CARLA LISBOA PORTO A MULHER MALANDRA E A POPULAR NAS PERCEPÇÕES DE ISMAEL SILVA E DO JORNAL CORREIO DA MANHÃ (1930 – 1935) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Prof.ª Dr.ª Zélia Lopes da Silva ASSIS 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Porto, Carla Lisboa P853m A Mulher malandra e a popular nas percepções de Ismael Silva e do jornal Correio da Manhã (1930 – 1935)/ Carla Lisboa Porto. Assis, 2008. 135 f. : il.. Contém um CD ROM. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Música popular – Brasil. 2. Silva, Ismael, 1905-1978. 3. Samba – História. 4. Mulheres. I. Título. CDD 780.42 DADOS CURRÍCULARES Carla Lisboa Porto Nascimento: 08 de janeiro de 1975 – São Paulo (SP) Filiação: Antônio de Oliveira Porto Guilhermina Lisboa Porto 1998/2002 – Curso de Graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero 2005-2008 – Curso de Pós Graduação em História, nível de mestrado na Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Assis. Área de concentração – História e Sociedade Linha de Pesquisa – Identidades Culturais, Etnicidades e Migrações Dedico este trabalho àquelas que, mais do que malandras, foram e ainda são vítimas e sobreviventes do preconceito, da intolerância, da violência física e verbal e da miséria. Mães de santo, mães solteiras, mulheres “da orgia”, mulheres de vida (nada) fácil, vítimas do tráfico, vendedoras, diaristas, costureiras, cozinheiras, doceiras, passistas, manicuras, passadeiras, babás, líderes comunitárias, funkeiras das periferias e morros cariocas, benzedeiras, parteiras e donas de casa me mostraram que a tal malandragem não é fraqueza ou desvio de caráter. É um instrumento de sobrevivência. AGRADECIMENTOS Para me acompanhar nessa jornada, tive a sorte e o privilégio de conviver com pessoas que me motivaram quando o cansaço insistia em aparecer, pessoas que, como minha querida orientadora, professora Zélia, me apoiaram, me incentivaram, inspiraram. Com sua precisão e atenção aos detalhes, sempre chamou minha atenção para o que precisava ser feito, estudado, escrito e principalmente, compreendido. Com ela percebi que não é preciso “pedir licença para existir”, é só se dedicar verdadeiramente ao trabalho que as coisas acontecem. Agradeço aos novos amigos da pós-graduação, que além de me atenderem com muito carinho, sempre tiveram paciência para ouvir minhas queixas e dúvidas, darem sugestões e me acompanharem para um chopp quando as idéias não fluíam. Agradeço também às amigas queridas de outros carnavais, Juliana, Giseli e Gabriela, que souberam compreender minha ausência e, mesmo sem entender muito do que se passa durante a elaboração de uma dissertação de mestrado, sempre me apoiaram muito. À minha mãe, por ter, ainda que com muitas dificuldades, me introduzido ao universo dos livros e me fez perceber a importância e o poder da música, seja popular ou erudita. Agradeço também à equipe do IEB-USP e da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e, no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional, pela atenção e gentileza com que me receberam e atenderam, e também à equipe da Discoteca da Rádio Unesp, principalmente João Flávio, que teve muita paciência e boa vontade para localizar e gravar os fonogramas de Ismael Silva disponíveis no acervo. Não posso deixar de agradecer à equipe do CEDAP, que, apesar de todas as dificuldades, foi extremamente atenciosa comigo. Sem essa preciosa ajuda, seria impossível concluir o trabalho a contento e a tempo. À equipe do Centro de Documentação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro e da Folha de S. Paulo, em São Paulo, também devo “muitos obrigados”. Não poderia deixar de agradecer à Talita Hayata, estudante de Design da UNESP-Bauru que, com a presteza e rapidez de um ninja, conseguiu fazer com que o mapa sobre os locais de sociabilidade ficasse legível, bonito e não ficasse como uma colcha de retalhos, como ele era a princípio. Agradeço também a CAPES pela bolsa de estudos, sem a qual, esta pesquisa em muito seria prejudicada. Agradeço com reverência aos que me desdenharam, subestimaram a mim e a meu objeto de pesquisa: eles me mostraram que o caminho é árduo, mas o esforço e o empenho sempre trazem bons resultados. Felizmente, tudo tem suas compensações. Muito, mais muito obrigada pelo apoio incondicional de João, mais do que marido, um parceiro corajoso e leal, que sempre acreditou no meu potencial quando, muitas vezes, tive dúvidas sobre o caminho a seguir. Muito além das alegrias e das tristezas, da saúde e da doença, ele me ajudou nas pesquisas, viagens a trabalho, apoiando, incentivando sempre, pensando numa maneira de me ajudar a melhorar este trabalho. Agradeço, principalmente, por me lembrar que há tempo para tudo e que, além da dedicação, duas coisas são imprescindíveis: paciência e persistência. Meu especial agradecimento aos grandes inspiradores, além do próprio Ismael Silva: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Marisa Monte, Velha Guarda da Portela e ainda, Thereza Cristina e o Grupo Semente, sempre um alento e uma grande inspiração (além de serem portelenses como eu). E por fim, minha gratidão e carinho por lugares que me inspiraram e me alimentaram, não só o corpo, mas, principalmente, o espírito: o Bar Amarelinho pelo filé com fritas e o Café Colombo pelo chorinho no final de tarde, o chopp gelado e seu clima de “volta ao passado”. A benção, Ciata e tias baianas! A benção, meu São Jorge, protetor dos sambistas! A benção, Ismael Silva! Com eles aprendi que, para viver bem, é preciso muita ginga. Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar. Paulinho da Viola. “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando para frente”. Soren Kierkegaard “Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado.” Paulinho da Viola. - viii - RESUMO Esta dissertação apresenta os elementos de representação de personagens femininos nos sambas de Ismael Silva, um dos compositores mais importantes da década de 1930. Em seus sambas, a malandragem, a liberdade e, sobretudo, as mulheres são temas recorrentes. As mulheres particularmente, sempre aparecem como a causa de seus problemas, ou como alguém que não é digna de confiança, além de volúvel, perdulária, infiel e “da orgia” (vida boêmia). Nesta pesquisa, pretende-se verificar, por meio das personagens femininas do compositor e das notícias publicadas nas páginas policiais do jornal Correio da Manhã, durante do período de 1930 a 1935, como as mulheres eram representadas e quais valores e práticas estão por trás dessa representação. Palavras chave: Representação da mulher; Rio de Janeiro, capital, 1930 – 1935; Música Popular Brasileira; Ismael Silva - sambista. - ix - ABSTRACT This dissertation investigates the elements of representation of female characters in the Ismael Silva’s sambas, one of the most important popular composers in the 1930´s. The roguery way of life, the freedom and, overall, women are often in his sambas. Particularly women, appear like the reason of his problems or like someone who is not trustful, also voluble, wasteful and disloyal, which is part of a bohemian way of life. In this research we intend to verify, through the composer’s female characters and in the notes published in the pages of police occurrences in the periodic Correio da Manhã, since 1930 until 1935, how the women were represented and what values are behind this representation. Key words: Representation of woman; Rio de Janeiro, capital city; 1930 – 1935; Brazilian Popular Music; Ismael Silva – sambista. - 10 - SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................v RESUMO ................................................................................................................................viii ABSTRACT ..............................................................................................................................ix INTRODUÇÃO........................................................................................................................12 1 – QUEM É ESSE ISMAEL SILVA? ....................................................................................36 1.1 Na orgia .................................................................................................... ......43 1.2 Amor, nota e carinho ..................................................................................... 52 2 – OS LOCAIS DE SOCIABILIDADE DO SAMBA ...........................................................60 2.1 Falando de negócios ...................................................................................... 69 2.2 Os “escritórios” dos sambas .......................................................................... 76 3 – DOS DISCOS PARA AS PÁGINAS DOS JORNAIS ......................................................83 3.1 Por motivos íntimos........................................................................................ 90 3.2 Malandragem de fino trato .......................................................................... 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................121 FONTES .................................................................................................................................125 JORNAIS E REVISTAS CONSULTADOS..........................................................................127 DISCOGRAFIA .....................................................................................................................132 ICONOGRAFIA.....................................................................................................................134 ARQUIVOS CONSULTADOS .............................................................................................135 - 11 - LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1: PERCENTUAL DE OCORRÊNCIAS POLICIAIS ENVOLVENDO MULHERES DAS CLASSE POPULARES PUBLICADAS NO JORNAL CORREIO DA MANHÃ NO PERÍODO DE 1930 A 1935 ....................................92 GRÁFICO 2– ESTADO CIVIL DE MULHERES DAS CLASSES POPULARES ENVOLVIDAS EM OCORRÊNCIAS POLICIAIS NO PERÍODO DE 1930 A 1935. ............................................................................................94 GRÁFICO 3 - IDADE DE MULHERES DAS CLASSES POULARES VÍTIMAS DE OCORRÊNCIAS POLICIAIS DE 1930 A 1935 ................................................................................................................................................ ..98 LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÃO 1 – NOITADA NUM BAR DA LAPA. CHARGE DE SETH, 1937. ...................................................61 LISTA DE MAPAS MAPA 1: LOCAIS DE SOCIABILIDADE NA REGIÃO BOÊMIA: AVENIDA RIO BRANCO...................................777 LISTA DE TABELAS TABELA 1 – MÚSICAS COMPOSTAS POR ISMAEL SILVA, GRAVADAS ENTRE 1930 E 1935.............................47 - 12 - TABELA 2– MÚSICAS COMPOSTAS EM PARCERIA, GRAVADAS ENTRE 1930 E 1935......................................48 TABELA 3 – OCUPAÇÕES REGISTRADAS NAS OCORRÊNCIAS CONTRA MULHERES ........................................95 TABELA 4 – RELAÇÃO DE CRIMES CONTRA MULHERES ANO A ANO .............................................................97 INTRODUÇÃO Nesta pesquisa pretende-se verificar os valores e práticas culturais presentes nas representações sobre as mulheres populares a partir da obra do compositor Ismael Silva e do jornal Correio da Manhã, entre 1930 e 1935. Trata-se de uma conjuntura marcada por mudanças na sociedade brasileira que contemplaram também as reivindicações feitas pelas mulheres que envolviam os direitos civis, políticos e sociais, como por exemplo, o direito ao voto, concedido em 1932, e alguns direitos trabalhistas como a licença maternidade e a redução de horas de trabalho. O período estudado compreende também a primeira fase da carreira do autor, que foi interrompida em 1935, por motivos pessoais. O foco da pesquisa, portanto, volta-se para aos segmentos femininos populares, a partir das letras de música de Ismael Silva e da coluna O Dia Policial, publicada no jornal Correio da Manhã. Nesse sentido, ao falar das relações entre grupos sociais dominantes e os populares, não se pode afirmar categoricamente que as relações entre grupos sociais diferentes se dessem exclusivamente no nível da submissão e da dominação. Carlo Ginzburg1 reforça essa idéia ao definir como circular as relações entre grupos distintos, observando que há uma influência recíproca nas manifestações culturais de ambos. Ginzburg observa que os valores, crenças e práticas desses grupos nos chegam também por meio de filtros. Então, como investigar as práticas e valores desses grupos, apesar dessas limitações? Quando comecei a estudar a produção musical do sambista e as notícias publicadas na sessão já mencionada, no referido jornal, sobre as mulheres “malandras” e “populares”, me pareceu muito pertinente um questionamento de Ginzburg sobre a influência da produção cultural de um grupo social na produção de um outro: 1 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1987, p. 12-13. - 13 - Até que ponto os eventuais elementos da cultura hegemônica, encontráveis na cultura popular, são frutos de uma aculturação mais ou menos deliberada ou de uma convergência mais ou menos espontânea e não, ao contrário, de uma inconsciente deformação da fonte, obviamente tendendo a conduzir o desconhecido ao conhecido, ao familiar?2 Ismael Silva teria incorporado em suas composições o discurso da elite carioca sobre as mulheres, seu papel na sociedade e suas funções sociais? Ao longo deste trabalho buscaremos esclarecer se isso de fato aconteceu e até que ponto. A fim de compreender melhor as questões que envolvem as mulheres populares e suas relações, alguns trabalhos foram importantes para aprofundar as pesquisas sobre o tema. Entre os diversos estudos realizados sobre as mulheres estão Mulheres pobres e violência no Brasil urbano, de Rachel Soihet e Ser mulher, mãe e pobre, de Claudia Fonseca. Estes textos3 ajudaram a conhecer diferentes características das mulheres populares que viviam no meio urbano no início do século XX, mas sem as mesmas condições daquelas que pertenciam às classes privilegiadas. Apesar de abordar outro período, em Recônditos do mundo feminino4 Marina Maluf e Maria Lúcia Mott, fica evidente que, mesmo com todas as diferenças nas práticas dos grupos sociais, as mulheres deveriam seguir um papel determinado para elas. Durante a pesquisa das notícias policiais nas páginas do Correio da Manhã, deparei-me com a mesma tentativa de controle, independentemente da classe social. Deveriam permanecer sempre no espaço privado, longe da rapidez e agitação das ruas, protegidas do mundo. Isso não quer dizer que elas se submetessem completamente a essa condição. No entanto, permanece a seguinte questão: de quem ou do quê elas deveriam supostamente ser protegidas? Claudia Matos estuda a malandragem e o discurso do malandro nas composições de Geraldo Pereira e Wilson Batista, no período de 1930 a 1954, em Acertei no Milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. A autora propõe uma personalidade 2 GINZBURG, Carlo. Op. cit., p. 24-25. 3 SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano; FONSECA, Claudia. Ser mulher, mãe e pobre. In, DEL PRIORE, Mary (org); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2000. 4 MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In, História da vida privada no Brasil, v3. NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. - 14 - malandra a algumas das personagens femininas5 retratadas em algumas das músicas selecionadas. A mulher malandra, como define Matos, busca fugir do papel social e do ambiente que lhe cabe: ser dona de casa e tudo o que diz respeito ao ambiente doméstico. O trabalho de Matos é importante para compreender este universo e as suas relações, que não é só do crime, (mas também de quem vive de pequenos golpes), nem do trabalho, tampouco do lar, ou da prostituição, embora fosse, ainda que para algumas, uma atividade eventual. Diferentemente das relações descritas em canções definidas por Matos como lírico amorosas, os relacionamentos amorosos com abordagem malandra são de outra natureza. Se para a elite eles têm como finalidade formar uma família, nos relacionamentos “malandros” a conveniência é quem dá a tônica. Os relacionamentos duram o tempo que a companheira agüentar se sujeitar a sustentar e a cuidar do homem. Ou até o companheiro perceber que essa união não é tão rentável quanto gostaria e vice- versa. Esses relacionamentos “convenientes” estão presentes de maneira clara nos sambas de Ismael Silva como Gosto de você, mas não é muito (1931) e Carinhos eu tenho (1933). Em Uma jura que fiz (1932) e Escola de Malandro (1932) essa conveniência aparece de maneira mais implícita, a conveniência não é do homem, mas da companheira que o deixou. E quando ela pede para voltar, é a ele que o relacionamento não convém. Em Escola de Malandro, a conveniência está em mentir, em um dos versos do refrão, ele diz: “mentindo é que se leva vantagem”. Ao falar de relacionamentos e criticar o comportamento das mulheres há uma ressignificação, não apenas dos relacionamentos afetivos, mas, sobretudo, dos valores e regras sociais que a elite carioca tentava impor às camadas populares. Ao dizer que uma mulher prefere a orgia ao lar e tudo o que ele representa, (o conforto, as regras de controle, a estabilidade dos relacionamentos) a crítica também é direcionada aos mecanismos de controle e à previsibilidade do lar doce lar. Quando se vive à margem dos valores hegemônicos, a crítica a esses valores se faz por meio daquilo que não se diz diretamente, com um discurso que não é literal, ao contrário, é cheio de dualidades e nuances. Estas questões se mostram particularmente pertinentes quando se estuda estas e outras questões sobre esse universo, bem como seus relacionamentos e suas nuances: os ciúmes, o papel determinante do dinheiro nessas relações e a instabilidade delas. 5 Claudia Matos apresenta no capítulo 7 de Acertei no Milhar, além das mulheres malandras, as mulheres donas de casa, que organizam a vida do companheiro malandro e os sustentam e aquelas que tentam regenerá-lo para que procure um trabalho para sustentá-la. MATOS, op.cit., p. 156-7. - 15 - No artigo Além das Amélias: música popular e relações de gênero sob o Estado Novo6, Adalberto Paranhos discute as representações criadas na música popular daquela época, em torno das mulheres e da malandragem. Segundo o autor, em várias composições por ele analisadas, as relações de gênero não se definem apenas pela vitimização das mulheres. Ao invés de vítima indefesa de uma sociedade machista, rebaixada à condição de pobre-coitada, ou de mera Amélia, a ex-mulher de seu Oscar [personagem de um samba] desponta como alguém capaz de quebrar cadeias de padrões de conduta instituídos. 7” Gradativamente, os espaços públicos de lazer foram invadidos pelas mulheres8. Essa “invasão” não ocorreu sem conflitos e enfrentamentos, ainda que elas também se valessem da conveniência para se “desguiar” (livrar-se) de um relacionamento pouco vantajoso. Mesmo numa época posterior, durante o Estado Novo, quando se procurava combater a malandragem e as representações dos malandros na música popular, vozes dissonantes do samba insistiam em se referir, de uma forma ou de outra, à sobrevivência dessas figuras que, por si sós, remetem a práticas e discursos destoantes em relação à pregação estado-novista9. É por isso que Paranhos menciona várias canções que se referem às mulheres cansadas do “lesco-lesco” do trabalho braçal e de sustentar seus companheiros malandros. Se antes do Estado Novo a maior parte dos sambas se queixava das mulheres na orgia, no final da década de 1930 e início da seguinte, a mulher é quem reclamava, ainda que os sambas fossem escritos por homens. Por mais que fossem utilizados elementos de controle sobre os indivíduos, seja com a censura ou, no caso da música popular, a valorização do trabalho e da família brasileira, sempre haverá uma brecha, um desvio10. No caso da temática malandra, a personagem feminina 6 PARANHOS, Adalberto. Além das Amélias: música popular e relações de gênero sob o Estado Novo. In: ArtCutltura – de História, Cultura e Arte. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia. , v. 8, n. 13, p. 163 – 174, jul-dez 2006. 7 PARANHOS, op. cit., p. 172-173. 8 Idem, p. 172 - 174. 9 Idem, p. 167. 10 A respeito dos desvios mencionados pelo autor, ver: PARANHOS, Adalberto. Além das Amélias: música popular e relações de gênero sob o Estado Novo. In: ArtCutltura – de História, Cultura e Arte. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia. , v. 8, n. 13, p. 163 – 174, jul-dez 2006. - 16 - pode ser uma alternativa para os compositores de criticar essas regras e valores sociais sob diferentes aspectos e abordagens. June Hahner, em A emancipação do sexo feminino, mostra, entre outros temas relacionados às mulheres, que muitas delas, pertencentes à classe média ou alta, começaram a luta para ter direito a uma profissão, a fim de ser tornarem independentes financeiramente, ainda no final do século XIX. Com isso, teriam condições de ocupar postos de trabalho como funcionárias públicas, no comércio, nos escritórios, escolas, algumas ainda como médicas e advogadas. Muitas mulheres da elite se ocupavam da militância pelo direito ao voto, escrevendo em jornais e revistas, defendendo a igualdade de direitos para mulheres e homens. O trabalho significava para elas a possibilidade de terem independência e autonomia11. Mas a luta por esses direitos beneficiaria da mesma maneira as mais pobres? Em Trabalho feminino e sexualidade12, Margareth Rago apresenta um cotidiano bem diverso. Para as mais pobres, o trabalho não era uma questão ideológica e sim, de sobrevivência. Elas eram contratadas como operárias para trabalhar nas fábricas e tinham uma rotina nada aprazível: jornadas de doze horas, salários baixos, maus tratos e assédio sexual recorrente por parte dos patrões. Suas manifestações e reivindicações tinham razões diversas das militantes feministas, em sua maioria pertencentes à classes sociais de maior poder aquisitivo: igualdade salarial e melhores condições de trabalho. Além das operárias, havia aquelas que faziam serviços para fora, como costurar, lavar e passar roupas, transformando sua casa, muitas vezes pequena e insalubre, em local de trabalho e o espaço privado era tomado pelo trabalho. Espaços públicos e privados se confundem. Há ainda o trabalho de Sidney Chalhoub13, Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque que, apesar de cobrir um período anterior, também faz menção a uma política de normatização e controle sobre as classes trabalhadoras, particularmente as mulheres, que se estenderia até a década seguinte. Ao analisar as páginas policiais do jornal Correio da Manhã, Chalhoub consegue levantar alguns métodos de disciplinarização de tempo, de espaço e 11 HAHNER, op.cit., p. 202-204. 12 RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In, DEL PRIORE, Mary (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2000. 13 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. - 17 - das relações pessoais dos mais pobres. Principalmente por meio do combate ao ócio, uma vez que o ocioso era tido como um pervertido, uma ameaça à moral e aos bons costumes burgueses. Os mais pobres eram vistos como preguiçosos, violentos, barulhentos e promíscuos. Aos olhos da elite, eles formavam uma classe perigosa, que precisava ser domada. Ainda que houvesse, como afirma Ginzburg, uma troca de práticas culturais entre elite e populares, não quer dizer que não houvesse também uma intenção de controle sobre os populares. A partir destes trabalhos é possível perceber que muitas vezes, pelo simples fato de transitar pelo ambiente público, em busca de trabalho ou lazer, a mulher tinha, em meados dos anos 20, sua dignidade e integridade postas em dúvida14. Afinal, ainda não era “natural” uma mulher circular por determinados espaços públicos, principalmente regiões boêmias como o centro da cidade e, sobretudo nas proximidades com os bairros mais pobres. Só aquelas que precisavam de fato trabalhar, ou seja, as pobres eram quem, inevitavelmente, andavam com mais freqüência pelas ruas, principalmente no centro da cidade. Com o aparecimento de novos instrumentos de pesquisa nas últimas décadas foi possível estudar novos objetos, por meio de novos métodos, com enfoques diferenciados, ou mesmo temas já abordados, mas com novas fontes de pesquisa e abordagens. A partir desse novo modo de fazer e contextualizar a história, outros personagens aparecem, ou ainda, aqueles que não haviam sido pesquisados ou estudados mais detalhadamente. Assim, se obtém outros meios de ver e compreender essa nova história. Surgem então, novas perspectivas, fontes e objetos na pesquisa historiográfica e histórica e, gradativamente, a mulher passou de mera “figurante” a “coadjuvante”. Primeiro, apareceu como um dos grupos de excluídos da história15. Depois, surge como um grupo, homogêneo (“as mulheres”), vinculado às características ou funções que lhe foram destinadas: as trabalhadoras, as marginais, as mártires, as loucas, as mães, entre outras atribuições. Outro tipo de abordagem é elaborada a partir de seu papel social dentro da família. Só depois é que elas aparecem como integrantes de diferentes classes sociais, com diferentes origens e motivações. 14 FONSECA, Claudia. Ser mulher mãe e pobre. In, DEL PRIORE, Mary (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2000, p. 516. 15 PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. - 18 - Nos trabalhos sobre gênero são estudadas como as relações ocorrem entre diferentes grupos, não se limitando a investigar a atuação de homens e mulheres e suas tensões. Dizem respeito aos vários tipos de relações estabelecidas, a partir de uma etnia, religião, sexo, classe ou grupos sociais, etc. Sobretudo, relações que implicam domínio e submissão. Seu aspecto mais importante é a ênfase sobre a diferença e tem efeito mediador, uma vez que interfere diretamente na formação da identidade do indivíduo e na sua ligação com o grupo social. De acordo com Roger Chartier16, a constituição da identidade feminina acontece a partir de uma interiorização por parte das mulheres das normas determinadas pelo discurso masculino. Para entender este comportamento é preciso pesquisar as práticas, os discursos e os artifícios de sujeição utilizados em uma época e grupo social específicos. Essa atitude, independente de seu grupo social, não é apenas um sinal de submissão, mas um instrumento para deslocar esse domínio, ainda que não completamente. Essa subordinação é construída histórica, cultural e socialmente. Porém, as diferenças entre homens e mulheres são sempre elaboradas a partir de um argumento fisiológico: as peculiaridades de cada um. Alejandro Cervantes Canson define este tipo de argumento como ideológico, simbólico e cultural. Deste modo, diferenças biológicas tornam-se diferenças sociais, privilegiando os homens em detrimento das mulheres17. Os estudos sobre as mulheres compreendem, portanto, além da pesquisa das práticas e discursos, as relações entre os mais variados grupos sociais, classes ou campos18. As mudanças históricas ocorridas nestas relações também merecem investigação. No caso das mulheres, não é apenas o aspecto biológico que limita suas ações, mas também as diferenças entre as classes sociais. Cada uma delas reage de um modo porque sofre a distinção de maneira diferente, dentro do grupo social a que pertence19. 16 CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica (uma crítica). Cadernos Pagu, nº 4. Campinas: Núcleo de Estudos de gênero/UNICAMP, 1995, p. 40. 17 CANSON, Alejandro Cervantes. Entrelaçando consensos: reflexões sobre a dimensão social da identidade de gênero da mulher. Cadernos Pagu, nº 4. Campinas: Núcleo de Estudos de gênero/ UNICAMP, 1995, p. 195. 18 Neste contexto, campo deve ser entendido de acordo com a definição de Pierre Bourdieu. BOURDIEU, Pierre; TOMAZ, Fernando (trad.). O poder simbólico. 7 ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 65 – 66. 19 CANSON, op.cit., p. 206. - 19 - Ou seja, a discriminação sofrida pelas mulheres na sociedade carioca, na década de 20 e 30 do século XX, as afetava de maneiras distintas. (...) gera-se o reconhecimento de que as mulheres, apesar de compartilharem a mesma experiência de opressão de gênero, não podem compartilhar a mesma experiência de opressão, uma vez que a classe a qual pertencem determina essa vivência, tanto no nível material quanto imaginário20. Canson afirma ainda que a identidade de gênero se baseia num processo de ordem simbólica e ela se constrói a partir de três aspectos: pertencer a algo (processo de identificação); a desigualdade, (que serve para organizar, classificar e hierarquizar as estruturas sociais) e a diversidade (que representa a tensão entre a vontade individual e a coerção coletiva). Esses três aspectos atuam sobre os indivíduos simultaneamente, produzindo, desse modo, a identidade do indivíduo com suas contradições, conflitos e incertezas21. No caso das relações entre homem e mulher, o que ocorre é que, partindo do pressuposto de que eles tenham visões de mundo diferentes, com suas regras de conduta sociais, valores, etc., essas relações foram estruturadas a partir de uma visão masculina sobre a sociedade. O valor atribuído à maternidade, utilizando o exemplo do autor, é difundido e assimilado pelos grupos sociais como algo próprio às mulheres. Ou seja, sua única finalidade é gerarem herdeiros: chefes de estado, empresários, fornecedores de mão de obra, etc. Como se a maternidade fosse uma vontade natural, inerente a elas e a negação desta vontade fosse uma anormalidade, sem levar em conta as vontades individuais, necessidades e aspirações. Tais símbolos de definição de identidade podem converter experiências individuais em coletivas, bem como a situação inversa. Ao compartilhar ou desejar essas experiências, seja no nível individual ou no coletivo, elas passam a fazer parte do conjunto de valores, crenças e práticas de um grupo social. 20 CANSON, op. cit., p. 202. 21 Idem, p. 188. - 20 - Assim, identificar-se com uma imagem, é, ao mesmo tempo, participar da sua formação, da sua validação, da sua reafirmação: aquilo que se reconhece e se valoriza ‘externamente’. [...] Da mesma maneira, definir-se por diferenciação, por negação, ou por oposição a uma imagem socialmente existente significa, ao mesmo tempo, participar de sua legitimação: por exemplo, extinguida a imagem social, desaparece também tudo aquilo que se define por oposição a ela.22 Considerando as letras das músicas e as notícias policiais como fontes de reflexão sobre as práticas e as suas representações, elas apontam que tipos de símbolos de formação de identidade estão presentes em seus versos. Para analisar o conteúdo das músicas selecionadas será utilizada a noção de representação apresentada por Roger Chartier, em A História Cultural: entre práticas e representações23. Ela será fundamental para saber quais práticas estão presentes nessas representações e quais comportamentos são considerados adequados (ou não) para as mulheres pertencentes ao grupo. De acordo com Chartier, cabe à história cultural identificar os diferentes elementos para compor, ou representar, uma realidade social determinada. Para isso, é preciso investigar e conhecer as classificações e categorias que constituem essa “construção” de realidade, criadas no próprio grupo social. Quando estudamos como uma realidade pode ser lida ou interpretada, estamos falando também nos critérios de classificação e delimitação para organizar e apreender uma realidade, uma determinada visão de mundo. Essas categorias são construídas dentro de um grupo social e são incorporadas por seus integrantes e, graças a elas, o presente adquire um sentido ou se torna inteligível. As representações são construídas de acordo com os interesses do grupo que cria esses elementos de classificação. Logo, não existe um discurso neutro. Eles produzem estratégias e práticas diversas, que buscam se sobrepor aos demais. Procuram legitimar, por meio de diferentes estratégias, os valores e atitudes dos indivíduos desse grupo social. Por isso, esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competição, cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um 22 CANSON, op.cit., p. 210. 23 CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. - 21 - grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio24. É preciso então considerar como essas estruturas de classificação e representação se estabelecem como instituições sociais e como elas organizam os diversos grupos sociais, seus discursos e práticas. Essas estruturas traduzem o modo de ver e pensar sobre o mundo, os outros e a si mesmo. Elas “ajudam a descrever a sociedade tal como pensam que ela é, ou gostariam que fosse25.” No contexto deste trabalho, a representação sobre as mulheres diz respeito ao ambiente onde circulam, as relações sociais que estabelecem, sejam pessoas do mesmo grupo social ou não. As personagens presentes nas músicas de Ismael Silva dizem mais sobre como as mulheres são vistas, do que como elas são de fato. Isso não quer dizer que não haja, nessa representação, parte de suas práticas e aspirações, como a possibilidade de freqüentar os mesmos ambientes boêmios que os homens da orgia, ou a busca por alguém que lhe proporcione uma vida melhor. Ao ver nos versos do sambista a crítica sobre o comportamento delas, pode-se ver também seus valores morais, questões sociais (como as dificuldades em que os mais pobres viviam e suas estratégias de sobrevivência), bem como a própria malandragem como meio de vida. Com o conceito de representação é possível compreender o funcionamento de uma sociedade a partir da visão que os indivíduos têm da realidade que os cercam. O conceito articula três modalidades de relação com uma realidade: a classificação e delimitação (a mulher da orgia, interesseira) que dá subsídios para uma percepção de um mundo social, no caso, a região central da cidade do Rio de Janeiro; as práticas que permitem o reconhecimento de uma identidade, (o que é ser malandro, o que é viver na orgia) a fim de estabelecer um lugar no mundo social e, por fim, as instituições que dão visibilidade a um grupo social entre os demais, no caso das músicas de Ismael Silva, a própria malandragem como modus vivendi. Ao lidar com as questões de representação e construção de discursos, deve-se considerar também como essas leituras de mundo são interpretadas para se pensar sobre uma realidade. Seja por meio da linguagem, da mitologia, da religião, da política ou do conhecimento científico, por exemplo. No caso de Ismael Silva, suas músicas sempre apontam para a desvalorização do trabalho como 24 CHARTIER, op.cit., p. 16-17. 25 Idem, p. 17. - 22 - meio de obter seu sustento, e as mulheres sempre estão interessadas em relações vantajosas financeiramente, em enganar, ludibriar e iludir os homens. Neste contexto, a hermenêutica se aproxima do conceito de representação. Ao ver a realidade como um texto, que pode ser lida e interpretada, há um esforço para compreender como é que um texto pode ‘aplicar-se’ à situação do leitor, por outras palavras, como refiguração da própria experiência. No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo. 26 Se os elementos de representação utilizados para construir uma realidade são historicamente elaborados, podemos dizer que as estruturas e categorias de classificação não são objetivas, uma vez que foram criadas a partir de determinados interesses. E é justamente o processo de criação dessas estruturas que constitui um objeto de estudo para a história cultural. Outro aspecto a ser considerado é o estudo da construção de um sentido, para a elaboração, ainda que contraditória, de um significado para o mundo. Então, as práticas discursivas produzem ordenamento, afirmação, distanciamento, divisões e valores e, por isso, também são vistas como formas de interpretação. Não se pode perder de vista as especificidades de cada grupo ou indivíduo para compreender (ou interpretar?) seu modo de ver e agir no mundo. Para cada sociedade são criadas imagens próprias, e essas imagens, ou seja, a própria representação, não são neutras27. No cotidiano, (ou plano objetivo) estão as práticas sociais propriamente ditas e no imaginário (plano subjetivo) está a representação dessas práticas, isto é, a maneira como elas são vistas. A representação por si só, segundo Chartier, não explica coisa alguma. É preciso lhe dar uma finalidade. Só é possível construir a representação de práticas, valores ou pessoas, a partir de um grupo social e, a partir dele, agregar um sentido. É possível observar a representação de uma realidade, mas elas surgem sempre das práticas sociais. E elas não podem ser reduzidas a uma representação de si mesmas. As práticas têm uma lógica própria, que variam de um grupo social para outro. E para compreender 26 CHARTIER, op.cit., p. 23-24. 27 Idem, p 17. - 23 - como elas se estruturam e se articulam, o conceito de culturas políticas também se torna importante. Serge Bernstein vê a cultura política como uma grelha de análise para a investigação histórica28. Ela oferece subsídios para analisar melhor os comportamentos, uma vez que se trata de fenômenos com diferentes parâmetros. Ajuda a compreender a complexidade do comportamento humano e se constitui, além do conjunto de regras e referentes, a partir da relação dos indivíduos dentro de um grupo. Possui ainda, uma base filosófica ou doutrinária. Além disso, seus membros compartilham da mesma leitura do passado, seja ela positiva ou negativa, bem como uma mesma visão sobre o futuro. Ela, como a própria cultura, está inserida nas normas e valores que determinam uma representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro29. Com tais ferramentas, aliadas à noção de representação, é possível identificar os tipos de discurso e argumentação, os gestos, a origem de comportamentos, a partir das motivações de um grupo social. Também é possível conhecer e compreender a coesão de grupos organizados a partir de uma cultura, de uma visão comum de mundo, sua visão do passado e perspectivas de futuro, bem como suas normas, crenças, valores, vocabulários, símbolos, gestos e manifestações artísticas. Este conceito será particularmente pertinente para compreender o contexto da produção musical daquela época, seu ambiente e seus agentes. Mesmo com os deslocamentos e mudanças nas práticas sociais, foi fundamental o contato com trabalhos sobre música popular, bem como a biografia de Ismael Silva e suas composições30. No Brasil de 1930, o samba não seria mais apenas uma prática de um grupo social específico, no caso, os moradores da região conhecida como Pequena África e, posteriormente, em outros bairros como Estácio de Sá, Mangueira, Salgueiro e arredores. Boa parte desses bairros teve sua 28 BERNSTEIN, Serge. A cultura política. In, RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (orgs). Para uma história cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998, p. 350. 29 GOMES, Ângela Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In, SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2005, p. 32-33. 30 CARVALHO, Fernando Medeiros de. Ismael Silva: samba e resistência. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1980 e SOARES, Maria Thereza Mello. São Ismael do Estácio: o sambista que foi rei. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985. - 24 - origem vinculada, de alguma forma, a essa região31 situada próximo à parte central da cidade do Rio de Janeiro. A Pequena África abrangia parte dos bairros de Cidade Nova (que era uma espécie de limite entre o Rio da “elite” e o Rio “pobre”), Gamboa e Saúde, com seus cabarés e gafieiras, como o Assírio e a Kananga do Japão, e estendia-se até a região portuária32. Em As tias baianas tomam conta do pedaço, Mônica Velloso fala do poder informal das tias baianas33 e das redes de relações entre os populares e que se estabeleceu fora do Estado e dos códigos sociais determinados pela elite carioca, na Pequena África. As tias baianas circulavam pelas ruas do centro do Rio de Janeiro desde antes da Belle Époque. Elas tinham na rua uma possibilidade de sobrevivência, seja oferecendo seus serviços, ou contando com a solidariedade dos conhecidos na comunidade local. O território da qual esse grupo fazia parte acabou por determinar uma especificidade, fazendo com que os homens e mulheres que viviam na Pequena África se diferenciassem dos demais. Como afirma Mônica Velloso, havia uma diferenciação clara entre aquilo que define quem somos nós e quem são os outros. Essa noção de pertencimento a um grupo propiciou a formação de suas próprias regras de conduta, meios de se relacionar e viver. Lá, os negros e mais pobres podiam se sentir pertencentes, não necessariamente a um lugar, mas a uma rede de relações. A localidade não era o fator determinante para a formação e manutenção do grupo. Seja em Salvador, na Bahia, no bairro da Saúde ou na Cidade Nova, no Rio de Janeiro, o que de fato importava era o valor simbólico atribuído a esses locais. A África, seja ela grande ou pequena, nunca deixou de existir no plano simbólico. 31 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional de Música, 1983, p. 62. 32 Em http://unicamp.br/cecult/mapastematicos/index.html, é possível visualizar alguns mapas digitalizados dessa região. Estes mapas fazem parte do projeto temático Lazer, cultura e sociabilidade: cotidiano de trabalhadores em Santana, Rio de Janeiro – 1905. Este projeto, que contém mapas baseados na coleção desenhada por Edward Gotto, está vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade da Campinas (IFCH – UNICAMP), sob a supervisão do Prof.Sidney Chaloub. Os desenhos originais se encontram no Acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. (Acesso em 23 fev. 2007). 33 Mulheres oriundas ou filhas de negros vindos da região do recôncavo baiano. Ver VELLOSO, As tias baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade no Rio de Janeiro. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, vol.3, nº 6, 1990, p. 207 – 228. - 25 - Ao fazer das residências das tias baianas um espaço de preservação da cultura negra, por meio dos pagodes34, com suas comidas, bebidas e danças e dos rituais do candomblé, os negros acabaram por ganhar novos espaços. Gradativamente, eles se faziam aceitar35, apesar de essa postura de guardar as tradições africanas ter sido considerada uma oposição à modernidade pretendida pelas elites. Os populares criaram desse modo, um espaço de luta, festejos e resistência naquelas casas. É importante observar que o espaço privado se tornava público para que o grupo e suas práticas se fortalecessem. Ao longo da década de 1920 várias mudanças ocorreram nos meios de divulgação da música popular, bem como mudanças rítmicas e de andamento. Com o advento da radiodifusão a produção musical proveniente dessas práticas sociais passaria a ser divulgada pelas emissoras de rádio, tornando-se produto da indústria fonográfica, em expansão desde 1927. Como conseqüência do crescimento do mercado fonográfico e das emissoras de rádio, sambistas oriundos dos bairros mais pobres, teriam possibilidade de atuar como músicos e compositores profissionais. Com o surgimento das escolas de samba em agosto de 1928, o samba teve seu andamento acelerado e a marcação rítmica feita por instrumentos de percussão como o surdo e o tamborim. Antes disso, tinha influências do maxixe, um ritmo bastante popular, com andamento mais apropriado para se dançar em dupla, o que dificultava o desfile dos blocos de carnaval36. Os intérpretes mais conhecidos como, Francisco Alves, Mario Reis, Aracy Cortes, Aracy de Almeida, Marília Batista, Castro Barbosa, Aurora e Carmen Miranda, entre outros, ajudaram a popularizar o novo samba. A partir de 1937, com o Estado Novo e a censura, a regeneração do malandro estava na “pauta do dia”. Crescia o número de sambas exaltando as belezas naturais do país, como Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, que descreve as fontes murmurantes e a brejeirice do mulato inzoneiro e da morena sestrosa. Apesar disso, havia ainda espaço 34 De acordo com a Enciclopédia da Música Brasileira, pagode significa: “Baile popular de danças movimentadas”. Carlos Sandroni, em Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) se refere ao termo pagode de acordo com o Dicionário do Folclore Brasileiro: “reunião festiva e ruidosa, festa com comida e bebida, havendo ou não danças, festa sempre de caráter íntimo, comparecendo amigos”. 35 VELLOSO, op.cit., p. 10. 36 TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 293-294. - 26 - para os malandros dos “velhos tempos”, pouco afeitos ao trabalho e para as mulheres da “fuzarca”, como em Oh! Seu Oscar37, gravada em 1939, por Ciro Monteiro. Outra questão a ser discutida diz respeito ao ambiente por onde circulava Ismael Silva, seus vínculos, e como isso aparece em suas canções. A fim de obter mais subsídios de análise para o percurso do compositor por diferentes lugares de sociabilidade, será utilizada a noção de intermediários culturais apresentada por Michel Vovelle em Ideologias e mentalidades38. Segundo Vovelle, os intermediários culturais são definidos como elementos em trânsito entre dois mundos, estabelecendo relações, sempre dinâmicas, entre o erudito e o popular. Não fazem parte do popular, mas também não pertencem completamente à elite. Em certa medida, ele os define como “porta vozes”, ou ainda, “um canal de transmissão de uma cultura ou de um saber39”. É possível encontrar várias classificações para esse conceito, sempre relacionando o erudito e o popular. Hermano Vianna utiliza esse conceito em O mistério do samba40 para introduzir a idéia de que havia intermediários das mais diferentes classes sociais e interesses que ajudaram a valorizar o samba produzido antes de se tornar produto da indústria fonográfica. Com esse artifício, ele tenta desvendar o mistério de que fala o livro: saber como o samba e algumas das manifestações culturais africanas, deixaram de ser malvistos, mesmo com a resistência de alguns grupos. A noção de intermediários culturais é relevante, uma vez que Ismael Silva só teve acesso ao ambiente da música profissional a partir do contato e da parceria com o cantor Francisco Alves. Ainda que fosse um cantor de origem popular, Francisco Alves tinha prestígio suficiente na indústria fonográfica para interceder por Ismael Silva no meio artístico, gravando suas músicas e também por meio das parcerias musicais. Além da bibliografia existente sobre história da música brasileira, em grande parte produzida pelos jornalistas e pesquisadores Sérgio Cabral e José Ramos Tinhorão, também foram consultados os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Correio da Manhã, Última Hora e as revistas Música do Planeta Terra, Revista de Música Popular e Revista Fluminense de Folclore, Veja, Manchete e 37 MONTEIRO, Ciro. Oh! Seu Oscar. In: Os grandes sambas da História. Rio de Janeiro: Gravadora Globo/BMG, 1997. CD, v. 10, fx 7 . 38 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 39 VOVELLE, op.cit., p. 215. 40 VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora: Editora UFRJ, 2004. - 27 - Istoé. Por meio desses periódicos tive acesso a entrevistas concedidas pelo sambista, já em sua fase mais madura, de 1966 a 1978, ano em que faleceu. Com esse material é possível conhecer seu discurso e como ele elaborava a narrativa de sua trajetória. Sobre essas e outras questões presentes nesse material, vamos falar mais detidamente adiante. Também foi de grande valia os trabalhos de Nestor de Holanda, João do Rio, Gastão Cruls Carlos Didier e Luiz Edmundo, autores respectivamente de Memórias do Café Nice, A alma encantadora das ruas, Aparência do Rio de Janeiro, volumes 1 e 2, Orestes Barbosa: repórter cronista e poeta e O Rio de Janeiro do meu tempo, volume 2. As informações fornecidas por estes trabalhos foram de grande importância para conhecer e compreender melhor esse ambiente, ajudar a recompor o período estudado, os costumes e locais de sociabilidade da “gente de rádio”, ou seja, cantores, coristas, compositores, locutores, empresários de gravadoras e aspirantes ao sucesso na indústria fonográfica. A produção bibliográfica sobre os anos 30 do século XX aborda, na maioria das vezes, o começo da época de ouro do rádio, com o surgimento da Rádio Nacional, em 193641 e suas “rainhas”, como em Por trás das ondas da Rádio Nacional42, em Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura43, a censura à produção musical durante o Estado Novo e, mais tarde, durante o regime militar na década de 1960, aparecem como tema do trabalho de Alberto Moby. Em Metrópole em sinfonia – história, cultura e música popular na São Paulo dos anos 3044, a música serve como fonte para mostrar as mudanças ocorridas no cotidiano, nas relações entre as pessoas e com a própria cidade de São Paulo. Maria Izilda Matos em Dolores Duran – experiências boêmias em Copacabana nos anos 5045, fala das representações da boemia carioca em 1950, a partir das composições de Dolores Duran e das crônicas de Antônio Maria. 41 MELLO, Zuza Homem de; SEVERIANO, Jairo. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, 1901 – 1957. v. 1. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 85. 42 GOLDFEDER, Miriam. Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 43 MOBY, Alberto. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994. 44 MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia. História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 45 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: experiências boemias em Copacabana dos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. - 28 - Existe, na historiografia brasileira, uma vertente que vê na música popular uma nova possibilidade de pesquisa. Não se trata de reconstruir linearmente uma história da música popular, e sim, vê-la como objeto e fonte de estudos históricos. Trabalhos como a coleção Decantando a música popular: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira46, organizados por Berenice Cavalcante, Heloisa Starling e José Eisenberg; os estudos de Arnaldo D. Contier e do já citado José Geraldo Vinci Moraes tentam caminhar por essa nova trilha historiográfica. Moraes47 propõe-se a “levantar e discutir algumas questões teóricas e metodológicas que surgem das relações entre história, música e a canção popular”. Concordo com a afirmação de Moraes de que a música popular pode ser utilizada como fonte, inclusive, ajudando a “desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados pela historiografia”, como ele mesmo afirma48. Mesmo que esse tipo de produção, popular ou não, seja carregado de subjetividade, características e linguagem próprias49 (melodia, andamento, ritmo e harmonia), elas também são constituídas de historicidade, são um meio de expressão do cotidiano num momento histórico. Ao ouvir uma canção, também ouvimos sobre uma ideologia, uma estética e sonoridades próprias da época em que são produzidas. Além disso, elas estão atreladas às diferentes práticas de entretenimento de diversos grupos sociais, como festas, bailes em salões de danças, gafieiras, grupos carnavalescos, etc. No caso da cultura popular, podemos perceber as relações de troca entre diferentes grupos sociais sobre as diversas manifestações culturais ocorridas num momento histórico, como o carnaval de rua, por exemplo. 46 Essa coleção é resultado de um seminário homônimo, realizado em oito sessões, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em setembro de 2001. Cada um dos volumes lida com a música sob diferentes aspectos, sempre a partir da música brasileira. No volume 1, Outras conversas sobre os jeitos da canção, são analisados a origem do samba carioca e os processos de massificação desse gênero musical. No volume 2, Retrato em branco e preto da nação brasileira, aborda as mudanças que a idéia de nação pode sofrer. No volume 3, A cidade não mora mais em mim, aparecem os diferentes personagens sociais, sobretudo os párias: o malandro, a mulher, o negro, o marginal, o operário, o retirante, o pivete de rua, o índio, o louco. 47 MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música: canção e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História, vol. 20, n� 39, 2000. Disponível em http://www.scielo.br. Acesso em 09/02/2005. 48 MORAES, op.cit., p. 2. 49 Em Feitiço Decente, Carlos Sandroni aborda a constituição do samba como gênero musical, bem como suas características (ritmo, andamento, instrumentos utilizados, etc.). O autor também expõe as mudanças ocorridas no samba a partir do contexto social: deixa de ser apenas uma manifestação cultural para ser produto da indústria cultural. Nota da autora. - 29 - Como qualquer outro tipo de fonte, a música também tem suas limitações e dificuldades de pesquisa. Moraes apresenta quatro: a linguagem musical; seu código; sua subjetividade e o conceito de popular. O autor salienta que, por se tratarem de objetos orais, proporcionam “variadas relações simbólicas entre música e sociedade”, dificultando a análise de suas relações com o conjunto social50. Contudo, esses objetos orais também têm historicidade, pois carregam em si, características do período em que foram feitas, ainda que, quando executadas, as canções possam ser interpretadas de diferentes modos e sob diferentes filtros. Para a análise deste tipo de fonte documental, Moraes propõe um distanciamento entre letra e música apenas no momento da análise do discurso presente nos versos. Não se pode interpretar uma música apenas como texto, uma vez que parte de sua historicidade está na sonoridade por ela emitida. Afinal, “os elementos da poética concedem caminhos e indícios importantes para compreender, não somente a canção, mas também parte da realidade que gira em torno dela”. A respeito da importância de ouvir as canções como parte do trabalho de pesquisa com letras de música, Adalberto Paranhos51 reitera que o documento fonográfico não deve ser esvaziado de sonoridade, resumido à simples peça escrita. Afinal, em muitos casos, a linguagem estritamente musical e a performance dos intérpretes podem falar mais alto do que a própria linguagem literal que, de resto, não é dotada de significado unívoco, congelado no tempo. No caso deste trabalho, as músicas serão analisadas considerando muito mais os elementos de representação presentes em seus versos do que suas peculiaridades do ponto de vista musical. Isso não significa que sejam aspectos de análise menos importantes. As letras de música utilizadas para a pesquisa foram extraídas dos anexos do livro Ismael Silva Samba e resistência, de Luís Fernando Medeiros de Carvalho, de partituras originais e discos em 78 rotações, que são parte integrante do Acervo Almirante, localizados no Museu da Imagem e do Som, na cidade do Rio de Janeiro. Foram realizadas também diversas consultas ao acervo da discoteca da Rádio Unesp, 50 MORAES, op.cit., p. 6. 51 PARANHOS, op.cit., p. 166. - 30 - localizada na cidade de Bauru, para obter cópias dos fonogramas disponíveis. Posteriormente, outros fonogramas foram adquiridos com a coleção de CDs Noel Pela primeira vez, idealizado e produzido por Omar Jubran pela gravadora Velas. A coleção contém gravações originais de sambas de Noel Rosa e seus parceiros, entre eles Ismael Silva, interpretados pelo próprio Noel, também com participação de Ismael em algumas faixas. O primeiro contato com o material disponível sobre Ismael Silva deu a impressão de que não seria uma pesquisa tão difícil. Muitas fotos, reportagens em jornais e revistas, uma biografia e diversas entrevistas concedidas a jornalistas da área de música, principalmente a Sérgio Cabral, que se tornou seu amigo52, pareciam facilitar a tarefa de identificar e reconhecer uma memória para o compositor. Entretanto, depois de ler boa parte do material obtido nos acervos do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ), O Instituto de Estudos Brasileiros (IEB – USP), a Divisão de Artes da Biblioteca Mário de Andrade e o Centro de Documentação dos jornais Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil, concluí que a maior parte das fontes continha as mesmas informações. Os dados se repetiam com muita freqüência e eram citados em diferentes trabalhos sobre o compositor, bem como a “origem” do samba carioca no final dos anos 1920 com a primeira escola de samba, a Deixa falar53. Ou seja, as informações sobre a criação das escolas de samba, suas mudanças rítmicas, e também sobre a vida do compositor já haviam se tornado oficiais, foram cristalizadas. A repetição de informações também aparecia nas referências bibliográficas. Em trabalhos como Almanaque do Samba54, do jornalista André Diniz, Feitiço Decente55 de Carlos Sandroni e Sua excelência o samba56, de Henrique L. Alves, uma fonte sempre citada foi o livro As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, escrito pelo jornalista Sérgio Cabral, publicado em 1996. Esse livro é uma versão revista de As escolas de samba – o 52 CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996, p. 240. 53 Para uma reflexão acerca de uma origem do samba, vide: NAPOLITANO, Marcos e WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História. Vol. 20 n�39, 2000, disponível em http://www.scielo.br. Acesso em 09/02/2005. 54 DINIZ, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 55 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. : Ed. UFRJ, 2001. 56 ALVES, Henrique L. Sua excelência o samba. São Paulo: Editora Símbolo, 1976. - 31 - quê, quem, como, quando e por quê57, publicada em 1974. No livro, há uma entrevista de Ismael Silva em que ele fala de sua infância no bairro de Estácio de Sá e da origem da escola de samba Deixa Falar. O que não quer dizer que seja impossível trazer novos elementos de análise sobre essas fontes, bem como novas abordagens. O estudo das letras de música e notícias das páginas policiais colocarão em evidencia novos elementos para lidar com esse universo da malandragem, a partir das relações entre homens e mulheres. Além disso, dados fornecidos na entrevista já citada também aparecem em seus depoimentos para o Jornal do Brasil, O Globo e Última Hora e as revistas Veja, Istoé e Manchete. O material encontrado nestes periódicos consta em sua biografia, em páginas de internet, cujo conteúdo fala dos “bambas” da velha guarda do samba carioca e das primeiras escolas de samba e há, ainda, o verbete Ismael Silva no site do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira,58com conteúdo bastante parecido. Cabem aqui algumas considerações sobre o jornal Correio da Manhã. Fundado por Edmundo Bittencourt em 15 de junho de 1901, o periódico tinha distribuição diária e matutina, o periódico59 era conhecido como jornal de opinião, com um discurso de isenção de compromisso partidário. Apresentava-se como “defensor da causa da justiça, da lavoura e do comércio, isto é, do direito do povo, de seu bem-estar e de suas liberdades.” Na época de sua fundação, a publicação surpreendia por aproximar-se das classes mais pobres, pela independência e pelas críticas ao então presidente Campos Sales. A primeira grande campanha do jornal foi contra o aumento do preço das passagens de bonde da Companhia S. Cristóvão. Outra campanha foi contra jogos de azar e a denúncia de funcionários públicos que extorquiam os comerciantes. Havia entre seus colaboradores, quem se interessasse pelo movimento operário no mundo, dava destaque também às passeatas. O discurso de defensor dos mais pobres na verdade, era o de um jornal, acima de tudo, oposicionista. Em 1904, por exemplo, quando Pereira Passos foi nomeado prefeito da cidade do Rio de Janeiro, o jornal aprovara-o por ser um homem “sem ligações 57 CABRAL, Sérgio. As escolas de samba: o quê, quem, como, quando e por quê. Rio de Janeiro: Editora Fontana, 1974. 58 www.dicionáriompb.com.br. Acesso em 18/06/2005. 59 CORREIO DA MANHÃ. In: ABREU, Alzira Alves de (coord.). Dicionário Histórico geográfico Brasileiro – pós 1930, v. II. Rio de Janeiro: FGV, CPDOC, 2001, p. 1625-1632. - 32 - partidárias e que se tem distinguido principalmente como administrador.” Isso não impediria o veículo de criticá-lo por causa da obrigatoriedade da vacinação contra varíola. A crítica à violência adotada para obrigar as pessoas a se vacinarem, estava relacionada a uma questão mais ampla: como as mudanças de saneamento e urbanização no Rio de Janeiro afetavam os mais pobres. Na década de 1920 deixou de circular de agosto de 1924 a maio de 1925, sob a alegação de imprimir em suas oficinas folhetos clandestinos, com supostas propostas tenentistas. O jornal havia manifestado empatia pelos rebeldes da revolução de 1922 e 24. Em 1930, já sob direção de Paulo Bittencourt, filho de Edmundo, o veículo apoiou Vargas durante o governo provisório, embora apoiasse também o movimento constitucionalista em São Paulo. Além disso, reafirmava sua postura de não ter ligações com nenhum partido político. Durante a Assembléia Constituinte de 1934, o Correio da Manhã fez uma cobertura sobre os trabalhos parlamentares por meio de duas colunas: O que houve ontem na Assembléia Constituinte, que acompanhava as sessões, e A situação política, com notas sobre as articulações políticas e também publicava a situação política em outros estados. Durante esse período o jornal foi dirigido por M. Paulo Filho. Ao longo da primeira metade da década de 1930, o jornal mudaria de posição. Os editoriais, frequentemente censurados, eram contra o decreto de Reajustamento Econômico, a imigração de sírios e japoneses, além das críticas pela ausência de uma política para a imigração, ou ainda, a reforma tarifária, porque eles acreditavam que favorecia ao empresariado. Quanto aos direitos civis, fazia menção à presença da mulher na Assembléia Constituinte e publicou vários editoriais favoráveis ao divórcio. Apesar de afirmar que se dirigia aos mais pobres, havia muitos anúncios de produtos de consumo que esse público dificilmente teria acesso. Sobretudo, no Suplemento Feminino, sessão dominical, em que modelos de roupas femininas, sapatos, chapéus e outros ornamentos imitando as artistas de Hollywood, estampavam suas páginas. Para encaminhar a temática proposta, este trabalho foi estruturado em três capítulos, a partir de algumas questões que nortearam a pesquisa: Quem foi Ismael Silva? Quais ambientes ele freqüentava e com quem convivia? E, por fim, quais práticas estavam presentes nestes ambientes, naquela época? - 33 - No Capítulo 1, (Quem é esse Ismael Silva?) será apresentada uma breve biografia do compositor para compreender seus vínculos60 e suas relações. Será estudado o processo de construção (e suas estratégias de preservação) da identidade e da memória de Ismael Silva, ou como diz Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica61, a elaboração de um modelo oficial si, no caso, o de sambista famoso. Ao estudar esse processo e seus mecanismos é possível saber como o artista pretendia ser visto pelos demais e ainda, como outras imagens a seu respeito foram criadas ao longo do tempo. A fim de compreender esses mecanismos, é importante conhecer os documentos e registros, inclusive iconográficos62, da trajetória artística e pessoal do compositor e quais critérios de classificação foram utilizados para a construção dessa imagem pública. Para estudar essas “ferramentas de construção” de sua imagem, o texto Arquivar a própria vida de Philippe Artières63 mostrou-se fundamental. Ao estudar essa narrativa e a construção de uma imagem pública, o compositor também falava de seu grupo social e seus costumes, dos locais que freqüentava e das pessoas com quem convivia. Com isso, teremos mais subsídios para responder as perguntas que norteiam este trabalho: como essas mulheres lidavam com a repressão exercida sobre elas pela sociedade carioca? Que regras ou valores sociais elas valorizavam? Quais seus mecanismos de defesa e sobrevivência? Também serão feitas análises, a partir das Tabelas 1 e 2, contendo a produção fonográfica durante a primeira fase da carreira do sambista. Ao analisar sua temática e sua abordagem será possível conhecer a visão de mundo do grupo social da qual o compositor fazia parte. Suas personagens se encontram no espaço da orgia, no ambiente público, como bares e cabarés, e o sambista também indica a favela como lugar de origem dessas personagens, como na música Agradeças a mim64, de 1934. Com isso, 60 Para mais detalhes ver: CARVALHO, Fernando Medeiros de. Ismael Silva: samba e resistência. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1980; CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade (1917 – 1945). São Paulo: Annablume Editora, 2004. 61 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Usos e abusos da história Oral. 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 62 O material iconográfico utilizado no Capítulo 3 é parte integrante do acervo do Centro de Documentação do Jornal Folha de S. Paulo, na cidade de São Paulo e do Centro de Documentação e Imagem do Jornal do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. 63ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: revista Estudos Históricos: Arquivos pessoais. Rio de Janeiro: FGV, 2004, nº21. 64 SILVA, Ismael. Agradeças a mim. In: CARVALHO, Fernando Medeiros de. Ismael Silva: samba e resistência. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, p. 98. - 34 - será possível elaborar uma análise mais consistente sobre os elementos de representação de personagens femininos nos sambas de Ismael Silva. No capítulo 2 (Os locais de sociabilidade do Samba), serão apresentados os locais de sociabilidade regidos pelo samba, bem como seus freqüentadores e práticas dos profissionais do samba. O Mapa 1, presente no capítulo, foi elaborado com o intuito de situar a região boêmia freqüentada por Ismael Silva, ao longo da Avenida Rio Branco e algumas travessas. Nele, estão situados estabelecimentos como o Café Nice, o Teatro Trianon e a Rádio Club do Brasil (na Avenida Rio Branco); a Leiteria Nevada e o Cine Eldorado, (na Rua Bethencourt da Silva); a Casa Edison (Rua do Ouvidor, 135), além do Teatro Phoenix e o estúdio de gravação da Odeon na Avenida Almirante Barroso. Estes e outros endereços, como dancings, bares e cabarés faziam parte da rotina de trabalho e de lazer do sambista e de outros compositores e cantores. E no último capítulo (Dos discos para as páginas do Correio da Manhã), além de buscar uma resposta para saber quem são as mulheres malandras, procuramos também saber como lidavam com os mecanismos de controle sobre seu comportamento, relacionamentos, valores e modo de vida. Em outras palavras, para saber como as mulheres populares se “transformavam” nas mulheres malandras criadas por Ismael Silva. Para tanto, também procuramos refletir sobre o assunto a partir das pesquisas no jornal Correio da Manhã65. Foram consultadas as páginas policiais deste periódico66 a partir de janeiro de 1930 até dezembro de 1935, para fazer um levantamento sobre as relações cotidianas no âmbito das classes populares, demarcando as linhas de tensão que perpassam essas relações que resultam em homicídios, espancamento de mulheres ou atentados contra a própria vida. Nas páginas da seção policial é possível observar elementos de controle utilizados sobre o comportamento, não só das mulheres, mas também dos indivíduos das classes mais baixas, por meio da descrição das vítimas e das ocorrências. A partir do conteúdo dessa fonte elaboramos o Gráfico 1, para analisar esses crimes, divididos nas seguintes categorias: agressão física, homicídio e tentativa de homicídio, suicídio e tentativa de suicídio, além de constrangimento moral. Os critérios utilizados para a 65 Os exemplares do jornal Correio da Manhã utilizados na pesquisa são parte integrante do acervo do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa, CEDAP – UINESP/Assis. (Nota da autora) 66 Para obter mais subsídios sobre como utilizar os periódicos e ter um panorama dos diversos trabalhos desenvolvidos a partir dessas fontes, ver: LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanesi (org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. pp. 111- 153. - 35 - seleção dos casos foram: faixa etária, estado civil e ocupação, com as respectivas tabelas de dados absolutos e percentuais. Mais do que um meio de expressão e de entretenimento, a música popular oferece aspectos de análise variados, que nos permite conhecer práticas, valores, códigos e círculos de relações sociais e também locais de sociabilidade. A música também pode mostrar diferentes aspectos sociais, especialmente do cotidiano dos mais pobres. Contudo, não se pode esquecer que o modo de vida e opiniões apresentadas nas canções partem sempre das vivências do autor, ainda que sob influência de um grupo social. Não se trata de um reflexo da realidade e sim de como ela é pensada e percebida pelo autor. A temática, apesar de lidar, na maioria das vezes, com as mulheres e os relacionamentos, não tem uma abordagem romântica, e sim uma abordagem malandra. Nelas, as relações descritas não se estabelecem da mesma maneira que a elite tenta determinar e possuem dinâmicas e necessidades diferentes das relações ocorridas em outras classes sociais. Se nos sambas de Ismael Silva aparecem a liberdade proporcionada pela boemia e seu ambiente festivo, nas páginas policiais aparece um cotidiano cheio de agressões físicas, censuras e crimes passionais. Há também o desespero pela falta de dinheiro, o abandono, a falta de perspectiva para uma vida menos miserável. Parafraseando Noel Rosa67, tudo aquilo que o malandro não pronuncia, as páginas do Correio da Manhã denunciam. 67 ALVES, Francisco; COPACABANA Orquestra. Não tem tradução (Cinema falado). In: JUBRAN, Omar Abu C. Noel pela primeira vez. São Paulo: Gravadora Velas, 2000. Catorze CDs, v. 4, CD 7, faixa 10. Acompanha encarte. - 36 - 1 – QUEM É ESSE ISMAEL SILVA? “Peguei o samba de pé descalço nas ruas dos bairros. Hoje ele está de smoking nos salões dos clubes elegantes. 68” Caçula de cinco irmãos, Milton de Oliveira Ismael Silva nasceu em Jurujuba (Niterói, RJ), em 14 de setembro de 1905. Depois de ficar órfão do pai, Benjamim da Silva, mudou-se com a mãe, Emília Corrêa Chaves, para a Cidade do Rio de Janeiro, para que ela trabalhasse como lavadeira. Por não ter condições de manter os filhos maiores, Emília deixou-os para serem cuidados por parentes. Ismael foi morar com uma tia, na Rua do Bispo. Aos oito anos voltou a morar com a mãe e uma das irmãs na Rua Oriente e já fazia pequenos trabalhos para ajudar no orçamento doméstico, como mensageiro e, depois, já adolescente, foi sapateiro. Aos 18 anos, depois de estudar no Liceu de Artes e Ofícios e de trabalhar como criado nos bairros de Catumbi e Rio Comprido, passou a viver definitivamente no bairro de Estácio de Sá, na Rua que dá nome ao bairro69. O compositor morou lá até 1931, de onde se mudou depois da morte de seu amigo e primeiro parceiro musical, Nilton Bastos. Foi morar no centro da cidade e, a partir de então, seria conhecido como o “grande” Ismael Silva, um dos mais produtivos de sua geração. Considerado um dos compositores mais importantes da década de 1930, o autor aborda em seus sambas a malandragem, a liberdade e, sobretudo, as mulheres. Elas sempre aparecem como a causa de seus problemas, ou como alguém que não é digna de confiança, além de volúvel, perdulária, infiel e “da orgia”. Apesar de ter afirmado em uma entrevista70, que nenhum dos episódios narrados em suas músicas tenha acontecido, foi observando fatos do cotidiano, nos ambientes onde freqüentava que o sambista obteve inspiração. As “mulheres da orgia” da vida real, em algum momento, perturbavam a ordem, fugiam aos padrões de comportamento considerados adequadas pelas mais diversas razões e circunstâncias. 68TAVORA, Silvia. O carnaval está morto. Revista Veja, São Paulo: 14 de fev. 1970, p. 6. 69 ALVES, Henrique L. Sua excelência o samba. São Paulo: Editora Símbolo, 1976, p. 67. 70 NAGLE, Leda. Ismael Silva: muita gente me curte, me beija e me abraça. Não sou Ave Maria, mas sou cheio de graça. O Globo, 14 de nov. 1975, [s.p.]. - 37 - Mas, afinal, quem é essa mulher “da orgia”? Responder a essa pergunta é um dos propósitos deste trabalho. Tão marginalizadas quanto os malandros, as mulheres malandras, como Claudia Mattos as define, tentam sobreviver sem se submeter aos padrões instituídos e funções determinadas para elas pela elite: o casamento e a maternidade. Ainda que algumas delas vivessem de maneira marginal, uma vez que não são nem donas de casa e nem prostitutas71, elas buscavam no dinheiro, na orgia (na vida boêmia) e, até mesmo na promiscuidade, uma satisfação pessoal que a vida doméstica não poderia oferecer. No samba O que será de mim72, Ismael Silva se definia como possuidor de uma malandragem fina, diferente da de outros malandros, embora não dissesse diretamente o que, de fato, era esse tipo de malandragem. Ele construiu a imagem de “bamba do Estácio”, a partir do modo de se expressar, de se vestir, dos lugares que freqüentava, observando as pessoas com quem convivia, os acontecimentos e práticas que estavam ao seu redor. Suas entrevistas e depoimentos fornecem indícios de como gostaria de ser visto. Para compreender melhor esse processo, algumas questões como, quais eram seus círculos de relações (amigos, inimigos, parentes, colegas, vizinhos, etc.), permitiram ler e interpretar as fontes disponíveis sobre o sambista sob várias nuances. Que características poderiam ser encontradas na narrativa criada por ele? E ainda, como os episódios que fazem parte da sua trajetória poderiam valorizar (ou vitimar) o compositor, justificar uma atitude ou comportamento de quando era jovem? Nem sempre responder a essas e outras indagações é tarefa fácil, uma vez que, apesar de seu esforço para manter viva sua memória como compositor popular, alguns silêncios e omissões a respeito de episódios considerados por ele menos interessantes estão presentes nessa narrativa. Segundo Philippe Artières, para que alguém, de fato, exista, é preciso o registro de sua trajetória de vida, ou então, disponibilizar diferentes documentos (identidade, certidão de nascimento ou casamento, ou ainda diários, cartas, cartões, bilhetes, etc.) para esse fim. Tão importante quanto o material arquivado, ou os acontecimentos da vida de alguém, é a classificação que se dá a eles. Ao arquivar a vida, contrapõe-se uma imagem social a uma imagem particular. A construção de uma identidade é um meio de 71 MATOS, Claudia. Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 148. 72 SILVA, Ismael. O que será de mim?. Intérpretes: ALVES, Francisco; REIS, Mário. In: FRANCHESCI, H. A casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002. Cinco 5 CDs com imagens e quatro CDs com fonogramas originais. CD 4, faixa 22. - 38 - vê-la registrada, juntamente com seus valores, crenças e práticas73. Ao falar de si, o compositor procurava sempre projetar uma imagem de alguém especial. Ele produzia um sentido específico e peculiar para sua vida e seus vínculos de amizade e, ao narrar a sua história, buscava ser reconhecido como tal. Um episódio que sempre contava aos repórteres e que ilustra sua singularidade, era sobre a sua vontade de estudar. Segundo Ismael Silva, foi essa vontade que o fez procurar sozinho, ainda garoto, uma escola. Peço licença para contar a maneira que eu entrei para o colégio, porque foi uma maneira diferente de todas e, talvez no caso, a única aqui no Rio de Janeiro e talvez no mundo. É que todos os dias eu ficava pedindo pra (sic) minha mãe me levar ao colégio. E ela, pra (sic) se livrar de mim, ficava: ‘Amanhã eu levo... ’ até que um dia, sem ninguém saber, entrei pelo colégio adentro... por essas portas...que naquele tempo os colégios tinham as portas abertas o dia inteiro. Então, não houve dificuldade: invadi. Cheguei na primeira sala, que era da diretora e tal, e ela me perguntou o que eu queria. Eu disse que queria estudar. Tinha fome de saber, eu quero saber ler e tal... Então, criou-se um caso: a diretora me chamou... parou as aulas e as professoras vieram assistir aquilo...era uma coisa diferente, não é?74 Não bastasse o episódio pouco comum, a narrativa buscava valorizar o caso “único”. É como se desde cedo, o pequeno Ismael acreditasse que estava destinado a ser admirado, a ter uma platéia. Maria Thereza Mello Soares, afirma que a principal característica de sua narrativa em suas declarações era a gabolice, a vaidade de ser visto como alguém incomum. E questiona a veracidade do relato sobre a escola: Vai ver a coisa não foi bem assim... embora se possa admitir que as escolas antigamente funcionassem com menos burocracia (tratava-se de uma escola pública estadual), é difícil acreditar que se matriculasse uma criança com sete anos sem a presença, no mínimo, de um responsável75. 73ARTIÉRES, op. cit.,p. 11. 74 Extraído de depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som – RJ, em 1966. Parte integrante do Acervo Almirante. 75 SOARES, Maria Thereza Mello. São Ismael do Estácio: um sambista que foi rei. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985, p. 9. - 39 - Essa “gabolice” passou a fazer parte de uma estratégia para um processo de construção de sua imagem pública. Ele não queria ser visto como um sambista comum: negro, pobre e com poucas chances de melhorar de vida. Ismael Silva construía um outro personagem de si mesmo: um artista bem relacionado, famoso e esperto. E para afastar qualquer possibilidade de ser visto como um homem comum, pouco falava de sua vida pessoal, de sua família, frustrações, ou da filha, Marlene, que nunca assumiu ou reconheceu, apesar de tê-la conhecido pessoalmente pouco antes de falecer. Ele guardou tão bem o segredo, que o seu romance de amor – curto e logo desfeito – só foi tornado público, com datas, nomes de personagens e outros detalhes, no dia de sua morte, quando surgiu no velório uma jovem senhora que disse simplesmente: - Ele é meu pai, sim; e sabia disso, mas nem me registrou, sabe como é, um sambista, um poeta. Eu o conheci há três anos em Campo Grande, na festa de seu aniversario; meu pai foi me ver. Pouco sei de sua vida, sua glória. Marlene Martins Batista era filha de Ismael Silva, ‘fruto de um romance que ele manteve com a passista Diva Lopes Nascimento, em 1936, no Estácio76. A maneira como eram contados e ordenados os episódios de sua vida seguiam uma ordem determinada por ele, destacando os fatos que considerava mais relevantes, especiais. Isso vem ao encontro do que afirma Pierre Bourdieu, em A ilusão biográfica77: “o relato de vida tende a se aproximar de um modelo oficial de apresentação oficial de si”. No caso de Ismael Silva, sua apresentação oficial é a sua peculiaridade, seja na infância, seja no meio artístico. Ele utilizava destes artifícios para que os acontecimentos de sua vida levassem as pessoas a acreditarem que, de fato, ele era alguém especial, único. Isso não quer dizer que o autor tivesse total controle sobre o que era publicado na imprensa a seu respeito. Pretendia, na verdade divulgar uma imagem de si, essa sim, editada, produzida, elaborada com a finalidade de ser visto como ele gostaria e não como ele de fato era. Não é possível ter o controle sobre os 76 ISMAEL Silva desconhecido – o grande compositor tinha uma filha e um passado a persegui-lo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de mar. 1979. 77 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Usos e abusos da História Oral. 3ª Edição. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 188. - 40 - fatos e acontecimentos de sua vida, mas é possível ordená-los, rearranjá-los e atribuir novos significados a eles quando se narra a própria trajetória78. De acordo com Artières, para que exista uma lembrança admirável de si é preciso editar a própria vida, para compor um belo filme, em que o roteiro é a narrativa elaborada, construída79. Este mecanismo de “editar” a construção de uma imagem pública visa responder a seguinte questão: O que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido, silenciado? Por meio dessa “montagem”, é possível conhecer e analisar o cotidiano e o espaço privado de quem a elabora. Mais do que revelar sobre as práticas do cotidiano, os círculos de sociabilidade, diferentes códigos sociais, vocabulário e visões de mundo, ocorre também a elaboração da identidade do indivíduo80. Ismael Silva buscava imprimir uma imagem a seu respeito que também determina, de alguma forma, sua identidade, ainda que essa imagem não revelasse sua identidade verdadeira identidade. A imagem do compositor Ismael Silva foi lapidada ao longo dos anos, para que de sua memória só restasse a imagem do compositor famoso. A identidade que o sambista tentou construir é a de um artista popular, mas cheio de peculiaridades, ainda que fosse um homem comum, com defeitos, dificuldades, fraquezas e angústias. No meio de tantos que buscavam viver profissionalmente de suas composições, este era o modo encontrado para se fazer lembrar, de não ser mais um sambista entre tantos outros de sua geração. Não é a toa que prezava e gabava-se de ter tido em sua juventude amizade com intelectuais, jornalistas, e pessoas influentes. Ele não era o primeiro artista popular a ter esse tipo de vínculo com a elite, mas, como era alguém com objetivo de ser visto como alguém especial, ele atribuiu um significado especial a esse círculo de amigos. Esse trânsito entre grupos sociais diferentes permitia a ele ser reconhecido, admirado e respeitado, ajudando a construir uma imagem popular em torno de si. Desta maneira, pôde deixar um testemunho de uma época e, ao mesmo tempo, lançar mão de um dispositivo para que sua memória resistisse ao tempo e continuasse a existir depois dele. 78 GOMES, Ângela Castro (org.) Escrita de Si: escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 16. 79 ARTIÈRES, op. cit., p. 11. 80 GOMES, op. cit.,p. 16. - 41 - Contudo, alguns aspectos da vida pessoal ficaram nebulosos. Um exemplo disso são os boatos de que o compositor era homossexual. Tais rumores nunca foram confirmados ou negados, apesar de Luis Antônio Giron, em seu livro Mario Reis: o fino do samba, falar a respeito como se fosse algo notório e sabido: “Ismael destacava-se dos outros, pois se vestia melhor, usava jóias e era homossexual assumido81.” Entretanto, Giron não oferece indícios que confirmem essa informação. Teria sido um aspecto de Ismael Silva que se desejava ocultar, para não macular sua imagem? Ou uma simples dedução, pelo fato de o sambista se “vestir melhor” e “usar jóias”, algo incomum entre os homens pobres e negros na década de 1930? Esse comportamento peculiar poderia sugerir, naquela época, uma sexualidade ambígua. Em sua biografia não há nenhuma referência a essa questão, tampouco nos livros e reportagens de periódicos citados anteriormente. O cantor Mario Reis, um dos que mais gravaram composições de Ismael Silva no início da década de 1930, assim como o sambista, era visto como alguém “esquisito”, “afetado” e de masculinidade duvidosa. Tudo por causa da maneira como se apresentava em público e de seus gestos delicados ao cantar. Seus maneirismos discretos [de Mario Reis], sempre remetiam a imaginação dos ouvintes maliciosos a fazer inferências. Ajudavam nelas o repertório ‘antifeminino’ do [bairro de] Estácio [de Sá], boa parte dele de autoria do homossexual Ismael (...). 82 O foco desta discussão não é procurar saber quais as preferências sexuais do compositor, mas perceber que, ao tentar forjar uma imagem diferente dos compositores “comuns”, Ismael também teve uma outra imagem construída pelos outros. Essa imagem é muito diferente daquela pretendida por ele. Como provavelmente não havia como confirmar ou negar essa afirmação, Maria Thereza Mello Soares não considerou este assunto como algo que devesse ser investigado mais detidamente. Isso mostra que, apesar de todo um esforço em criar uma imagem de si, dos relatos, documentos e outros indícios, nem sempre essa imagem é recebida e interpretada da maneira pretendida. Trata-se de uma memória “clandestina”, no caso, distinta daquela imaginada e construída por Ismael Silva. E, por mais que ele tenha se esforçado para construí-la e 81 GIRON, Luís Antônio. Mario Reis: o fino do samba. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 98. Grifo da autora. 82 GIRON, op.cit., p. 156. - 42 - editá-la a sua maneira, também há a construção de uma outra memória, como as várias biografias não autorizadas existentes no mercado editorial, por exemplo. Essa memória clandestina não é feita em oposição àquela criada, mas é composta de aspectos ou fatos excluídos, ou incertos, como uma possível homossexualidade, no caso do sambista. Essa “versão não oficial”, ou memórias subterrâneas, como define Michel Pollak83, emerge de um modo ou de outro, mesmo que em conflito com a memória “oficial”. Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente a oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante84 Surgem novamente as brechas, as zonas de silêncio e de sombras. São episódios que ficam de fora da edição final85 da memória ‘oficializada’ de Ismael Silva, mas que repercutiriam de maneira irreversível em sua vida. Numa sociedade machista como a que ele vivia, a homossexualidade não era algo aceito. Se de fato o compositor era homossexual, isso macularia sua imagem de artista e, portanto, deveria ser algo negado, ou ocultado. Se não era, essa afirmação pode ter surgido como uma tentativa de desmoralizá-lo, uma vez que a homossexualidade era considerada um desvio moral, uma perversão. Muitas vezes, é preciso ir além das evidencias dos documentos para obter informações onde aparentemente elas não estão. Ou seja, nas brechas, nas ausências, bem como na imagem construída por outras pessoas. Para valorizar sua imagem pública ao longo de sua vida, Ismael procurava manter boas relações com a imprensa e, sempre que possível, concedia entrevistas contando e recontando sua trajetória artística e também falando sobre a origem da escola de samba Deixa falar. As questões sobre a construção de sua imagem pública e suas relações com a imprensa serão aprofundadas mais adiante. 83 POLLAK, MICHEL. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2 nº. 3, 1989, p. 3-15. 84 POLLAK, op.cit., p. 5. 85 Idem, p. 8. - 43 - 1.1 Na orgia Ainda que gostasse de conviver com pessoas de classe social diferente da sua e de ser valorizado por elas, era numa das mesinhas dos botecos do Estácio onde Ismael Silva encontrava inspiração para seus sambas. Como ele mesmo se definia, era um artista do espontâneo86, das coisas do cotidiano. Certa ocasião, o compositor disse numa entrevista para a revista Veja que suas canções não são autobiográficas. Contudo, vale a observação do repórter: “Se não existem as personagens, os sentimentos, no entanto, parecem mais que verdadeiros, e convivem com Ismael no seu dia-a-dia.” 87 E no dia a dia de Ismael Silva também estavam os bares próximos do Café Nice, na região da Cinelândia, onde ficava boa parte dos cafés, restaurantes, cabarés e dancings. Freqüentados por músicos, cantores, coristas e aspirantes a artistas, era a parte mais movimentada da cidade. E as criações de Ismael não ficariam imunes a esse ambiente. Como se não bastassem a Galeria Cruzeiro, com seus bares em pleno funcionamento, e o Nice, havia o dancing Belas Artes, que funcionava no 1º. Andar do café do mesmo nome. Em frente, o Palace Hotel, no qual se hospedavam turistas e políticos dos estados, e cujo bar estava sempre repleto de belas mulheres que se deixavam atrair pelas bolsas recheadas dos hóspedes...88 Muitas dessas mulheres ganhavam a vida dançando com os clientes nos diversos dancings da região, como o já mencionado Belas Artes, que contava inclusive com uma orquestra de moças para animar as sessões dançantes, o Atlântico, localizado na Avenida Passos e o Cabaré Assírio. Sobre elas, Orestes Barbosa comenta poeticamente89: 86 MALHEIROS, Sônia; MIGUEL, Antonio Carlos. Ismael Silva: minha vida é um samba. In: Música do Planeta Terra, nº1. Rio de Janeiro: editora Ground Informação, 1976, p. 10. 87 VEJA. O solitário Ismael, ensaiando o dia de uma nova festa. São Paulo, 12 de fev. de 1975, p. 44-45. 88 HOLANDA, Nestor de. Memórias do Café Nice: subterrâneos da música popular e da boemia do Rio de Janeiro. 2 ª edição. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1970, p. 43. 89 BARBOSA, Orestes. Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 243. - 44 - E as cariocas rodam hoje, até o dia claro, debaixo das lâmpadas dos dancings que se espalham pela cidade num delírio de harmonias e paixões. Chama-se Ivete. É um lindo veneno moreno. É flexível como uma haste de avenca... De boca apunhalada... Ama?Talvez odeie beijando... Nestor de Holanda,90 por sua vez, descreve de maneira bem menos poética parte da rotina de trabalho dessas mulheres e seus pequenos subterfúgios para conseguir um dinheiro extra: [As mulheres] além de pequeno salário, ganhavam comissão sobre as despesas feitas pelos cavalheiros que as convidavam para as mesas. Era comum pedirem ao garçon: _ Uísque com água tônica e um maço de [cigarros] Pour la Noblesse. O garçom já sabia: servia mate com água tônica. E os incautos passavam a noite pagando doses de uísque. Apesar de bastante freqüentados, inclusive por homens da elite carioca, os dancings não eram bem vistos. Durante as pesquisas na seção O dia Policial, do jornal Correio da Manhã foram encontradas algumas notas que mostram como esse ambiente pode ser violento, competitivo e até mesmo hostil. Em várias reportagens foram denunciados o funcionamento irregular dos dancings e das “falsas escolas de dança”. Seja porque “as casas de entretenimento não cumpriam as exigências do regulamento para funcionamento”91, ou porque a vizinhança92 reclamava do barulho e das freqüentes brigas entre os clientes, os donos dos estabelecimentos e a polícia. O ambiente boêmio não era lugar de “negócios” somente para os homens. Algumas mulheres também tinham na orgia o seu ganha pão. E como em todo negócio, a concorrência era acirrada. Em 26 de março de 1930, uma dançarina foi espancada por três rivais, ao se dirigir para o trabalho. Joracy Moreira, a vítima, foi agredida por causa de clientes que ela havia supostamente “roubado” 93das demais. 90 HOLANDA, op.cit., p. 45. 91 CORREIO DA MANHÃ. Contra os dancings. 17 de abril de 1935. 92 CORREIO DA MANHÃ. Música e pancadaria: cinco pessoas feridas no conflito. 20 de set de 1935. 93 CORREIO DA MANHÃ. Entre dançarinas profissionais. 26 de mar. 1930. - 45 - A ilusão de conseguir um cliente que rendesse uma boa comissão ou, quem sabe, uma vida diferente, fez com que muitas moças tentassem a sorte dançando, seduzindo, mas também se deixando seduzir e iludir. Esse foi o caso de Maria Pereira, de 21 anos, que tentou se matar porque um antigo cliente, com quem passara a viver maritalmente, terminara o romance94. Ao perceber que Antônio N. Dias, seu amante, havia realmente voltado a morar com sua antiga esposa, Maria tentou suicídio se jogando de um carro em movimento. Anos mais tarde, as moças dos dancings ainda seriam tema de canções como Vida de bailarina, escrita por Américo Teixeira e Dorival Silva. Gravada pela primeira vez em 1954, por Ângela Maria. 95 Apesar de não ser de Ismael Silva, descreve bem a vida dessas mulheres “da orgia”. Quem descerrar a cortina Da vida da bailarina Há de ver cheio de horror Que no fundo do seu peito Abriga um sonho desfeito Ou a desgraça de um amor Os que compram o desejo Pagando amor a varejo Vão falando sem saber Que ela é forçada a enganar Mal vivendo p´ra dançar Mas dançando p´ra viver Obrigada pelo oficio A bailar dentro do vício Como um lírio em lamaçal É uma sereia vadia Prepara em noites de orgia O seu drama passional Fingindo sempre que gosta De ficar à noite exposta Sem escolher o seu par Vive uma vida de louca Com um sorriso na boca E uma lágrima no olhar 94 CORREIO DAMANHÃ. Não era correspondida em seus amores...A dançarina tentou suicidar-se, atirando-se do automóvel em movimento. 01 de abril. 1930. 95 MARIA, Ângela. Vida de bailarina. Américo Teixeira e Dorival Silva. Rio de Janeiro: Gravadora Copacabana, 5170 - B, 1954