UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS AMANDA PEREIRA RAMOS O ATIVISMO LGBTQIAPN+ NO PERÍODO DE REDEMOCRATIZAÇÃO (1978-1988): a contribuição da militância para o acesso à justiça desta comunidade FRANCA 2024 AMANDA PEREIRA RAMOS O ATIVISMO LGBTQIAPN+ NO PERÍODO DE REDEMOCRATIZAÇÃO (1978-1988): a contribuição da militância para o acesso à justiça desta comunidade Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel, junto ao Curso de Graduação em Direito, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. Orientador: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa FRANCA 2024 AMANDA PEREIRA RAMOS O ATIVISMO LGBTQIAPN+ NO PERÍODO DE REDEMOCRATIZAÇÃO (1978-1988): a contribuição da militância para o acesso à justiça desta comunidade Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel, junto ao Curso de Graduação em Direito, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. Data de aprovação: 19/11/2024 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa UNESP - Franca Profª. Ms. Ana Clara Tristão UNESP - Franca Profª. Ms. Isabella Mozetti Silva UNESP - Franca Ao meu avô, Nelson. Pelo cuidado, histórias, viagens e tardes compartilhadas. Mesmo na saudade, celebro a herança do amor que você me deixou. Te levo comigo. AGRADECIMENTOS A universidade representa a trajetória mais desafiadora que já enfrentei, sendo uma honra poder encontrar e redescobrir tantas relações. Com esse sentimento em mente, inicio meus agradecimentos com aqueles que, desde sempre, me apresentaram a importância dos estudos e não mediram esforços para me fazer chegar até aqui. Aos meus pais, Maurício e Zenaide, meu mais carinhoso obrigada. Vocês foram meus primeiros amores, responsáveis por tantos aprendizados que carrego comigo. À minha irmã, Natália, utilizo esse agradecimento para demonstrar minha mais profunda admiração. A beleza de ter alguém para te acompanhar é única, que sorte a minha ter vindo para essa vida com nossos caminhos entrelaçados. À minha avó, Nair, que acompanhou meus passos e sempre acreditou no meu potencial. Então, para vocês, minha família de sangue, acima de tudo, deixo o reconhecimento por não terem permitido que eu caísse na estatística. Ao me assumir, mesmo com as dificuldades do início, recebi compreensão, dedicação e incentivo para conquistar o mundo sendo eu mesma. Para as meninas da Pandora, por terem me entregado acolhimento e amizade ao chegar em Franca. Levo comigo as memórias de compartilhar um lar tão afetuoso com vocês: Litros, Daleste, Tibum, Yuka, Pessoa e Regresso. Ao Aveia, meu amor animal, agradeço por oferecer os sentimentos mais puros e todos os dias me ensinar tanto sobre força e superação. Por último, reservo este espaço para o amor que encontrei na graduação. À Marina, agradeço imensamente por nunca soltar minha mão e permanecer ao meu lado com tanta cumplicidade. Os dias são mais leves com a sua companhia. Você é casa, abraço apertado e acalento. Obrigada por tanto. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo geral analisar o acesso à justiça para a construção do reconhecimento das diferentes expressões da sexualidade e das identidades inerentes, focando, em seus objetivos específicos, no ativismo LGBTQIAPN+ entre 1978 e 1988 e sua influência na estruturação e interpretação da Constituição Federal de 1988. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo documental-bibliográfica, que investiga as opressões sofridas pela comunidade LGBTQIAPN+ através de matérias de jornais e revistas clandestinas, relatórios de coletivos e livros sobre a temática. A análise documental de publicações da época, como "ChanaComChana" e "Lampião da Esquina", é priorizada para entender como a militância LGBTQIAPN+ contribuiu para o ordenamento constitucional de 1988. Eventos e exposições, como "Mulheres lésbicas em movimento" e "Exposição Orgulho e Resistências", além de monografias e livros de autores como Renan Quinalha, embasam a análise. A justificativa para este estudo reside na necessidade de esclarecer a origem das discriminações contra indivíduos LGBTQIAPN+ na sociedade brasileira, contribuindo para a eliminação da perseguição e preconceito. Com isso, sua relevância está atrelada à compreensão da construção histórica do reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil, evidenciando como o ativismo da época teve um papel fundamental na formulação da Constituição Federal de 1988 e na transformação do cenário jurídico e social do país. Ao explorar os contextos de resistência e visibilidade, esta pesquisa oferece uma reflexão crítica sobre os avanços e os desafios enfrentados até hoje pela população LGBTQIAPN+ frente às discriminações existentes. Portanto, este trabalho demonstra que a análise do acesso à justiça, no contexto desta luta, é crucial para compreender o processo de inclusão social e a construção de um ordenamento jurídico mais equitativo. Palavras-chave: Acesso à justiça. Pessoas LGBT. Constituição. Ditadura Militar 1964-1985. ABSTRACT The present study aims to analyze access to justice for the recognition of different expressions of sexuality and inherent identities, focusing, in its specific objectives, on LGBTQIAPN+ activism between 1978 and 1988 and its influence on the structuring and interpretation of the 1988 Federal Constitution. It is a qualitative, documentary-bibliographic research that investigates the oppressions suffered by the LGBTQIAPN+ community through newspaper articles, clandestine magazines, collective reports, and books on the subject. The documentary analysis prioritizes publications from the time, such as “ChanaComChana” and “Lampião da Esquina”, to understand how LGBTQIAPN+ activism contributed to the constitutional framework of 1988. Events and exhibitions such as "Mulheres lésbicas em movimento" and "Exposição Orgulho e Resistências", as well as monographs and books by authors like Renan Quinalha, support the analysis. The justification for this study lies in the need to clarify the origins of discrimination against LGBTQIAPN+ individuals in Brazilian society, contributing to the elimination of persecution and prejudice. Its relevance is linked to understanding the historical construction of LGBTQIAPN+ rights recognition in Brazil, highlighting how activism of the time played a fundamental role in shaping the 1988 Federal Constitution and transforming the country’s legal and social landscape. By exploring contexts of resistance and visibility, this research offers a critical reflection on the advances and challenges still faced by the LGBTQIAPN+ population in confronting existing discrimination. Therefore, this work demonstrates that analyzing access to justice within the context of this struggle is crucial to understanding the process of social inclusion and the construction of a more equitable legal framework. Keywords: Access to justice. LGBT People. Constitution. Military Dictatorship 1964-1985. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Infográfico sobre sexualidade, gênero e suas expressões....................................27 Figura 2: Reportagem sobre a ação da polícia em São Paulo, publicada no jornal "Lampião da Esquina", n. 26, junho de 1980, p. 18............................................................33 Figura 3: Reportagem sobre e ação policial, publicada na “Folha de São Paulo”, em 13 de junho de 1980......................................................................................................................33 Figura 4: Ato contra os Rondões do delegado José Wilson Richetti em 13 de junho de 1980.....................................................................................................................................34 Figura 5: Panfleto de denúncia da “Operação Sapatão”, produzido pelas agrupações Grupo Lésbico Feminista, Terra Maria e Eros............................................................................... 36 Figura 6: Apresentação de Miss Biá na Nostro Mondo...................................................... 38 Figura 7: Drags e travestis no palco da Nostro Mondo.......................................................39 Figura 8: A drag Victor Piercing.........................................................................................39 Figura 9: Panfleto distribuído pelo GALF em frente ao Ferro’s em julho de 1983............ 42 Figura 10: Fachada do Ferro’s Bar em 1998.......................................................................43 Figura 11: Fotografia de Rosely Roth, principal liderança lésbica dos anos 1980, lendo o boletim ChanacomChana.................................................................................................... 43 Figura 12: Início da "invasão" na noite do Levante do Ferro’s Bar....................................44 Figura 13: Rosely discursa na cadeira. Ao seu lado, o jornalista Carlos Brickman da Folha. No canto direito da foto, Antônio Carlos Tosta (Outra Coisa) e Vanda Frias (GALF).......44 Figura 14: Durante a “Invasão no Ferro’s Bar’, Rosely Roth discursa no interior do bar para impedir o fim da circulação do boletim ChanacomChana.......................................... 45 Figura 16: Moção de repúdio da vereadora Irede Cardoso contra os donos do Ferro's......46 Figura 17: Carnaval de 1984, Salvador. Luiz Mott e membros do GG.............................. 51 Figura 18: Integrantes do Somos, Galf e SOS Mulher na sede do Galf, junho de 1983.....52 Figura 19: Reportagem sobre os "midinaiti caubóis"......................................................... 55 Figura 20: Uma das reportagens de Celso Curi em sua coluna “Coluna do Meio”............ 56 Figura 21: Reportagem sobre a demissão de Celso Curi no jornal Lampião da Esquina, em 1978.....................................................................................................................................58 Figura 22: Manchete "Somos todos inocentes" na capa do jornal Lampião da Esquina... 59 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9 1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA DISCRIMINAÇÃO E RESISTÊNCIA LGBTQIAPN+ NO BRASIL..................................................................................................13 2 DINÂMICAS DE SOCIABILIDADE E CONTROLE SOCIAL DA COMUNIDADE LGBTQIAPN+........................................................................................................................ 24 2.1 Política Sexual e Higienização..........................................................................................25 2.2 Origem e Transformação da Sigla LGBTQIAPN+........................................................27 2.3 Repressão Institucional e o Impacto dos Rondões......................................................... 29 2.4 Bares e Clubes: Espaços de Resistência e Expressão..................................................... 36 2.5 Produções Culturais: Arte, Identidade e Militância......................................................47 3 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E A LUTA LGBTQIAPN+ NO BRASIL.................. 49 3.1 Surgimento de Grupos e Coletivos.................................................................................. 49 3.2 O Lampião da Esquina: Vozes Alternativas na Imprensa LGBTQIAPN+................. 52 3.2.1 O Caso Celso Curi: O Estopim para a Mobilização Homossexual no Brasil........... 55 3.3 A Epidemia de AIDS nos Anos 80: Lutas e Omissão nas Políticas Públicas............... 64 4 CONSTITUINTE: IMPACTO E LEGADO DA LUTA LGBTQIAPN+........................67 4.1 Pautas e Reivindicações LGBTQIAPN+ na Constituinte............................................. 67 4.2 Conquistas e Limitações na Constituição de 1988......................................................... 71 4.3 Reflexões sobre o Impacto da Constituinte na Luta LGBTQIAPN+ Hoje..................75 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 83 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 87 9 INTRODUÇÃO O golpe de Estado de 1964 foi estruturado com um número pequeno de militares da alta função, como são os coronéis e generais. Contudo, fato é que, para que esta ação ocorresse, estes puderam contar com amplo apoio de organizações como a classe média e a igreja católica. E, uma vez planejado, as Forças Armadas apresentaram um discurso com véu democrático, de modo a prometer uma intervenção temporária, responsável por ordenar o funcionamento social. Foi dessa forma que esta instituição manteve o controle do país por mais de duas décadas, influenciando por completo na liberdade e direitos da população. Logo, conforme elucida Renan Quinalha em seu livro “Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT”, os responsáveis pelo Estado possuíam, e buscaram implementar na sociedade, uma noção conservadora, com grande valorização da família e da religião católica (Quinalha, 2021a). O problema é que, de acordo com essa visão, a homossexualidade e todas as suas expressões constituíam uma das maiores ameaças ao regime autoritário, visto que tornou-se evidente que aos olhos da ditadura este grupo representava as práticas subversivas que o regime militar buscava reprimir. Embora as definições de subversividade fossem subjetivas e não tivessem critérios claramente estabelecidos na lei, mudando conforme o alvo pretendido, ao longo do texto fica evidente que essa noção incluía tudo que ousasse desafiar o caminho do poder militar e burguês. Assim, os dissidentes políticos, o erotismo, a homossexualidade e a transgeneridade — em todas as suas expressões e sociabilidades — eram considerados ameaças não apenas à estabilidade política e à segurança nacional, mas também à ordem sexual, à família tradicional e aos valores éticos que, supostamente, uniam a sociedade brasileira. Assim, o autoritarismo passou a dificultar a vida de, dentre outras, a comunidade LGBTQIAPN+ quanto a afirmação de suas identidades no Brasil durante o período. Inclusive, estes indivíduos, que sempre se viram relacionados à manifestações artísticas, que de certa forma desafiavam o binarismo de gênero e a sexualidade por meio de suas interpretações, encararam uma censura que aplicou enorme interferência na produção cultural.1 Como consequência, o movimento LGBTQIAPN+, em meio a grande perseguição, violência e tortura, encontrou na comunicação uma possibilidade de unir-se, demonstrando que, ainda que de forma clandestina, estavam ali, existindo e resistindo. Dessa maneira, a 1 Como é o caso de Cassandra Rios, pseudônimo de Odete Rios, autora amplamente censurada na década de 1970 por suas narrativas acerca da sexualidade feminina por meio de personagens lésbicas. A perseguição à escritora gerou 36 censuras e, por conta de apenas um livro, foi processada dezesseis vezes. 10 comunidade apresentou, em embate à perseguição aturada, uma enorme consolidação de suas lutas, motivadas, também, pela inquietação internacional que ocorria no momento. Já na segunda metade dos anos 1970, a partir de uma abertura política prometida pelo presidente Ernesto Geisel, este grupo acreditou estar de frente a uma brecha para tentar compor organizações políticas combativas ao abuso do Estado contra os indivíduos LGBTQIAPN+. Diante disso, passou a surgir um crescimento de veículos da imprensa alternativa, como o Lampião da Esquina - consagrado como a publicação mais importante do movimento LGBTQIAPN+ brasileiro - e o Chana com Chana. Estes documentos tiveram grande contribuição para que diversos conjuntos acreditassem ser possível e, de fato, passassem a atuar na disputa em anular as ações violentas e consolidar o debate político sobre o que estava ocorrendo. É possível verificar, portanto, que, de um movimento que nasce em meio à vigência de normas como o Ato Institucional nº 5, floresceu uma unidade de mobilização. Então, a partir do estopim do golpe de Estado, a comunidade LGBTQIAPN+ - que, por não possuir uma organização política bem definida à época, teve seu nome construído a passos lentos, conforme será visto adiante - passou a instaurar um campo discursivo de ação em ambientes como bares e universidades, frequentados por essa parcela da população. Sendo assim, é preciso dizer que o aparato repressivo do regime militar foi responsável por desestabilizar a oposição e dominar os corpos que não estivessem de acordo com a ideia de uma sociedade conservadora e autoritária. Por isso, esta investigação explora o modo que a construção histórica demarcou a organização política de grupos sociais, aqui observada a comunidade LGBTQIAPN+, no combate ao golpe civil-militar, em específico no decorrer da redemocratização ocorrida entre 1978 e 1988. Isso, pois, coloca em evidência a desumanidade aplicada pelo Estado contra as minorias e, conjuntamente, a força que estes tiveram que desempenhar, é uma importante função do passado mas, principalmente, do presente ao não deixar que essas memórias se percam. Nesse sentido, o debate e associação dessas pessoas estruturou coletivos, como o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), que passaram a elaborar as produções independentes em formato de folhetins e revistas, responsáveis por desempenhar importante papel na denúncia de violação de direitos por parte do regime. Atrelado a isso, a entrada das mulheres na Agenda de Desenvolvimento das Nações Unidas durante o início do processo de abertura política, nos anos 70, foi um dos acontecimentos que trouxe maior visibilidade aos diversos atos de resistência que estavam sendo feitos e viabilizou a construção de referenciais vinculados a direitos fundamentais presentes na Constituição de 1988. 11 Tão logo investigarmos a compreensão acerca dos indivíduos LGBTQIAPN+ quando envolvidos na história do país, é possível esclarecer a origem das discriminações em nossa sociedade, auxiliando na eliminação da perseguição e preconceito contra membros da comunidade. Neste sentido, o autor Luiz Mott, integrante da militância homossexual no decorrer do regime militar no Brasil, enfatizou que é imprescindível aprender sempre mais acerca do que se passou em relação a homossexualidades na história brasileira, pois, dessa forma, é possível identificar as raízes do preconceito em nossa sociedade e contribuir com a erradicação da intolerância (Mott apud Molina, 2011). Desse modo, há um empenho para entender a intricada conexão entre a homossexualidade e a ditadura civil-militar. Isto, pois, apesar de tratar-se de um tema de inequívoca relevância, é pouco investigado nas produções acadêmicas. Diante disso, é possível examinar com atenção o que relaciona as sexualidades com as alterações determinantes do golpe de 1964, a fim de entender como os debates e manifestações dos movimentos LGBTQIAPN+, por meio de coletivos e veículos de imprensa alternativa, atuaram diante do acesso ao direito da comunidade, que, ao ter um regime democrático em curso no início dos anos 90, pôde aflorar a expansão da cidadania no país. Logo, partindo do objetivo geral de analisar o acesso à justiça para a construção do reconhecimento das diferentes expressões da sexualidade e das identidades a elas inerentes, o presente trabalho busca, especificamente, investigar de que forma o ativismo LGBTQIAPN+ contribuiu para a estruturação da busca por direitos dessa comunidade no período entre 1978 e 1988. Além disso, o trabalho pretende examinar e compreender a influência dessa militância como norteadora para o ordenamento da Constituição Federal de 1988 e sua interpretação. Para isso, este trabalho irá abranger a área de conhecimento classificada como ciências sociais aplicadas, com o material apresentado sendo produto de uma pesquisa de caráter qualitativo, do tipo documental-bibliográfica. Ou seja, determina uma investigação das opressões sofridas levando em consideração matérias de jornais e revistas clandestinas, relatórios de coletivos e, ainda, livros sobre a temática. Convém enfatizar que se priorizará a análise documental de publicações à época, uma vez que, por meio desta, a militância LGBTQIAPN+ auxiliou a formação da agenda política no que diz respeito ao ordenamento constitucional implementado em 1988, responsável por grande avanço democrático no esforço por maior espaço para a liberdade das sexualidades e identidades a elas inerentes. 12 Portanto, a principal fonte de estudo para o projeto de pesquisa serão documentos como o “ChanaComChana”, atualmente disponível no WordPress2; “Lampião da Esquina”, com acervo disponível no Grupo Dignidade3; e, ainda, “Relatórios do Grupo Gay da Bahia” e “Arquivo Memórias da Ditadura”, no Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil4 e Portal Memórias da Ditadura do Instituto Vladmir Herzog5, respectivamente. Da mesma forma, para embasar a análise documental, serão utilizados eventos como “Mulheres lésbicas em movimento: LGBTQIAPN+ contra a ditadura e o autoritarismo” e “Exposição Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura”, da EDEPE6 e Memorial da Resistência de São Paulo7, respectivamente; a monografia “AS MULHERES LÉSBICAS E O LAMPIÃO DA ESQUINA CONTRA A POLÍTICA SEXUAL DA DITADURA BRASILEIRA (1978-1981)”, trabalho elaborado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul8; além dos livros “Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade” e “Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT”, ambos de Renan Quinalha, junto à EdUFSCAR9 e Companhia das Letras10, respectivamente. Não obstante, destaca-se que o estudo do material citado será feito de maneira subsidiária à análise dos demais documentos, pois há que se ressaltar que a extensão da pesquisa a esses meios é importante para buscar compreender como o movimento LGBTQIAPN+ contribui para o acesso à justiça desta comunidade. Para tanto, observar-se-á as produções científicas destinadas ao tema e elaboradas pelo próprio meio, assim como as produções informais que se relacionarem com o assunto. Ainda, para escolher tais documentos, de início foi realizada uma pesquisa a fim de reconhecer quais eram os jornais e coletivos ativos à época, responsáveis por movimentar o cenário existente e contribuir com a concepção de uma militância ativa. Feito isso, foram 10 Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/Contra_a_moral_e_os_bons_costumes/IA0zEAAAQBAJ?hl=pt-BR& gbpv=1&dq=contra%20a%20moral%20e%20os%20bons%20costumes%3A%20a%20pol%C3%ADtica%20sex ual%20da%20ditadura%20brasileira%20(1964-1988)&pg=PP1&printsec=frontcover 9 Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IHGxEAAAQBAJ&lpg=PT409&dq=jornais%20clandestinos%20ditadur a%20e%20lgbt&lr&hl=pt-BR&pg=PT409#v=onepage&q&f=false 8 Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/239727 7 Disponível em: http://memorialdaresistenciasp.org.br/exposicoes/orgulho-e-resistencias/ 6 Disponível em: https://edepeonline.defensoria.sp.def.br/details/plan/mulheres-lesbicas-em-movimento-lgbtqia-contra-a-ditadura- e-o-autoritarismo 5 Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/lgbt 4 Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/todos-dossies/grupo-gay-da-bahia 3 Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/ 2 Disponível em: https://cisges.files.wordpress.com/2018/09/chana-com-chana.pdf https://www.google.com.br/books/edition/Contra_a_moral_e_os_bons_costumes/IA0zEAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=contra%20a%20moral%20e%20os%20bons%20costumes%3A%20a%20pol%C3%ADtica%20sexual%20da%20ditadura%20brasileira%20(1964-1988)&pg=PP1&printsec=frontcover https://www.google.com.br/books/edition/Contra_a_moral_e_os_bons_costumes/IA0zEAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=contra%20a%20moral%20e%20os%20bons%20costumes%3A%20a%20pol%C3%ADtica%20sexual%20da%20ditadura%20brasileira%20(1964-1988)&pg=PP1&printsec=frontcover https://www.google.com.br/books/edition/Contra_a_moral_e_os_bons_costumes/IA0zEAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=contra%20a%20moral%20e%20os%20bons%20costumes%3A%20a%20pol%C3%ADtica%20sexual%20da%20ditadura%20brasileira%20(1964-1988)&pg=PP1&printsec=frontcover https://books.google.com.br/books?id=IHGxEAAAQBAJ&lpg=PT409&dq=jornais%20clandestinos%20ditadura%20e%20lgbt&lr&hl=pt-BR&pg=PT409#v=onepage&q&f=false https://books.google.com.br/books?id=IHGxEAAAQBAJ&lpg=PT409&dq=jornais%20clandestinos%20ditadura%20e%20lgbt&lr&hl=pt-BR&pg=PT409#v=onepage&q&f=false https://lume.ufrgs.br/handle/10183/239727 http://memorialdaresistenciasp.org.br/exposicoes/orgulho-e-resistencias/ https://edepeonline.defensoria.sp.def.br/details/plan/mulheres-lesbicas-em-movimento-lgbtqia-contra-a-ditadura-e-o-autoritarismo https://edepeonline.defensoria.sp.def.br/details/plan/mulheres-lesbicas-em-movimento-lgbtqia-contra-a-ditadura-e-o-autoritarismo https://memoriasdaditadura.org.br/lgbt https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/todos-dossies/grupo-gay-da-bahia https://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/ https://cisges.files.wordpress.com/2018/09/chana-com-chana.pdf 13 identificados demais trabalhos e produções que abordassem o período histórico estudado, apresentando as construções e dificuldades vividas. Por fim, os resultados serão examinados a partir do cruzamento dos dados e informações obtidas com a análise do acervo de materiais produzidos pelos movimentos LGBTQIAPN+ em jornais alternativos com todo o referencial bibliográfico utilizado como base metodológica da pesquisa. Dessa forma, anseia-se que seja possível, por meio das respostas alcançadas, apresentar como a construção da história dos direitos se deu a partir da mobilização destes agentes oprimidos e, assim, contribuir para a explicação da seguinte pergunta: como este grupo social colaborou para a mudança institucional no período de redemocratização? 1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA DISCRIMINAÇÃO E RESISTÊNCIA LGBTQIAPN+ NO BRASIL O mundo de hoje, em sua busca por compreender suas origens, reflete sobre o passado com um olhar mais atento. Isto, pois, quando os portugueses chegaram a essas terras, chocaram-se com uma população que não se curvava às normas de gênero e sexualidade, já conhecidas e disseminadas na Europa. Assim, em um dos relatos mais expressivos de Pero de Magalhães Gândavo, de 1576, foi apresentado que as índigenas deixavam o exercício de damas e imitavam os homens, seguindo seus ofícios, cortando seus cabelos e indo à guerra da mesma forma que eles. No mesmo sentido, fato que chamou atenção é que estas possuíam mulheres, com quem diziam serem casadas (Gândavo apud Lisboa, 2023). Os Tupinambás usavam o termo tibira para se referir a homens gays e çacoaimbeguira para mulheres lésbicas. Esses termos refletem a presença e o reconhecimento da diversidade sexual entre os povos indígenas antes da colonização europeia. A aceitação dessas identidades foi posteriormente reprimida durante o processo de catequização (Veiga, 2020). Isto, pois, os homens brancos, ao se depararem com essas tradições, reconheceram a necessidade de impor controles mais rígidos, desenvolvendo uma postura de “hipervirilidade” e animosidade contra as figuras não brancas e não cristãs (Lisboa, 2023). Para o antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, “o machismo, a misoginia e a homofobia são irmãs trigêmeas nessa sociedade marcada pela escravidão” (Mott apud Lisboa, 2023). Representação disso, as caravelas portuguesas presentearam o país com o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que estipulava pena de morte para o “pecado da sodomia”. Esta, 14 embora não seja diretamente equivalente à divisão moderna entre homossexuais e heterossexuais, era comumente associado ao amor entre pessoas do mesmo sexo, e desempenhou um papel significativo na compreensão da sexualidade pelos colonizadores (Lisboa, 2023). O Código Penal de 1823, em seu Livro V, Capítulo XIII, previa: Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que cometer pecado de sodomia de qualquer forma, seja queimada, reduzida a cinzas, de modo que não reste memória de seu corpo e sepultura, e todos os seus bens sejam confiscados para a coroa do reino. Mesmo que tenha descendentes, seus filhos e netos serão considerados inábeis e infames, assim como os daqueles que cometeram crime de lesa majestade. Durante séculos, a sodomia foi duramente reprimida pelas Ordenações Portuguesas, que foram aplicadas na colônia. O termo "sodomia" foi criado pelo teólogo italiano São Pedro Damião, fazendo uma analogia com a palavra "blasfêmia". Trata-se de uma referência à cidade de Sodoma - cuja destruição é relatada no livro de Gênesis, capítulo 19 -, que contribuiu para a associação negativa com a prática homoafetiva (Fernandes, 2020). Na época colonial, a sodomia era vista como um vício contra a natureza. Acreditava-se que a prática homoerótica desperdiçava a semente necessária para a reprodução de novos cristãos. Além disso, temia-se que os praticantes se tornassem efeminados, enfraquecendo sua virilidade essencial para a defesa contra inimigos indígenas e luso-brasileiros (Mott apud Santos, 2018). Assim, a brutalidade de uma execução pública deixava especificado ao restante da população que aquele seria o destino para todos os pecadores. É importante destacar que, para "questões relacionadas a pecado" que gerassem controvérsia entre os juristas, as Ordenações determinavam a consulta ao direito romano e ao canônico. Esse fato demonstra a relevância que a tradição e a religião católica exerciam na formulação da legislação (Trevisan, 2018). Ainda, a Igreja Católica também era responsável pela averiguação de denúncias, a detenção de suspeitos e a determinação das punições (Mott apud Lisboa, 2023). Estas, contudo, não restringiam aos indivíduos praticantes, sendo estendidas a seus bens e familiares. As Ordenações Manuelinas começaram a impactar diretamente a estrutura familiar, instaurando a crença de que o pecado cometido por uma pessoa também contaminava aqueles ao seu redor. Os descendentes dos acusados eram condenados à desonra, impedidos de ocupar cargos públicos e incentivados a denunciar seus próprios familiares, com a promessa de receber um terço dos bens confiscados. Aqueles que se recusassem a delatar também enfrentariam a perda de seus bens. Esse contexto fomentou uma profunda aversão e a 15 convicção de que era necessário afastar e punir severamente quem cometesse tais pecados (Blume, 2021). É evidente, portanto, que a colonização europeia levou à criação de padrões de discriminação relacionados à orientação sexual e identidade de gênero que se consolidaram na nossa sociedade e cultura. Por isso, alguns especialistas veem a LGBTQIAPN+fobia como um problema enraizado nas estruturas do Brasil (Gonzalez et al., 2021). O Doutor em Direito Constitucional, Adilson José Moreira, explica que: podemos dizer que a discriminação contra as minorias tem um caráter estrutural quando identificamos a presença de alguns processos que não expressam atos individuais, mas sim forças sociais alimentadas por relações assimétricas de poder (2017, p. 137). Quando dizemos que a discriminação é estrutural, estamos nos referindo ao fato de que as instituições da sociedade - como o Estado, a Igreja e o setor privado - contribuem para criar desvantagens e desigualdades para as pessoas em vários aspectos da vida. Isso quer dizer que o problema não se limita apenas a atos isolados de discriminação, como agressões físicas, verbais ou psicológicas, mas está embutido nas próprias estruturas e sistemas da sociedade (Gonzalez et al., 2021). Foi somente em 1830, com a promulgação do Código Penal do Brasil Império, que ocorreu a descriminalização da sodomia - sendo um dos primeiros países das Américas a fazer isso. Todavia, engana-se quem pensa que este ato eliminou os preconceitos sociais e os estereótipos existentes contra os indivíduos LGBTQIAPN+. Embora as leis que impunham penas mais duras para dissidências de gênero tenham sido revogadas, outras formas de pressão social persistiram como causa dessa marginalização - visto que a homossexualidade e a transexualidade eram, inclusive, consideradas doenças no país (Gonzalez et al., 2021). Esses discursos unificaram vozes religiosas, policiais, jurídicas e médicas em apoio a uma visão única de família. A introdução do novo Código trouxe a criação de delitos relacionados à "ofensa à moral e aos bons costumes" em espaços públicos. Embora a homossexualidade não fosse mencionada explicitamente, ela foi sutilmente enquadrada nessas infrações, descritas de forma vaga. Na legislação brasileira, esse tema era tão polêmico que foi tratado com um silêncio deliberado. Isso resultou na rápida transformação dos "crimes morais" em alvos fáceis para a atuação policial. No Código Imperial, não por acaso, o crime contra a moral e os bons costumes era classificado no capítulo dos "Crimes Policiais" e punido com "prisão de dez a quarenta dias e multa proporcional ao tempo" (Trevisan, 2018). 16 Um exemplo claro da persistência de uma tradição social que, por sua vez, engendraria a permanência dos preconceitos, pode ser observado na Proclamação da República, que não contou com o apoio popular amplo, mas sim com o respaldo das elites. Essas, desejavam preservar seu status quo e criar tradições que o país ainda não tinha, com o objetivo de estabelecer um ideal de identidade nacional. A República surgiu a partir de um golpe de Estado, que prometia uma nova estrutura social - que continuaram as mesmas, visto que o poder seguiu centralizado na mão da burguesia. Com todos esses grandes acontecimentos, assim como aconteceu com a Constituição de 1891, a Proclamação da República foi seguida pela criação de uma nova lei penal (Neumann; Belin, 2020). Dessa forma, indígenas, negros e pessoas dos grupos LGBTQIAPN+ continuaram a enfrentar marginalização, enquanto o Estado criava mecanismos legais para punir e proibir essas práticas. Durante esse período, as lutas por direitos civis e sociais não conseguiram prosperar, pois, apesar das mudanças significativas, as classes sociais mais marginalizadas continuaram a ser vistas como uma "vergonha" pela “alta sociedade” (Neumann; Belin, 2020). De acordo com Trevisan (2018), o novo Código Penal da República, embora reformulado, manteve a mesma carga de preconceito, substituindo as terminologias antigas por novas. O crime associado à homossexualidade passou a ser descrito como “crime contra a segurança da honra e honestidade da família” ou “ultraje público ao pudor”. Os significados dos termos podem mudar ao longo do tempo de acordo com a moral social vigente. No entanto, ao compararmos com as expressões e palavras atuais usadas para discriminar e prejudicar a comunidade LGBTQIAPN+, notamos que conceitos como moralidade e defesa da família continuam presentes, especialmente entre líderes religiosos e políticos que promovem discursos de ódio. No passado, quem cometia esses “desvios morais” enfrentava punições severas, com penas de até seis meses de prisão. De maneira mais específica, o travestismo era alvo dessa penalidade, atingindo aqueles que usavam “trajes impróprios de seu sexo” e os exibiam “publicamente para enganar” (Trevisan apud Blume, 2021). Em 1932, o Código Penal foi reformado para incluir uma proibição mais ampla no capítulo sobre “ultraje ao pudor”, que agora abrangia a circulação de folhetos, livros, periódicos, jornais e outros impressos que ofendessem a moral pública. Além da pena de prisão, que variava de seis meses a dois anos, esses materiais podiam ser apreendidos por ordem judicial (Trevisan, 2018). Com o advento do Código Penal de 1940, o crime de “ultraje ao pudor” foi mantido, agora incluindo representações cinematográficas, fonográficas e 17 teatrais quando exibidas publicamente. Esse Código foi inicialmente visto como um sinal de progresso e consolidação da teoria positivista do direito. Contudo, com a Era Vargas, o regime se consolidou no controle e na repressão dos cidadãos, utilizando o exército e a polícia para impor censura e realizar prisões arbitrárias, especialmente contra aqueles considerados “imorais” ou opositores à ideologia do governo (Castro apud Neumann; Belin, 2020). Como o Brasil tem uma cultura antropofágica, influenciada por tendências externas, a perseguição à comunidade LGBTQIAPN+ no país se intensificou durante a Segunda Guerra Mundial, exacerbada pelos acontecimentos na Europa (Neumann; Belin, 2020). No mundo pós-guerra, a Guerra Fria, um conceito que emergiu após o conflito militar de 1939-1945, foi solidificada pela Doutrina Truman dos Estados Unidos (EUA), conforme detalha Joseph Comblin (1978). Os teóricos da Guerra Fria, ao considerar o comunismo uma ameaça expansionista, viam a política da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como uma extensão do nazismo, acreditando que deveria ser combatida da mesma forma. O autor também destaca que a URSS conduzia a Guerra Fria com uma abordagem que transcendeu as ações militares, representando uma nova modalidade de conflito. (Comblin apud Blume, 2021). Na América Latina, após a vitória da Revolução Cubana em 1959, os militares adotaram o conceito de guerra revolucionária para compreender o sucesso das revoluções populares, como as de Cuba e da China em 1949 (Blume, 2021). Conforme indica Comblin, a rígida defesa da Segurança Nacional11 tornou-se a principal resposta dos EUA a esse tipo de conflito, que intensificou sua intervenção nas questões políticas e econômicas do continente latino-americano após o triunfo de Cuba (1978). Com o advento do processo revolucionário cubano, em 1959, e o seu decorrente êxito, a política externa estadunidense, que historicamente se caracterizou pela interferência aos assuntos internos dos países do subcontinente latino-americano, adotou a contra insurreição como estratégia primordial, que pautou as relações contra a América Latina, disseminado-a através das escolas de guerra. Vale ressaltar que a Revolução Cubana impactou sobremaneira os países do continente americano: por um lado, figurou como um exemplo para a luta de outros países; e, por outro, aguçou a necessidade de conter estas possíveis explosões revolucionárias. (Assumpção, 2012, p. 2) Foi a Escola das Américas, localizada no Canal do Panamá, na América Central, que serviu como um crucial centro de treinamento para militares e policiais de diversos países da América, incluindo o Brasil. Este instituto exerceu uma influência significativa nas relações 11 Maria Helena Moreira Alves (1984, p. 23) descreve a ideologia de Segurança Nacional como “um instrumento utilizado pelas classes dominantes, associado ao capital estrangeiro, para justificar e legitimar a perpetuação por meios não democráticos de um modelo altamente explorador de desenvolvimento dependente”. 18 exteriores e na Segurança Nacional, formando especialistas em estratégias de combate à insurgência, de acordo com a lógica da Guerra Fria e o enfrentamento do comunismo. Para os militares treinados nessa instituição, a homossexualidade era percebida como uma ferramenta do comunismo internacional, usada para difundir sua ideologia e recrutar novos militantes de esquerda (Blume, 2021). A tese de que a propagação da dissolução dos costumes nos meios de comunicação fazia parte de uma estratégia do movimento comunista internacional era uma ideia corriqueira nos informes dos agentes dos órgãos de informações, os quais percebiam o ambiente de fortes mudanças dos padrões de moralidade como uma verdadeira derrocada em direção à “subversão” (Marcelino, 2006, p. 33) O golpe de Estado de 1º de abril de 1964, que destituiu o governo de João Goulart (1962-1964), foi arquitetado pelos altos comandos das Forças Armadas, formados na Escola Superior de Guerra (ESG), em conluio com a burguesia nacional e o capital internacional, contando, ainda, com o respaldo do governo dos Estados Unidos - que visava proteger os interesses capitalistas na América Latina. Esse golpe, de caráter classista, instaurou uma ditadura burguesa fundamentada na Segurança Nacional e no Terrorismo de Estado (TDE), com metas bem definidas: garantir a continuidade do capital na América Latina, controlar a força de trabalho, limitar a ação política dos movimentos sociais e instaurar uma cultura de medo (Padrós apud Blume, 2021). A ditadura implantou uma agenda moralizante desenvolvida pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e pela ESG. Essas instituições formaram uma eficiente burocracia paralela, encarregada de arquitetar o novo Estado (Alves, 1984). Também, desempenharam um papel essencial na construção de uma cultura anticomunista que preparou o terreno para o golpe de 1964. Com o objetivo de preservar os interesses econômicos das elites golpistas, suas ações promoviam ideais conservadores fundamentados em Deus, Pátria e Família (Gaspar, 2012). Durante a década de 1960, o IPES/IBAD produziu e exibiu mais de vinte filmes e documentários para milhares de brasileiros. O objetivo era semear o medo do comunismo e alertar sobre o perigo que ele representava para a família, a religião e a moral cristã, manipulando a dicotomia entre o bem — representado pelos defensores da moral e dos bons costumes — e o mal, personificado pelo comunismo (Blume, 2021). Diante dessa realidade, a coleta de informações tornou-se fundamental para as estratégias dos militares de segurança nacional. Nesse cenário, a inteligência passou a ser o núcleo das operações desses profissionais, e a prática da tortura para extrair informações 19 sobre o adversário se tornou comum. Antecipar a formação de guerrilhas e organizações revolucionárias era uma prioridade, e para os Estados de Segurança Nacional, a inteligência era vista como a principal ferramenta na luta contrarrevolucionária. Segundo a DSN, qualquer cidadão podia ser classificado como inimigo, representando uma mudança radical em comparação com as guerras tradicionais, onde o inimigo era externo (Blume, 2021). A guerra, agora permanente, criava uma sensação de ameaça constante dos "inimigos internos", e isso fomentava insegurança, desconfiança e divisão na população. A desconfiança gerava uma onda de denúncias entre vizinhos, colegas de trabalho e de escola, promovendo um clima de medo generalizado. Isso também permitia aos setores golpistas justificar ações violentas, fundamentadas, como destaca Maria Helena Moreira Alves, “numa racionalidade de opressão classista” (Alves, 1984). O pensamento conservador, predominante durante e após o golpe, estava em sintonia com os interesses das elites dominantes. A homofobia estatal não apenas persistiu, mas a moral conservadora foi reafirmada e imposta como a única aceitável. Embora o Código Penal não incluísse um artigo específico sobre a homossexualidade e a DSN não mencionasse diretamente comportamentos homossexuais, a Doutrina estabelecia amplas diretrizes baseadas na moral cristã e ocidental. Isso possibilitou que comportamentos considerados "desviantes" fossem tratados como subversivos (Blume, 2021). No Código Penal Militar de 1969, apenas um artigo, o nº 235, abordava explicitamente a homossexualidade, estipulando penalidades para comportamentos libidinosos, homossexuais ou não, em locais sob administração militar: Art. 235 Praticar, ou permitir o militar que com êle [sic] se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena - detenção de seis meses a um ano (BRASIL, 1969, texto digital). Ao destacar exclusivamente o ato homossexual, a lei revela uma moral homofóbica. Embora qualquer ato libidinoso fosse proibido, a ênfase na homossexualidade sublinha sua intolerância. O título do artigo 235 do Código Penal Militar de 1969, “Pederastia ou outro ato de libidinagem”, usa o termo “pederastia” para se referir a relações homossexuais masculinas e “libidinagem” para comportamentos de busca incessante de satisfação sexual. Em termos gerais, a relação sexual homossexual é tratada como um ato libidinoso, promíscuo e inaceitável segundo o Código Penal Militar (Brasil, 1969), sendo a única explicitamente abordada. 20 Na Doutrina de Segurança Nacional, conceitos como "inimigo interno" são definidos de maneira imprecisa, o que facilita sua adaptação aos interesses da ditadura. Esta estratégia permitia que uma ampla gama de pessoas fosse categorizada com base em critérios estabelecidos pela moral cristã e conservadora. O termo "comunista" também se torna vago, sendo usado para descrever qualquer pessoa que se oponha às imposições da ditadura. Nesse contexto abrangente, qualquer desvio dos bons costumes impostos justifica a perseguição, censura, prisão e extorsão de lésbicas, gays, travestis e transexuais (Blume, 2021). No Brasil, desde o Código Criminal do Império, de 1830, a prática homossexual não se encontra expressamente criminalizada para civis. Sem embargo, diversos outros dispositivos legais e contravencionais, tais como “ato obsceno em lugar público”, “vadiagem” ou violação à “moral e aos bons costumes”, foram intensamente mobilizados para perseguir as sexualidades desviantes (Quinalha, 2017, p. 25). A Doutrina de Segurança Nacional (DSN) advogava a ideia de uma sociedade uniforme, ignorando as diferenças entre os indivíduos. Para seus defensores, todos deveriam contribuir para o bem da nação e não desafiar seu status quo; assim, a luta por direitos de grupos marginalizados era vista como parte da estratégia comunista internacional (Padrós, 2005). O Estado é criado para impedir que as classes sociais opostas se "destruam", conforme Engels expõe em "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" (1984). Apesar de aparentar neutralidade, o Estado na realidade serve aos interesses das classes dominantes e direciona suas forças repressivas contra os menos favorecidos. Durante a ditadura brasileira, os métodos de repressão foram executados de forma secreta, mas ainda dentro da "legalidade" do regime. A violência contra os opositores incluía sequestros, prisões arbitrárias, tortura, violência sexual, censura, execuções, desaparecimentos e extorsões, todas sistematicamente organizadas pela repressão estatal. Nesse cenário, desafiar o Estado representava um ato de imensa coragem e perigo. O impacto da DSN sobre as pessoas LGBTQIAPN+ é evidente na análise de Joseph Comblin, especialmente no que diz respeito aos Objetivos Nacionais da DSN. O autor observou que a integridade nacional deveria ser mantida por meio da homogeneização segundo os preceitos da moral cristã. Para os militares da DSN, as questões sociais de classe eram irrelevantes e ignoradas em políticas públicas, portanto, a diversidade da população brasileira não se encaixava na visão militar. O que importava era a imposição da moral judaico-cristã e a manutenção do capital nacional (Comblin, 1978). 21 O slogan governamental “segurança com desenvolvimento” associa o desenvolvimento capitalista associado-dependente à defesa da segurança interna contra o “inimigo interno”. Por sua vez, esta ênfase na constante ameaça à nação por parte de “inimigos internos” ocultos e desconhecidos produz, no seio da população, um clima de suspeita, medo e divisão que permite ao regime levar a cabo campanhas repressivas que de outro modo não seriam toleradas. Dessa maneira, a dissensão e os antagonismos de classe podem ser controlados pelo terror. Trata-se por isso mesmo de uma ideologia de dominação de classe, que tem servido para justificar as mais violentas formas de opressão classista (Alves, 1984, p. 31-32). A consequência direta do TDE foi o medo de manifestar ideias ou comportamentos contrários ao Estado ditatorial. A violência que ultrapassa a legalidade gerava um temor ainda maior, paralisando e criminalizando a oposição. Esse medo, fomentado pelo Estado e absorvido pela população, demonstrava a eficácia em silenciar movimentos de contestação, incluindo a luta contra a homofobia. Com isso, instituiu-se uma “cultura do medo”, moldando um comportamento aceitável e punindo aqueles que se desviassem das normas com a acusação de "subversivo" (Padrós, 2005). É fato que a DSN desempenhou um papel crucial na repressão da população LGBTQIAPN+, rotulando-os como "inimigos internos". A moralidade sexual imposta pelo regime ditatorial surgiu como uma resposta autoritária às diversidades que se destacaram na década de 1960, incluindo as manifestações estudantis, a contracultura, o movimento hippie e a disseminação da pílula anticoncepcional. Essas transformações são o que desafiavam o status quo e o conservadorismo social, moral e econômico. (Blume, 2021). Durante o período da ditadura no Brasil, mesmo em um estado de exceção, diversas manifestações ocorreram com diferentes intensidades e características, especialmente em 1968. Esse ano foi marcado por grandes protestos envolvendo estudantes, a classe média, artistas e grevistas, até a imposição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro. Com a implementação do AI-5, a resistência à ditadura sofreu golpes severos, tornando-se quase inteiramente clandestina. A intensidade e a evolução das ideias contestatórias diminuíram drasticamente, permitindo a implementação do modelo de desenvolvimento dos militares e civis da DSN sem as temidas perturbações sociais. O aparato repressivo do Estado foi totalmente direcionado para erradicar qualquer forma de resistência (Blume, 2021). O caráter permanente dos controles a ele incorporados [ao AI5] deu origem a um novo período em que o modelo de desenvolvimento econômico podia ser plenamente aplicado, enquanto o Aparato Repressivo buscava a Segurança Interna absoluta, impedindo a dissensão organizada contra as políticas econômicas e sociais do governo. O Ato Institucional Nº 5 forneceria assim o quadro legal para profundas transformações estruturais (Alves, 1984, p. 135-136). 22 Durante a ditadura, as mulheres lésbicas enfrentaram um caminho especialmente difícil para sobreviver, pois eram percebidas como violadoras do padrão heteronormativo feminino. Segundo André Piovezan e Antônio Fontoura Júnior (2015), prevalecia a ideia de uma "heterossexualidade normativa", considerada "natural" para os seres humanos. Dessa forma, as mulheres lésbicas estavam em desacordo com o projeto político do Estado pós-Golpe de 1964. Adicionalmente, a moral sexual imposta pela Igreja Católica, que desde o período colonial moldava a sociedade brasileira e se manteve forte durante a ditadura, também teve um papel fundamental. A homossexualidade e o prazer eram condenados por essa vertente ortodoxa do cristianismo. O sistema de crenças dominante exigia a proteção da instituição familiar e da moral cristã contra qualquer ameaça. A intensificação da defesa dessa moral durante a ditadura estava associada às distorções do marxismo divulgadas pela Igreja, que procurava justificar a oposição aos ideais socialistas e libertários. Esse esforço visava preservar o poder e os privilégios socioeconômicos, promovendo a ideia de que o marxismo representava uma ameaça para as famílias e as Igrejas, instituições profundamente vinculadas ao capitalismo (Blume, 2021). A avaliação do Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia, mostra que os argumentos empregados eram, em sua maioria, de natureza moral. CONSIDERANDO que a Constituição da República, no artigo 153, § 8o dispõe que não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes; CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valôres [sic] éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade; [...] CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira; CONSIDERANDO que o emprêgo [sic] dêsses [sic] meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional. DECRETA: Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação [...]; Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares [...]; II - À perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa [...]; Art. 7º A proibição contida no artigo 1º dêste [sic] Decreto-Lei aplica-se às diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão (Brasil, 1970, texto digital). 23 Apesar de os conceitos de moral e bons costumes estabelecidos neste Decreto-Lei serem igualmente vagos e imprecisos, na aplicação, grupos como as pessoas LGBTQIAPN+ foram severamente punidos. A juventude deveria receber uma “formação digna e sadia”, o que implicava que, desde cedo, deveriam ser ensinadas a não questionar e a não expressar desejos que desviassem das normas estabelecidas. Essa perspectiva remete a uma visão anterior à ditadura e ao tema discutido anteriormente sobre eugenia. Segundo os princípios eugenistas, a saúde sexual estava atrelada à manutenção de relações heterossexuais. A prostituição era igualmente considerada um desvio, e qualquer comportamento fora do padrão “normal” era rotulado como depravação, reforçando um conceito patológico para essas existências (Blume, 2021). O moralismo do regime militar, suportado pelo pensamento conservador de parte da sociedade do período, buscava a exclusão de um tipo específico da orientação sexual bem como um tipo particular de corporalidade – o corpo lésbico – por não apenas confrontar, mas, inclusive, ameaçar um modelo de sexualidade considerada ideal para os cidadãos. E esta perseguição ao lesbianismo não era metafórica ou disfarçada [...] (Piovezan; Júnior, 2015, p. 2409). Em razão disso, esta pesquisa analisa a aplicação do aparato repressivo instituído pela ditadura, para banir, tanto fisicamente quanto psicologicamente, qualquer figura capaz de contrariar seus ideais. O autor, Renan Quinalha (2017), descreve que esse aparato foi empregado como um instrumento para implementar a política sexual da ditadura, que se destacava pela defesa de valores conservadores, cristãos e ocidentais. Nesse contexto, o autor explica que: [pela] defesa da “moral e dos bons costumes”, o regime autoritário brasileiro estruturou um complexo aparato repressivo orientado não apenas para eliminar dissidentes políticos, mas também para regular e normalizar os corpos marcados por orientação sexual e/ou identidade de gênero dissidentes. Para isso, foi preciso fazer convergir a atuação de diversas agências estatais que integravam as comunidades de informações, segurança e de censura em torno de uma agenda moral comum, apesar das disputas e tensões entre elas. Segundo essa perspectiva, erotismo, pornografia, homossexualidades e transgeneridades eram classificados como temas e práticas ameaçadores não apenas contra a estabilidade política e a segurança nacional, mas também contra a ordem sexual, a família tradicional e os valores éticos que, supostamente, coesionavam a sociedade brasileira. Cerceamento da produção cultural, repressão policial nas ruas, vigilância do nascente movimento homossexual e perseguição a seus veículos de expressão e comunicação foram algumas medidas de violência implementadas por diferentes órgãos repressivos e que são examinadas detalhadamente (Quinalha, 2017, p. 8 apud Blume, 2021). Então, Quinalha recorre às análises de Sérgio Carrara (2015) sobre o trabalho de Jeffrey Weeks para explorar o conceito de política sexual e sua relevância para compreender o período da ditadura de Segurança Nacional. Nesse contexto, política sexual refere-se às leis e 24 práticas governamentais que regulam a maneira como as sexualidades devem ser tratadas e regulamentadas. Carrara (2015) argumenta que: Possibilita a abordagem conjunta de diferentes tipos de ação social dirigidos ao Estado ou promovidos em seu âmbito ou sob sua chancela: legislações, campanhas sanitárias, programas educativos, normativas ministeriais, decisões judiciais, diferentes ativismos ou movimentos sociais etc. Sob o regime ditatorial, a repressão não se restringia à eliminação de adversários políticos; havia também um esforço deliberado para padronizar comportamentos e identidades de gênero e orientação sexual. O intuito era consolidar um controle social rigoroso e promover valores conservadores e autoritários. Esse entendimento é reforçado pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, que aponta para essas práticas: “os homossexuais eram considerados parte da esquerda adversária e da subversão, o que consolidou uma perspectiva extremamente homofóbica tanto nas autoridades quanto na população da época da ditadura militar” (Serrano, 2020). Os militares criaram uma intrincada estrutura burocrática de repressão, que incluía departamentos dedicados à informação, segurança e censura. Os membros dessas entidades não apenas perseguiam metas de repressão política, mas também aderiram a uma agenda moral compartilhada, o que favoreceu a execução das políticas sexuais do regime. Segundo Quinalha (2017), para compreender as nuances e contradições dessa política, é necessário “reconhecimento da centralidade da moralidade conservadora na ordenação do regime e pelo exame da complexa e multifacetada estrutura repressiva”, visando alcançar o que o autor denomina de “utopia autoritária”. O conceito de política sexual (Quinalha, 2017) desempenha um papel crucial na compreensão de como a ditadura de Segurança Nacional exerceu um controle rígido sobre a população brasileira, impondo um processo sistemático de opressão. Ao considerar as diferentes sexualidades, esse conceito esclarece como o regime buscou suprimir qualquer forma de dissidência sexual e reprimiu de maneira implacável o movimento homossexual. Através dessa política, o governo não apenas controlou as expressões de sexualidade que divergiam das normas conservadoras, mas também tentou silenciar e erradicar qualquer resistência organizada que surgisse contra esse controle autoritário. 2 DINÂMICAS DE SOCIABILIDADE E CONTROLE SOCIAL DA COMUNIDADE LGBTQIAPN+ 25 2.1 Política Sexual e Higienização A ditadura militar, que se instaurou no Brasil em 1964, não foi a responsável por originar a mentalidade conservadora que já permeava parte da sociedade brasileira, mas desempenhou um papel crucial em intensificá-la e institucionalizá-la. Com a concentração de poder no Executivo e a implementação de um aparato repressivo, o regime militar criou as condições necessárias para promover um projeto de "saneamento moral". Esse projeto visava reverter as transformações sociais progressistas que ocorriam na época, como a liberação sexual, a disseminação da pílula anticoncepcional, o aumento da presença feminina no mercado de trabalho e a crescente visibilidade de homossexuais e travestis. Em vez de aceitar essas mudanças, a ditadura organizou uma reação conservadora, usando seu poder para reforçar valores tradicionais e controlar a sociedade em nome da moralidade (Quinalha, 2021c). Durante esse período, o regime não se limitou a controlar a vida política, mas também se envolveu profundamente na regulamentação da moralidade e da sexualidade dos cidadãos. O governo monitorava e documentava práticas sexuais, impondo uma vigilância invasiva sobre a vida privada. Essa intrusão estendeu-se à censura de produções culturais, como músicas, filmes e peças de teatro, que eram consideradas subversivas ou imorais. Além disso, travestis, prostitutas e homossexuais foram alvo de repressão policial intensa, refletindo uma agenda de moralização que buscava moldar o comportamento social (Quinalha, 2021c). Para o regime, a sexualidade era vista não apenas como uma questão moral, mas também como uma ameaça à segurança nacional, justificando o controle rigoroso e a intervenção na vida pessoal dos indivíduos. Assim, as políticas sexuais do regime tinham como objetivo principal reforçar o estigma contra a comunidade LGBTQIAPN+, ao tentar dessexualizar o espaço público e tornar invisíveis os corpos e as reivindicações de grupos que buscavam reconhecimento e direitos. Apesar dessa repressão, a resistência era evidente: surgiram boates, bares e outros espaços de sociabilidade onde homossexuais se reuniam e se expressavam, mesmo que de forma discreta e protegida. Essa situação começou a mudar com o tempo, à medida que a comunidade LGBTQIAPN+ começou a ocupar o espaço público com maior visibilidade, ostentando orgulho e buscando um lugar político na sociedade. Esse processo de visibilidade e resistência foi fundamental para o surgimento e o fortalecimento do movimento 26 LGBTQIAPN+ organizado no Brasil, marcando uma importante fase na luta por direitos e reconhecimento (Quinalha, 2021c). Tendo em vista o apresentado, a distinção entre sexo e gênero é fundamental para compreender as dinâmicas sociais e biológicas. O sexo refere-se às características anatômicas e biológicas que diferenciam machos e fêmeas, como a genitália e o aparelho reprodutivo. Em contraste, o gênero é uma construção social que se baseia no sexo biológico, mas não se limita a ele. Enquanto o sexo pode ser observado e classificado, o gênero envolve papéis, comportamentos e expectativas que a sociedade atribui a indivíduos com base em seu sexo. Essa divisão não é uma característica natural, mas sim uma estrutura social que organiza e define as funções, responsabilidades e oportunidades para homens e mulheres (Arouca, 2021b). A existência de pessoas intersexuais, que possuem características físicas de ambos os sexos, ilustra que a classificação biológica é mais complexa do que uma simples divisão binária, destacando a natureza socialmente construída das categorias de gênero. Já a sexualidade abrange os comportamentos, práticas e sentimentos relacionados ao desejo e aos relacionamentos românticos e sexuais. Ela se manifesta em diferentes orientações, como a homossexualidade, onde há atração por pessoas do mesmo gênero; a bissexualidade, onde a atração pode ocorrer por ambos os gêneros; e a heterossexualidade, que envolve atração pelo gênero oposto. No entanto, essas categorias são apenas uma maneira de compreender a vasta gama de experiências humanas. A riqueza e a complexidade da sexualidade e das identidades frequentemente ultrapassam essas definições rígidas, tornando essencial respeitar a individualidade de cada pessoa. É fundamental permitir que todos vivam sua identidade e sexualidade sem sofrer discriminação ou violência, promovendo assim a dignidade e a aceitação verdadeira (Arouca, 2021b). 27 Figura 1: Infográfico sobre sexualidade, gênero e suas expressões Fonte: Manual de Comunicação LGTB da Associação de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais. In: G1, 2017 2.2 Origem e Transformação da Sigla LGBTQIAPN+ Consolidação dos termos apresentados, a história da sigla LGBTQIAPN+ está profundamente ligada ao processo de organização e militância das pessoas cujas identidades de gênero e orientações sexuais divergem das normas estabelecidas pela sociedade. Desde sua formação inicial no Brasil, a nomenclatura utilizada pelo movimento foi sendo ampliada e ressignificada para abarcar diferentes experiências humanas. Durante a década de 1970, em específico, surgiu o termo “Movimento Homossexual Brasileiro” (MHB), usado pelas primeiras organizações políticas de pessoas LGBTQIAPN+ no país. Essa expressão refletia uma tentativa de se apropriar de um termo historicamente usado de forma pejorativa e transformá-lo em um símbolo de luta. Isto, pois, como será apresentado, até 1990 a homossexualidade era considerada doença no Brasil (Welle, 2020). No entanto, essa denominação era limitada, pois excluía lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades. Nos anos 1990, o termo GLS foi popularizado pela jornalista Suzy Capó, que o utilizou nos preparativos para o festival de cinema Mix Brasil, de cinema alternativo. Esta 28 abarcava as seguintes orientações: Gays - homens que sentem atração sexual ou afetiva por outros homens; e Lésbicas - mulheres que sentem atração sexual ou afetiva por outras mulheres (O Tempo Brasil, 2023). Nesse contexto, o mercado cultural e a mídia começavam a explorar mais abertamente a existência de uma comunidade LGBTQIAPN+, ainda que de forma limitada. Com isso, a sigla passou a ser utilizada para atrair um público mais amplo e comercialmente interessante para eventos, boates e campanhas publicitárias e a inclusão do “S” para “simpatizantes” buscava engajar aliados e reduzir a hostilidade social. No entanto, essa abordagem era frequentemente criticada por esvaziar o caráter político do movimento e diluir as pautas de reivindicação em favor de interesses comerciais. Além disso, o termo também deixava de fora bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades de gênero e orientação sexual, reforçando uma visão restritiva da diversidade sexual (Coutinho, 2020). A partir dos anos 2000, a sigla GLS foi sendo progressivamente substituída para GLBT, incluindo a população Trans - que abarca pessoas que não se identificam com o gênero biológico, ou seja, possuem identidade de gênero distinta de seu sexo de nascimento - e Bissexual - pessoas que sentem atração sexual ou afetiva por mais de um gênero. Entretanto, esta durou pouco tempo e durante a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, encontro promovido pelo governo federal, decretou-se a mudança da sigla para LGBT, buscando uma maior visibilidade para as mulheres lésbicas (Coutinho, 2020). Com o avanço das discussões sobre gênero e sexualidade, novas identidades começaram a reivindicar reconhecimento. Assim, foram adicionados o “Q” de Queer - identidades e expressões de gênero que não se encaixam em padrões heteronormativos - e o “I” de Intersexuais - pessoas nascidas com variações biológicas que não se enquadram nas definições típicas de sexo masculino ou feminino; portanto, estão relacionadas às características sexuais, e não à orientações sexuais ou identidade de gênero. Dessa forma, de modo a reconhecer indivíduos que não se encaixam nas definições binárias de masculino e feminino, a sigla passou a ser denominada “LGBTQI” (O Tempo Brasil, 2023). Já nos anos mais recentes, a sigla continuou a se expandir, refletindo as demandas de movimentos identitários e acadêmicos. O “A” foi incorporado para incluir Assexuais, que são pessoas com ausência total, parcial, condicional ou circunstancial de atração sexual; o “P” representa Pansexuais, que se atraem independentemente do sexo ou gênero das pessoas, e o “N” refere-se a pessoas Não Binárias, cujo gênero não se enquadra na classificação binária de 29 homem ou mulher. Por fim, o uso do símbolo “+” indica a abertura para outras identidades e orientações ainda não representadas na sigla, mostrando que a luta por inclusão continua em constante evolução (O Tempo Brasil, 2023). A transformação da sigla LGBTQIAPN+ reflete não apenas uma evolução linguística, mas também uma mudança profunda no modo como o movimento entende sua diversidade interna e lida com as estruturas de poder que perpetuam discriminação e preconceito. Cada nova letra representa uma conquista política e uma demanda histórica, evidenciando como o movimento adaptou sua identidade para assegurar visibilidade, inclusão e respeito às múltiplas experiências humanas. Essa evolução demonstra como a luta por direitos da comunidade LGBTQIAPN+ vai além da simples inclusão nominal. Trata-se de um esforço contínuo para reconhecer a dignidade e a cidadania de todas as pessoas, reafirmando que cada identidade traz consigo uma história de resistência, luta e conquista que moldou as estruturas legais e sociais em vigor atualmente. 2.3 Repressão Institucional e o Impacto dos Rondões Quando se discute sexualidade, identidade de gênero e política sexual, é importante reconhecer como esses fatores se entrelaçam nas vivências da comunidade LGBTQIAPN+, especialmente da população trans e travesti. A prostituição, nesse contexto, surge como uma realidade complexa, muitas vezes associada à exclusão social e à marginalização. Devido à transfobia estrutural, a comunidade trans enfrenta barreiras significativas no acesso ao mercado de trabalho formal, o que leva 90% das pessoas trans e travestis a recorrerem à prostituição em algum momento de suas vidas, conforme dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Além disso, a falta de acesso à educação e os vínculos familiares fragilizados intensificam essa situação. A prostituição, embora carregada de estigmas, acaba se tornando não apenas uma fonte de subsistência, mas também um caminho para a autonomia em meio a um cenário de violência e marginalização contínua (Câmara, 2021) Em São Paulo, a reorganização dos espaços destinados à prostituição ocorreu com o fechamento da Zona de Confinamento do Bom Retiro em 1953, com o objetivo de controlar a atividade e mantê-la afastada do centro da cidade, que estava passando por reurbanizações. Regulamentada na década de 1940, essa zona permitia a prática oficializada da prostituição 30 feminina através de um sistema de registros e fiscalização na Delegacia de Costumes. A regulamentação da prostituição em uma área designada oferece um ambiente mais seguro e controlado para as trabalhadoras do sexo e seus clientes, reduzindo a repressão e extorsão policial. Nesse contexto, mulheres mais pobres e socialmente marginalizadas tendem a se concentrar nessas zonas regulamentadas devido à proteção relativa que oferecem. Em contraste, as mulheres que exercem a prostituição fora desses centros, muitas vezes como uma forma de complementar sua renda, têm mais liberdade para definir suas próprias condições de trabalho, mas enfrentam riscos significativos (Gumieri, 2021). Sem registros oficiais, elas estão mais expostas a problemas legais e à possibilidade de encarceramento por infrações como "vadiagem", tornando seu trabalho mais vulnerável e precário. Após o fechamento da zona de prostituição em Bom Retiro, a prática se deslocou para o bairro vizinho, Santa Ifigênia. Neste local, que sofria com o esvaziamento decorrente da ampliação da cidade para a Zona Oeste, surgiu a Boca do Lixo, que rapidamente se tornou o maior território de prostituição da história de São Paulo. Essa reconfiguração ilustra os esforços das autoridades para gerir e reorganizar a prostituição dentro dos planos de desenvolvimento urbano e controle social (Gumieri, 2021). Simultaneamente, no Centro Novo, incluindo os bairros de República e Vila Buarque, a prostituição passou a estar associada à modernização e à vida noturna. Nessa área, surgiram danceterias, “inferninhos” e bares frequentados pela elite boêmia. Em contraste com a Boca do Lixo, a Boca do Luxo emergiu nesse contexto mais moderno e sofisticado, atendendo a uma clientela mais abastada e refletindo o estilo de vida mais elegante que caracterizava a área (Gumieri, 2021). Nas décadas de 1970 e 1980, os bairros da cidade que reuniam bares e boates frequentados pela comunidade LGBTQIAPN+, passaram a ser conhecidos como “guetos”. Essas áreas, geralmente localizadas em regiões marginalizadas e de baixo status social e econômico, eram frequentemente associadas a atividades ilegais, como prostituição e tráfico de drogas. Devido a essas associações, esses locais enfrentavam intensa repressão policial, que buscava combater tanto a criminalidade quanto as redes sociais e políticas formadas ali. Essas ações não só visavam erradicar atividades ilícitas, mas também intensificaram a marginalização dos frequentadores, controlando e reprimindo as comunidades que se estabeleciam nesses locais (Kumpera, 2024). A partir de 1968, a repressão policial em São Paulo foi intensificada com a criação de unidades especializadas, como as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) e as Rondas Unificadas do Departamento de Investigações (RUDIS) (Kumpera, 2024). Essas operações, 31 conhecidas popularmente como Rondões, foram implementadas para combater a guerrilha urbana e exercer um controle mais rigoroso sobre áreas específicas da cidade. Como resultado, essas unidades se tornaram ferramentas comuns de vigilância e controle social, levando à prática generalizada de prisões em massa. Muitas dessas detenções eram realizadas sem acusações formais, apenas com base em suspeitas, o que trivializou o processo de detenção e aprofundou a marginalização de certos grupos sociais (Gumieri, 2021). Nesse sentido, a polícia em São Paulo concentrou-se na repressão à criminalidade e à prostituição nas periferias da cidade. Essa atuação direcionou a ação policial contra populações vulneráveis, como desempregados, pessoas negras e membros da comunidade LGBTQIAPN+. As unidades policiais intensificaram sua presença nas áreas marginalizadas, e delegados com histórico de envolvimento em repressão política, como os do Departamento de Ordem Política e Social, assumiram o comando das delegacias locais. Essas delegacias, que também haviam funcionado como centros de detenção e tortura durante a ditadura, contribuíram para um clima de opressão e controle social ainda mais severo nas comunidades afetadas (Kumpera, 2024). Durante a repressão policial, um dos mecanismos legais utilizados foi a aplicação da contravenção de vadiagem, que se baseava na Lei das Contravenções Penais, estabelecida pelo Decreto-Lei nº 3.688 de 1941. Esta lei, criada durante o período do Estado Novo, foi marcada por uma abordagem higienista e racista. De acordo com ela, a vadiagem era definida como a situação de uma pessoa que se entregava habitualmente à ociosidade e não possuía meios legais de subsistência, ou que mantinha sua subsistência através de ocupações ilícitas (Kumpera, 2024). A lei permitia que indivíduos sem um emprego formal ou uma fonte de renda legal fossem classificados como "vadios", facilitando sua detenção e controle sob o pretexto de garantir a ordem pública e moral. Com as operações de repressão em São Paulo, a abordagem de detenções em massa foi utilizada para prender não apenas prostitutas, mas também travestis e homossexuais, como gays e lésbicas. Essa prática se baseava na aplicação da Lei de Vadiagem, que permitia a detenção de indivíduos sem uma ocupação formal ou uma fonte legal de sustento. As operações, muitas vezes batizadas com nomes que sugeriam uma intenção de "higienização moral" da cidade, como Operação Boneca e Operação Limpeza, buscavam controlar e eliminar comportamentos e indivíduos considerados indesejáveis. Esses nomes refletem a tentativa das autoridades de promover uma imagem de purificação e ordem através da repressão e do controle social (Gumieri, 2021). 32 Em um contexto de elevado desemprego e com muitos trabalhadores envolvidos em atividades informais, a legislação frequentemente acabava penalizando os mais pobres e marginalizados. A ausência de uma carteira de trabalho assinada ou de documentos regulares, comum entre aqueles que não tinham empregos formais, facilitava a aplicação de leis que visavam controlar e punir essas condições (Kumpera, 2024). Assim, as brechas legais permitiam que a lei fosse usada de forma desproporcional contra indivíduos que, devido às suas condições econômicas e sociais, estavam em situação de vulnerabilidade. Isso resultava em uma punição mais severa para os que já enfrentavam dificuldades financeiras e sociais. Em maio de 1980, uma operação policial intensiva foi lançada em São Paulo com o objetivo de eliminar uma ampla gama de grupos considerados indesejáveis, como assaltantes, traficantes, prostitutas, homossexuais e travestis. A operação, que durou apenas 24 horas, resultou na prisão de quase duzentas pessoas e serviu como um teste para a expansão de práticas de repressão por toda a cidade. A eficácia da operação na detenção de um grande número de pessoas levou à implementação de rondas policiais mais abrangentes. Com o tempo, a repressão se expandiu para incluir bares e locais frequentados por gays e lésbicas, intensificando o controle sobre os espaços de socialização da comunidade LGBTQIAPN+ (Kumpera, 2024). As detenções em massa, frequentemente apoiadas por moradores e comerciantes locais, evoluíram para uma prática institucionalizada de segurança pública. Como resultado, essas ações não apenas refletiam, mas também reforçavam a desigualdade social, preconceitos raciais e normas morais dominantes, abordando os sintomas de uma estrutura social desigual e discriminatória (Gumieri, 2021). Sob a liderança do delegado José Wilson Richetti, as rondas policiais se tornaram uma prática comum, mas a abordagem policial variava significativamente de acordo com o perfil econômico dos frequentadores dos bares. Em estabelecimentos frequentados por pessoas de classes mais baixas, a polícia aplicava prisões arbitrárias e usava violência sistemática, tratando esses abusos como "excessos" justificáveis para a tarefa de limpar a cidade de comportamentos considerados imorais. Esses abusos foram amplamente expostos pela grande imprensa, revelando a discrepância no tratamento e a crítica das práticas policiais que eram justificadas em nome da ordem e da moralidade pública (Kumpera, 2024). 33 Figura 2: Reportagem sobre a ação da polícia em São Paulo, publicada no jornal "Lampião da Esquina", n. 26, junho de 1980, p. 18. Fonte: Lampião da Esquina, 1980. Figura 3: Reportagem sobre e ação policial, publicada na “Folha de São Paulo”, em 13 de junho de 1980. Fonte: Acervo Folha de São Paulo, 1980. In: Memorial da Resistência de São Paulo, 2024 34 As operações policiais visavam restringir os espaços onde pessoas gays e lésbicas se socializavam, impondo limitações à sua circulação e gerando um clima de medo e intimidação. Em reação a essa repressão, uma ampla coalizão de movimentos sociais se mobilizou para combater a violência policial. Entre os participantes estavam grupos feministas, organizações LGBTQIAPN+, o movimento negro e coletivos de esquerda, que se uniram para protestar contra as práticas abusivas e defender os direitos e a segurança das comunidades afetadas (Kumpera, 2024). A campanha conjunta buscava enfrentar a discriminação e as agressões sofridas por essas populações. Em 13 de junho de 1980, ocorreu um grande ato público em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, onde diversas questões sociais foram abordadas em um protesto unificado. O evento destacou a necessidade de enfrentar a violência policial, a alta taxa de desemprego, o racismo, o machismo e a discriminação contra a comunidade LGBTQIAPN+ (Kumpera, 2024). Esse protesto reuniu pessoas de diferentes origens e movimentos sociais para expressar sua indignação e exigir mudanças significativas, buscando visibilidade e ação para as injustiças enfrentadas por várias comunidades marginalizadas. Figura 4: Ato contra os Rondões do delegado José Wilson Richetti em 13 de junho de 1980. Fonte: Acervo James Green. In: Memorial da Resistência de São Paulo, s.d. Junto a isso, deputados de esquerda buscaram responsabilizar o delegado Richetti por seus abusos de poder e, em 24 de junho de 1980, este foi convocado para prestar esclarecimentos ao Conselho Parlamentar de Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa de São Paulo - presidido por Francisco Rossi. A sessão deveria servir para avaliar 35 e questionar suas ações. No entanto, o encontro foi marcado por irregularidades significativas12, o que levou ao esvaziamento da sessão e ao seu encerramento sem qualquer conclusão ou encaminhamento. Como resultado, Richetti não foi responsabilizado, evidenciando a dificuldade de aplicar a justiça em casos de abuso de poder quando os processos institucionais são prejudicados por manobras políticas (Kumpera, 2024). O delegado apresentou a tese de que o movimento foi forjado por Ruth Escobar, e afirmou que tinha novos depoimentos de prostitutas desmentindo as agressões e arbitrariedades. Richetti utilizou como sua testemunha o radialista Afanásio Jazadji, que cobria suas operações com exclusividade. Ao final da sessão do conselho, os deputados deveriam votar se instaurariam uma moção contra o delegado. No entanto, os deputados da oposição se ausentaram da votação, deixando a maioria do conselho para o PDS, que retirou a moção e qualquer menção ao nome de Richetti na ata que foi publicada em diário oficial (Ocanha apud Green, 2018, p. 86). Além de não enfrentar consequências pelos abusos cometidos, o delegado continuou a atuar como chefe da delegacia seccional do centro de São Paulo. Em novembro de 1980, ele organizou operações policiais contra bares populares entre a comunidade lésbica, como o Ferro’s, Último Tango e Canapés. Nessas batidas, as mulheres presentes foram detidas em grande número, mesmo que estivessem com seus documentos em dia. A razão alegada para as prisões era uma generalização preconceituosa, onde a presença de muitas mulheres lésbicas nos bares foi usada como pretexto para a ação policial (Kumpera, 2024). 12 Um dia antes do depoimento, o jornal O Estado de São Paulo publicou um Termo de Declarações de uma prostituta chamada Marli, única testemunha da suposta extorsão policial, mencionada em um documento elaborado por deputados e pela atriz Ruth Escobar, ambos responsáveis pelas denúncias sobre o delegado. No termo, observa-se que Marli mudou a versão de seu depoimento original, dado a Escobar. Neste, ela passa a culpabilizar-se pelos machucados e extorsões, isentando a polícia de qualquer responsabilidade. Essa mudança enfraqueceu o argumento principal dos deputados, já que, sem o testemunho de Marli, as acusações contra os “rondões” perdiam credibilidade. Diante disso, o delegado procurou convencer a população de que estava sendo alvo de uma campanha difamatória, alegando que as prostitutas, a exemplo de Marli, procuravam a polícia para se retratar, pois haviam sido influenciadas pelo jogo político da atriz Ruth Escobar. No dia do depoimento, os parlamentares buscaram desviar a atenção para outros temas, como a construção de usinas nucleares em Peruíbe, tentando diluir o impacto das denúncias contra os rondões. Junto a isso, o delegado declarou-se contra a violência policial contra prostitutas e chamou como testemunha de defesa o radialista policial Afanásio Jazadi, que cobria as rondas e reforçou a narrativa apresentada por ele, fortalecendo sua defesa. 36 Figura 5: Panfleto de denúncia da “Operação Sapatão”, produzido pelas agrupações Grupo Lésbico Feminista, Terra Maria e Eros. Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth. In: Memorial da Resistência de São Paulo, 2024. De modo exemplificativo, o documentário Ferro’s Bar, produzido pelo coletivo Cine Sapatão, retrata a repressão policial e a lesbofobia institucional durante a chamada Operação Sapatão, realizada em um dos bares mais frequentados pela comunidade lésbica em São Paulo. No filme, duas mulheres que estavam no local naquela noite relatam o medo que sentiram ao se esconderem dentro de um armário nos fundos do bar para evitar o confronto com a polícia. Elas passaram horas ali, enquanto ouviam os sons da polícia quebrando objetos dentro do estabelecimento. As mulheres que foram detidas durante a operação só foram liberadas após pagar propina aos policiais, evidenciando não apenas a violência e corrupção policial, mas também a perseguição sistemática às lésbicas (Kumpera, 2024). O episódio revela como espaços de sociabilidade foram alvos de ações repressivas, reafirmando a marginalização dessas mulheres e a resistência necessária para ocupar esses ambientes. 2.4 Bares e Clubes: Espaços de Resistência e Expressão Em um contexto de intensa repressão e preconceito, os espaços de sociabilidade dentro da comunidade LGBTQIAPN+ surgiram como verdadeiros refúgios. Em uma época em que a visibilidade dessa identidade poderia resultar em exclusão social, perda de emprego e até 37 violência física, bares, clubes e festas tornaram-se santuários onde as pessoas podiam se expressar livremente, sem medo de retaliações. Contudo, esses ambientes não eram apenas locais de lazer; também desempenhavam um papel fundamental na formação de uma consciência política e social entre seus frequentadores (Trevisan, 2018). Isto, pois, devido ao preconceito e à repressão social, muitas pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ encontravam dificuldades em falar abertamente sobre sua sexualidade com familiares, amigos ou colegas de trabalho, obrigando-as a viver de forma clandestina. Nesse contexto, os bares e clubes se tornaram espaços vitais, oferecendo um ambiente onde era possível ser visível e expressar a identidade sem medo de julgamento. Esses locais não apenas proporcionavam um refúgio seguro, mas também fomentavam uma rede de sociabilidade e apoio que foi crucial para o fortalecimento e a visibilidade da comunidade na segunda metade do século XX (Kumpera, 2024). O lesbianismo é um barato. Caro é o preço que a gente paga para curtir esse barato. Toda mulher lésbica que já se viu forçada a sentir vergonha por amar outra mulher sabe bem disso. A sociedade falocrata não nos perdoa e vive nos empurrando para os guetos da vida. Os guetos da vida são os lugares que o mundo instalou dentro e fora de nós onde se reproduzem todos os opressores estereótipos de masculinidade e feminilidade. Nesses lugares não há espaço para repensar as relações entre as pessoas, experimentar coisas novas e amar (Chana, 1982, p. 12). Peça chave da sociabilidade, o bar Nostro Mondo, estabelecimento abertamente LGBTQIAPN+, surgiu em abril de 1971, ainda sob o nome de “Top Room”. Sua origem tem relação com os emblemáticos episódios de repressão no Bar Stonewall Inn13, que ao revoltarem a travesti Condessa Mônica, decidiu por entregar à comunidade um espaço onde poderiam expressar suas identidades sem medo e limitações (Há Exatos, 2021). A casa noturna conhecida como “castelinho da Consolação” desempenhou um papel pioneiro ao promover os primeiros shows com homens vestidos de mulher, contribuindo para a visibilidade de performances de gênero no Brasil. Sob a direção artística da Condessa, responsável por descobrir novos talentos, chamados por ela de "artistas anônimos", o espaço se tornou um ponto de encontro para travestis e transformistas. Estes últimos, embora 13 Em 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, localizado no bairro do Greenwich Village, em Nova York, Estados Unidos, uma série de eventos desencadeou uma rebelião que mudaria a história da luta pelos direitos dos homossexuais. O Stonewall Inn era um bar comumente frequentado pela comunidade LGBTQIAPN+, sendo um dos raros espaços onde as pessoas podiam revelar sua orientação sexual sem medo de perseguição. Naquela época, batidas policiais em bares gays eram comuns, mas algo diferente aconteceu naquela noite. Clientes e curiosos reagiram, e o que se seguiu foi uma confusão que durou dias e ficou conhecida como a Revolta de Stonewall. Esse marco histórico foi o momento em que o ativismo pelos direitos civis LGBTQIAPN+ ganhou as ruas e o debate público. Antes disso, a comunidade enfrentava sanções sociais e assédio legal devido à sua orientação sexual, que era criminalizada sob pretextos de religião e moralidade. 38 inicialmente denominados assim, passaram a ser conhecidos como drag queens, à medida que o termo transformista caiu em desuso. A popularização desses espetáculos marcou uma mudança significativa na forma como a cultura de performances de gênero se estabeleceu no país, sendo precursora de um movimento de maior visibilidade e aceitação (Rocha, 2011). Junto a isso, o espaço funcionava como uma proteção à comunidade, visto que Mônica chegou a ser presa por desacato à autoridade por impedir uma tentativa de invasão da boate por policiais sob o comando do delegado Richetti. Ser flagrado em um ato homossexual ou sair vestido de mulher na rua podia render prisão até o começo dos anos 80 e eram raras as vozes de apoio aos gays na sociedade e na mídia. À vista disso, a Nostro Mondo também tem sua importância atrelada à relevância nacional, visto que um aliado improvável encantou-se pelo local. Silvio Santos (1930-2024), que, entre as décadas de 1980 e 1990, levou números de transformismo ao seu programa, desafiando preconceitos e exercendo um grande serviço de conscientização no Brasil (Rocha, 2011). Figura 6: Apresentação de Miss Biá na Nostro Mondo. Fonte: Arquivo Pessoal, Miss Biá e Kaká Di Polli. In: Revista Trip, 2011. 39 Figura 7: Drags e travestis no palco da Nostro Mondo. Fonte:Arquivo Pessoal, Miss Biá e Kaká Di Polli. In: Revista Trip, 2011. Figura 8: A drag Victor Piercing. Fonte:Arquivo Pessoal, Miss Biá e Kaká Di Polli. In: Revista Trip, 2011. 40 Como apresentado anteriormente, outro espaço social importante para a comunidade LGBTQIAPN+ foi o Ferro’s Bar, inaugurado em 1961 em São Paulo. Mais do que um local de entretenimento, esse estabelecimento funcionou como um centro de discussão e ativismo. Oferecendo um ambiente seguro e acolhedor, o bar permitiu que os frequentadores se conectassem com outras pessoas com experiências semelhantes, promovendo um senso de comunidade e coesão. O Ferro’s, além de ser um ponto de lazer, ajudou a formar uma rede social e política, onde os indivíduos puderam refletir sobre suas identidades, enfrentar desafios comuns e trabalhar juntos em prol de seus direitos (Green, 2022). Esse tipo de espaço foi crucial para fortalecer a identidade coletiva e a solidariedade dentro da comunidade LGBTQIAPN+, testemunhando, assim, o surgimento da organização política entre suas frequentadoras, muitas das quais estavam envolvidas no grupo Lésbica-Feminista (LF), que fazia parte do SOMOS, e no Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf) — temas que serão detalhados no próximo subtópico. Entre 1981 e 1987, o Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf) publicou o boletim ChanacomChana, que registrava suas atividades e promovia debates importantes sobre questões lésbicas e feministas. As ativistas distribuíam o boletim principalmente em bares voltados para a comunidade lésbica, com o objetivo de divulgar suas iniciativas e conectar-se com outras pessoas interessadas. O Ferro’s Bar, por sua relevância e popularidade entre as lésbicas de São Paulo, tornou-se um ponto estratégico para a circulação do periódico (Kumpera, 2024). Este abordava uma variedade de tópicos, incluindo direitos sexuais, legislação, questões familiares e trabalho, além de oferecer suporte para mulheres que se sentiam pressionadas a esconder sua orientação sexual. O boletim também incluía poesia, cultura e literatura, e se tornou uma referência importante tanto para as lésbicas quanto para o público LGBTQIAPN+ da cidade, ajudando a fortalecer a visibilidade e o diálogo sobre essas questões (Agência Todas, 2020). Em 1983, as ativistas do Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf), que vendiam o boletim ChanacomChana no Ferro’s Bar, começaram a enfrentar hostilidade por parte dos donos do estabelecimento. Inicialmente, essa hostilidade se manifestou por meio de agressões verbais, com os proprietários expressando descontentamento em relação à venda do periódico no bar. Com o tempo, a situação piorou e transformou-se em agressões físicas. O porteiro e os seguranças do bar passaram a atacar fisicamente as ativistas e a expulsá-las do local de maneira violenta, forçando-as a sair várias vezes (Kumpera, 2024). Essas ações indicam um 41 crescente conflito com a administração do bar, que culminou em um ambiente hostil e agressivo para a circulação do boletim e a presença das ativistas no Ferro’s. A hostilidade enfrentada pelas ativistas no local culminou em um evento significativo em 19 de agosto de 1983, conhecido como o Levante do Ferro’s Bar. Este evento é marcado como a primeira manifestação liderada por lésbicas em resposta à discriminação que enfrentavam. O levante recebeu o apoio de movimentos feministas e de alguns parlamentares, e foi descrito como o "Stonewall brasileiro", em referência à famosa revolta ocorrida em Nova York, que também foi um marco na luta pelos direitos LGBTQIAPN+ (Gumieri, s.d.). Durante o levante, algumas ativistas do Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf) invadiram o local após conseguirem romper as barreiras impostas pelos proprietários e seguranças do bar. No interior, Rosely Roth, uma das líderes do movimento, subiu em uma mesa e fez um discurso público denunciando a situação de discriminação e afirmando que a invasão e a presença delas representavam um ponto de inflexão e uma declaração de resistência por parte das lésbicas. Esse ato simbólico destacou a luta das lésbicas contra a exclusão e a violência, e teve um impacto duradouro na visibilidade e no ativismo em torno dos direitos LGBTQIAPN+ no Brasil (Kumpera, 2024). O episódio no Ferro’s Bar revela um paradoxo significativo sobre a aceitação da comunidade lésbica no estabelecimento. Apesar de as lésbicas serem frequentadoras regulares e de contribuírem economicamente para o bar, sua intervenção política foi o fator que levou à hostilidade e ao confronto com a administração. Inicialmente, as vendas do boletim ChanacomChana foram permitidas porque elas geravam lucro para o bar, mas quando as ativistas começaram a usar o local como um espaço para mobilização e protesto político, a tolerância dos proprietários se esgotou. Assim, o episódio destaca que a aceitação da lesbianidade no Ferro’s Bar tinha limites claros: era aceita enquanto servia aos interesses econômicos do bar, mas tornou-se intolerável quando desafiava o status quo ou as políticas internas. Isso demonstra que, para os donos do bar, a presença e a visibilidade das lésbicas eram aceitáveis apenas na medida em que não interferissem nas operações comerciais ou na hierarquia social estabelecida. A visibilidade do movimento pode ser observada em marcos históricos registrados pela mídia, como a matéria publicada na Folha de São Paulo, em 21 de agosto de 1983. No 1° Caderno, página 27, o jornalista Carlos Brickmann escreveu o artigo intitulado "A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar", destacando a mobilização desse grupo em um momento crucial de sua organização: 42 Dentro, o clima era de tensão: nas mesas, lésbicas discutiam a validade ou não do protesto, o risco de se envolverem em confusões que as prejudicariam no emprego ou revelariam a verdade às famílias; no balcão, o proprietário dizia esperar com ansiedade o momento da invasão. “É propaganda, é bom, o nome do meu bar vai sair na “Folha” (Brickman apud Kumpera, 2024). O Levante do Ferro’s Bar marcou um evento de grande importância simbólica para o movimento LGBTQIAPN+ no país. Esse levante simboliza a luta e a resistência contra a discriminação e a intolerância da época. Em reconhecimento a essa histórica mobilização, o dia 19 de agosto é celebrado como o Dia do Orgulho Lésbico, uma data significativa no calendário de ativismo lésbico brasileiro (Kumpera, 2024). A data serve tanto para comemorar a vitória e a importância do Levante na história do movimento quanto para prestar homenagem a Rosely Roth, uma das principais líderes e organizadoras do ato. A proposta de oficializar o Dia do Orgulho Lésbico foi feita em 2003 pelos grupos Rede de Informação “Um Outro Olhar” e Associação da Parada LGBT de São Paulo. Entretanto, só em 2008, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo reconheceu oficialmente a data através do Projeto de Lei 496/2007, consolidando a celebração do orgulho e da luta lésbica no Brasil. Figura 9: Panfleto distribuído pelo GALF em frente ao Ferro’s em julho de 1983 Fonte: GALF. In: Um Outro Olhar, 2022. 43 Figura 10: Fachada do Ferro’s Bar em 1998. Fonte: Zaiden, Rosana; Fernandes, Marisa. In: Memorial da Resistência de São Paulo, s.d. Figura 11: Fotografia de Rosely Roth, principal liderança lésbica dos anos 1980, lendo o boletim ChanacomChana. Fonte:Acervo Folha de São Paulo. In: Memorial da Resistência de São Paulo. 44 Figura 12: Início da "invasão" na noite do Levante do Ferro’s Bar Fonte: Vieira, Ovidio. In: Um Outro Olhar, 2022 Figura 13: Rosely discursa na cadeira. Ao seu lado, o jornalista Carlos Brickman da Folha. No canto direito da foto, Antônio Carlos Tosta (Outra Coisa) e Vanda Frias (GALF). Fonte: Vieira, Ovidio. In: Um Outro Olhar, 2022. 45 Figura 14: Durante a “Invasão no Ferro’s Bar’, Rosely Roth discursa no interior do bar para impedir o fim da circulação do boletim ChanacomChana. Fonte: Acervo Folha de São Paulo, 1983. In: Memorial da Resistência de São Paulo. Figura 15: Panfleto distribuído no Ferro's após o dia 19. Fonte: GALF. 1983. In: Um Outro Olhar, 2022. 46 Figura 16: Moção de repúdio da vereadora Irede Cardoso contra os donos do Ferro's. Fonte: Cardoso, Irede. 1984 . In: Um Outro Olhar, 2022. Os bares, especialmente aqueles que serviam como pontos de encontro para a comunidade LGBTQIAPN+, funcionam como espaços de grande complexidade e 47 contradição. Por um lado, esses estabelecimentos proporcionam um refúgio e um espaço de sociabilidade para pessoas que, devido à marginalização social e à discriminação, podem não encontrar aceitação em outros ambientes. Eles oferecem um local onde a comunidade pode se reunir, formar laços afetivos e construir solidariedade dentro de um contexto que frequentemente exclui ou reprime suas identidades. No entanto, esses espaços também estão imersos em dinâmicas de violência e insegurança. As batidas policiais, muitas vezes motivadas por preconceitos e pânico moral, e a hostilidade de donos de bares e comerciantes locais criam um ambiente instável e perigoso. Assim, enquanto os bares servem como um ponto de encontro e um alívio para a exclusão social, também são frequentemente marcados pela vulnerabilidade e pela violência, refletindo tensões sociais mais amplas e disputas de poder que afetam a vida das pessoas que os frequentam. Essa configuração permite que a sociedade mantenha uma aparência de tolerância, ao mesmo tempo em que controla e limita a visibilidade da diversidade sexual. A aceitação da sexualidade não heterossexual é, assim, condicionada pela existência de espaços segregados que, além de fornecerem um ambiente seguro para a expressão, também garantem lucro para seus proprietários, enquanto evitam desafiar diretamente as normas heterossexuais dominantes. 2.5 Produções Culturais: Arte, Identidade e Militância Durante as décadas de 1960 e 1970, no Brasil, a produção cultural começou a explorar de forma mais aberta às experiências de pessoas homo e transexuais, impulsionada por movimentos da contracultura que desafiavam as normas estabelecidas. Esses movimentos, como o Desbunde, utilizavam a ironia, o deboche e a experimentação com drogas, além de promover o amor livre, como forma