sem dúvida, as acusações mais severas dos detratores residiam na questão moral, pois a epistemológica perdia sua força, à medida que os romances foram expressando maior grau de representação da realidade. Contrapondo-se a esse discurso, os defensores do romance recorreram ao princípio horaciano da “mistura entre deleite e utilidade” para justificar que o gênero “teria a vantagem de ensinar sem que o leitor sequer se apercebesse, já que os sentimentos e as emoções oriundos da identificação com o destino das personagens seriam os agentes transformadores” (ABREU, 2005, p. 5). E, neste caso, enquanto “a vida em sociedade favorecia os vícios e ensinaria como disfarçá-los, o romance os poria a nu e conduziria os leitores para o caminho da virtude” (ABREU, 2005, p. 6). Mesmo assim, o discurso vigente reprovava o romance pelo fato de este subverter os critérios estabelecidos “nas artes poéticas, retóricas e tratados de literatura” da época, isto é, por ele não “responder ao padrão clássico e por poder ser lido por pessoas com pouca instrução formal” (ABREU, 2005, p. 7). A questão de fundo é ideológica – a reprovação moral que se coloca é a sua estratégia. Resultante disso, o que se tem é uma mudança radical no modo de conceber e de divulgar a literatura, alterando as relações entre escritor, obra e público leitor. O gosto literário da aristocracia estava centrado em obras que remontam os valores e os vestígios da Antiguidade greco-romana redefinidos na Renascença. Nelas, a representação de tempo (um passado inacessível, “desprovido de qualquer relatividade”) e de espaço (um mundo isolado com sentidos e valores concluídos e imutáveis) cria um mundo acabado, perfeito e distante que não estabelece nenhuma relação com a contemporaneidade do mundo real (BAKHTIN, 1988, p. 405). Nesse sentido, a 22 aristocracia valorizava uma arte que não refletia sobre as circunstâncias temporais de sua própria época. Ela apreciava uma obra esteticamente refinada tanto na temática quanto na linguagem. Defendia uma literatura para um leitor culto, distinguindo-se de um público médio. Em outros termos, fomentava uma arte para um público reduzido, sendo que esta, às vezes, não encontrava compreensão mesmo dentro da própria aristocracia. Neste contexto, o artista, de modo geral, era um agregado de um mecenas que lhe pagava uma pensão ou benesses por sua arte. Financiar um artista nessa época era sinônimo de poder, de prestígio, não necessariamente de ser um profundo conhecedor de arte. No que diz respeito à literatura, Arnold Hauser comenta que a aristocracia cortesã mantinha os seus escritores, mas não considerava as suas produções como artigo de primeira necessidade. Tinha-os somente como servidores de que, em certas circunstâncias, podiam dispensar os seus serviços. Mantinha-os mais por razões de prestígio próprio do que por saber apreciar o real valor das suas obras (HAUSER, 1972, pp. 691-692). O escritor, desse modo, era duplamente dependente: econômica e artisticamente. O fomento à arte dado pela aristocracia se constituía dentro dessas bases. Essa estrutura só se modifica com o surgimento do romance, principalmente, na sua configuração moderna, e de uma classe média que repudiava o gosto aristocrático. Na sua caracterização moderna, o romance é um “gênero inacabado” porque seu nascimento e sua formação “realizam-se sob a plena luz da história” (BAKHTIN, 1988, p. 397). Por isso, ele é projetado dentro de um passado próximo, um “passado real e relativo, que está ligado ao presente por constantes transições temporais” (BAKHTIN, 1988, p. 410), o que faz com que ele renove o seu sentido e significado conforme o desenvolvimento do contexto social. Nele, a concepção de tempo e de mundo está estritamente ligada ao presente, à mutabilidade das circunstâncias e das coisas – característica fundamental, visto que o gênero também está por se constituir. Ao estabelecer uma relação estreita com o tempo e o mundo, o romance se tornou o gênero que melhor expõe, em sua estrutura, as transformações sociais em consecução. Essa peculiaridade de se renovar, de incorporar outros gêneros, adaptando-os à ordem do dia, permitiu-lhe acompanhar a ascensão da classe média e absorver o seu estilo de vida para, inclusive, recriá-lo. 23 Operou-se, assim, uma substituição radical de paradigma no universo representativo – de um mundo acabado, perfeito e distante, para um mundo imperfeito, complexo e referencial. Pois o romance está centrado nos dados histórico-filosóficos que consideram a noção de tempo e de mundo como instâncias em permanente construção. Ou, segundo Georg Lukács, o romance “é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática” (LUKÁCS, 2000, p. 55). Dada essa mudança de paradigma, o novo gênero também pedia um novo público. A classe média inglesa, com seus mecanismos de livre concorrência, criou um novo cenário editorial, transformando o livro em um “artigo de consumo”. Reconhecendo-se na sua temática e na sua linguagem, essa nova classe tem o romance como sua expressão literária – é um gênero burguês (HEGEL, 1964, p. 254). Dito de outra maneira, público e gênero literário se expressam: a) nos seus referenciais de composição e de concepção de mundo; b) na sua divulgação; e c) principalmente, na relação entre escritor e leitor. A respeito dessa nova classe com novos hábitos de leitura, Hauser argumenta que o processo de nivelamento cultural, na Inglaterra, tem a sua expressão mais frisante no aparecimento de um novo público com hábitos de leitura regular, isto é, um círculo relativamente largo que lê e compra livros com regularidade, assegurando assim a numerosos escritores um modo de vida livre de obrigações pessoais. A existência deste público deve-se, em primeiro lugar, à proeminência cada vez maior da classe média abastada, que rompe as prerrogativas culturais da aristocracia e manifesta um interesse vívido e cada vez maior pela literatura (HAUSER, 1972, p. 690). Assim, o editor passa a ocupar o lugar dos mecenas, mediando a interação entre autor e leitor. O romance é seu maior produto, é publicado para um leitor indiscriminado, sem decretar para este um prévio conhecimento. A relação entre autor e leitor “corresponde à estrutura de uma sociedade de classe média estabelecida sobre a circulação anônima de mercadorias” (HAUSER, 1972, p. 700). A obra literária é compreendida como mais uma mercadoria, tendo o seu valor regulado pela sua “negociabilidade no mercado livre”. Desse modo de produção, o sustento dos escritores vem dos lucros de suas obras. Com isso, escritor e público se emancipam dos juízos literários definidos pela aristocracia. 24 Toda essa mudança operada não aconteceria “se a função orientadora intelectual não houvesse passado para as mãos da classe média na Europa Ocidental” (HAUSER, 1972, p. 702). Tem-se uma congruência ideológica entre o romance e a classe média – a “homologia entre forma literária e processo social” proposta por Ian Watt. Nesse sentido, é inconcebível pensar o romance moderno sem refletir sobre as mudanças socioeconômicas que repaginaram o cenário europeu. O próprio conceito de modernidade pode ser entendido a partir das modificações históricas que ocorreram na Europa ao longo do século XVIII e que se consolidaram no século seguinte. As mudanças estão calcadas na Revolução Industrial, que modificou o modo de produção, exigindo uma urgência nas relações comerciais e, por conseguinte, sociais; e na Revolução Francesa, que possibilitou a ascensão da burguesia ao poder político. Essas duas revoluções foram os principais acontecimentos para a consolidação do capitalismo. Dessa maneira, a classe média passou a determinar seu gosto artístico, a esboçar o seu modo de enxergar o mundo. Esse gosto artístico encontrou no Romantismo o seu cerne, entendido não só como uma representação artística, mas também como um pensamento, pautado na expressão da subjetividade do indivíduo. Talvez a maior contribuição do pensamento romântico esteja na centralização do indivíduo em relação às coisas. Sem procurar estabelecer quem é tributário de quem, o fato é que os anseios da classe média se coadunaram com as aspirações românticas. Desta junção de forças, criou-se uma arte em que o artista é mais importante que ela própria, pois é ele quem capta uma visão ímpar das coisas e a “reproduz” mediante a sua percepção íntima, a sua genialidade – mais um fator que diferencia este contexto do mundo clássico. Segundo Hauser, há nesse procedimento um diálogo intenso entre autor e leitor: A indiferença do autor perante os seus personagens, a sua visão de mundo de essência estritamente intelectual, a reserva que mantinha nas suas relações com o leitor, numa palavra, o seu retraimento clássico-aristocrático desaparecem logo que o liberalismo econômico principia a estabelecer-se. O princípio da livre concorrência e o direito de iniciativa pessoal têm o seu paralelo no desejo, revelado pelo autor, de exprimir os seus sentimentos subjetivos, de fazer sentir a influência da sua personalidade, e de tornar o leitor testemunha direta de um conflito íntimo de espírito e consciência (HAUSER, 1972, pp. 708- 709). Isso só foi possível com o “deslocamento do centro temporal da orientação literária”, que permitiu “ao autor, sob todas as suas máscaras e aspectos, mover-se livremente no campo do mundo que é representativo” (BAKHTIN, 1988, p. 417). As 25 bases do individualismo no universo literário encontraram correspondência com o liberalismo econômico. No entanto, a partir de um processo contínuo de especialização tecnicista no século XIX, empreendido pela burguesia, o artista, de uma forma geral, se vê ameaçado no que diz respeito ao seu procedimento de criação, uma vez que ele também é obrigado a se especializar. A relação entre essas especializações gera um conflito prejudicial ao artista, visto que a sua especialização é estetizante e não “mecânica”. No caso da literatura, a especialização do escritor se dá no nível da estrutura do texto, da elaboração com a palavra, originando um texto mais sofisticado e menos imediatista. Começa aí uma tensão entre eles, pois o individualismo não é apenas a transferência do liberalismo econômico para a esfera literária; é ainda um protesto contra a mecanização, o nivelamento inferiorizador e a despersonalização da vida resultantes de uma economia deixada à rédea solta. O individualismo transfere o sistema do laissez-faire para a vida moral, mas, ao mesmo tempo, protesta contra uma ordem social em que os seres humanos são impedidos de seguir as suas inclinações pessoais e se transformam em executores de funções anônimas, compradores de mercadorias estandardizadas e meras ferramentas, num mundo cada vez mais uniformizado (HAUSER, 1972, p. 709). Dito de outra forma, o individualismo opera uma crítica ferrenha ao contexto em que se desenvolveu, ou mesmo como uma resistência à modernidade, como salienta Compagnon: A modernidade estética se define essencialmente pela negação: antiburguesa, ela denuncia a alienação do artista num mundo filisteu e conformista, onde reina o mau gosto. Daí a reivindicação – ela também ambígua no que se refere à vontade de aderir ao presente – de uma arte autônoma e inútil, gratuita e polêmica, escandalizando o burguês. A modernidade projeta seu dualismo no outro, o burguês, no qual ‘o artista descobre e define o seu contrário’ (COMPAGNON, 2003, p.24). Portanto, a representação da realidade configurada no romance moderno considera a noção de tempo (um passado próximo, real e relativo que estabelece relação com o presente) e o mundo (um espaço com um alto grau de referencialidade ao mundo real) como instâncias histórico-filosóficas essenciais para traduzir artisticamente as perenes transformações sociais, dando-lhes novos sentidos e significados. De acordo com essa nova configuração literária, o romance moderno se distingue da prosa de ficção e, ao interiorizar, em sua estrutura composicional, o estilo, os valores e os costumes do mundo burguês, evidencia as contradições desse mesmo mundo, 26 produzindo uma crítica ácida a partir das próprias bases elementares dessa mesma sociedade. 27 2. O Romance no Brasil No romance brasileiro, a representação da realidade expressa circunstâncias diversas das do modelo europeu. Na primeira metade do século XIX, na sua posição de ex-colônia, na periferia dos acontecimentos políticos, econômicos e das tendências culturais, o Brasil tornou-se um espaço de influxo das teorias filosóficas e literárias europeias, as quais nem sempre adquiriram um ajuste apropriado, por parte dos intelectuais2 brasileiros, na interpretação das complexidades locais. As condições socioeconômicas brasileiras contribuíram muito mais para uma elaboração da realidade fundindo a expressão da cor local com os modismos europeus do que propriamente para uma análise das contradições de suas instituições. E, sobretudo, por estar atrelado ao projeto de construção da identidade nacional pós-independência, o romance romântico brasileiro restringiu-se a criar uma imagem positiva do país, inclusive ajudando-o a ser conhecido pelos próprios brasileiros. Ideologicamente, o romance brasileiro estava propenso a cantar as cores da recente nação, preterindo, assim, uma tradução artística de seu atraso e de suas debilidades institucionais. Nesse contexto, o romancista brasileiro vivenciava questões políticas e socioeconômicas de outra ordem das dos seus inspiradores europeus. No Brasil, já havia romances antes mesmo de existirem imprensa e romancistas.3 As traduções preencheram uma lacuna literária desde a segunda metade do século XVIII até o surgimento dos primeiros romances nacionais, que apareceram somente na década de 1840, na esteira do movimento romântico. Mesmo após as primeiras manifestações dos romancistas brasileiros, as traduções continuaram fazendo parte do cenário literário da ex-colônia portuguesa. O seu papel foi importante para a formação cultural do país nos períodos colonial e pós-independência. Segundo a reflexão de Roberto Schwarz, no texto “Nacional por subtração”, as traduções desempenharam um importante papel no incipiente cenário literário brasileiro, sobretudo como forma de apresentação do novo 2 De acordo com Antonio Candido, as relações das teorias europeias, tidas como modelo a serem seguidas, com a representação da realidade produzida na literatura local sempre adquiriram “uma espécie de legitimação da influência retardada”; como exemplo, o crítico cita o Naturalismo que na Europa já se tratava de um movimento passadista e que sobrevivia, enquanto que entre os intelectuais e romancistas brasileiros podia ser entendido como ingrediente de fórmulas literárias legítimas (CANDIDO, 2006c, p. 181). 3 Cf. Márcia Abreu: “Desde meados do século XVIII, a presença de livros franceses era forte no Brasil, como atestam os pedidos de autorização para entrada de livros no Rio de Janeiro submetidos aos organismos de censura instalados em Portugal e no Rio de Janeiro entre meados do século XVIII e início do XIX” (ABREU, 2005, p. 15). 28 gênero, suscitando uma ampliação na temática, uma vez que o romance europeu apresentava, na sua configuração, uma maior complexidade nas relações sociais. Schwarz refuta a ideia de que com a exclusão das traduções se teria uma produção genuinamente brasileira, dado que, se extirpassem as novidades francesas e inglesas, ficaria restaurada a ordem colonial, isto é, continuaria havendo uma criação majoritariamente portuguesa. O crítico explica que as dificuldades do mundo editorial e da baixa qualidade das obras nacionais nesse período estavam intimamente ligadas às condições socioeconômicas do Brasil. E, portanto, a melhoria tanto na produção quanto na qualidade dos romances passava por uma profunda relação entre o entendimento dessas condições com a adaptação do modelo europeu (SCHWARZ, 2005). Desse modo, o desenvolvimento das traduções no território brasileiro, essencialmente no Rio de Janeiro no século XIX, trouxe consigo uma ambivalência complexa para a nascente produção editorial daquele momento. Se, de um lado, as traduções apresentaram o novo gênero aos brasileiros, formando um público consumidor de romance, de outro, elas limitaram o surgimento de novos escritores. Em face de um público leitor restrito, que se reduzia ainda mais quando se tratava de literatura, os editores preferiam publicar obras consagradas a investir em um romance desconhecido do público.4 Tratava-se, portanto, mais de uma aguda concorrência de ordem econômica do que uma questão de gosto ou de rejeição aos escritores brasileiros. Os livreiros tinham facilidade de publicar as traduções porque eles não pagavam por elas – o custo precisava ser baixo, pois o retorno também era irrisório. Eles ofertavam no mercado desde prosa de ficção a romances modernos de origem francesa e inglesa.5 4 Segundo Hélio de Seixas Guimarães, o número de alfabetizados era bem reduzido nessa época. No censo de 1872, conheceu-se a gravidade do problema: “apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo os escravos, sabiam ler e escrever, segundo dados do recenseamento; (...) [em] uma população de quase 10 milhões de habitantes, apenas 12 mil frequentavam a educação secundária e havia 8 mil bacharéis no país. Esses dados indicam o leitorado potencial, o que significa que o número de pessoas efetivamente capazes de ler e escrever era certamente muito menor. Certamente muito menor era o número de leitores de literatura, o que fica indicado pelas tiragens. Os livros saíam em edições de mil exemplares, e apenas títulos muito bem-sucedidos chegavam à segunda edição, que podia demorar dez, vinte ou trinta anos” (GUIMARÃES, 2004, p. 66). 5 Conforme Márcia Abreu, várias edições de romances franceses e ingleses foram encomendadas por Paulo Martin, um dos mais importantes livreiros instalados no Rio de Janeiro no período colonial, e anunciadas na Gazeta do Rio de Janeiro entre 10 de setembro de 1808 e 22 de junho de 1822, comprovando a oferta regular de obras estrangeiras ao público leitor do Rio de Janeiro, obras “anunciadas no meio de inúmeras ‘moderníssimas e divertidas novellas’ de autoria anônima, Best-sellers europeus como Diabo Coxo, de Lesage; Paulo e Virgínia e A Choupana Índia, de Bernadin de Saint-Pierre, Mil e Hum noites, de Galland; Atala, ou Amores de Dois Selvagens, de Chateaubriand; Belizario, de Marmoutel; (...) Luiza, ou o cazal no bosque, de Mrs Helme; Viagem de Gulliver, de Jonathan Swift; Vida e aventuras admiráveis de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe; Tom Jones, ou O Engeitado, de Henry 29 Talvez a maior complexidade do legado dessas traduções tenha sido de fato a influência que exerceu na formação dos escritores brasileiros, já que esses romances (os modernos) encerram em seu enredo uma elaboração da realidade completamente diferente da brasileira. A verdade ficcional que reside neles – seus valores e costumes e, principalmente, seu discurso ideológico – em nada dialogava com as bases elementares da estrutura socioeconômica desenvolvida no Brasil do século XIX. Pois aqui, o que se viu das ideias liberais foram as suas formas cooptadas ao sistema escravocrata, que se assentava na prática do favor, como já observou Roberto Schwarz no ensaio “As ideias fora do lugar” (SCHWARZ, 2000a). Politicamente, a atuação das ideias liberais se deu no processo de independência, sem ostentar o princípio de Liberdade e sem alterar as condições sociais do povo; economicamente, elas mascaravam as suas premissas de trabalho assalariado, ao mesmo tempo em que reclamavam o direito à propriedade. Enquanto o mundo europeu ratificava-se numa sociedade assentada no trabalho assalariado e nos direitos do Homem, aqui essas características, decodificadas pela habilidade do rentável mundo da escravidão, produziam uma comédia ideológica mais perversa. Forjavam-se, desse modo, as principais bases do complexo liberalismo de uma sociedade que se esforçava não apenas para consolidar o seu status de país livre, mas também para garantir os privilégios da classe dominante. Portanto, tinha-se um modelo que, em um primeiro momento, precisava de ajustes para expressar os anseios da elite brasileira, considerando que no Brasil não houve uma classe tão definida em seus propósitos como na Europa com a burguesia, que reivindicava a mesma hegemonia política que obtivera na economia. Em outras palavras, não houve o surgimento explícito de tensão entre classes, muito menos um novo público leitor, como havia ocorrido na Inglaterra, por exemplo. Assim, no caso da literatura, os ajustes iniciais se constituíram no projeto literário de construir uma identidade nacional. Mais tarde, as características do romance brasileiro seriam torcidas e retorcidas para se alinharem aos propósitos do romance moderno. Nessas condições, o romance romântico brasileiro se alimentou da descrição, em virtude do anseio de formar a imagem do país, seguindo a diretriz do Nacionalismo literário. Procedimento natural, se se considerar que é típico de uma literatura nascente Fielding; A vida de Arnaldo Zulig, de autor anônimo e o complemento da história da infeliz Clarissa Harlowe em 8 volumes, de Samuel Richardson. O que atesta a circulação dos escritos dos ‘pais’ do gênero entre os leitores cariocas” (ABREU, 2005, p. 18). 30 falar do seu próprio espaço e, fundamentalmente, sendo inerente ao gênero a descrição de lugares, paisagens, cenas; épocas, acontecimentos; personagens- padrões, tipos sociais; convenções, usos, costumes – foram abundantemente levantados, quer no tempo (pelo romance histórico, que serviu de guia), quer no espaço. Uma vasta soma de realidade observada, herdada, transmitida, que se elaborou e transfigurou graças ao processo normal de tratamento da realidade no romance; um ponto de vista, uma posição, uma doutrina (política, artística, moral) mediante a qual o autor opera sobre a realidade, selecionando e agrupando os seus vários aspectos segundo uma diretriz (CANDIDO, 2006c, p. 431). Desse modo, a centralização temática na expressão da “cor local”, realizada pelo romance romântico brasileiro, foi uma saída literária e um trunfo ideológico. Pois, em um texto apologético, elaborou-se uma representação da realidade em que as características sociais e naturais do país convergiram para o mesmo ponto de idealização, formando a sua imagem.6 Se, por um lado, isso se configurou em descompasso literário em relação ao modelo europeu, por outro, auxiliou a consolidar o descompasso ideológico. Criava-se, assim, uma realidade a partir do universo ficcional. Na perspectiva desses descompassos – literário e ideológico –, o romance romântico brasileiro tem o seu início com a obra O filho do pescador (1843), de Teixeira e Sousa. Contudo, A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, é a obra que vai ratificar o gênero na incipiente produção brasileira, uma vez que sua história cai nas graças do público leitor. Cabe lembrar que, antes mesmo dessas obras, já havia neste universo editorial algumas manifestações de romancistas brasileiros, que destoavam em suas características, principalmente, do autor de A Moreninha.7 Centradas em retratar os costumes do país, as produções românticas constituíram-se por descrições de lugares, entre outros interesses, como comenta Antonio Candido: 6 Antonio Candido expõe que, dentro do conceito de espírito de nacionalidade fomentado pela escola romântica, a literatura ajudou, ou melhor, tentou criar a imagem de povo brasileiro, corroborando para o estatuto de povo independente (CANDIDO, 2006c). 7 De acordo com Antônio Soares Amora, “o público brasileiro [tinha] suficiente conhecimento, para, de pronto, sentir que, do gênero, nada tinha A Moreninha”. Isso porque, na visão do crítico, os “romances nacionais, ensaiados por Justiniano José da Rocha, Pereira da Silva, Joaquim Norberto”, não dialogavam com a primeira obra de Joaquim Manuel de Macedo; fato que leva Amora a comentar que “talvez fosse mesmo atrevimento rotular, como tal, um livrinho [A Moreninha] tão diferente em tudo, e até certo ponto inqualificável, dado o que tinha de desconcertante, no espírito e nos ingredientes” (AMORA apud SERRA, 1994, p. 328). 31 Nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu basicamente, em escrever sobre coisas locais; no romance, a consequência imediata e salutar foi a descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil. É o vinculo que une as Memórias de um Sargento de Milícias ao Guarani e a Inocência, e significa, por vezes, menos o impulso espontâneo de descrever a nossa realidade, do que a intenção programática, a resolução patriótica de fazê-lo (CANDIDO, 2006c, p. 431). Essas descrições serviram para forjar uma imagem do país dentro da perspectiva do projeto romântico. Divulgou-se, dessa maneira, o país para os seus com cores extremamente vivas, emanando os elementos locais, postergando-se uma tradução literária dos aspectos organizacionais de sua estrutura social. No ensaio “Instinto de nacionalidade” (1873), Machado de Assis já argumentava que “aqui o romance (...) busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações” (MACHADO DE ASSIS, 2004, p. 804). Mais adiante, o bruxo do Cosme Velho prossegue na análise dizendo que o romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante, muita realidade bela (2004, p. 805). Em virtude dessa exacerbação da cor local, Machado chamava a atenção ao fato de a “análise de paixões e caracteres [serem] muito menos comuns os exemplos que [podiam] satisfazer à crítica”. Muito consciente da objetividade da produção literária de seu país, Machado confirma seu ponto de vista, dizendo que aquela “casta de obras, conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas” (2004, p. 805). Tal comentário evidencia o lado negativo do projeto romântico. Nessas questões, Machado parece retomar seu próprio pensamento desenvolvido já em 1858 no texto crítico “O passado, o presente e o futuro da literatura”, em que ele, comentando sobre a existência do romance e do teatro na literatura brasileira, enfatiza o papel da literatura e do literato em uma sociedade: No estado atual das cousas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual, e o literato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende (2004, p. 787-788). 32 Essa reflexão expressa certa profissão de fé, no que diz respeito à postura do literato perante os acontecimentos sociais. O jovem crítico já tinha uma visão ímpar do cenário literário brasileiro, demonstrando, na crítica, alguns traços dos elementos que iria desenvolver nos seus romances ao longo de sua carreira. Tal questão parecia perturbar Machado a ponto de ele retomá-la, no texto de 1873, em um tom mais contundente, apresentando, de fato, o que se deveria ser cobrado do escritor diante de seu objetivo na representação da realidade: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (2004, p. 804). O sentimento íntimo a que se refere Machado, que certamente é efabulado em seus romances ao longo de seu projeto literário, pode ser entendido na tentativa do próprio romancista em retratar a sociedade brasileira, por meio do estudo do indivíduo. Entretanto, a materialização da cor local era imprescindível nas produções romanescas das vertentes indianista, regionalista e urbana. O presente estudo se centrará nesta última vertente por compreender que, nela, a realidade do universo ficcional é mais representativa na consubstanciação dos modismos europeus e dos costumes da elite brasileira, aspecto gerador da tradição da prosa romântica no Brasil. Também, por entender que é a vertente que mais se aproxima do romance europeu no que diz respeito à representação da realidade. Em outras palavras, a verdade do mundo ficcional desta vertente constrói uma possível representação da realidade brasileira. A configuração do espaço urbano no romance romântico brasileiro obteve mais apreciadores do que as demais vertentes, em virtude de traduzir literariamente a noção de tempo e de espaço em que o próprio público leitor estava inserido. Composta por uma linguagem próxima da falada nas ruas do Império, fato que também auxiliava a identificação entre público e obra, essa produção romanesca serviu de elemento fundamental não só para consolidar os costumes de um “público de classe média” como também para criá-los, já que ambos estavam em formação (SERRA, 1994, p. 30). Espécie de homologia entre forma literária e processo social brasileiro, esta vertente acabou preocupando-se em descrever os costumes, em formular uma narrativa com certo tom de realismo, enfim, em estabelecer uma representação da realidade daquela 33 sociedade. Representação que demonstrava a genuína equação do anseio de um país que se pretendia livre, na qual a sua autenticidade de o ser demarca exatamente as características do outro. Mas é exatamente da dialética rarefeita desse imperativo axiomático que se forjou uma tradição literária ancorada, conforme Antonio Candido, na “orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar" (CANDIDO, 2006c, p. 436). 34 Capítulo II 35 1. A Representação da Realidade em Três Romances Urbanos do Romantismo Brasileiro Os três romances urbanos do Romantismo brasileiro – A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, Memórias de um Sargento de Milícias (1853-4), de Manuel Antônio de Almeida, e Lucíola (1862), de José de Alencar – dos quais se farão comentários, configuram de certo modo os costumes e valores da sociedade daquela época. Seus enredos consubstanciam imaginação com certos traços de realismo, idealizando por vezes as circunstâncias cotidianas. Assim, público e obra, na sua maioria, se correspondem em um mesmo diapasão de anseios e comportamentos. Desse modo, o intuito da análise dos romances é compreender em que medida as bases da tradição dessa vertente podem compor uma representação da realidade brasileira daquele momento. A escolha desses romances pauta-se em dois critérios: a) por serem obras representativas da produção da prosa literária da época em questão; e b) por eles terem sido publicados antes de Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, objeto de estudo desta pesquisa. A Moreninha (1844) Em A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, a maior preocupação do narrador é relatar a história de amor entre Augusto e D. Carolina, a Moreninha – os protagonistas do romance. Fruto da imaginação, a construção desse amor se sustenta em um pano de fundo formado pelos costumes da sociedade fluminense, que, nas palavras de Antônio Soares Amora, permitiu ao escritor tratar, ainda que superficialmente, de algumas mazelas da época, como [o] ridículo de uma postiça sentimentalidade amorosa ‘romântica’, aprendida pelos jovens nos romances europeus e considerada por eles a última moda; (...) Com igual espírito crítico viu o autor a facúndia estéril dos deputados, o pernosticismo e a linguagem cabalística dos médicos; as modas da Medicina (as sangrias, a homeopatia); a mania das senhoras em matéria de medicina caseira ou mezinheira; o perigo dos escravinhos de estimação, ‘alfinins da casa’, na verdade demônios familiares, pouco depois estudados por Alencar (...); a futilidade, a leviandade e as tiranias das moças casadoiras; a cábula dos estudantes; as solicitações mundanas da vida na Corte, em oposição à vida pacata e moralmente sã da província (AMORA apud SERRA, 1994, p. 329). 36 A descrição desses costumes, além de fundamentar o espaço e o tempo em que a narrativa se desenvolve – o seu caráter realista –, serviu para estabelecer a identificação com o público leitor. Funde-se, portanto, no plano da imaginação, a elaboração da sociedade fluminense do Segundo Reinado. Justamente a esse fator Wilson Martins credita a “imensa popularidade da Moreninha”, pois, segundo o crítico, o romancista, por meio de uma “singela fidelidade”, conseguiu reproduzir, “no plano da imaginação, a sociedade que todos conheciam no plano da realidade” (MARTINS apud SERRA, 1994, p. 332). Embora a fusão dessas duas instâncias – imaginação e costumes – tenha construído a aproximação entre obra e público leitor, ela também criou certo caráter de inverossimilhança. Isto é, a idealização do amor espraiou-se para a representação da realidade. Muito embora possa reforçar o grau de sentimentalidade característico da prosa romântica, a razão do amor dos protagonistas está centrada em uma força argumentativa infundada, que se traduz na promessa de amor eterno feita por eles na infância. Augusto recorre à promessa por causa de seus insucessos amorosos na juventude, aliás, fato que também serve de justificativa para a sua inconstância. Se ele obtivesse outra sorte, as suas juras de amor eterno à Moreninha não teriam vingado. Assim, promessa e inconstância vão misturando-se conforme o desenrolar da narrativa. Daí a fixação do narrador por Augusto, já que Carolina não se lembra de tal juramento com a mesma intensidade que seu amado. Os costumes representados na obra dão conta de ‘reproduzir’ algumas das práticas de uma parte da sociedade – a elite. Na periferia dos acontecimentos, a visão sobre a sociedade fluminense não vai além da exposição de uma toalete afrancesada, de rituais de etiqueta, de jogos amorosos, de hipocrisia, que costura todas as relações sociais, de incorporação de galicismos nas falas dos personagens, entre outras manias que ganham cores reluzentes nos saraus, mas que não intervêm no enredo e tampouco explica as atitudes dos personagens. Com efeito, sua recorrência na narrativa é um recurso romanesco para ancorar a imaginativa história de amor em um processo de realismo, não para introduzir uma reflexão sobre os elementos que o constituem. Associa-se, assim, à inverossimilhança argumentativa do amor eterno. Tentando justificar a incongruência resultante da idealização dos dois elementos, Wilson Martins comenta que tal dissonância se trata de uma “evasão estética” importante para expressar os anseios do próprio público leitor, ou nas próprias palavras do crítico: 37 Assim se explica que a inverossimilhança não fosse sentida como defeito, mas como um dos recursos da arte romanesca (...); a inverossimilhança era, por paradoxo, o valor romanesco por excelência, a chave da evasão estética para um público que balbuciava realmente as suas primeiras letras na prosa de ficção (MARTINS apud SERRA, 1994, p. 332). Desse modo, a representação da realidade instaurada em A Moreninha prestava- se apenas à correspondência aos anseios de um público que queria ver seus costumes e valores na efabulação do romance, não a complexidade deles, muito menos as suas contradições. É neste quesito que reside o talento de Macedo, já que ele “respondia como ninguém às expectativas de leitura da época, que procurava na literatura de ficção, honrando-lhe o nome, uma forma de evasão, e não o processo do homem” (MARTINS apud SERRA, 1994, p. 333). Mas é também deste achado literário que advém o descompasso com o modelo europeu, ao mesmo tempo em que se configura o seu alinhamento ao descompasso ideológico. Esmiuçando a estrutura do texto, observa-se a pouca intervenção do narrador no andamento da narrativa. Indícios de onisciência aqui, trocados por observações ali, mas sempre com o mesmo objetivo: colocar o leitor em uma posição privilegiada em relação àquilo que os personagens estão falando ou fazendo. Desse modo, as suas investidas se resumem em preparar as cenas para os diálogos. Neles, os costumes e valores aparecem, demonstrando a futilidade e os caprichos daquela sociedade, ainda que eles não tenham sido elaborados como nervura do enredo. Neles, também surge a inconstância de Augusto, que é pouco explorada pelo narrador, porém serve de chave de leitura: dos costumes e dos valores da sociedade nascem os insucessos amorosos de Augusto, levando-o a dar credibilidade à promessa de amor eterno, pelo fato de ter sido feita por duas crianças inocentes e, portanto, simbolizar certa pureza. Entretanto, a sua insegurança pode ter outras causas. Ao longo da narrativa, o narrador centraliza-se, predominantemente, nos diálogos de que o protagonista faz parte, uma vez que seu comportamento é constituído pela inconstância. Diálogo fundamental se dá no capítulo XIX (“Entremos nos corações”), no qual Leopoldo conversa com Augusto, e este deixa escapar a sua insegurança em relação ao que sente por Moreninha. Tal passagem coloca em questão todo o discurso do herói; isto é, desmonta a sua teoria de amar a beleza, faz repensar a origem de sua incerteza, evidencia o seu temperamento febril e intempestivo. Mesmo porque a história dos seus fracassos amorosos, anteriormente relatada por ele, é completamente questionável, visto que o seu objetivo é legitimar as suas atitudes e os 38 seus caprichos e como se quisesse dizer que seu caráter, suas ações são resultados do convívio em uma sociedade que também estava em formação. Deste capítulo em diante, as duas lendas (recurso do passado histórico) que povoam a narrativa se plasmam para encaminhar a felicidade dos protagonistas. Quanto à Moreninha, cria-se uma imagem de menina travessa, caprichosa, atrevida, inteligente e, sobretudo, muito segura, conquistando tudo que almeja. Talvez tal comportamento seja resultado da leitura do livro da célebre feminista Mary Wollstonecraft (SERRA, 1994, p. 24). O seu modo de ser é completamente diferente de seu amado, que passa a imagem de confuso e fraco, mesmo que o seu discurso sugira o contrário. Em A Moreninha parece começar uma tradição de mulheres fortes e homens frágeis que se verá ao longo da produção romanesca do século XIX. Vide, por exemplo, o contraste de seu título com a construção de seu enredo, assentado no comportamento nada comum de Augusto. Nesse sentido, o referido romance, além de “ter seu pequeno valor literário”, em virtude de seu escritor esforçar-se para “transpor a um gênero novo entre nós os tipos, as cenas, a vida de uma sociedade em fase de estabilização” por meio de uma configuração literária que desse conta de reunir a “maneira de ser e de falar das pessoas que o iriam ler”, também o tem por retratar, ainda que pouco analiticamente, a inconstância de Augusto, que possibilita vislumbrar as causas e as consequências da interação social em uma sociedade permeada pela veleidade (CANDIDO, 2006c, p. 454). Talvez o senão da obra esteja em não haver um aprofundamento psicológico de seus personagens, que poderia resultar, em maior grau, numa relação explicita entre as atitudes e vontades dos personagens com os costumes, os valores e os modismos europeus enraizados na sociedade fluminense do Segundo Reinado, configurando de certa maneira a estrutura socioeconômica dessa sociedade; ou seja, a sua representação em termos literários. Memórias de um Sargento de Milícias (1852-1853) Nas Memórias de um Sargento de Milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida, a representação da realidade expressa os costumes e os valores da classe desprestigiada por meio de um realismo jocoso-sério. Embora o seu universo ficcional esteja fundamentado no Rio de Janeiro da época do Rei Dom João VI, entre 1808 e 1821, a obra estabelece uma relação alegórica com o Brasil do Segundo Reinado 39 (JAROUCHE, 2000, p. 33). Destoando das convenções extremamente românticas de seus contemporâneos, o romance de Manuel Antônio tenta consubstanciar as comemorações populares da época à história de seus personagens, principalmente, dos dois Leonardos. Por isso, seu enredo ora parece ser uma espécie de documentário, isto é, um informe pitoresco da ordem do dia (a primeira parte), ora este mesmo informe torna- se parte constitutiva da ação, dando-lhe um caráter literário (CANDIDO, 2004a, p. 29). Essa alternância pode ser explicada pela ambição de seu narrador de querer traduzir a efervescência da vida diária em assunto romanesco. Tanto é assim que sua maior característica reside na oscilação permanente entre fato social, seu caráter de crônica, e efabulação artística, sua essência literária, na qual se constitui toda a força do romance. Publicado, inicialmente, na seção humorística intitulada “Pacotilha”, do jornal Correio Mercantil entre 1852 e 1853, o livro pode ter assumido um aspecto político. Primeiramente, pelo fato de sua composição ter ocorrido justamente no período de eleições, e por ter sido veiculado por um órgão que era declaradamente a favor dos liberais e, portanto, rival dos conservadores, que neste momento estavam no poder. E, sobretudo, porque “tudo que se publicava na ‘Pacotilha’ era visto como estratégia política” (JAROUCHE, 2000, p. 33). Outro ponto relevante a esse respeito é que nesta mesma seção havia uma subseção chamada “Escritório da Pacotilha”, na qual se “divulgavam ‘notícias’ sobre fatos ou situações” do país que “o jornal considerava condenáveis” (JAROUCHE, 2000, p. 20). Segundo Mamede Mustafa Jarouche, quem ler o romance com atenção “notará que os problemas são fundamentalmente os mesmos” (2000, p. 40). Assim, o jornal coadunava dois gêneros textuais para correlacionar o atraso do passado com o do presente, de maneira humorística, com as Memórias, e, virulentamente, com a subseção “Escritório”. Por essa perspectiva, as Memórias serviriam de tribuna política para criticar o governo, os conservadores, já que estes viviam “alardeando que o Brasil progredia a olhos vistos e que a situação colonial era um passado distante” (JAROUCHE, 2000, p. 33). Não por acaso, o narrador das Memórias, a todo o momento, faz alusão ao presente da escrita para provar exatamente o contrário. Ou ainda, a obra teria como objetivo provocar o riso, utilizando como referencial o seu próprio presente para instrumentalizar “fictícias memórias do passado colonial” (JAROUCHE, 2000, p. 33). A despeito de ter sido ou não instrumento dessa disputa política, a obra cria um cenário condizente com a sua época à medida que vai transformando, esteticamente, os fatos sociais com extrema 40 naturalidade. Neste sentido, o romance apresenta uma elaboração da realidade muito diversa da que foi configurada em A Moreninha. Vale lembrar que, no plano real, essa querela partidária não produzia discussões profundas e nem tampouco uma visão reformadora e analítica do atraso do país, uma vez que nada se assemelhava “mais a um ‘saquarema’ [conservador] do que um ‘luzia’ [liberal] no poder” (CAVALCANTI apud FAUSTO, 2002, p. 97); e, sobretudo, porque esses dois partidos eram “simples agregados de clãs organizados para a exploração comum das vantagens do Poder” (VIANA apud JAROUCHE, 2000, p. 25). No que diz respeito à sua composição, o romance é sempre lembrado pelo seu aspecto de “documentação da língua falada na época”, especialmente, em “seus diálogos”, em que não há “nenhum amaneiramento, impondo-se por um coloquial filtrado e pitoresco”, ao contrário do estilo de escrita de seus contemporâneos (ZAGURY, 1985, p. 6). Tal observação a “variações da linguagem falada parece ser extremo, pois chega a caracterizar um personagem” – Vidinha, “principalmente por sua maneira de falar” (ZAGURY, 1985, p. 7). Além disso, esse recurso linguístico influenciou o “próprio estilo da narração”, que é “penetrado de elementos coloquiais que parecem funcionar sobretudo como carga de comicidade” (ZAGURY, 1985, p. 7). Com efeito, isso facilitou a sua aceitação junto ao público leitor, constituindo-se como um elemento de identificação, como também o aproximou da tradição dos textos anedóticos e populares de seu tempo. Aliás, essa linguagem coloquial, somada às descrições dos fatos sociais, contribuiu para fomentar uma maior verossimilhança à obra. Na tentativa de abarcar as comemorações populares, a fala, o jeito das pessoas, os costumes, os valores, enfim, a cor local, o enredo das Memórias se constitui na fluidez dos acontecimentos e das peripécias, engendrando um painel que muito se aproxima da vida da sociedade carioca da primeira metade do século XIX. Trabalhado artisticamente, “esse painel”, rara vez, “é puramente descritivo”, em virtude das ininterruptas ações envolvendo Leonardo-Pataca e Leonardo filho, o herói da história (JAROUCHE, 2000, p. 52). Subordinando a descrição à narração, o narrador instável intervém no narrado, comentando e redirecionando os fatos e as cenas. Esse estilo do narrador incorpora às Memórias diversas formas literárias, que podem representar um “estrato universalizador”, no qual “fermentam arquetípicos válidos para a imaginação de um amplo ciclo de cultura”; entretanto, há outro “estrato universalizador de cunho 41 mais restrito”, que pode representar o universo brasileiro: a dialética da ordem e da desordem (CANDIDO, 2004a, p. 31). Esta faz convergir para a nervura da estrutura narrativa a duplicidade do bem e do mal, da onisciência e da não onisciência do próprio narrador, do fato social e do assunto literário, das atitudes dignas de louvor e de outras dignas de reprovação dos personagens, do amor e do prazer, da realidade e da sina; enfim, uma composição literária fundada no incessante movimento pendular do lícito e do ilícito. Em outras palavras, como um princípio formal, essa dialética não só demonstra o movimento fluido do comportamento e das atitudes dos personagens, perpassando os dois hemisférios complementares da ordem e da desordem, como também traduz as “circunstâncias de caráter social” na economia interna da obra, plasmando nesse mesmo movimento o universo da realidade com o universo fictício. Ou nas próprias palavras de Antonio Candido: Nas Memórias, o segundo estrato é constituído pela dialética da ordem e da desordem, que manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro, do qual forma o sistema de referência. O seu caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existência (2004a, p. 31). Assim, a força do fato social, na obra, se constrói quando este é inserido na ação, contribuindo para ancorar o mundo fictício em um tempo e um espaço particularizados, dando-lhe um caráter verossímil. Nesse contexto, as andanças e as aventuras de Leonardo filho são atraídas pelo campo magnético formado pelo “hemisfério positivo da ordem” e pelo “hemisfério negativo da desordem”, conduzindo-o desde o nascimento até o seu casamento com a sua amada, Luisinha (CANDIDO, 2004a, p. 32). Desse modo, o narrador conta uma história também de maneira instável, demonstrando certa onisciência para depois refutá-la quando conveniente, mesclando peripécia com descrição pitoresca, articulando realidade com sina e, principalmente, oscilando entre Leonardo-Pataca e Leonardo filho. Sendo assim, o narrador prepara a sua multiplicidade de interesses desde o primeiro capítulo. Com seu estilo de justapor as mais variadas cenas da efervescência diária para criar o ambiente propício para suas ironias, sua crítica, seu humor, em resumo, para desenvolver o seu relato sério permeado de jocosidade, ele não se furta a fazer comentários moralistas, de censurar certos costumes da época. Quando ele remonta a história de Leonardo-Pataca e seu encontro amoroso com a Maria da Hortaliça em um navio com destino ao Brasil, ele entrelaça a zombaria 42 do modo de sedução à portuguesa – uma “pisadela e um beliscão” –, configurando-se em uma espécie de desconstrução da idealização amorosa romântica, com a maneira pela qual se deu a concepção de seu herói marcadamente por uma herança maldita, tamanha é a acidez de seu humor e, por conseguinte, de sua veia crítica. Com as suas intervenções no narrado, dialogando com o leitor e engendrando relações de comparação entre o Brasil colônia e o Brasil do Segundo Reinado, o narrador faz uma crítica sarcástica do protagonista, por se tratar de louvor enviesado. Isto é, sendo Leonardinho filho de portugueses, que corrompem os costumes e representam o atraso do país, ele não poderia ser mais do que é. Entretanto, o herói parece levar certa vantagem em relação ao pai por ter nascido em terra brasileira, fato que lhe deu mais do que prerrogativas: constituiu-lhe um jeito peculiar de encarar a sua sina e, fundamentalmente, as adversidades de sua classe e de seu nascimento. Uma espécie de condição de existência para se sobreviver naquela sociedade. Atrelado a isso, o seu modo de ser, vivendo sempre em apuros, também serve para expurgar atitudes reprováveis de alguns personagens, como é o caso de seu padrinho. Relação que se explica justamente nesse movimento pendular da ordem e da desordem. Desse modo, o narrador formula as memórias do memorando como se ele fosse um elemento crucial dessa sociedade. É sem refletir sobre isso que Leonardo se arruma na vida a expensas de sua vontade e de seu gosto pela vadiagem, fazendo as coisas a seu bel-prazer. Tanto é assim que seu pai chama a atenção da comadre para as veleidades do menino que poderiam tornar-se piores se eles lhe colocassem na cabeça “fumaça de rico” (ALMEIDA, 1985, p. 85). Nessas idas e vindas do memorando, o narrador escancara as relações de favor que permeavam toda a interação social desde o tempo da colônia até o do Segundo Reinado, como fica claro em seu comentário: “já naquele tempo (e dizem que é defeito do nosso) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social” (ALMEIDA, 1985, 126). Portanto, é na configuração dos expedientes diários, das idas e vindas dos dois Leonardos, principalmente do herói, com a fluidez do narrador em mudar de assunto, correlacionando os fatos aos personagens, que se cria não só uma falta de linearidade como também uma exposição naturalizada de tudo na narrativa. A partir disso, pode-se dizer que a dialética da ordem e da desordem das Memórias está imbricada à funcionalidade de sua própria estrutura composicional, tendo como elemento central a relação análoga entre narrador e protagonista (Leonardo filho), a qual 43 dá conta de sintetizar o universo ficcional com o mundo real daquela época, ainda que não fale, de maneira contundente, da elite e dos escravos. Lucíola (1862) Em Lucíola (1862), de José de Alencar, a representação da realidade se dá pelo relato da trajetória de vida da cortesã mais linda e desejada do Império – Lúcia. A partir de suas relações amorosas, são estabelecidos os costumes e valores da sociedade carioca do Segundo Reinado. Tal relato se constrói em uma duplicidade de imagens de Paulo, o narrador-personagem, e de Lúcia, a protagonista do romance. Se Paulo recobre-se na função do narrador-protagonista rogando-se provinciano, ingênuo a respeito dos costumes da Corte, mas, ao mesmo tempo, homem sequioso por uma vida sexual e status social, Lúcia é apresentada, de um lado, como a mulher pura, delicada, cândida, com trejeitos de senhora, e, do outro, como a mulher prostituída. Nessa duplicidade, há atração e repulsão entre eles. Paulo se encanta pela beleza e candura de Lúcia, mas seus princípios morais associados à reputação da protagonista perante a opinião pública o fazem dar vazão apenas ao seu desejo sexual, enquanto que Lúcia se apaixona por Paulo e busca a regeneração. As atitudes de Paulo são dissimuladas, as de Lúcia conflitantes, complexas, no entanto, com certa autenticidade. Nesse cenário, a cortesã não só representa a heroína romântica, configurada no seu caráter e na docilidade de sua alma, como também a mulher que, por meio da prostituição, busca a sua sobrevivência e manutenção de seu luxo em uma sociedade indiferente ao trabalho assalariado. Verso e reverso da mesma moeda, dissimulação de Paulo e exaltação e punição de Lúcia representam uma realidade ambígua da sociedade carioca dessa época. A história do romance se constitui pela explicação de Paulo a respeito de sua indulgência para com as cortesãs a uma distinta senhora, GM, pseudônimo de Alencar (DE MARCO, 1986, p. 32). Tal esclarecimento se daria em uma conversa entre os dois, não fosse a presença da neta de GM. Impossibilitado de realizá-la no primeiro momento, Paulo resolve esclarecer as suas considerações sobre as cortesãs por meio da escrita, enviando-lhe cartas. Estas foram reunidas por GM, dando origem à obra. Tem- se, desse modo, uma narrativa que oscila entre os fatos da vida de Lúcia, os quais são elaborados pela reminiscência de Paulo, e a interlocução entre este e GM, permeada pela reflexão do narrador-personagem que exalta as qualidades da cortesã. 44 Sob o signo da impressão, Paulo conta o período de sua chegada à Corte, o seu primeiro encontro com Lúcia na “Rua das Mangueiras” e suas relações amorosas com a cortesã. Jovem de 20 anos, o personagem Paulo se encanta com a capital do Império e, principalmente, por Lúcia, quando a vê pela primeira vez: “No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos negros brilhava de viço e juventude, não pude conter a admiração” (ALENCAR, 1992, p. 16). Essa imagem reverbera no seu imaginário, mesmo quando ele relata as cenas de orgia em que Lúcia é a protagonista; porque, para Paulo, deveria haver naquele rosto mimoso uma alma pura. E assim a figura de Lúcia vai formando-se para a Senhora GM e, evidentemente, para o leitor através desse contraste. É deste que Paulo tenta livrar-se ao longo da narrativa: “É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que eu encontrava na Glória. Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi” (ALENCAR, 1992, p. 17). Com uma visão moralista, ele narra a história de Lúcia a fim de escapar da vexatória paixão que sente por ela. Lúcia, por sua vez, sente e reconhece os motivos da dubiedade de Paulo e decide regenerar-se, alimentando pouquíssimas esperanças de resgatar sua dignidade. A força do moralismo de Paulo é tanta que há um travo amargo na sua narração pelo fato de saber que Lúcia não é a senhora imaginada na festa da Glória: – “Quem é esta senhora? Perguntei a Sá”. “(...) – Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecer?...” (ALENCAR, 1992, p. 15). Dessa maneira, a figura de Lúcia vai ganhando contornos de uma mulher prostituída, conforme a sua imagem de senhora vai exaurindo-se nas retinas de Paulo. O enredo se centra nesse processo até que a bacante resolve contar o seu drama para Paulo e para os leitores. Após expor a vida promíscua de Lúcia, que constitui a maior parte da obra, o narrador-personagem ouve a cortesã contar o que a levou a prostituir-se. Lúcia explica a trajetória de sua vida centrada na dor de perder a juventude e a família; quando enveredou pelo caminho da prostituição na tentativa de salvar os seus do estado de miséria causada pela epidemia da febre amarela. Essa dor estava estampada naquela Lúcia da festa da Glória: “Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição” (ALENCAR, 1992, p. 14). Nessa confissão, cunha-se a outra face 45 de Lúcia, formando por completo o perfil de mulher muito corajosa, forte e, sobretudo, digna, mulher que enfrentou as adversidades sociais de sua época. No livro O Império da Cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar (1986), Valéria De Marco comenta que a partir dos textos críticos, das peças teatrais de Alencar e de sua procura por uma linguagem adequada, é possível perceber uma estética para o romance e um projeto de literatura brasileira. Analisando, especificamente, um texto crítico que acompanha a peça As asas de um Anjo (1858), De Marco observa as bases dessa estética: Assim, a partir daquele palco, com acentuados traços de tribuna e de ‘escola’, visto como meio adequado para representar, denunciar e corrigir os costumes daquela corte, Alencar passa a procurar uma estética para o romance, que também poderia representar, denunciar e moralizar os novos e velozes hábitos da grande cidade. Desse texto, ela sai com, pelo menos, duas chaves: estruturar a ação do romance como movimento de apresentação e punição do que julga vício na realidade social e elaborar a linguagem de maneira a construí-la como um véu de decência (DE MARCO, 1986, p. 31). Em Lucíola, a linguagem cria, de fato, o véu da decência, a alma de Lúcia; enquanto a estrutura do romance apresenta e pune a prostituição e, por conseguinte, os vícios da sociedade daquela época. De Marco ainda salienta que a obra retoma a temática da prostituta regenerada trabalhada na peça censurada de Alencar – As asas de um Anjo (1858) – que, segundo a crítica, foi uma forma de o romancista “retrucar o discurso das autoridades, discutir o tema da prostituta regenerada e debater as relações entre a literatura estrangeira e a nacional” (DE MARCO, 1986, p. 149). De maneira muito consciente, Alencar acreditava que a arte brasileira deveria expressar a consubstanciação entre as suas especificidades e a modernidade da cultura europeia; e neste caso, De Marco sugere que, com Lucíola, o romancista colocava à sombra do cânon literário da época – o tema da prostituta regenerada – que, [...], ganhara amplo espaço e atenção especial nas obras do romantismo; tema que em terras de além-mar configurava-se como um ângulo privilegiado de abordagem e interpretação da sociedade burguesa que transformava o dinheiro em regente exclusivo de sentimentos e projetos do homem (DE MARCO, 1986, p. 148). Nesse sentido, o escritor, além de estabelecer um diálogo com a prosa europeia, como, por exemplo, A Dama das Camélias (1848), tenta incorporar à prosa nacional, por meio dessa temática, a reflexão sobre os vícios da sociedade. Com efeito, há aí um caráter verossímil, dada a correspondência com a realidade. Assim como em As asas de 46 um Anjo, que tentava escancarar tal temática, tendo a Corte como cenário e, portanto, a sociedade brasileira como viciosa e corrompida, em Lucíola Alencar encaminha “a discussão para a necessidade de encontrar caminhos para que a arte pudesse representar a realidade social do cotidiano daquele Rio de Janeiro” (DE MARCO, 1986, p. 31). Com esse objetivo, o romance se desenvolve em três movimentos: a caracterização da vida de Lúcia para Paulo, as relações comerciais existentes no mundo da prostituição, e, catalisando os dois anteriores, a confissão da cortesã, revelando não só o seu amor e seu passado, como também seu verdadeiro nome – Maria da Glória –, outros hábitos, outros sentimentos, outras vestimentas, outra casa e novos projetos (DE MARCO, 1986, p. 159-160). Desse movimento, emerge o perfil de Lúcia e a dubiedade de Paulo. Em outras palavras, se a temática retrata uma prática social, distinguindo o caráter ímpar de Lúcia, o perfil de mulher corajosa e forte, a estrutura do romance pode caracterizar Paulo como um perfil de narrador que d