unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CINTHIA YURI GALELLI A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DA INTERCULTURALIDADE NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA ARARAQUARA – S.P. 2015 CINTHIA YURI GALELLI A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DA INTERCULTURALIDADE NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística. Linha de pesquisa: Ensino/aprendizagem de línguas Orientador: Nildicéia Aparecida Rocha Bolsa: CNPq ARARAQUARA – S.P. 2015 Galelli, Cinthia Yuri A emergência do conceito da interculturalidade no ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras / Cinthia Yuri Galelli – 2015 147 f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientador: Nildicéia Aparecida Rocha 1. Interculturalidade. 2. Ensino e aprendizagem de línguas. 3. Arqueologia. 4. Análise do Discurso. I. Título. CINTHIA YURI GALELLI A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE INTERCULTURALIDADE NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Data da defesa: 17/04/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidenta e Orientadora: Profa. Dra. Nildicéia Aparecida Rocha Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara – SP. Membro Titular: Profa. Dra. Eva Ucy Miranda Sá Soto Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Membro Titular: Profa. Dra. Maria do Rosário Valencise Gregolin Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara – SP. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A José, Eliza e Aline (Sá), por estarmos sempre juntos nessa nossa prazerosa aventura familiar. AGRADECIMENTOS À minha mãe Eliza de quem eu herdei os traços físicos, o vício pelo café (essencial na fase de escrita) e o amor pela leitura. Agradeço pelo seu coração bom, sua gentileza e pelo “não atrapalhem a Cinthia, ela está estudando!”. Ao meu pai José pela humildade e serenidade, pelas tantas vezes que tornou meus estudos mais leves, me levando ao colégio, à rodoviária, a Araraquara. Agradeço também pelo frequente “eu te ajudo” que tantas vezes me proferiu. À minha irmã Aline, minha pessoa preferida. A quem devo meu gosto pelas letras, pois me alfabetizou, me ajudou com os deveres da escola, me presenteou com livros durante toda minha adolescência e acompanhou todos meus sonhos acadêmicos (e não acadêmicos também). À professora Nildicéia Aparecida Rocha por ter me orientado na vida acadêmica, profissional e pessoal, com as nossas conversas sempre prazerosas. Por seu alto-astral e sua espontânea humanidade. A toda Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, em especial à sessão de pós- graduação em Linguística e Língua Portuguesa pelo apoio e disposição. Agradeço à encantadora Maria do Rosário Gregolin que me forneceu, através de suas aulas brilhantes, o apoio teórico e metodológico deste trabalho e me brindou com a sua genialidade tão espontânea e inspiradora. A Ucy Soto, minha primeira “mãe” acadêmica, quem me incutiu o gosto pela pesquisa, pela língua espanhola e quem me ensinou a no quedarme inmóvil ao borde del camino com seu exemplo de integridade e competência. À professora Lúcia Barbosa Assunção, a responsável pela mudança de meu tema de pesquisa em pleno andamento do curso, graças às suas aulas dinâmicas e autênticas. Sou grata a Valéria Quiroga, Cibele Rozenfeld e Nelson Vianna, pelas leituras atentas e preciosas contribuições nesta dissertação e por serem sempre tão prestativos! Ao Maurício que, ao primeiro encontro, transformou meu olhar em todos os sentidos positivos, ampliou minha mente e desenvolveu em mim o senso crítico. Agradeço pelo companheirismo, pelo carinho e por todos os “vai dar certo sim, Ci!”. Ao tio Lúcio [in memoriam] pelo entusiasmo com os meus estudos na área das letras, por ter me doado toda sua biblioteca (inclusive sua coleção da Clarice!), por ter financiado grande parte de minha festa de formatura e, por até hoje, me inspirar. Aos meus familiares, primos, primas, tios, tias, avós e avô, em especial ao Teruo, ao Rideo e ao tio Celso, por promoverem divertidas reuniões familiares, me dando ânimo para voltar a escrever. Às amigas com as quais eu dividi casa durante o período do mestrado, Dani, Lilia, Rafa e Mafalda, pelo apoio, pela amizade e paciência! A todos os professores que, não por acaso, encontrei em minha vida de estudos, em especial aos professores de línguas: Mariza Mendes, Maria Regina, Lola Aybar, Silvia Adoue, Isadora Gregolin, Andressa e Guacira Marcondes Machado. Obrigada! Merci! Gracias! Aos meus companheiros da pós-graduação com quem compartilhei minhas muitas incertezas, o cansaço e as conquistas, em especial a Adriana Pilla, Anna, Thiago, Luiza, Yuri, Helô, Thaís, Léo, Érica, Sueli, Cadu, Rafa e Leandro. Aos queridos e queridas de Bauru (e região), que repõem minhas energias com nossos divertidos encontros; aos amigos e amigas que Araraquara me deu e que fizeram desta cidade um lugar tão especial, principalmente os meninos e xs agregadxs da querida e singular república VTC. A Natália pela cumplicidade, pelas gargalhadas e pelas conversas encorajadoras que foram essenciais para a realização deste e de tantos outros trabalhos realizados. A Kelly e Bianca, minhas companheiras de dúvidas, desabafos, viagens, risos e espanhol. Aos colegas e amigos de trabalho do CNA-Araraquara e do CTI-Bauru que estiveram na torcida e possibilitaram, de certa maneira, meu ingresso, permanência e sucesso na pós-graduação, me ouvindo, apoiando, dando dicas e quebrando galhos! Ao CNPq por ter concedido o apoio financeiro necessário durante grande parte do curso de mestrado. Por fim, a todos os que foram, são e serão meus alunos, por possibilitarem minha construção como professora. A todos vocês, meu profundo reconhecimento e gratidão. Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós próprios (SARAMAGO, 1997, p. 8) RESUMO Pode-se observar nos últimos anos o crescente uso dos termos intercultural(idade) nos discursos educacionais, sobretudo os que tratam de língua estrangeira (LE). Esse termo vem, há algum tempo, ganhando espaço tanto nos documentos educacionais europeus, quanto nos da América do Sul. É notável no Brasil, por exemplo, a preocupação pelo desenvolvimento de uma dimensão intercultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), nas Orientações Curriculares, nos livros didáticos e nas inúmeras investigações acadêmicas publicadas sobre ensino e aprendizagem de LE. Assim, podemos afirmar que a interculturalidade está na ordem do discurso. Diante desse acontecimento, este trabalho objetiva verificar como se instaurou o discurso sobre a interculturalidade no ensino de línguas estrangeiras a partir do instrumento de análise empreendido por Michel Foucault, denominado arqueologia. Em outras palavras, buscamos responder à seguinte pergunta: quais são as condições de emergência do conceito de interculturalidade no ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras? Para responder a essa questão, empreendeu-se uma análise das funções enunciativas, buscando descrever as materialidades, o sujeito e o referente dos enunciados dos documentos oficiais de educação publicados pelo Conselho da Europa e pelo Ministério da Educação do Brasil. Além disso, mapeamos as correlações estabelecidas entre os enunciados da interculturalidade no ensino de LE com enunciados de campos associados como a linguística e as ciências sociais. Os estudos demonstram que o funcionamento enunciativo sobre a interculturalidade existe e tem êxito porque temos sujeitos aptos a enunciá-los pois são portadores de autoridade em relação ao ensino de línguas, como linguistas renomados ou organização governamental; um referente que se apoia em uma materialidade com regularidades e apagamentos discursivos que produzem, apoiados em uma rede de memórias, efeitos de verdade; e campos associados, como as ciências sociais e a linguística, envoltos em uma rede de continuidades e descontinuidades que ajudam a sustentar o que é produzido no projeto da interculturalidade. Palavras-chave: Arqueologia. Interculturalidade. Ensino de Línguas Estrangeiras. ABSTRACT In the last years, we can observe the increasing use of intercultural(ity) terms in Educational Discourses, especially those dealing in Foreign Language (LE in Portuguese). This term comes, for some time, gaining space in the European Educational Documents as well in the South American ones. It is considerable in Brazil, for example, the concern about the development of a intercultural dimension in relation to the National Curriculum Parameters (PCN in Portuguese), the Curricular Guidelines, the textbooks and countless academic researches published about teaching and learning a Foreign Language. Thus, we can say that interculturality is the Discursive Order. In light of this, this research aims to verify how the discourse is based on the interculturality in the teaching of Foreign Languages through the analysis instrument undertaken by Michel Foucault, named Archeology. In other words, we aim to answer the question: what are the emergency conditions of the interculturality concept in the teaching and learning of foreign languages? To answer this question, it was done an analysis about the enunciative functions, purposing to describe materiality, the subject and the statement of the Official Documents statements related to education published by the Council of Europe and the Education Ministry in Brazil. In addition, we mapped the correlations established between the statements of interculturality in the teaching of foreign language and the statements of associated areas as Linguistics and Social Sciences. Researches show that the enunciation operation about interculturality exists and it has success because we have subjects able to enunciate. This occurs due to the authority of these subjects in relation to language teaching, as renowned linguists or governmental organization; a statement based on a materiality with regularities and deletions discursive that produce truth effects, supported on a memory network, and associated areas, such as Social Sciences and Linguistics, wrapped in a continuities and discontinuities network that helps to sustain what is produced in the interculturality project. Keywords: Archeology, Interculturality, Teaching of Foreign Language. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CE Conselho da Europa GT Gramática-Tradução LE Língua Estrangeira MEC Ministério da Educação e Cultura OCs Orientações Curriculares PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais PNLD Programa Nacional do Livro Didático SEB Secretaria da Educação Básica WEA Workers Educational Association SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 1.1 Relevância para o tema de pesquisa 13 1.2 Objetivos 16 1.3 Estrutura da dissertação 16 2 MÉTODO E TEORIA COM MICHEL FOUCAULT 18 2.1 O contexto da Arqueologia: os diálogos com a História 20 2.2 Elucidando alguns conceitos 27 2.3 A aplicação do método: para uma arqueologia da interculturalidade 35 3 O PAPEL DA CULTURA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS 39 3.1 Concepção clássica de cultura 39 3.2 Concepção descritiva de cultura 48 3.3 Concepção simbólica de cultura 59 3.4 Concepção estrutural de cultura 61 3.5 J.B.Thompson, Foucault e os estudos culturais contemporâneos 65 4 LÍNGUA, CULTURA E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS 74 4.1 Relação entre língua e cultura 74 4.2 O papel da cultura no ensino e aprendizagem de línguas 80 5 O DISCURSO DA INTERCULTURALIDADE: AS MATERIALIDADES, O SUJEITO E O REFERENTE 101 5.1 Sujeitos 103 5.2 As materialidades e o referente 107 6 CONCLUSÃO 129 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 135 11 1 INTRODUÇÃO “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto É que Narciso acha feio o que não é espelho (...) Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso” Caetano Veloso (1978) Nunca o contato entre culturas diferentes esteve tão presente em nossa vida cotidiana como hoje. Fatores como a globalização, a propagação dos meios de comunicação, a possibilidade de cada vez mais pessoas poderem viajar e entrarem em contato com outras culturas, estrangeiras ou nacionais, a (i)migração, o fortalecimento das políticas afirmativas das minorias são alguns dos responsáveis por essa constante relação. O “outro” não é mais aquele que se conhecia pelos documentários exibidos na televisão ou pelas longas viagens, internacionais ou não, restritas a uma pequena parte da população. Não é mais aquele ser com quem travávamos contato somente se assim pudéssemos ou desejássemos. Agora existem mais possibilidades de encontro com o “outro”, no bairro, nos estabelecimentos, nas universidades. O outro pode, relativamente, disputar vagas de emprego, querer cursar uma boa faculdade e também, não mais em silêncio, luta por um espaço na sociedade. Cientes das circunstâncias que nos rodeiam, os órgãos nacionais de educação de vários países têm, há algum tempo, tomado iniciativas para fomentar o reconhecimento e o respeito pela diversidade cultural inerente ao processo de formação identitária (LOPES, 1999), já que a educação não pode se eximir da responsabilidade de formar cidadãos cada vez mais preparados para essa condição de sujeitos interculturais. De fato, podemos observar nas práticas discursivas dos documentos oficiais de educação, a crescente alusão à importância e à necessidade de se reconhecer e respeitar a diversidade cultural no âmbito social e escolar. No Brasil, por exemplo, essas práticas estão amplamente veiculadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), nas Orientações curriculares (OCs), no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), nos prefácios dos livros didáticos e nas inúmeras investigações acadêmicas publicadas sobre educação como artigos, dissertações e teses. A publicação dos PCNs em 1997 foi um divisor de águas no âmbito da educação, de uma maneira geral, já que antes de seu aparecimento, a educação não contava com uma orientação curricular básica de nível nacional (SILVA, 2012), muito 12 menos com documentos específicos que tratassem da língua estrangeira (e menos ainda que abordassem as questões culturais no ensino de línguas). Nos PCNs de 1997 encontramos uma síntese da situação precária e confusa em que se encontrava até aquele momento, o ensino de línguas estrangeiras na prática escolar do ensino fundamental: A primeira observação a ser feita é que o ensino de Língua Estrangeira não é visto como elemento importante na formação do aluno, como um direito que lhe deve ser assegurado. Ao contrário, frequentemente, essa disciplina não tem lugar privilegiado no currículo, sendo ministrada, em algumas regiões, em apenas uma ou duas séries do ensino fundamental. Em outras, tem o status de simples atividade, sem caráter de promoção ou reprovação. Em alguns estados, ainda, a Língua Estrangeira é colocada fora da grade curricular, em Centros de Línguas, fora do horário regular e fora da escola. Fora, portanto, do contexto da educação global do aluno. Quanto aos objetivos, a maioria das propostas priorizam o desenvolvimento da habilidade de compreensão escrita, mas essa opção não parece decorrer de uma análise de necessidades dos alunos, nem de uma concepção explícita da natureza da linguagem e do processo de ensino e aprendizagem de línguas, tampouco de sua função social. Evidencia-se a falta de clareza nas contradições entre a opção priorizada e os conteúdos e atividades sugeridos. Essas contradições aparecem também no que diz respeito à abordagem escolhida. A maioria das propostas situam-se na abordagem comunicativa de ensino de línguas, mas os exercícios propostos, em geral, exploram pontos ou estruturas gramaticais descontextualizados (BRASIL, 1997, p. 24). Desde então, ano da primeira publicação dos PCNs, pelo menos em termos de menção nos documentos oficiais, a língua estrangeira recebe a mesma importância que as outras áreas disciplinares e conta com um documento exclusivo: Parâmetros Curriculares Nacionais – terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Estrangeira (1998a). Dois anos mais tarde, o Ensino Médio também é contemplado com um documento no qual a língua estrangeira consta na sessão Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: Conhecimento de Língua Estrangeira Moderna (2000). Além desses documentos, em 2002 surgem Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+): Linguagens, Códigos e suas tecnologias, no qual encontramos a sessão Língua Estrangeira Moderna e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias de 2006, que dedica um capítulo para Conhecimentos de Línguas Estrangeiras e Conhecimentos de Espanhol – essa exclusividade em relação à língua espanhola diz respeito à lei 11.161/2005 que torna a oferta dessa língua obrigatória nas escolas de todo o país. 13 Em maior ou menor medida, como veremos adiante na análise dos documentos (no capítulo 5 desta dissertação), os documentos oficiais sempre demonstraram certa responsabilidade no reconhecimento da diversidade cultural. É o que também aponta Fleuri (2003, p. 16): Desde o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que elegeram a pluralidade cultural como um dos temas transversais (Brasil, Ministério da Educação, 1997), o reconhecimento da multiculturalidade e a perspectiva intercultural ganharam grande relevância social e educacional com o desenvolvimento do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, com as políticas afirmativas das minorias étnicas, com as diversas propostas de inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais na escola regular, com a ampliação e reconhecimento dos movimentos de gênero, com a valorização das culturas infantis e dos movimentos de pessoas de terceira idade nos diferentes processos educativos e sociais. Além desses temas, que vêm se consolidando em âmbito nacional, outras questões que ocorrem em âmbito internacional vêm desafiando os estudos no campo da intercultura. A globalização da economia, da tecnologia e da comunicação intensifica interferências e conflitos entre grupos sociais de diferentes culturas, particularmente na conjuntura recentemente agravada por ações políticas de caráter belicista por parte de nações hegemônicas, assim como pelas diversas formas de “terrorismo” desenvolvidas por organizações fundamentalistas. Diante desses problemas, diferentes iniciativas e movimentos vêm desenvolvendo propostas de educação para a paz, para os direitos humanos, para a ecologia, para os valores etc. Esta dissertação procura observar a emergência do conceito de “interculturalidade” no ensino de línguas estrangeiras nos documentos oficiais de educação do Brasil traçando um paralelo com os documentos europeus publicados pelo Conselho da Europa, por haverem sido os pioneiros sobre as questões interculturais no ensino de língua estrangeira, como veremos adiante. Antes, porém, levantaremos algumas questões que justificam a escolha do tema de pesquisa. 1.1 Relevância para o tema de pesquisa Todo professor de línguas estrangeiras, possivelmente, deve ter se deparado em algum momento de sua carreira com a seguinte inquietação: como trabalhar cultura em suas aulas? Essa indagação é plausível principalmente se, em sua formação, o professor não tiver se deparado com questões relacionadas ao componente cultural, ou se as informações que lhe foram passadas não foram suficientes para gerar reflexões mais profundas sobre o tema. O que é, de fato, cultura? Por que esse componente é 14 importante para a formação do aluno? Qual conteúdo é relevante de ser trabalhado? Qual cultura da língua-alvo ensinar? Como ensinar cultura se não sou falante nativo e nunca saí do país? São algumas das questões que incomodam o professor de línguas estrangeiras. A perspectiva intercultural surge, talvez, de um lado para amenizar essas hesitações e, de outro para desestabilizar as práticas escolares tão arraigadas às tradicionais maneiras de se trabalhar cultura na sala de aula, como por exemplo, pela simples transmissão de informações sobre artes e hábitos dos povos que são reconhecidos como “nativos” da língua-alvo. Longe de se caracterizar como um livro de receitas, com fórmulas prontas a serem seguidas pelos professores, postas em práticas e treinadas com os estudantes, a interculturalidade possuiu um caráter alternativo. Abrange as esferas teóricas e práticas de maneira reflexiva e crítica e não se restringe ao ensino de línguas estrutural ou tradicional, ela pretende envolver uma formação humana. No sentido teórico e prático, a partir do seu diálogo com a antropologia, com os estudos culturais e com a linguística, a dimensão intercultural amplia os sentidos tradicionais da palavra cultura; não prescreve conteúdos fixos em relação à cultura-alvo; não homogeneíza uma cultura com o rótulo de “a cultura nativa”; não trata as outras por um viés etnocêntrico; procura relativizar sentidos e valores atribuídos a outras culturas. Ela procura, enfim, desenvolver uma sensibilização nos aprendentes em relação a diferentes formas de ver e viver a realidade. Considerando que um dos princípios gerais dessa dimensão é sensibilizar os sujeitos aprendentes de língua estrangeira ao respeito e à tolerância em relação às diferenças culturais, sejam elas frutos de nacionalidades distintas, etnia, gênero, classe, cor, faixa etária, crenças, sexualidade etc., este trabalho apresenta justificativas plausíveis se observarmos as práticas discursivas e não discursivas da nossa sociedade atual. Isso porque a observação da atual conjuntura aponta justamente para atitudes contrárias aos preceitos da abordagem intercultural: visão de mundo baseada no etnocentrismo e intolerância às diferenças. Essas perspectivas austeras se manifestam desde atitudes discriminatórias mais sutis como a reprodução de discursos velados, gestos e olhares até posturas mais radicais e explícitas como ataques discriminatórios físicos, discurso de ódio, ou até mesmo, omissão política e jurídica que contribuem para reafirmar papéis sociais causando segregação e determinismo social. Ainda que os fatores elencados anteriormente – globalização, (i)migração etc. - contribuam para o aumento das constantes relações entre culturas diferentes, é 15 indiscutível a necessidade de um ensino formal que viabilize os procedimentos interculturais, pois esse constante relacionamento por si só não contribui para que haja uma postura de tolerância e respeito a outras culturas, deve-se investir em um ensino que traga reflexão a essas relações. Para Moreira e Candau, A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar. (MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 161) A escolha do viés intercultural com e por meio das disciplinas de línguas estrangeiras, justifica-se, pois se supõe que as aulas dessas disciplinas contemplem um espaço privilegiado para a desconstrução de possíveis visões etnocêntricas e estereotipadas, possibilitada pela interrelação língua e cultura - consideradas indissociáveis – e pelo entendimento de que os sujeitos só compreendem a si mesmos e a sua cultura por meio do encontro, da comparação e da identificação com o que lhe é, de alguma forma, diferente. Sendo assim, entendemos que a aula de língua estrangeira não deve somente tratar de propiciar aos alunos a compreensão da cultura do estrangeiro pertencente às culturas da língua que se está aprendendo, mas estender essa compreensão e o respeito a todos os indivíduos, desde os que mais se distanciam do próprio padrão cultural aos mais próximos culturalmente (culturas nacionais, regionais e/ou com traços característicos semelhantes) e aprendendo também a respeitar sua própria cultura É desse modo, então, que este estudo se justifica, pois muito embora algumas pesquisas estejam sendo desenvolvidas sobre essa temática no país, os objetivos da educação intercultural merecem ainda uma maior visibilidade e a oportunidade de serem difundidos a partir de novas reflexões – no caso, pelo ponto de vista discursivo - e discussões entre os acadêmicos, entre os profissionais da educação básica e as políticas governamentais. 16 1.2 Objetivos Objetivo geral: Verificar como se instaurou o discurso sobre a interculturalidade no ensino de línguas estrangeiras a partir do instrumento de análise empreendido por Michel Foucault, denominado arqueologia. Em outras palavras, buscamos responder à seguinte pergunta: quais são as condições de emergência do conceito de interculturalidade no ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras? Certas da impossibilidade de nos ocuparmos de todo o potencial que o método arqueológico implica, definimos alguns objetivos específicos. Objetivos específicos: a) Observar a constituição dos enunciados pertencentes ao campo do ensino de línguas estrangeiras sobre a interculturalidade que interagem com outros enunciados provenientes de campos associados como a linguística e as ciências sociais. b) Analisar o funcionamento enunciativo do conceito da interculturalidade observando as funções de sujeito, referente e as materialidades desses enunciados, respondendo às perguntas: de que lugar falam os sujeitos do discurso? Quais enunciados o constituem? Como se materializam esses enunciados? 1.3 Estrutura da dissertação Essa dissertação se organizará em seis capítulos. Na introdução, apresentamos o tema da pesquisa, as motivações que nos levaram a tomá-lo como objeto de estudo, os nossos objetivos gerais e específicos e como este trabalho está estruturado. No capítulo 2, intitulado “Método e Teoria com Michel Foucault”, procuramos explanar a ferramenta de análise foucaultiana denominada “arqueologia” que oferece as bases metodológicas e teóricas para a realização desta dissertação. Primeiramente contextualizamos a inserção desse método em relação aos outros existentes usados pela História, em seguida elucidamos os principais conceitos teóricos que a arqueologia 17 envolve para, por fim, discorrermos sobre a aplicação desse método para o tema da pesquisa: a interculturalidade. O terceiro e quarto capítulos, intitulados respectivamente “O papel da cultura no ensino de línguas” e “Língua, Cultura e Ensino de Línguas Estrangeiras”, referem-se ao objetivo “a” (explicitado anteriormente no tópico 1.2). Neles, apresentamos o discurso das Ciências Sociais – principalmente da Antropologia Cultural e dos Estudos Culturais – e da Linguística que, de alguma forma, se relacionam com o discurso da interculturalidade no ensino de línguas estrangeiras. Mostraremos que esses enunciados não existem isolados, restritos ao discurso do ensino de línguas, mas em sua correlação com outras práticas discursivas e não discursivas de diferentes domínios, diferentes épocas e diferentes campos do saber. No quinto capítulo, apresentaremos por meio dos documentos que constituem o nosso corpus – os documentos oficiais de educação do Conselho da Europa e do Ministério de Educação do Brasil – três das características essenciais para a existência de um enunciado: um referencial, o fato de terem um princípio de diferenciação; uma materialidade, por tratar de coisas efetivamente ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passíveis de repetição ou reprodução, ativadas através de técnicas, práticas e relações sociais; e um sujeito, uma posição a ser ocupada. Assim, indicaremos o que efetivamente se disse da interculturalidade, como estão materializados esses discursos e quem, por sua posição, enuncia tais ditos. 18 2 MÉTODO E TEORIA COM MICHEL FOUCAULT [...]Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. (FOUCAULT, 2000, p. 20) Michel Foucault denomina a arqueologia como um princípio de análise proposto e usado por ele principalmente durante a primeira parte da sua produção intelectual, como podemos notar pelos subtítulos de seus primeiros escritos - O nascimento da clínica: uma arqueologia do saber médico ([1963] 1977), As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas ([1966] 2007), além de sua primeira publicação A história da loucura ([1961] 1978), já escrita sob os princípios arqueológicos. É finalmente em A Arqueologia do saber (2000), publicada em 1969, que Michel Foucault define seu projeto analítico, fazendo as correções e ressalvas que julga necessárias em relação aos escritos anteriores. Logo no início de A Arqueologia do saber, o autor reconhece que os princípios arqueológicos das publicações anteriores constituíram uma espécie de esboço, tratados por ele de forma desordenada e sem uma articulação plausivelmente definida: “era tempo de lhes dar coerência – ou, pelo menos, de colocá- las em prática. O resultado desse exercício é esse livro” (FOUCAULT, 2000, p.18). Antes de explicitarmos no que de fato consiste a arqueologia e como e porque a empregamos neste trabalho, cabe-nos fazer a observação de que ao usá-la como um método, sobretudo em uma dissertação de mestrado, tão arraigada a normas, não o fazemos sem uma certa cautela. Isso porque o próprio Foucault se mostra avesso ao fato de que a escrita deva estar fadada a uma teoria universal, rígida, imutável e sistemática (MACHADO, 1982), como requer a escrita acadêmica. Araújo (2013) também reflete sobre a difícil questão de delimitação metodológica nos estudos acadêmicos. Segundo o autor, apoiado em Michel Foucault, a questão metodológica nas ciências humanas tem sido tratada como uma “camisa-de- força”, fazendo o caminho inverso do que deveria ser um princípio de análise: um fio condutor para as ideias. Isso não significa, porém, que a solução seja abandonar o rigor teórico exigido dos trabalhos de pesquisa, mas que os pesquisadores possam ter a liberdade de superar a dicotomia teoria x prática. 19 Em resumo, para Michel Foucault, definir um método e segui-lo durante um processo de pesquisa e escrita é uma tarefa aprisionante, pois “nenhum problema está definitivamente resolvido, e nenhuma ideia é tampouco intocada” (ibid., p.121). Considerando a problemática do método e o recorte necessário para um trabalho de mestrado, depreendemos que as adversidades desse empreendimento poderão ser muitas: assumir-se o risco de não alcançar todas as esferas que um estudo arqueológico implica; responsabilizar-se por perder-se em tantas idas e vindas conceituais; a delimitação do corpus de trabalho; as especificidades do método por nós escolhido, o arqueológico, frente a outros já existentes e a incumbência de não ultrapassar essas fronteiras; situar esse trabalho em um ponto específico dos estudos de Foucault – sua fase arqueológica, levando em consideração os deslocamentos sofridos ao longo dos seus extensos trabalhos; produzir nossas ideias em um campo diferente dos operados por Foucault, inserido naquele feixe de relações dos outros tipos de arqueologia, àquelas que se desenvolvem em direções diferentes das figuras epistemológicas e das ciências e que não foram tão explorados por Foucault1. Problemáticas que, sendo intrínsecas ao se trabalhar com Foucault, não tentaremos solucionar e sim operar, sem, porém omiti-las ao longo deste capítulo. Para concluir essa questão, esclarecemos que como não pertence aos objetivos deste trabalho debruçar-nos sobre a problemática do método, nem contestar as normas acadêmicas, faz-se menos arriscado, ou menos comprometedor, considerarmos os passos aqui seguidos como um princípio de análise de inspiração arqueológica, cuja intenção será a de pensar com Foucault, desfrutando de algumas de suas teorias e práticas para nos movimentar sobre nosso objeto. Nesse sentido, podemos nos apoderar da fala de Jean-Jacques Courtine (2011, p. 7) quando em seu livro Decifrar o corpo: pensar com Foucault, ele afirma: Pensar com Foucault é primeiramente reencontrar em seu ensinamento uma incitação que jamais me parece ter sido nele desmentida: aquela da liberdade de pensar, que deve se aplicar àquilo que pode ser feito hoje com a massa considerável dos escritos que ele nos legou. Quanto a mim, vejo ali um convite para fazer escolhas, a aproveitar as ocasiões de experimentar, a descobrir, dentre as que são sugeridas, as vias que permitirão avançar. Parece-me que não se pode ler Foucault 1 Para ler pelas palavras do próprio Foucault, sua proposição sobre as “outras arqueologias”, ver a Arqueologia do Saber (2000), páginas 218-222. 20 sem fazer em seus confrontos aquilo que ele mesmo faz com uma constância impressionante: apostas intelectuais2. Antes porém de iniciarmos essa nossa aposta intelectual acerca da interculturalidade no ensino de línguas, primeiramente contextualizaremos o conceito de arqueologia, traçando considerações sobre seu diálogo com outros métodos – os incompatíveis e os moderadamente análogos. Consideramos esse encabeçamento, embora extenso, importante, pois uma vez que optamos por esse suporte metodológico, devemos justificar nossa escolha dentre as outras alternativas possíveis. Em seguida, definiremos brevemente alguns dos conceitos que a arqueologia pressupõe e que serão relevantes para nosso trabalho: enunciado, discurso e formação discursiva para, enfim delinearmos a aplicação do método arqueológico neste estudo sobre a interculturalidade. 2.1 O contexto da Arqueologia: os diálogos com a História Ao explanar o conceito de arqueologia, Foucault (2000) opta não por definir a ferramenta arqueológica, mas por confrontá-la com outros métodos de análise já existentes e não convenientes aos seus propósitos3. Seguindo sua linha de pensamento, também neste trabalho a arqueologia será definida pela sua negativa, pelo que ela não é, para então podermos justificar a escolha dessa em detrimento de outros procedimentos analíticos disponíveis. Embora esses outros métodos possam compartilhar de alguns dos pontos de vista da arqueologia, consideramos o método foucaultiano como um modelo alternativo de história até então existente, pois o autor não se identifica, nem com os procedimentos da 2 Tradução nossa do original: « Penser avec Foucault, c’est tout d’abord retrouver dans son enseignement une incitation qui me semble ne jamais s’y être démentie : celle de la liberté de penser, qui doit s’appliquer à ce qu’on peut faire aujourd’hui de la masse considérable des écrits qu’il nous a légués. J’y trouve quant à moi un invitation à opérer des choix, à saisir des occasions d’expérimenter, à déceler, parmi celles qui sont suggérées, les voies qui permettront d’avancer. Il me semble qu’on ne peut lire Foucault sans faire à son égard ce qu’il a fait lui-même avec une remarquable constance : des paris intellectuels » (COURTINE, 2011, p. 7). 3 Peter Burke (1992) cita essa tendência, usada por alguns historiadores, a empregar a negação para definir certos termos ou conceitos: “O que é essa nouvelle histoire? Uma definição categórica não é fácil; o movimento está unido apenas naquilo a que se opõe, e as páginas que se seguem irão demonstrar a variedade das novas abordagens. É por isso difícil apresentar mais que uma descrição vaga, caracterizando a nova história como história total (histoire totale) ou história estrutural. Por isso pode ser o caso de se imitar os teólogos medievais, diante do problema de definir Deus, e optar por uma via negativa; em outras palavras, definir a nova história em termos do que ela não é, daquilo a que se opõem seus estudiosos” [não paginado]. 21 escola metódica, ou chamada escola tradicional, nem com as teorias marxistas, criticadas pelo seu determinismo, nem com alguns dos princípios da primeira e segunda geração do movimento dos Annales, escola historiográfica que veremos a seguir. Também cita sua incompatibilidade em alguns pontos com a História das ideias e das ciências: todas tendências em voga quando começa a publicar seus primeiros estudos arqueológicos. Ao longo de sua obra A Arqueologia do Saber (2000), Foucault dialoga com as características dessas correntes historiográficas, ora as contrariando, ora as aproximando de seu método. Essas considerações são de diversas ordens como em relação aos seus objetos, princípios, fragmentações e expansões. Assim, nos deparamos com a necessidade em nosso trabalho de uma contextualização dos deslocamentos ocorridos entre as “outras” maneiras de se fazer história e as novas direções seguidas ou mesmo inauguradas por Foucault. A escola metódica, também chamada de tradicional, é entendida como a historiografia realizada na França principalmente por Gabriel Monod, Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos em meados do século XIX, agrupados em torno da revista Revue Historique, fundada em 1876 por Monod (BURKE, 1992). Essa corrente tinha como objetivo cientificar a história, conferindo-lhe método, rigor, validade e objetividade em contraposição à história existente, que estava mais próxima ao gênero literário, à filosofia ou a simples relatos. Segundo Dosse (1992), os aspectos que mais a caracterizam são: sua obsessão por reconstituir o passado por meio de datas bem estabelecidas (e cronológicas), da preocupação excessiva com a origem dos fatos e dos documentos, bem como pela autoria. Suas fontes constituem-se exclusivamente de documentos de alguma forma relacionados ao Estado e, por isso, é totalmente voltada para o político e com fortes traços de ideologia nacionalista4. De fato, no século XIX, o estado financia inúmeras instituições históricas, desenvolvendo o campo historiográfico e atrelando-o a seus interesses (DOSSE, 1992). Embora sendo um movimento bastante intenso, com muitos seguidores e apoiadores, aos poucos começam a surgir críticas em relação às fixações da escola metódica e suas diretrizes extremamente positivistas. Outros princípios começam a ser 4 Dosse continua sua reflexão sobre o papel que o nacionalismo desempenhou na Europa durante o século XIX, por motivos de várias ordens, dentre elas a revolução Industrial e a crescente expansão do capitalismo, gerando concorrências, sobretudo econômicas e imperialistas entre as nações. No caso específico da França, soma-se o sentimento de despeito em relação à derrota da Guerra Franco-Prussiana. Os historiadores dessa época têm o objetivo de “unificar os franceses em torno da pátria, que se tornou a base do consenso nacional, portadora de estabilidade e da eficácia diante dos alemães” (DOSSE, 1992, p. 38). 22 delineados a partir de novas necessidades e percepções científicas. Embora alguns intelectuais já contribuíssem para algumas reflexões em torno das transformações ocorridas, é o movimento dos Annales que lança um projeto claramente posicionado contra a escola metódica. O movimento ou escola historiográfica dos Annales se concentra em torno da revista acadêmica francesa Annales d’histoire économique et sociale, constituída em 1929, cujos fundadores e principais membros da primeira geração são Marc Bloch e Lucien Febvre. O objetivo do grupo era romper com a maneira como a história vinha sendo feita pela escola metódica, principalmente em relação às ideias de continuidade, causalidade, cronologia e evolução. Essa nova corrente caracterizava-se pela mudança do objeto político para o social e econômico e pelo estímulo à interdisciplinaridade, aproximando a história das outras ciências sociais. (DOSSE, 1992). Ao mesmo tempo em que a escola de Annales ganhava força, delineavam-se as teorias historiográficas marxistas, que ofereceram e receberam contribuições importantes dos Annales, e especialmente para a Análise do Discurso, como é o caso do intelectual francês, Louis Althusser. De maneira geral, As histórias marxistas, e marxizantes inspiram-se no modelo histórico de materialismo dialético proposto por Marx e Engels. Tentando integrar a “totalidade” da história num sistema ideológico, o marxismo reduz Clio a uma “luta de classes” (motor da história), opondo de modo “perpétuo opressores e oprimidos”. Situada no âmago da história, a luta de classes, tornada conceito, (...) engendra um poderoso determinismo: sozinha, conjugada ao movimento histórico, ela faz a história. O acontecimento é abandonado (visto como conseqüência, acidente) e o homem não mais existe enquanto indivíduo e sim enquanto elo de sua classe social (TÉTART apud SALGUEIRO, 2009, p. 6). No entanto, não é tarefa fácil, e nem o pretendemos, dicotomizar os métodos de análise historiográfica. Por este trabalho se tratar de uma arqueologia, apesar de não aspirar e nem poder ser uma arqueologia da história, trilharemos o caminho arqueológico procurando não traçar nenhuma linha divisória fixa, dividindo os historiadores e seus trabalhos entre velho x novo, tradicional x inovador, bom x ruim, certo x errado, antes x depois de Foucault. Assim, trataremos, de conjeturar o empreendimento arqueológico foucaultiano como inspirado por vários historiadores que de certo modo, e com pequenos empreendimentos, tentaram revolucionar a história, 23 pelo menos no que se refere à recusa pelos métodos tradicionais e ousadia e persistência em implantar suas inovações. O próprio Foucault cita alguns dos referenciais que o influenciaram em seu projeto metodológico: De facto, há muito tempo que pessoas tão importantes como Marc Bloch, Lucien Febvre ou os historiadores ingleses puseram um fim nesse mito da História. Praticam a história de um modo muito diferente. Quanto ao mito filosófico da História, esse mito de cujo assassinato me acusaram, gostaria realmente de tê-lo destruído, porque era precisamente com ele que eu queria acabar e não com a história em geral (FOUCAULT apud CUNHA, 2002, p.21). O autor menciona também sua familiaridade com a epistemologia ao apontar as análises de Canguilhem, seguidor de Bachelart: As análises de G. Canguilhem podem servir de modelo, pois mostram que a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração. (2002, p.05) Logo, agrupar todas essas tendências em duas categorias, sobretudo por questões cronológicas, é um arriscado empreendimento já que mesmo no século XIX alguns autores passaram, isoladamente, a problematizar ou a modificar a maneira vigente de se fazer história, como citamos anteriormente. É o caso de Chateaubriand que em 1831 já se referia à história como portadora de múltiplos objetos fragmentados, como a química, as finanças, os diferentes tipos de artes e não somente dos aspectos políticos. Mais tarde, em 1869, Michelet, também reivindica os objetos da história ao se interessar pela cultura popular, pela história vista de baixo. Reclamava que a história lhe era fraca por dois motivos: por ser pouco material, não considerando nem o físico nem o fisiológico e desconsiderando “o solo, o clima, os alimentos”; e por ser pouco espiritual “falando de leis, de atos jurídicos, não de ideias, de costumes, não do grande movimento progressivo e interior da alma nacional” (MICHELET apud DOSSE, 1992, p.94). 24 Neste capítulo, optamos por contextualizar brevemente as reflexões produzidas por Foucault que foram inspiradas, ou que inspiraram certos historiadores5, e ressaltaremos as características dos tipos de história que definitivamente o nosso metodologista anseia superar. Os principais pontos aqui explicitados estarão baseados nas reflexões de Peter Burke (1992), François Dosse (1992) e principalmente, o próprio Foucault (2000). Uma das principais diferenças operadas entre a escola metódica e os novos tipos de história, encabeçadas principalmente pelos Annales refere-se ao seu objeto: além de ocorrer uma transformação na maneira de se contar a história, muda-se também sobre o quê ou sobre quem contam. A história tradicional concentra sua análise nos regimes e reinos, dirigindo sua atenção exclusivamente para o objeto político. O movimento dos Annales substitui o objeto político pelo aspecto social e principalmente econômico. Essa mudança de interesse não acontece por acaso. A revista dos Annales nasce em 1929, ano da grande crise econômica: com a crise, os valores capitalistas passam a ser revistos, os fracassos políticos tornam-se mais visíveis e os programas governamentais passam a definir-se pelo sistema econômico. Além dessa crise, vêm à tona os traumas do pós-primeira guerra: a contabilidade dos mortos; a Europa destruída; são colocados em xeque a guerra, o nacionalismo exacerbado e o controle do Estado, como observa François Dosse: O jogo político, a vida parlamentar, os partidos políticos são postos de lado [...]. O estado é suspeito e rejeitado como exterior à sociedade, como corpo alógeno, e suscita um fenômeno de rejeição violenta [...]. A rejeição do aspecto político é também manifesta em Marc Bloch e Lucien Febvre. Traçam um percurso centrado nos aspectos econômicos e sociais, abandonando completamente o campo político, que para eles se torna supérfluo, anexo, ponto morto no horizonte deles (1992, p. 25). Outro deslocamento em relação ao objeto pode ser observado na terceira geração dos Annales que vai se preocupar, assim como o método de Michel Foucault, com tudo aquilo que pertence à atividade humana. Nesse ponto da história, estamos lidando com outro contexto: incide nos anos 70 a crise mundial do petróleo trazendo consequências profundas: desemprego, recessão, inflação e crise na ideia de progresso. Portanto, como 5 Na parte final de seu texto “Michel Foucault: o discurso nas tramas da história”, Gregolin (2004a) discorre mais detalhadamente sobre as transformações que Foucault opera no campo da história e que influenciaram os novos historiadores. 25 uma maneira de reencontrar o tempo, há a valorização da simplicidade e da volta às tradições. Assim, como desde A história da Loucura ([1961]1978) de Foucault, os historiadores se voltam para os oprimidos: vão contar a história dos loucos, dos transgressores, das feiticeiras, das minorias, das mulheres - em decorrência do movimento feminista do maio de 1968. Ainda sobre a mutação de objeto provocada principalmente pela conjuntura da década de 70, Dosse (1992, p.170) reflete: O povo, despojado enquanto força política potencial, inexistente enquanto força social capaz de submeter a ordem dominante em direção a uma outra sociedade, ressurge neste discurso antropológico como material estético, em seus fatos e gestos cotidianos. Os humildes renascem em sua singularidade, como mundo à parte, mas no quadro insuperável da força dos poderosos. A influência da etnologia no discurso histórico apresenta-se como discurso de integração, na sociedade técnica, de outros componentes, de outros valores, ao restituir seu direito de cidadania. A história tradicional, ao centrar-se nas narrativas dos grandes homens e seus grandes feitos, no aspecto político e vendo os fatos pela perspectiva do Estado, priorizava como arquivo os documentos oficiais, ou seja, o ponto de vista adotado pelo historiador era o mesmo de quem detinha o poder. Priorizando a história popular, do cotidiano, construída pelos marginalizados, pelas pessoas comuns, é fundamental procurar outros tipos de evidências: as visuais, os usos, os costumes, a comunicação e tradição oral, a estatística etc. Sobre isso, Voltaire (apud DOSSE, 1992, p.94) já reclamava em meados do século XVIII: “apenas foi feita a história dos reis, ministros e generais, mas nossos costumes, leis, hábitos, vestuário e espírito não estão lá”. Outra mudança de paradigma está na capacidade de desvencilhar-se da ambição de ser objetiva, imparcial, de querer contar os fatos como eles de fato aconteceram. Para Foucault (2000), no entanto, é inútil pretender contar os fatos de maneira totalmente imparcial, porque nossa percepção dos fatos está estreitamente ligada aos pontos de vista produzidos pela nossa cultura: “O discurso do historiador só terá valor enquanto for parcial, local e individual” (DOSSE, 1992, p.185). Segundo Gregolin (2004a, p.24), “a História nunca é história-pura, mas história-para”. Essa nova maneira de perceber a história tem como consequência cada vez mais a amplitude do documento, podendo constituir-se de: 26 [...] escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto, são, para a nova história, documentos de primeira ordem (ibid.). Não há em Foucault, a pretensão de julgar a verdade dos fatos, pois a função da arqueologia é descrever os acontecimentos discursivos tal como eles são produzidos historicamente, estabelecendo suas condições de existência, não de validade. Quer saber como esses discursos se efetivam, tornam-se verdadeiros pela e na prática discursiva, não ambiciona se envolver na querela se aquilo que afirmam é ou não autêntico ou verdadeiro, ou ainda “se suas proposições são plausíveis” (GONÇALVES, 2009, p.8), pois a arqueologia, por estar interessada pelos saberes e não pela ciência, concebe que a verdade nada mais é que uma construção histórica. Foucault também considera errôneo querer julgar os saberes produzidos no passado como ultrapassados ou fontes rudimentares de um saber mais evoluído, tomando como critério de comparação a situação presente na qual se insere o historiador. O que deve ser levado em consideração na análise de um saber são suas condições de existência de acordo com o seu tempo contemporâneo, no momento em que foi possível emergir. Sua preocupação é desvendar as regras de uma determinada época que permitiram identificar o discurso como científico, legítimo, verdadeiro ou falso, patológico ou errado (BARROS, 2009). Em outras palavras A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de julgamento de um saber do passado. [...] Melhor do que um julgamento, a normatividade arqueológica é a ordenação dos saberes de uma época a partir do próprio saber considerado em sua generalidade, profundidade e contemporaneidade (MACHADO, 1982, p.157) A arqueologia tampouco se preocupa com a origem dos discursos ou com a sistematicidade cronológica. Também não procura estabelecer uma unidade entre os enunciados, relações forçadas que buscam solidificar o espírito de uma época ou de uma cultura, transformando-os em uma consciência coletiva. Foucault afirma que, em se tratando de discurso, seria inútil debruçar-nos sobre a tarefa de apoderar-nos da primeira 27 aparição de um acontecimento discursivo verdadeiro, pois todo discurso manifesto encontra repouso sob um já-dito, impossível de recuperar. Além dessa busca pela origem da irrupção de um enunciado, Foucault condena a análise que tenta a todo custo, unificar os fenômenos discursivos, que tenta apagar as dispersões, as diferenças, em prol de um mesmo princípio organizador, apagando as suas singularidades. Segundo o autor, a arqueologia não deve “negligenciar nenhuma forma de descontinuidade, de corte, de limiar ou limite” (FOUCAULT, 2000, p.35), e por isso ele volta a criticar a história tradicional: Em suma, a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar todas as perturbações da continuidade, enquanto que a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos (ibid., p.6). A arqueologia também não tem caráter interpretativista, ou seja, não possui a intenção de desvendar as intenções conscientes ou inconscientes dos documentos, de constituir das entrelinhas, um outro discurso além daquele que foi de fato realizado. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar (ibid., p.31). Uma vez contextualizados os diálogos entre a arqueologia e a história e adiantada a explanação de alguns dos seus princípios teóricos como alternativos a outros métodos de análise, vejamos brevemente alguns dos conceitos fundamentais para a compreensão de seu método. Em seguida, explanaremos sobre como se aplica o método como ferramenta de análise nesta pesquisa. 2.2 Elucidando alguns conceitos Ao pretendermos discorrer sobre a formação do discurso do ensino de línguas estrangeiras sobre a interculturalidade, devemos debruçar-nos na difícil tarefa de comentar termos tão complexos como os conceitos da análise do discurso aqui utilizados, de maneira concisa. E mais do que uma explicação sucinta, nosso desafio é o de sair desse labirinto conceitual sem cair na tentação de mencionar outros inúmeros 28 conceitos foucaultianos relacionados à arqueologia, o que tornaria nosso tópico demasiado extenso. No entanto, essa tarefa faz-se extremamente necessária devido à polissemia de alguns desses termos. Enunciado na teoria foucaultiana não é, por exemplo, o mesmo enunciado “de Bakhtin, de Benveniste ou de Ducrot” (VOSS; NAVARRO, 2011, p.35). Discurso não é aquele pronunciado por políticos, nem aqueles textos pronunciados com eloquência de recursos estilísticos rebuscados (FERNANDES, 2008), nem arquivo possui a mesma acepção comumente conhecida, como veremos a seguir. Arquivo Segundo as palavras de Foucault, o “termo ‘arqueologia’ remete ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo” (FOUCAULT apud BARROS, 2009, p.36). A noção de arquivo no pensamento foucaultiano não está relacionada ao significado corrente de conjunto de documentos impressos ou virtuais sobre um determinado assunto, Foucault o denomina como um sistema que governa as leis de enunciabilidade dos discursos, ou seja, o arquivo define: as condições que propiciaram sua aparição, suas formas de conservação e reativação na memória dos homens, seus limites, suas formas de apropriação segundo o lugar de onde se fala. Além disso, sob suas regras os enunciados podem ser reconhecidos como válidos, discutíveis, inválidos, estranhos, etc. É importante, para melhor compreender a noção de arquivo, definirmos antes os termos enunciado, discurso e formação discursiva tal como concebidos por Foucault. Enunciado Como dito anteriormente, enunciado possui um significado muito particular na teoria foucaultiana. Em A arqueologia do saber, o autor define enunciado em uma situação de comparação negativa, como de costume, com a frase, a proposição e o ato de fala6. Mas isso não quer dizer que ele, o enunciado, não possa eventualmente 6 O autor diz que enunciado não pode ser confundido com proposição, pois há casos, em que - para citarmos somente um - podemos ter dois enunciados distintos, mas que a lógica considera como uma única proposição. Por exemplo, enquanto a lógica considera as construções “ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu” como indiscerníveis, ou seja correspondem a uma única proposição, Foucault as considera como dois enunciados distintos, pois não são formulações intercambiáveis, cada uma podendo perfeitamente ocorrer com significados distintos em contextos sócio-históricos distintos. Em relação à frase gramatical, podemos ter enunciados quando não encontramos frases: um quadro classificatório das espécies botânicas, uma equação de segundo grau, um gráfico, etc. por exemplo são constituídos de enunciados, não de frases nem de atos de fala. Por fim, Foucault diferencia enunciados de atos de fala 29 coincidir com alguma dessas unidades, já que de fato, podemos encontrar enunciados que são frases, outros que são proposições e outros que se ajustam às formas de um ato de fala. Em contrapartida, “encontramos enunciados sem estrutura proposicional legítima; encontramos enunciados nos quais não se pode reconhecer nenhuma frase e também encontramos mais enunciados do que os speech acts que podemos isolar” (ibid. p.95). Sem critérios estruturais em que possamos nos fundamentar, cabe-nos dizer abstratamente que são eles as unidades elementares dos discursos e que se materializam de diferentes maneiras. Podem ser, por exemplo, [...] qualquer série de signos, de figuras, de grafismos ou de traços – não importa qual seja sua organização ou probabilidade – é suficiente para constituir um enunciado, e que cabe à gramática dizer se se trata ou não de uma frase; à lógica, definir se ela comporta ou não uma forma proposicional; e à análise, precisar qual é o ato da linguagem que pode atravessá-la? Neste caso, seria necessário admitir que há enunciado desde que existam vários signos justapostos – e por que não, talvez? – desde que exista um e somente um (FOUCAULT, 2000, p. 96). O que Foucault quer dizer ao esclarecer que não podemos comparar fielmente os enunciados às unidades já conhecidas pela gramática, pela lógica ou pela análise dos atos de fala, é que realmente não existe uma unidade fixa a que podemos chamar de enunciados, e sim que eles correspondem a funções que podem ser descritas de acordo com as suas condições, com as regras que as controlam e no campo que as realiza. Para descrever a completude de um enunciado, devemos pensá-lo como uma função, definida a partir de quatro elementos básicos: um referencial, uma função sujeito, um campo associado e uma condição de materialidade, explicitados a seguir. a) A função referencial corresponde ao fato de que todo enunciado possui um objeto, algo que ele enuncia. Não é, no entanto, uma correspondência entre pensamento e objeto, ou melhor, entre as palavras e as coisas. Segundo Foucault (2000, p. 104), o enunciado está pois apesar de ambos terem em comum a consideração da linguagem em uso e do aspecto social, um ato de fala precisa de mais enunciados para se constituir. Além disso, a teoria dos atos de fala considera a intencionalidade do falante, o que para a Análise do Discurso não é cabível, já que considera que os enunciados estão na esfera do histórico e do inconsciente. Para mais detalhes ver páginas 89-99 da A Arqueologia do Saber (2000) de Foucault e páginas 167-168 de Ciência e Saber (1982) de Roberto Machado. 30 [...] ligado a um “referencial” que não é constituído de “coisas”, de “fatos”, de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de objetos, dos estados das coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá a frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade. b) A segunda função do enunciado está ligada ao fato de que “alguém” precisa enunciá-lo. Esse “alguém” não está associado a um produtor “real” ou a um autor específico, a não ser que se refira àqueles discursos que exigem essa função de autor explicitada, “em campos especializados, como a filosofia, literatura ou ciência”, onde um autor pode ser requerido. Há, no entanto, “discursos que circulam pelas conversas de corredor, na viagem de ônibus, instruções técnicas, sem a necessidade de fixar alguém como sendo a sua fonte” (FERREIRA; TRAVERSINI, 2013, p. 214). Corresponde a um sujeito, que tampouco é tomado aqui como a função gramatical de uma frase, trata-se de um lugar, um espaço vazio que pode ser ocupado por indivíduos diferentes, porém sob determinadas condições, afinal, os enunciados não podem ser proferidos por qualquer pessoa, existem regras que determinam quem pode ocupar essa função do sujeito do enunciado. Em outras palavras, Assim, como essa determinada pessoa diz-se autora, outros também poderiam ser na medida em que procedessem dessa e não de outra maneira. Os acessos ao discurso ficam, dessa forma, restritos, pois nem todos podem ser considerados autores, nem todos estão investidos do poder de falar aquilo que é considerado verdade (ibid). c) Outra característica da função enunciativa é que todo enunciado coexiste com outros enunciados, isto é, depende, para existir, de um campo associado, em que está em relações com enunciados passados e que permite que dele venham a se desenrolar enunciados futuros. É esse jogo enunciativo que faz com que eles se apoiem uns nos outros, se reafirmem, se reatualizem, se oponham, se reproduzam e se distingam. Por isso Foucault insiste na formulação de que os enunciados não são livres, neutros ou independentes, 31 eles fazem parte de uma série onde desempenham um papel específico no meio dos outros. Pelas palavras do próprio autor, Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série, de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis. Se se pode falar de um enunciado, é na medida em que uma frase (uma proposição) figura em um ponto definido, com uma posição determinada, em um jogo enunciativo que a extrapola (FOUCAULT, 2000, p.114). d) Por último, Foucault explica que o enunciado deve ter necessariamente uma existência material que garanta sua inscrição na história. É necessário, ainda, que haja uma superfície onde os enunciados possam tomar corpo e deixar sua marca, ainda que seja uma marca na memória. Além de uma materialidade e de uma superfície, os enunciados precisam ter uma data, serem proferidos em uma época e um lugar específicos. Assim, “quando esses requisitos se modificam, ele próprio muda de identidade” (FOUCAULT, 2000, p.116) e assim temos novos enunciados. Caso contrário, quando as diferenças não são capazes de mudar a identidade do enunciado, mesmo que uma informação dada [possa] ser retransmitida com outras palavras, com uma sintaxe simplificada, ou em um código convencionado; se o conteúdo informativo e as possibilidades de utilização são as mesmas, poderemos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado. (ibid., p.119) Discurso e formação discursiva Assim, como vimos anteriormente com o enunciado, o discurso possui uma característica própria dentro da obra de Foucault (2000, p. 55-56): [...] gostaria de mostrar que os ‘discursos’, tais como podemos ouvi- los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e a língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem não a existência 32 muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos. ‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. O discurso possui um espaço limitado de comunicação, onde se cruzam língua e história, é um espaço de onde emergem significações, é uma reunião de práticas discursivas “que instauram os objetos sobre os quais enunciam, circunscrevem os conceitos, legitimam os sujeitos enunciadores e fixam as estratégias sérias que rareiam os atos discursivos” (BARONAS, 2004, p.50). O próprio Foucault exemplifica em quais casos temos discursos que se apoiam em um mesmo sistema de formação, como por exemplo, o discurso econômico, o clínico, o da história natural, etc. (GREGOLIN, 2004a). No entanto, ao contrário do que parece, observando os exemplos acima, um discurso não precisa necessariamente se referir a disciplinas, nem às figuras que delineiam as ciências que virão. Podem existir discursividades menos marcadas institucionalmente, como o discurso cotidiano, o racista, o feminista, o publicitário, o do mercado de trabalho, o neoliberal, o transgressor, etc. Poderíamos citar uma infinidade deles observando as atuais pesquisas realizadas no campo da AD, já que, na verdade, quem estipula essas regras é o próprio objeto de estudo. No último capítulo d’A Arqueologia do saber (2000), Foucault dedica um tópico para afirmar que há a possibilidade de que a arqueologia possa ser utilizada para tratar de outros domínios do saber que não as figuras epistemológicas, por ele priorizadas em suas obras. Em outras palavras, o discurso é “um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas regras não são somente linguísticas ou formais, mas reproduzem um certo número de cisões historicamente determinadas” (REVEL, 2005, p.37). Isso quer dizer que os enunciados, embora dispersos, sem ligação aparente entre si, se agrupam sob determinadas regularidades, isto é, por um feixe de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias7. 7 Como não pertence aos objetivos deste trabalho explorar essas relações, ver Arqueologia do Saber p.35- 78. 33 Segundo Fischer (2012, p.79), a formação discursiva deve ser vista, antes de qualquer coisa, como o "princípio de dispersão e de repartição" dos enunciados segundo o qual se "sabe" o que pode e o que deve ser dito, dentro de determinado campo e de acordo com certa posição que se ocupa nesse campo. Ela funcionaria como "matriz de sentido", e os falantes nela se reconheceriam, porque as significações ali lhes parecem óbvias, "naturais". Para concluir, podemos compreender esses conceitos de forma hierarquizada, sendo os enunciados a noção molecular de um discurso e o arquivo, “uma noção mais ampla que produz e encerra os enunciados”. Esses são produzidos no interior de uma função enunciativa, que apresenta quatro características: um referente, um sujeito, um campo associado e uma materialidade, e que se organizam em discursos dos quais derivam formações discursivas (SARGENTINI, 2006, p.37). A ordem do discurso A expressão “a ordem do discurso” usada por Foucault desde a Arqueologia do Saber (2000), ganha um debate mais aprofundado quando, em 02 de dezembro de 1970, ele profere sua aula inaugural no Collège de France. Esse texto intitulado justamente L’ordre du discours (A ordem do discurso) nos oferece uma rica discussão sobre os mecanismos de controle discursivo, ou seja, o fato de que os discursos existem sob e exercem determinadas regras de controle, seleção, organização e distribuição e obedecem a uma “ordem do discurso” própria a um período particular; possui, portanto, “uma função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas” (REVEL, 2005, p.37). Para o filósofo, esses procedimentos de controle e exclusão do discurso são divididos em externos, que impedem a criação dos discursos, e internos, que os controlam e os limitam. Aos processos externos correspondem a interdição, que define o que pode ser dito, por quem e em qual circunstância; a segregação como um processo para invalidar ou rejeitar determinados discursos - Foucault exemplifica com o discurso do louco, que não é acolhido pela sociedade; e a vontade de verdade -; a pressão sobre a produção 34 discursiva exercida por certas instituições da sociedade, para silenciar o falso e fazer circular o verdadeiro. Os processos internos correspondem às funções de autor (a individualidade deste limita o sentido do discurso), disciplinas (regras e adaptações às quais devem se adequar o discurso para serem considerados válidos ou dignos de credibilidade) e comentário, que objetiva dizer o que está silenciado no texto, refere-se a repetição de discursos já existentes, construindo novos discursos. Além dos procedimentos internos e externos há um terceiro: as condições para a formulação dos discursos, “de impor aos indivíduos que os pronunciam, certo número de regras e assim, de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (FOUCAULT, 1999a, p. 36-37). Esses mecanismos não buscam evitar o acaso de sua aparição ou controlar o poder do discurso, mas referem-se à rarefação dos sujeitos que falam: “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (ibid. 37). Analisar a ordem do discurso é observar os mecanismos que distribuem os discursos, como a estrutura social ou institucional mantém e dissemina esses valores para torná-los oficialmente aceitos. Encerremos esse “círculos concêntricos” de conceitos retomando o primeiro deles (o arquivo) pelas palavras do próprio Foucault, recompiladas por Gregolin (2004b) em O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas: Trata-se do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios [...] tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. [...] O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. [...] é o que define o sistema da enunciabilidade do enunciado- acontecimento. [...] é o sistema de seu funcionamento. [...] entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados. [...] O arquivo não e descritível em sua totalidade e incontornável em sua atualidade (FOUCAULT apud GREGOLIN, 2004b, p. 41). [...] "arquivo" é o centro em torno do qual gravitam os outros conceitos operatórios da minha análise. O arquivo forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das formalidades discursivas, a análise das positividades, a demarcação do campo enunciativo. Por isso, o nome de arqueologia aos estudos que venho empreendendo. Como você afirmou, restrinjo o sentido de "arqueologia", pois ele não deve incitar à busca da origem ou a uma escavação geológica. Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já-dito no nível de sua existência: da função enunciativa que nele se exerce, da 35 formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo (ibid., p.42, grifo do autor) 2.3 A aplicação do método: para uma arqueologia da interculturalidade Todo saber possui uma história. A função da arqueologia é justamente fazer a análise histórica desses saberes por meio da articulação entre os acontecimentos discursivos e os não discursivos, a eles de alguma maneira relacionados. Podemos perceber que a arqueologia pertence ao espaço do saber, ou seja, paira sobre um conhecimento que, embora não tenha atingido o limiar de cientificidade, e não sendo também mera doxa, possui regularidades com base em um a priori histórico que possibilitou que “ideias pudessem aparecer, ciências se constituir, experiências se refletir em filosofias, racionalidades se formar para, talvez, logo se desfazerem e desvanecerem” (FOUCAULT apud MACHADO, 1982, p.158). Além disso, todo saber possui uma relação intrínseca com o poder. Ora, o saber e a vontade de verdade, se estabelecem em instituições determinadas onde são reforçados e reconduzidos por toda uma espessura de práticas. O discurso é produto da sua época, do poder e do saber de seu tempo, por isso obedecem a ordens, a tecnologias do poder que os fazem funcionar. Assim, o saber pressupõe relações de poder e não existe poder sem que se tenha estabelecido um saber, como ratifica Foucault em sua obra Vigiar e Punir (1999b) ao dizer que: o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1999b, p. 32) Aplicaremos a arqueologia, em nosso trabalho, à história da interculturalidade no ensino de línguas estrangeiras (LE), a fim de reconstruir o seu trajeto e sua formação como objeto do saber da linguística aplicada ao ensino de línguas. É a arqueologia que nos permitirá refletir sobre os enunciados que constituem a interculturalidade enquanto uma dimensão do ensino de língua estrangeira, analisando suas materialidades, suas condições de emergência e as regras que a fazem, em um momento dado, ter adentrado na ordem discursiva do ensino de línguas. 36 Fazer a reconstituição desses caminhos trilhados pela interculturalidade, não significa necessariamente definir a sua gênese: apurar como, quando, onde surgiu, quem a pronunciou pela primeira vez e em que campo do saber. Perscrutar minuciosamente a origem dos saberes não é tarefa pertinente para a arqueologia essencialmente porque a fonte original de todo discurso escapa a toda delimitação histórica, já que todo discurso, como já citamos acima, provém de outras vozes, de um já-dito pertencente a vários outros lugares por meio da dinâmica social. Segundo o próprio Foucault (2000, p.28), [...] jamais é possível assinalar, na ordem do discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de qualquer começo aparente, há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seríamos fatalmente conduzidos, através da ingenuidade das cronologias, a um ponto indefinidamente recuado, jamais presente em qualquer história; ele mesmo não passaria de seu próprio vazio; e partir dele, todos os começos jamais poderiam deixar de ser recomeço ou ocultação. Essas indagações, embora possam servir a outros métodos de análise, são infrutíferas para a arqueologia, pois essa é uma teoria das práticas discursivas “cujo centro é a descrição dos acontecimentos, a descrição das transformações dos enunciados, dos discursos” (FISCHER, 2012, p.24). Sendo assim, o que podemos encontrar ao interrelacionar diferentes saberes são as superfícies primeiras de emergência do termo interculturalidade, indagar o que se passou em diferentes campos para que a preocupação com a cultura se tornasse relevante para o ensino de línguas estrangeiras da maneira como ela é tomada no presente. Questionamos o fato de se fazer uma história buscando o marco inaugural do objeto, “por que não indagar sobre uma proveniência, que nos fala de marcas singulares, sutis, que faz multiplicarem-se mil acontecimentos dispersos, para além das puras objetividades datadas e da solenidade dos grandes acontecimentos” e ainda: Por que, enfim, não perguntar sobre pontos dispersos de surgimento, emergência de determinados discursos, emergência que sempre se dará no interior de um jogo complexo de forças, de confrontação, e que não ocorreria num lugar específico, nem poderia ter fronteiras muito nítidas, mas que seria, antes, jogo produzido em interstícios – de poder, de saber, de modos de subjetivação, de linhas de fuga? (FOUCAULT apud FISCHER, 2012 p.29) 37 Fazer a arqueologia implica pensar que cada deslocamento, cada circunstância de aparição, sejam novos sujeitos ou novos objetos fazem com que, a cada novo contexto, tais discursos também sejam considerados novos e verdadeiros. Sua função metodológica é entender as condições históricas que possibilitaram a irrupção desses novos acontecimentos discursivos. Esses discursos serão analisados na sua materialidade, naquilo que efetivamente produzem hoje, em termos educacionais, e que irá perfazer o âmbito da interculturalidade. Pretendemos explicar, então, sob quais pontos dispersos da sua irrupção, quais novos contextos - considerando os fatores internos e externos ao discurso, a área do ensino de línguas estrangeiras pôde utilizar e consolidar esse saber. Como se pode notar, nossa investigação não se limita às fronteiras de uma disciplina, ou a um determinado objeto. Ao contrário, percorre domínios que não precisam, aparentemente, ter uma relação intrínseca entre si. Essa é uma das características da arqueologia: conceber os discursos como pontos de dispersão, na impossibilidade de aplicarmos critérios pertinentes de unidade. O que ela faz em meio a essa heterogeneidade de discursos é procurar relacioná-los investigando se é possível estabelecer semelhanças, compatibilidades, transformações, assinalar coerências ou inclusive incompatibilidades entre os enunciados. Além disso, ela busca definir as condições que propiciaram sua aparição, suas formas de conservação e reativação na memória dos homens, seus limites, suas formas de apropriação segundo o lugar de onde se fala, e como, sob suas regras, os enunciados podem ser reconhecidos como válidos, discutíveis, inválidos, estranhos, etc. Concluímos reafirmando que nossa pesquisa seguirá os princípios metodológicos da arqueologia por descartar, ou pelo menos não ter como ponto principal, características como linearidade cronológica, evolução, continuidade, veracidade, origem, fontes, cientificidade, interpretação. Terá como objeto a unidade dispersa do discurso, provenientes de diferentes áreas e contextos. Por último recompilaremos as análises efetuadas nos capítulos da dissertação para podermos enfim, expor nossos resultados finais, e apontar como nossa sociedade tem pensado a interação cultural nos últimos anos. Trata-se de reunir [...] o conjunto de condições que regem, em um momento dado e em uma sociedade determinada, o surgimento dos enunciados, sua conservação, os laços estabelecidos entre eles, a maneira pela qual os agrupamentos em conjuntos estatuários, o papel que eles exercem, a 38 série de valores ou sacralizações pelos quais são afetados, a maneira pela qual são investidos nas práticas ou nas condutas, os princípios segundos os quais eles circulam, são recalcados, esquecidos, destruídos ou reativados (FOUCAULT apud ODDONE, 2007, p.115). 39 3 O PAPEL DA CULTURA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS “Darwin nos informó que somos primos de los monos, no de los ángeles. Después supimos que veníamos de la selva africana y que ninguna cigüeña nos había traído desde París. Y no hace mucho nos enteramos de que nuestros genes son casi igualitos a los genes de los ratones. Ya no sabemos si somos obras maestras de dios o chistes malos del diablo”. Eduardo Galeano (2008, p.2010) Não há controvérsias entre nenhum pesquisador (e nenhuma pessoa leiga também) que os homens são diferentes. Diferem nos modos de comer, de andar, de se vestir, de pensar, de festejar, de atribuir significado aos acontecimentos do mundo, enfim, de interpretá-lo como um todo. Essas diferenças foram encaradas de diversas maneiras ao longo dos séculos pelos estudos que de algum modo se interessavam pelo homem, como veremos adiante. Hoje, a partir dos avanços dos estudos fisiológicos e antropológicos, temos plena consciência de que essas diferenças são, em sua maior parte, devido a diferentes padrões culturais. Acompanharemos neste capítulo, como as Ciências Humanas, sobretudo a Antropologia Cultural e os Estudos Culturais, deslocaram e ampliaram o conceito de cultura, para mais adiante observarmos como esse saber se relaciona com a ideia de cultura pela perspectiva da interculturalidade, tal qual ela é concebida no ensino e aprendizagem de línguas. Terry Eagleton (2005) em seu livro A ideia de cultura nos expõe à complexidade do termo e às contradições que o envolve: natural e artificial, determinismo e liberdade, o dado e o criado, ação e passividade, desejo e necessidade, criatividade e limite etc. Todas essas contradições pelas quais passa o seu significante podem ser em parte compreendidas se acompanharmos os seus deslocamentos semânticos discursivos desde sua concepção mais remota a qual se conhece (ainda do latim) às concepções modernas e pós-modernas. Para melhor sistematizar todas essas matizes de significados, tomaremos emprestada, adaptando-a aos nossos propósitos, a classificação de J.B. Thompson (2009) que as divide em quatro concepções: clássica, descritiva, simbólica e estrutural. 3.1 Concepção clássica de cultura Etimologicamente, a palavra cultura deriva do latim e significa “uma parcela de terra cultivada”, como sentido estático, usada como substantivo. No século XVI começa 40 a se formar o conceito de cultura como uma atividade, “a ação de cultivar a terra”, devendo os homens trabalhá-la para então desenvolvê-la (CUCHE, 1999). É a partir do século XVII que a palavra cultura passa a ser mais ordinária e dá-se a transformação para seu sentido figurado. Deixa de pertencer ao campo semântico de cultivo do solo e passa a ser associada ao cultivo da mente. No entanto, é só no século XVIII que ela se impõe definitivamente pelo sentido figurado e se desassocia dos seus complementos, pois até então falávamos da cultura da arte, cultura das ciências etc. e passa, sozinha, a designar a formação e a educação do espírito. Apropriar-nos-emos da ideia de Denys Cuche (1999) de começar nossa discussão sobre os deslocamentos da palavra cultura tal qual ela foi concebida em língua francesa. A opção por destacar essa língua em particular se deu, pois a França exercia, entre os séculos XVII e XVIII, grande influência sobre os outros territórios europeus, sobretudo porque cultura é uma palavra prosaica do vocabulário do Iluminismo, que apesar de surgido na Inglaterra, encontra na França o seu desenvolvimento e seu apogeu. O século das luzes centrou toda a sua ideologia no desenvolvimento do homem e esteve dedicado a promover a razão, a educação e o progresso com o objetivo de reformar a sociedade que até então havia estado à mercê da Igreja e do Estado. Assim, o termo cultura também esteve associado, nesta época, às ideias de evolução do espírito por meio da instrução dos homens. No entanto, em língua francesa, não é a palavra cultura que terá popularidade, mas sim outra palavra do mesmo campo semântico: sua homóloga, “civilização”8. Para os iluministas franceses, civilização “designa o afinamento dos costumes, e significa para eles o processo que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade” (CUCHE, 1999, p.22). Sendo a ideia de civilização ligada ao progresso e à perfectibilidade humana, os iluministas acreditavam na existência de povos mais civilizados que outros e que os mais avançados deveriam ajudar os “selvagens” a encontrar o caminho rumo à civilidade. Assim, o termo civilização na França estava relacionado tanto à conduta polida quanto ao 8 Para melhor compreender os conceitos de cultura e civilização, pode-se recorrer ao trabalho de Norbert Elias “O processo civilizador” (1994), onde o autor procura observar como os homens se tornaram “civilizados”, chamando a atenção para o fato de que os desenvolvimentos dos modos de conduta não passaram de um condicionamento social, ou seja, determinados comportamentos foram ensinados e construídos pelas relações sociais. Além dessa análise, Elias dedica uma parte do seu livro para discutir os termos cultura e civilização no modo como foram utilizados pela França, Alemanha e Inglaterra durante o século XVIII. 41 comportamento ético: “Ser civilizado inclui não cuspir no tapete assim como não decapitar seus prisioneiros de guerra” (EAGLETON, 2005, p.19). Na Alemanha, no entanto, outro fenômeno se formava em relação à palavra cultura. No século XVIII, a nobreza alemã, bem como quase toda a Europa, sofria fortes influências da vida da corte francesa. Para eles, os costumes dos nobres franceses era o modelo por excelência de vida civilizada: falar e se comportar como um francês era sinônimo de status na corte nobiliárquica alemã. Entretanto, a burguesia intelectual alemã (intelligentsia), situada à margem da nobreza, critica esses valores, associando-os a refinamentos fúteis e levianos, passando a utilizar o termo kultur – cultura adaptado do francês ao idioma alemão – como uma forma de subversão dos valores da nobreza alemã e uma maneira de se diferenciar dela. Em outras palavras, enquanto que na França as palavras cultura e civilização eram intercambiáveis, sendo a última mais usada e designando o modo de vida educado, tanto no sentido de polidez como no de uso exclusivo da razão, a intelligentsia reservou ao termo kultur outro tipo de refinamento, àquele ligado à elite intelectual. Assim, na Alemanha a palavra abrangia as atividades intelectuais em geral, como a ciência e a filosofia, e principalmente às atividades mais imaginativas como a música, a pintura, a literatura, etc. Para Thompson (2009), tanto os termos civilização da França, como o termo kultur da Alemanha, estão agrupados sob a concepção clássica de cultura que se relaciona à ideia de processo de desenvolvimento intelectual: Cultura é o processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e artísticos e ligado ao caráter progressivo da era moderna (THOMPSON, 2009, p. 170). A concepção clássica de cultura está relacionada ao uso do termo por intelectuais europeus do século XVIII, especialmente franceses, alemães e ingleses, que a associavam a contextos principalmente intelectuais e artísticos. Persiste ainda hoje, em nossa sociedade, essa concepção de cultura, apesar de o termo também poder ser empregado com muitos outros significados, como veremos adiante. Ser culto, por exemplo, ainda é sinônimo de um indivíduo de modos refinados e que sabe apreciar as obras de arte, sobretudo quando essa arte é legitimada, ou seja, de valor reconhecido pelas instituições que a produzem, a difundem e a regulam (EAGLETON, 2005). Para 42 que a arte tenha valor e seja considerada produto de uma cultura, é necessário que esses produtos sejam sancionados pela sociedade, ou seja, que pertençam ao que aquela sociedade admite que seja representativo de sua cultura. Outros autores intitularam essa concepção clássica de cultura, de Cultura com maiúscula ou de Alta Cultura. O século XIX e as concepções científicas de cultura A partir do século XIX, outra ideia de cultura, diferentemente daquela restrita à produção intelectual e artística, surge no entorno europeu. O termo civilização começa a adquirir uma concepção negativa relacionada diretamente ao imperialismo e, por isso, desacreditada por recomendar um modo de vida calcado no esclarecimento e no refinamento de vida segundo os padrões das sociedades europeias ocidentais. Civilização passou a ser percebida como etnocentrista, “abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material” (EAGLETON, 2005, p.23). Segundo Norbert Elias, o conceito de civilização é redutor e relativo pois, [...] expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais. (1994, p.23, grifos do autor) Os ventos da ciência já soprados desde o século anterior e o alargamento cada vez mais extenso de diversas áreas do conhecimento trazem a possibilidade de pensar a diversidade humana por outros ângulos. Antes de apresentarmos os pontos de vista das disciplinas científicas nascidas nesse século, a antropologia e a sociologia, apresentaremos outro fenômeno amplamente difundido e que também tentará explicar essas variações de comportamento: o mito das raças. O mito das raças O mito da raça consiste na afirmação de alguns pesquisadores do século XVIII e XIX de que os homens se diferenciam pela raça. Dentre esses pesquisadores podemos citar, como os mais influentes, o francês Conde de Gobineau que publica no início da 43 década de 1850 um ensaio chamado Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas e, mais adiante, no final do século XIX o escritor britânico Houston Stewart Chamberlain que publica o seu livro Os fundamentos do século XIX, com escritos sobre a superioridade da raça ariana que inspirará o nazismo alemão. Segundo as afirmações desses e de outros pesquisadores que enxergam a história da humanidade sob a classificação das raças, os povos de culturas “superiores”, possuiriam anatomia cerebral também superior, sendo então a raça mais desenvolvida. Essa ideia de raças encontrou seu aliado principal na teoria evolucionista9 da época, que coloca a raça branca como a mais evoluída e todas as outras ainda em processo de evolução, são os atrasados, os inferiores. Esses tipos de argumentos serviram de base, e ainda sentimos os seus reflexos, para justificar a exploração que praticavam as classes dominantes ocidentais, brancas e imperialistas em relação às outras “raças” segundo suas classificações (LEONTIEV, 1980). Leontiev (1980) discute essa questão em seu texto “O homem e a cultura”, relatando inúmeros casos de que ao perceberem seus interesses ameaçados ou imersos no seu etnocentrismo, a classe dominante não poupou esforços para usar sua influência na ciência, na imprensa e no campo militar. É o caso, por exemplo, dos argumentos dos escravocratas ao sentirem os ventos da libertação dos negros nos Estados Unidos. É o caso também dos discursos eloquentes de Hitler sobre a necessidade de se exterminar do território alemão “raças imperfeitas e inferiores” e de tantos outros genocídios. Para tecer uma ligação com o nosso território, podemos pensar também nas atitudes dos colonos europeus em relação aos indígenas americanos e também dos senhores de engenho no Brasil para garantir o apoio da opinião pública para a manutenção do regime escravagista. Outra tese bastante comum na explicação das diferenças biológicas é a de que a raça humana não provém da mesma espécie de primata, ou seja, as raças não possuem uma origem comum. No entanto, cientificamente, todas essas afirmações fracassaram, elas nunca passaram de inferências influenciadas e mantidas por relações de poder (WHITE, 2009). 9 Não se deve confundir, no entanto, a teoria da evolução das espécies de Darwin com as teorias que tentam explicar as diferenças humanas em termos de raças. Darwin nunca afirmou que se sua teoria pudesse ser estendida à espécie humana. 44 Engels (1980) desmonta essas afirmações narrando como provavelmente tenha se dado a procedência comum da humanidade por meio do processo de transformação física, mental e social do macaco em homem. Ele exemplifica essa afirmação remetendo-se à destreza humana de poder caminhar sobre dois pés. Segundo Darwin, os símios que nos ascenderam “tinham o corpo coberto de pelos, possuíam barba e orelhas pontiagudas e viviam em bandos sobre as árvores” (ENGELS, 1980 p.7). Como subiam em árvores, esses macacos desenvolveram certas habilidades com as mãos que outras espécies não alcançaram e assim, habituados a usarem as mãos e os pés para exercer funções diferentes, foram pouco a pouco perdendo o hábito de caminharem sobre quatro patas e tiveram as mãos livres para desempenhar outras tarefas. Essas transformações não se restringiram às atividades e articulações dos membros do corpo, mas contribuíram para a transformação do macaco em homem como um todo: com mãos livres e aptas a desenvolverem e manusearem ferramentas, eles passaram cada vez mais a aperfeiçoar suas atividades e assim, requerer ajuda mútua para colocar em prática seus trabalhos, passando a trabalhar e a viver cooperativamente. Vivendo em contato, os homens em formação atingiram um ponto em que precisavam comunicar-se si. Essa necessidade criou um órgão específico que os capacitariam a produzirem sons articulados (ibid., p.11). À medida que o homem desenvolvia suas ferramentas, seu corpo e sua sociedade, puderem experimentar novas formas de alimentação e assim contribuir cada vez mais para seu afastamento biológico dos outros animais. Assim como o homem aprendeu a comer tudo o que era comestível, assim se tornou também capaz de viver em todos os climas. Espalhou- se por toda a superfície habitável da terra (...). E a passagem da temperatura constante do clima da sua pátria primitiva para as regiões mais frias, em que o ano se dividia em verão e inverno, criou novas necessidades: a habitação e o vestuário para se proteger do frio e da umidade, abrindo assim caminho a novos tipos de trabalho e novas atividades. (ibid., p.16-17) Enfim, com esse exemplo podemos reafirmar que o homem à medida que transformava a natureza para satisfazer suas necessidades, também foi modificado por ela. Transmutou seu corpo e sua mente. Podemos dizer, então, que há uma estreita continuidade entre nós e o meio ambiente. No entanto, conforme afirma Cuche (1999, p.11): 45 Nada é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., são informados pela cultura: as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades. [...] a ordem “Seja natural”, frequentemente feita às crianças, em particular nos meios burgueses, significa, na realidade: “Aja de acordo com o modelo da cultura que lhe foi transmitido”. Não havendo provas de superioridade biológica em relação à capacidade de produzir e assimilar cultura, podemos dizer que não há correlação significativa entre raça e cultura. Não existe nada da sua língua, da sua crença, das suas instituições que tenham sido transportados geneticamente. Todos os povos possuem a mesma carga genética, eles “se diferenciam pelas escolhas culturais, cada uma inventando soluções originais para os problemas que lhes são colocados” (CUCHE, 1999, p.10). Ruth Benedict (2005) aponta que pode até ser possível que entre em jogo algum elemento fisiológico nos padrões comportamentais culturais, mas insiste em que se as bases biológicas do comportamento cultural na humanidade existem, eles são na sua maior parte, irrelevantes. Além disso, muitos autores, na maioria deles sociólogos, se esforçaram para defender que, depois de estabilizado o processo evolutivo de macaco em homem, as diferenças entre esses últimos não dependem de fatores naturais ou biológicos (embora continuem a atuar), mas é criada principalmente pelas relações de poder e pela desigualdade econômica (LEONTIEV, 1980). Ou seja, se a consolidação do homem moderno (homo sapiens) só foi possível pela combinação das regras biológicas atuando em conjunto com as atividades relacionadas às