Eliana Goldfarb Cyrino Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Pediatria – Área de concentração em “Pediatria” da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Doutor Orientadora: Profa. Dra. Agueda Beatriz Pires Rizzato Botucatu, SP 2002 Eliana Goldfarb Cyrino Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Pediatria –Área de concentração em “Pediatria” da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Doutor Orientadora: Profa. Dra. Agueda Beatriz Pires Rizzato Botucatu, SP 2002 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO DE AQUIS. E TRAT. DA INFORMAÇÃO DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CAMPUS DE BOTUCATU - UNESP BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: ELZA NUMATA Cyrino, Eliana Goldfarb Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu : descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico / Eliana Goldfarb Cyrino. – 2002. Tese (doutoramento) – Faculdade deMedicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, 2002. Orientadora: Agueda Beatriz Pires Rizatto 1. Educação médica CDD 616.07 Palavras-chave: Educação médica; Pediatria; Saúde Pública; Ensino; Inovação pedagógica Dedicatória À minha mãe, Eva Goldfarb, mulher forte e presente, por tudo que tem sido nossas vidas tão intimamente ligadas, pela paixão, admiração e todo aprendizado. Ao meu pai que me fez gostar de tantas coisas da vida e a quem devo quase tudo que sou, Szymon Goldfarb, que me deixou, com sua morte, um pouco sem chão e que continuo, a cada novo dia, sentir muito a sua falta. Aos dois agradeço muitíssimo. Aos meus avós, herança judaica de sofrimentos e tradição cultural, por tantas histórias, músicas, festas e aprendizagens. Ao Toninho, companheiro e amigo sempre tão presente em todos meus passos e caminhadas, pelo carinho, compreensão, incentivo e afinidade em tantos projetos profissionais e de vida que nos possibilitam tantos anos de convivência. À Alice, Verinha e Laura, razão maior de minha existência, que tanto têm me ensinado sobre a vida e sobre o apaixonante processo de criar filhas . Ao professor e amigo Dr.Antonio de Pádua Campana, que me conquistou com sua presença e seu brilho e que partiu tão precocemente... sem que pudéssemos partilhar tantas vivências e alegrias. Ao professor e amigo Dr. Murilo Rodrigues Viotti, meu mestre na arte de ser médica, que não consegui vê-lo já no final de sua existência pois precisei guardar na lembrança a imagem de um homem forte e poderoso. Ao Julhinho Goldfarb, que me gravou com o sentimento solidário e de justiça do conhecimento científico, que não precisava morrer tão cedo, com tanta vontade de iniciar e prosseguir seus projetos. À BOTUCATU Cidadezinha, quisera escrever-te um poema cúbico Que desenhasse tuas calçadas, o vento frio, Prendesse nos versos teu cheiro de mato, A verde solidão que entregas a quem chega. Cidadezinha, quisera mostrar com palavras As casas tristes que espiam, olhudas, Por estas velhas janelas de madeira branca, Esta doçura demodê de tuas sacadas européias. Como queria, cidade branca, dizer teu nome Com ladeiras inimagináveis, arcos do tempo Que o vento, mãe natureza caprichosa, Fizeram íngremes como o pensamento meu. Quisera dizer de tua fealdade tão bela, Da máscara enrugada que cobre os belos rostos Da tua arquitetura, sobrevivente do caos, Do teu frio, de teus cafés perfumados, De tua majestade perdida há tanto! De tuas histórias impossíveis, da distância enorme Entre ti e o restante do universo, cidadezinha, Que agora és minha também. Sou mais um pássaro leve e passageiro por tuas praças, Por tuas torres imersas no céu, Por tua rica cumplicidade... Meu poema não é cúbico, nem exato, nem te serve: É um colete torto de alfaiate aprendiz Que vive a tentar coser palavras e vesti-las ao mundo. Cidadezinha, aceita esta simples conversa Que verte em tua sombra fresca e rara, Minha cidadezinha na montanha... Só segue teu rumo incerto ao amanhã E deixa-me guardar em teu sorriso de lembrança. Maria Tereza de Moraes Souza (aluna da Faculdade de Medicina de Botucatu, cantora e escritora) Aos estudantes da Faculdade de Medicina de Botucatu que cursaram o terceiro ano médico em 1998, 1999 e 2000 por acreditarem na inovação e assim sendo, contribuírem à construção dos cursos. Sem vocês, teria sido impossível a realização deste estudo. Agradecimentos À professora e amiga Agueda Beatriz Pires Rizzato, minha orientadora, pela enorme paciência e por ter partilhado momentos tão significativos na realização deste trabalho e de tantos outros, nas escolhas e caminhos profissionais, na minha vida e de minha família. Mas, acima de tudo, pela competência, dedicação e compromisso com uma escola médica inovadora. À professora Miriam Foresti por todas as sugestões preciosas, por sua leitura extremamente cuidadosa do manuscrito, por ter me dado a oportunidade de partilhar imenso material bibliográfico de valor inestimável e pela disponibilidade. À professora Cecília Magaldi que sempre, de uma forma ou de outra, me dá base para que eu possa avançar. Suas palavras, seus textos, sua vida me estimulam a novos desafios. À professora Massako Iyda, por ter contribuído muito na versão final deste trabalho como de tantos outros, por sua crítica sempre tão precisa e a quem tenho grande admiração. Às professoras da banca examinadora de minha qualificação: Lilia Blima Schraiber, Agueda Beatriz Pires Rizzato, Miriam Foresti, Ana Tereza de Abreu Ramos Cerqueira e Maria Lúcia Toralles Pereira que me iluminaram com suas enormes contribuições e possibilitaram uma busca de soluções reais e preciosas para o desenvolvimento deste trabalho. Aos colegas do Departamento de Saúde Pública da FMB, especialmente, ao Antonio de Pádua Pitton Cyrino, Antonio Luiz Caldas Junior, Ione Morita, Luís Carlos Giarola, Luana Carandina, Luiz Roberto de Oliveira, Margareth Aparecida Santini de Almeida, Karina Pavão Patrício, Maria Luiza Cassetari, Luciana Cristina Parenti e Heloísa Basseto que em diferentes momentos contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa e às inovações propostas. Aos colegas do Mestrado em Educação Médica da Universidade de Illinois, Chicago, aos professores, Ara Tekian, George Bordage, Michael Seefeldt (meu orientador) que entendendo minhas dificuldades me deram enorme apoio à concretização deste mestrado e aos amigos Pedro Gordan, Paulo Marcondes e Lidia Raquel de Carvalho que me contaminaram com novas línguas e linguagens, amparando- me para encontrar um lugar próprio no curso de mestrado. Com certeza, este foi um estudo que me abriu à possibilidade da presente pesquisa e nisso sou muito grata a todos os envolvidos neste mestrado e à Fundação Kellogg, à FUNDUNESP e ao Projeto UNI-Botucatu que forneceram suporte financeiro à realização do mesmo. Aos funcionários do Departamento de Saúde Pública da FMB pelo apoio na realização deste trabalho, especialmente à Cristina Alvis que com dedicação digitou a primeira versão e pelo apoio nestes anos todos, à Luciana Elena Nascimento de Campos pelo zelo, competência e extremo cuidado na digitação e editoração final do texto e à Rosangela Giarola pelo suporte na tabulação inicial dos dados. À ex-estagiária da FUNDAP, Elizabeth Dezan, pelo suporte na tabulação final dos dados e pela força na digitação. Ao Departamento de Pediatria da FMB-UNESP, que acolheu este trabalho, seus docentes, residentes e funcionários e especialmente à professora Cleide Enoir Petean Trindade a quem devo a possibilidade de desenvolvimento desse estudo. Aos diretores da FMB, professores Paulo de Abreu Machado, Hamilton da Rosa Pereira, Marilza Vieira Rudge e Joel Spadaro pelo apoio à realização desta tese. Às amigas e companheiras Alice Yamashita Prearo, Elizabeth Dezan e Paula Freire, funcionárias do Núcleo de Apoio Pedagógico da FMB, pela dedicação, compreensão, estímulo e por me substituírem em momentos difíceis na realização deste trabalho. Aos companheiros da coordenação do Núcleo de Apoio Pedagógico da FMB, Sílvio Alencar Marques, Beatriz Bojikian Matsubara, Maria Cristina Pereira Lima, Agueda Beatriz Pires Rizzato, Sergio Swain Müller, por tantas construções e especialmente ao José Carlos Peraçolli que prontamente me substituiu, na fase final de elaboração da tese. Ao professor José Venturelli pela enorme contribuição no desenho dos cursos. À Mônica Rosolen, minha professora de inglês e amiga, sempre pronta a ajudar, por ter feito o resumo em inglês. Aos professores, estudantes, residentes e funcionários que vêm participando de todo processo de mudança da FMB ao longo de todos estes 40 anos de existência e especialmente à professora Dináh Borges de Almeida pela luta constante em busca da melhoria da Faculdade de Medicina e de uma Universidade relevante e democrática. Aos estagiários e residentes, que vêm trabalhando neste anos todos junto ao Departamento de Saúde Pública, pelo constante questionamento e enome aprendizado, ao Fábio Luiz Vieira por tantas vivências e à Doris Beloya Henao pelo apoio e amizade. À professora Gimol Benzaquen Perosa pelo estímulo recebido na realização do presente estudo. À Dna. Quita, que tem enorme disponibilidade para ensinar e com quem sempre aprendo, pela atenção na revisão gramatical. Às funcionárias da Biblioteca Central da UNESP de Botucatu pelo interesse e disponibilidade, especialmente à Elza Numata e Rosemary Cristina da Silva pela atenção e revisão das referencias bibliográficas. Aos funcionários da Pós Graduação da F.M.B. pelo apoio em todos os momentos. Às companheiras do Programa de Saúde Escolar de Botucatu que me acompanham no grande desafio deste projeto comunitário há mais de 15 anos. Aos meus queridos irmãos, Elizabeth, José Luiz e Milton Goldfarb e minha cunhada Ana Maria Alfonso Goldfarb, que tanto amo e admiro e que sempre me estimularam a lutar e crescer profissionalmente. Um agradecimento especial à amiga Maria Lucia Toralles Pereira com quem há anos partilho de discussões aqui tão presentes e a quem devo grande influência na minha formação no campo da educação. De tudo, ficaram três coisas: A certeza de que estamos sempre começando... A certeza de que sempre precisamos continuar... A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar .. Portanto, devemos: Fazer da interrupção um caminho novo ... Da queda, um passo de dança ... Do medo, uma escada ... Do sonho, uma ponte ... Da procura, um encontro ... Fernando Pessoa Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 11 Sumário RESUMO SUMMARY 1. Introdução 15 1.1 O ensino médico na história da Faculdade de Medicina de Botucatu 29 1.2 A proposta do estudo: contextualizando o problema 38 1.3 Objetivos do estudo 48 2. Transição de paradigmas na educação: bases teóricas e metodológicas do estudo 49 2.1 O trabalho do professor e o valor da docência na graduação médica 57 2.2 Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas (ABP) 68 2.3 Identificando uma lacuna: a necessidade de avaliação de nossos cursos 100 3. Metodologia 108 4. Descrição e análise das experiências 115 4.1 Caso 1: O curso de Saúde Coletiva III 115 4.1.1 Educação Médica e Saúde Pública 115 4.1.2 O ensino no Departamento de Saúde Pública da FMB 123 4.1.3 O curso de Saúde Coletiva III ministrado em 1999 126 4.1.3.1 A Avaliação dos estudantes em relação à qualidade educacional e à eficiência do professor 132 Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 12 4.1.3.2 Análise dos dados qualitativos 169 4.1.3.2.1 A Avaliação do estudante 169 4.1.3.2.2 A autoavaliação dos professores 178 4.2 Caso 2: O curso de Semiologia Pediátrica 186 4.2.1 Educação Médica e Pediatria 186 4.2.2 O ensino no Departamento de pediatria da FMB 191 4.2.3 O curso de Semiologia Pediátrica ministrado em 2000 195 4.2.3.1A avaliação dos estudantes em relação à qualidade educacional e à eficiência do professor 197 4.2.3.2 Análise dos dados qualitativos 203 5. Discussão 207 6. Considerações finais 221 7. Referências Bibliográficas 224 Anexos Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 13 RESUMO Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico Um movimento amplo vem se estruturando para responder à formação de um médico crítico, criativo, com responsabilidade, ético e mais humano e que participe ativamente na construção do Sistema Único de Saúde. Em 1998, docentes dos Departamentos de Pediatria e de Saúde Pública iniciaram a construção de novos cursos a serem ministrados ao terceiro ano de graduação médica. O objetivo desta investigação foi descrever os casos de inovação dos cursos de Semiologia Pediátrica e de Saúde Coletiva III para o desenvolvimento da proposta de reforma curricular da instituição. Foram escolhidos dois casos singulares: Saúde Coletiva III, com a participação de cinco disciplinas: Administração, Ciências Sociais, Epidemiologia, Ética e Nutrição em Saúde Publica, oferecido em 1999 e Semiologia Pediátrica ministrado em 2000. Para descrição e avaliação dos casos, utilizaram-se de métodos quantitativos e qualitativos. O de Saúde Coletiva III foi organizado sob três núcleos temáticos: Problemas em Saúde Publica; Nutrição em Saúde Publica; Planejamento em Saúde. O modelo de ensino centrou-se na problematização de situações concretas vivenciadas na prática da Saúde Publica, trabalhando-se em centros de saúde, serviços e organizações de saúde da região de Botucatu. O de Semiologia Pediátrica privilegiou a atenção integral à saúde da criança. O modelo de ensino centrou-se na aprendizagem baseada em problemas e no aprendizado prático da semiologia pediátrica em diferentes cenários, enfatizando-se o ensino em ambulatório. Nos dois casos privilegiou-se o trabalho em pequenos grupos, com a orientação docente. A avaliação foi uma preocupação constante, apresentando aspectos diferentes para os dois cursos. Os cursos estudados inovaram pelo esforço de Departamentos que tiveram autonomia e independência para formulá-los. A principal missão colocada voltou-se à utilização de estratégias que pudessem proporcionar a valorização do ensino centrado no estudante e sua capacidade de construir conhecimento com maior autonomia. No caso da Pediatria avançou-se rumo ao modelo da Medicina Integral, com um enfoque mais amplo do modelo de atendimento à criança. No caso da Saúde Coletiva, aproximou-se do modelo da Medicina Comunitária, proporcionando a problematização de situações concretas do trabalho no SUS e em especial na atenção primária. Tanto alunos como professores sentiram-se muito beneficiados com as inovações e a utilização de novas tecnologias educacionais. Os cursos demonstram a possibilidade de mudanças no ensino e podem contribuir com o processo de inovação institucional. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 14 SUMMARY Contributions to the curriculum, reform of Botucatu Medical School: case description and analysis in Pediatrics and Public Health as a starting point for changes in the third year. Many projects and changes have been under way to add to the formation of a critical, creative, responsible, ethical and caring doctor who would be strongly participative in the consolidation of SUS (Unified Health System). In 1998, faculty members of the Pediatrics and Public Health Departments of Botucatu Medical School started planning new courses for the third year of Medical School. This work describes the innovations in the courses of Pediatric Semiology and Collective Health III aiming the curricular reform in the institution. Two particular cases were chosen: Collective Health III with five disciplines: Administration, Social Sciences, Epidemiology, Ethics and Nutrition in Public Health taught in 1999 and Pediatric Semiology in 2000. Quantitative and qualitative methods were used to describe and evaluate the cases. Collective Health covered tree themes: Problems in Public Health, Nutrition in Public Health and Planning in Health. The teaching model was centered on the inquiry of real situations routinely experienced in Health Centers and other Health Services in Botucatu and surrounding areas. Pediatric Semiology focused on full assistance to children. The teaching model adopted was Problem Based Learning and practical teaching of Pediatric Semiology in different scenarios, mainly in the outpatient department. Group work under professor guidance was encouraged in both cases. Constant evaluation was strongly valued presenting different aspects in these two courses. The innovation came as a result of the effort made by the departments who had autonomy to carry it out. The main goal was to realize and utilize the strategies that could offer a student-centered approach which would allow for more independence to build and increase his knowledge. As to Pediatrics, the model adopted was Comprehensive Medicine focused on child assistance. As to Collective Health the focus was Community Medicine since concrete scenarios were supplied from the work developed at SUS and at primary care centers. The professors as well as the students were benefited from the introduction of new technology in education. These courses demonstrated the feasibility of changes in teaching and the possibility of contribution to the process of teaching innovations at a Medical School. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 15 1 Introdução O raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas. Acredito que nem sempre se pode ver as coisas com clareza. Há coisas que, por sua própria natureza, não podem ser vistas com muita clareza. São coisas crepusculares, e se quiserem vê-las com clareza elas somem. E têm de ser vistas mesmo assim. Mário Schenberg,1984 Há um grande reconhecimento internacional da necessidade de mudança na educação de profissionais de saúde frente à inadequação do aparelho formador em responder, em última instância, às demandas sociais de saúde. As instituições de ensino têm, assim, sido estimuladas a transformarem-se na direção de um ensino que, dentre outros atributos, valorize a eqüidade e a qualidade da assistência e a eficiência e relevância do trabalho em saúde. O que, no caso específico da educação médica, significa formar médicos com habilidades adequadas às exigências da carreira profissional, a serem exercidas com responsabilidade e curiosidade científica, e que, fundamentalmente, lhes permita recuperar a dimensão essencial do cuidado: a relação entre humanos. Desde o início do século XX, o ensino de Medicina experimentou diversas propostas de reforma, das quais destacam-se aquelas que tiveram mais influência na América Latina e, em particular, no Brasil, quais sejam: a reforma Flexner, os movimentos da Medicina Integral e Preventiva e o movimento da Medicina Comunitária (Arouca, 1975;Schraiber, 1989). A primeira reforma importante na educação médica foi decorrência do estudo conduzido por Flexner e publicado em 1910, no qual apresenta uma extensa avaliação do padrão educacional de escolas médicas americanas e Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 16 canadenses, frente à preocupação com os desníveis de qualidade existentes entre profissionais graduados em distintas escolas. Trata-se de uma reforma “cientificista”, na medida em que propõe uma reconfiguração da prática educacional das escolas médicas “essencialmente como uma capacitação técnica, cientificamente fundada” (Schraiber, 1989). Nesses termos a educação médica só seria efetiva mediante a “qualificação do aluno em uma prática clínica articulada à pesquisa (integração hospital-laboratório), residindo a aprendizagem, antes de mais nada, na atividade técnica concreta, hospitalar e de pesquisa laboratorial, do próprio aluno” (Schraiber, 1989:109). Este modelo não só é reconhecido como o mais adequado, como é tomado como o único verdadeiramente válido e universal. Suas bases decorrem de uma leitura positivista da ciência e, portanto, assentada na idéia de que o fenômeno pode ser reduzido, medido nos seus constituintes e que as causas que o determinaram podem ser assim deduzidas. Esta corrente de pensamento tem sido dominante nas ciências da saúde e tomada como explicação bem sucedida no desenvolvimento das ciências médicas e na explicação sobre as doenças e a reparação do corpo (Baum, 1995). Enfim, esta corrente de pensamento orienta predominantemente a visão de ciência na maioria das escolas médicas, o que pode significar um real obstáculo às mudanças na educação médica. A concepção positivista de ciência está presente, mais generalizadamente, nos cursos de graduação, quando: “o conhecimento é tido como acabado e sem raízes isto é, descontextualizado historicamente; a disciplina intelectual é tomada como reprodução das palavras, textos e experiências do professor; há um privilégio da memória, valorizando a precisão e a segurança; dá-se destaque ao pensamento convergente, à resposta única e verdadeira; no currículo, cada disciplina é concebida como Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 17 um espaço próprio de domínio do conhecimento que luta por quantidade de aulas para poder ter toda matéria dada; o professor é a principal fonte da informação e se sente desconfortável quando não tem todas as respostas; a pesquisa é vista como atividade para iniciados, fora do alcance de alunos de graduação, em que o aparato metodológico e os instrumentos de certezas se sobrepõem à capacidade intelectiva de trabalhar com a dúvida” (Cunha, 1996). Freire (1975) denomina este modelo educacional de visão bancária da educação, por representar “ o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”. Nesta visão bancária, os estudantes são vistos como seres da adaptação e do ajuntamento. Quanto mais se exercitem os estudantes “no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos” (Freire, 1975). Nos últimos trinta anos, muitos diagnósticos foram realizados buscando-se identificar as principais tendências das escolas médicas no Brasil e na América Latina (Garcia,1972; Ferreira,1986; Almeida,1999). De modo geral, o positivismo é a concepção ainda dominante nas escolas médicas, haja vista que a preconizada “individualização do ensino nas ciências básicas” (Schraiber, 1989) está presente e é reforçada pela nítida separação entre ciclo básico/pré-clínico e ciclo profissional/clínico, no qual dominam as atividades no hospital universitário. Na maioria das escolas o ensino está centrado no hospital-escola, não guardando relação com a estrutura de organização dos serviços públicos de saúde e as necessidades de saúde da população habitante da região onde está localizada a escola médica (Silva, 1994). “O objeto de ensino é predominantemente individual, incorporando em certa medida o núcleo familiar, relegando o enfoque coletivo a plano secundário. O plano de estudo orienta-se exclusivamente Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 18 para os aspectos biomédicos ou incorpora de forma marginal os aspectos médico-sociais da saúde” (Silva, 1994:98). As escolas médicas no Brasil formam, predominantemente, médicos que sabem atuar no tratamento de doenças, mas com restrita capacidade de realizar ações de promoção da saúde e prevenção da doença. Oswald (1993) mostra que uma das conseqüências da especialização e compartimentalização do ato médico foi a efetiva predominância de conhecimentos factuais que devem ser incorporados pelo aluno em detrimento de outros conhecimentos apresentados no currículo. Aponta, ainda, que as disciplinas oferecem seus cursos de forma independente, com elaboração do conteúdo, usando método expositivo e avaliações somativas enfatizando apenas a memorização do estudante. Pode-se dizer, em complementação, que os anos clínicos fornecem ao aluno uma visão de corpo muito reduzida: uma máquina com compartimentos que podem ser reparados por especialistas (Neame, 1999). O outro movimento de reforma da educação médica a ser considerado é o representado pela Medicina Integral, e sua expressão no interior da educação médica é a Medicina Preventiva. A Medicina Integral conforma-se, no início da década de 1950, nos Estados Unidos, fundamentalmente como decorrência da necessidade de responder à crise de financiamento que se instalava, gerando um enfrentamento entre a organização privada dos serviços médicos e o Estado. Representou, assim, um “esforço liberal de superação da inadequada articulação entre a Saúde Pública, a cargo do Estado, e a Assistência Médica, a cargo do setor privado. Relação que, progressivamente, sob tensão, era alvo de propostas de intervenção do Estado na assistência médica, como forma de regular essa articulação. Mas, também, se colocava como esforço de superação da abordagem multifacetada do Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 19 paciente em função da crescente especialização da prática” (Donnangelo, 1979). Enquanto projeto reformador da educação médica americana, a Medicina Integral tinha como objetivo aprimorar a medicina individual e superar seu caráter fragmentário, em função da crescente especialização da prática, mediante a concepção globalizadora do objeto individual da prática: o paciente como totalidade biopsicosocial. Tal proposição exigiria das escolas médicas formar um novo tipo de profissional, o qual deveria ter por base uma atuação que apreendesse globalmente a complexidade do paciente, atingindo- se, inclusive, a família. A difusão desse ideário na América Latina assumiu características diferenciadas dentre as quais a introdução da Medicina Preventiva nos cursos médicos. Buscava-se a formação de um novo profissional que, com outra atitude, pudesse fazer frente aos problemas da prática médica. Para isso, a escola médica deveria: estabelecer uma coordenação horizontal e vertical das disciplinas “(enfatizando-se o conhecimento relativo à prevenção das doenças) enquanto forma de integração dos campos parcelares do conhecimento médico”; introduzir novas disciplinas (Psicologia, Ciências Sociais, Antropologia, etc) de forma a promover uma “integração dos campos do conhecimento biológico e do conhecimento humanístico”; desenvolver atividades integradoras das disciplinas mediante realização de programação conjunta e o ensino extra-hospitalar com atividades que possibilitassem “contato direto com a família e o meio social do paciente, enquanto formas de práticas educativas que possibilitassem a visão global do indivíduo” (Schraiber, 1989:115). A estratégia para difusão e concretização de tais objetivos centrava-se na criação de Departamentos de Medicina Preventiva em todas as escolas médicas, o que se efetivou no Brasil, enquanto prerrogativa legal estabelecida Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 20 pelo Currículo Mínimo dos Cursos de Graduação em Medicina, em decorrência da Reforma Universitária de 1968 (Cyrino, 1993). Arouca (1975) critica algumas proposições da Medicina Preventiva, no já clássico estudo “O dilema preventivista”, ao reconhecer que, subjacente à idéia de integração, não está a de articulação de conhecimentos, mas de repetição do mesmo discurso em tantos momentos quanto possível do ensino, de modo a obter-se um consenso pela repetição. Chama ainda a atenção de que o ideário preventivista, ao concentrar-se sobre o sujeito, deixa de lado o conjunto das relações técnicas e sociais que o posicionaram. Nesta perspectiva, Schraiber (1989) identifica que a Medicina Preventiva busca recompor o trabalho do médico mediante alterações na formação escolar. Ou seja, “pretendendo-se a consecução das transformações da prática através de reformas limitadas ao plano de ajustes do padrão educacional”. A educação é assim concebida “como um processo autônomo, sendo-lhe atribuída nesta autonomia, coerentemente com tal concepção, o papel de produto e instrumento de mudança da prática médica” (Schraiber 1989:116,117). Esta concepção da educação, ao mesmo tempo, como produto e instrumento é o fundamento da denominada, por Schraiber (1989), “tese da inadequação”, que aplicada à Educação Médica poderia ser exemplificada por propostas que buscam “a reformulação da própria prática médica, a ser conquistada mediante transformações educacionais”, ainda que reconhecendo a influência do mercado de trabalho e o modo de organização da assistência sobre a escola médica (Schraiber, 1989). A incapacidade da escola estar ajustada e o quanto isto pode ser alterado pela reforma do próprio padrão escolar, e ainda, o quanto estes desajustes fazem parte, estruturalmente, do sentido da educação na sociedade capitalista moderna não é objetivo deste estudo. No entanto, como serão abordados os processos de mudança da educação médica, é essencial Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 21 reconhecer os limites e as contradições a que tais processos estarão submetidos, no interior da dinâmica da educação enquanto prática técnica e social. Assim, sinteticamente, pode-se reconhecer que é a dinâmica da prática médica que explica o caráter relativamente subordinado da educação médica, elucidando também o insucesso histórico dos projetos de reforma da educação médica. Todavia, na medida em que “tais propostas de reforma (...) [correspondem] a tentativas de respostas a contradições reais da prática e da educação médicas” é possível que, em “situações históricas nas quais as propostas de reforma educacional correspondam a rearranjos efetivos na prática médica (...), alcancem os objetivos (...) a que se propõem” (Schraiber, 1989:126). Esta poderia ser a situação da proposição de reforma voltada para a cobertura das “necessidades de saúde do conjunto da população”, que será examinada a seguir, na medida em que as reformas do setor público de saúde no Brasil começam a exercer certa influência sobre as diretrizes das escolas médicas1. Esta terceira proposta de reforma, também conhecida como Medicina Comunitária, difunde-se na América Latina no início da década de 70 com o apoio de agências internacionais de saúde. Surge nos Estados Unidos, na década anterior, enquanto política social voltada para atender os grupos sociais de baixa renda, em particular migrantes, que se encontravam excluídos do acesso à assistência médica. Se os movimentos da Medicina Integral e da Medicina Preventiva objetivavam influenciar a postura individual dos médicos, buscando uma recomposição do ato médico, a Medicina Comunitária ofereceu conceitos voltados a se repensar o cuidado médico intimamente ligado às necessidades 1 Diferentes mecanismos podem ser reconhecidos neste processo, como: a avaliação de instituições de ensino, estabelecimento de diretrizes curriculares e linhas de financiamento às instituições que se proponham a adotar determinado modelo, como o atual Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nos cursos de Medicina, proposto em 2001,pelas Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde e Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 22 da população (Cyrino, 1993). Deste modo, ao buscar compatibilizar a necessidade de extensão de serviços com o problema dos custos crescentes da assistência médica, reconhece como essencial uma simplificação tecnológica nas práticas de atenção à saúde, tendo por base evidências epidemiológicas que apontavam maior prevalência de doenças mais simples em populações. Para a Medicina Comunitária, a escola médica forma profissionais inadequados para resolver os problemas de saúde da comunidade, dado o crescente privilegiamento do conhecimento em campos cada vez mais segmentados (Schraiber, 1989) e, ainda, em decorrência das atividades práticas estarem centradas no hospital-escola. Espaço este em que os problemas de saúde referem-se a doenças pouco freqüentes e complexas, do ponto de vista terapêutico e do diagnóstico, representando assim, uma prática pouco significativa da realidade do conjunto dos serviços médicos. Com base nestes pressupostos, a educação médica vai assumir nova proposta de mudança, norteada pelo desenvolvimento do ensino nos chamados serviços básicos de saúde, devendo o hospital-escola assumir um novo papel ao integrar-se ao sistema de saúde (Cyrino, 1993). É interessante perceber que nos anos de 1990, as linhas gerais do movimento da Medicina Comunitária continuaram presentes no arcabouço das propostas de reforma implementadas na América Latina, como é o caso do Programa UNI (Uma Nova Iniciativa na formação de profissionais de saúde) formulada pela Fundação Kellogg. Neste sentido, continua atual a leitura crítica que faz Schraiber (1989) dos reflexos deste movimento na educação médica, ao afirmar que o “privilegiamento da qualificação especializada” é tomado como se fosse decorrência de determinados “padrões técnicos do ensino” e, assim, sua superação é reconhecida como possível instruindo-se novas “competências técnicas individuais”. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 23 O maior desafio para inovação das escolas médicas refere-se à possibilidade de romper com o modelo biomédico de ensino centrado no diagnóstico e no tratamento das doenças, e reorientando-o para lidar com os principais problemas de saúde da população e que ainda estimule a criatividade e o senso crítico dos estudantes mediante práticas desenvolvidas sob a ótica da atenção integral (prevenção e cura) nos diferentes níveis de cuidado da saúde (Silva, 1994). É fato que as escolas médicas não se orientam em torno da saúde. Elas estão voltadas para ensinar as doenças e na verdade apenas parcialmente (Mroninski, 1996), centrando o ensino no processo diagnóstico e no tratamento, com pouca ênfase nos aspectos voltados ao cuidado com o paciente ou mesmo à dimensão mais humana da relação médico-paciente. Pesquisa realizada recentemente pela CINAEM (Comissão Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico), sobre as escolas médicas no Brasil, assinalou que “a descrição do processo de formação revela a hegemonia absoluta dos conteúdos programáticos que permitem a compreensão do processo saúde-doença centrado no indivíduo biológico. Desvenda a semiologia como instrumental de trabalho que articula a utilização do conhecimento biológico na abordagem dos distúrbios fisiomorfológicos e assegura a reprodutividade da prática médica, funcionando como instituinte da clínica moderna fundamentada no método positivista” (CINAEM – Modelo Pedagógico, 1997:36). Se no início do século XX, os médicos possuíam recursos limitados para tratar e curar seus pacientes, apoiando-se no saber e na experiência pessoal de cada médico, dedicando seu tempo para dar suporte, cuidado e conforto aos doentes de modo a desenvolver uma relação de confiança. A partir da década de 1960, com o desenvolvimento técnico-científico, uma maior divisão de trabalho médico e consequentemente, com a mudança do Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 24 modelo de atenção à saúde, o trabalho médico passou a se realizar de forma bastante fragmentada, impessoal e com valorização de habilidades técnicas em detrimento de uma relação médico-paciente mais humanizada (Schraiber,1996). É paradoxal, neste sentido, que enquanto a confiança na medicina, como prática técnica, ter ampliado-se durante a segunda metade do século XX, a confiança nos médicos foi progressivamente reduzindo-se, instalando-se neste sentido uma verdadeira crise de confiança. A base do ensino médico, na atualidade, volta-se muito aos avanços das novas e, cada vez mais diversificadas tecnologias de diagnóstico e tratamento de enfermidades. Inúmeras doenças que até pouco tempo eram fatais, hoje são consideradas e tratadas como doenças crônicas, aumentando a expectativa de vida por muitos anos. Este sucesso na manutenção da vida, no entanto, não tem sido acompanhado do desenvolvimento da habilidade médica de ouvir, de cuidar, de compreender a vulnerabilidade dos pacientes diante do sofrimento e o adoecer (Puchalski, 2001). Frente a todo o aparato da tecnologia médica, a Escola Médica tem preparado médicos “equipamento-dependentes” na expressão de Salgado (1979). Estes médicos, assim formados, “se desprovidos de senso crítico, poderão mais assegurar o consumo de bens e serviços, condicionados por interesses econômicos, do que atender às necessidades de saúde identificadas” (Magaldi, 1982:5). Não é possível pensar em mudar, transformar o ensino médico sem levar em conta as relações da escola médica com a sociedade. Como apresenta Ribeiro (1998) é preciso recuperar a complexidade das relações da escola médica com o mundo do trabalho e como este último interfere nos modelos e práticas pedagógicos. Deve-se “reconhecer que há interesses em jogo e conflitos que explicitamente, supõem sujeitos e práticas que guardam Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 25 coerência e contradições em relação às suas intencionalidades” (Ribeiro, 1998). No momento, não existe um sistema de saúde ou um modelo de prática médica capaz de resolver os problemas de saúde numa visão mais ampla. Neste sentido, necessita-se mudar a escola médica e a educação dos profissionais de saúde, formando indivíduos mais sensíveis às necessidades de saúde da população. Assim, uma série de questões precisam ser revistas e discutidas no sentido de qualificar os estudantes de medicina para novas possibilidades de ação. Algumas das inúmeras perguntas, colocadas hoje para o ensino da Medicina, são também questões para o ensino superior em geral: o paradigma da ciência e o modelo de ensino presente nas Universidades. O desenvolvimento da teoria quântica, nas primeiras décadas do século XX, instaurou uma crise na ciência clássica com o desvelamento de novas questões – a incerteza, a contradição e a necessária articulação observador- objeto – a seguir, outros campos científicos vão se defrontar com outras limitações da ciência contemporânea e apontar a necessidade de ampliar suas abordagens sobre o real2. Nesta perspectiva Morin (1994), reconhece a incerteza e a contradição como os “sinais precursores da Complexidade”. Em Ciência com Consciência, Morin (1994) vai tratar a Complexidade como desafio colocado pelo real e incitamento para o pensar, em oposição ao seu entendimento como receita ou resposta. Neste sentido, vai assumir a incompletude do conhecimento, diferenciá-la do pensamento simplificador e mutilador e tomar a Complexidade como busca do conhecimento multidimensional ao respeitar as diversas dimensões de um fenômeno e ao procurar reatar articulações que foram destruídas pela divisão do conhecimento em disciplinas. 2 CASTIEL, L. D. O buraco e o avestruz. A singularidade do adoecer humano. Campinas: Papirus, 1994. p.32. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 26 Se a produção do conhecimento nas ciências ainda mantém, enquanto produção hegemônica, o modelo clássico: fragmentado, causal, quantificável, nas Universidades brasileiras e nas escolas de medicina os modelos curriculares repetem o mesmo paradigma. “A avaliação mostra que os currículos permanecem fragmentários, que as disciplinas se mantém independentes, que as intercomunicações desejadas e tidas como necessárias em alguns casos mostram-se impossíveis de serem percebidas pelos alunos, dificultando-lhes a realização de análise e sínteses quando se deparam com situações complexas, nos quais os variados conhecimentos devem concorrer seja para diagnosticar, planejar ou para outras capacidades exigidas” (Braga, 1999: 20). A própria organização curricular tem base no conhecimento e na visão de ciência positivista: “em primeiro lugar, vêm os conhecimentos básicos (...) seguidos de conhecimentos intermediários e instrumentais para, finalmente, chegar aos conhecimentos profissionais aplicados”, (Braga, 1999:22). As disciplinas são ofertadas por profissionais especialistas e orientadas pelos conteúdos especializados, fragmentados e redutores. Convivemos com uma Universidade altamente especializada e dividida frente a uma realidade dinâmica e concreta da sociedade, que contém um todo complexo e indissociado. O momento atual por que passa a universidade tem indicado “a possibilidade de uma transição paradigmática em direção a uma forma de fazer ciência que é dialética por excelência, na sua preocupação de ver-se em relação a alguma coisa, e esta alguma coisa não é o paradigma da normalidade e sim o da nova ciência”(Braga, Genro e Leite,2002:35). Contrapondo o modelo ainda hegemônico, centrado nas disciplinas, na especialização e no modelo biomédico, propõe-se um novo paradigma na universidade, que incorpore novas concepções ao processo de ensino e Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 27 aprendizagem, colocando o aluno como ator principal da ação. Este será um ensino baseado em procedimentos que: “enfocam o conhecimento a partir da localização histórica de sua produção e o percebem como provisório e relativo; estimulam a análise, a capacidade de compor e recompor dados, informações, argumentos e idéias; valorizam a curiosidade, o questionamento exigente e a incerteza; percebem o conhecimento de forma interdisciplinar (...) e; entendem a pesquisa com um instrumento do ensino e a extensão como ponto de partida e de chegada da apreensão da realidade” (Cunha, 1996:32). Existe hoje uma tensão estabelecida entre a mentalidade disciplinar e o movimento que procura a superação da fragmentação do conhecimento em busca do interdisciplinar. “O deslocamento da ótica disciplinar para a ótica interdisciplinar compreende o trabalho através de temas amplos o suficiente para exigirem a participação de diferentes áreas de conhecimento, em vez do estudo através de conteúdos especializados” (Braga, 1999:31). Braga citando Santomé (1994) caracteriza o século XX “como aquele da freqüente reorganização do conhecimento e da oscilação entre as tendências à especialização e propensões à unificação no que concerne à sua construção e difusão” (1999:23). O autor assinala que, dada a complexidade dos problemas da sociedade atual, há “necessidade de se reorganizar e se reagrupar os âmbitos do saber, sob pena de graves erros na eleição de problemas a detectar, investigar” e ensinar. Ressalta, ainda, que esta proposição de interdisciplinaridade está voltada à formação de um profissional mais aberto, flexível, solidário, democrático e crítico, com a necessidade de uma formação universitária polivalente frente a Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 28 “mutabilidade veloz das sociedades atuais e, principalmente, à imprevisibilidade assustadora do futuro. Essa formação polivalente, seguramente, não é a do mito da educação enciclopédica e especializante (...). Esta formação polivalente pressupões uma concepção de ciência e de especialista que seja capaz de lidar com a imprevisibilidade do futuro” (Braga, 1999: 23, 24), Estima-se hoje que o conhecimento científico aplicado à pratica médica dobre a cada três anos. Na medicina, não existem certezas incontestáveis ou dogmas eternos: “a medicina foi, é e sempre será uma ciência e arte em evolução” (Dantas e Lopes, 2002). As verdades serão transitórias e a história nos mostra momentos de ruptura com o conhecimento anterior. “A medicina é uma profissão que exige aliar o conhecimento teórico à prática clínica. Necessitamos, num mundo cada dia mais incerto (...) estar atentos ao que existe de melhor e tomar decisões eticamente orientadas e comprometidas com o bem-estar dos pacientes e da sociedade” (Dantas e Lopes, 2002: 9). Trabalhar em educação médica é acreditar nos seus sujeitos: estudantes e docentes e no futuro. “Não dá para ser educador e ser desesperançoso ao mesmo tempo. Temos que acreditar que há um amanhã para o Brasil e para o mundo” (Menezes, 1993) e inclusive para o ensino médico e para os serviços de saúde. Só assim se consegue encontrar sentido no risco de educar. Buscar- se um cotidiano que engrandeça o senso de autonomia de nossos estudantes assim como a exposição a situações concretas da realidade de saúde de nosso país pode significar um esforço à mudança do futuro de nossa educação médica (Freire, 1996; Venturelli, 1997). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 29 1.1 O ensino médico na história da Faculdade de Medicina de Botucatu “É impossível começar do começo. Ao introduzirmos inovações, temos o presente e o passado da instituição, que estão presentes em seu futuro. Não é possível estabelecer um vazio, desfazendo-se da ordem antiga. Professores e alunos mantêm funcionando as estruturas do presente, planejando um enfoque diferente para o futuro”. (Jean Rudduck, 1994) Em 1808, foram criadas, no Brasil, as duas primeiras escolas de cirurgia que, em 1832, foram convertidas nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Em 1889, foi fundada a Faculdade de Medicina no Rio Grande do Sul e em 1913 a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. A primeira grande expansão das Escolas Médicas no Brasil ocorreu no intervalo de 1965 a 1972, com a criação de 37 Escolas Médicas (Magaldi, 1982). Este aumento do número de escolas médicas decorreu de mudanças socio-econômicas e de uma maior demanda do mercado de trabalho. Em 1962, foi criada a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB) e, posteriormente, instalaram-se os cursos de Medicina e Medicina Veterinária (1963), o curso de Ciências Biológicas (1964) e , finalmente, o curso de Ciências Agronômicas (1965), tendo todos um ciclo básico comum. Montelli e Magaldi ( 1988) relatam que, em 1965, implantou-se o Curso de Aplicação em Medicina da FCMBB, época caracterizada por “novas conquistas científicas, novos conceitos e reformulações universitárias. Justificável, portanto, que esforços tenham sido concentrados na atualização de métodos de ensino, na estruturação curricular renovada e na integração de ações dirigidas para concretizar a nova concepção de ensino médico no país”. (Montelli e Magaldi, 1988). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 30 Os autores apontam que buscava-se a construção de um curso médico que privilegiasse o papel do estudante no seu próprio aprendizado e os princípios de integração, com a participação das distintas disciplinas, inclusive com a proposição de integração de departamentos e disciplinas na execução do curso. Já neste período inicial, algumas propostas de inovação pedagógicas de integração interdisciplinar foram experimentadas, como o “Curso de Agressão e Defesa”, referido posteriormente. Algumas idéias presentes, inicialmente, no curso de Medicina de Botucatu podem ser pontuadas. A primeira expressava a proposta de um ensino médico integrado, na qual se propunha a organização de enfermarias de ensino com a internação de pacientes de diversas especialidades, dirigida por uma Comissão de Ensino, responsável pela integração tanto do ensino prático como do teórico. A segunda referia-se à necessidade da criação de um Hospital Universitário, compreendida como o centro de ensino médico “e um grande centro de diagnóstico e tratamento de doenças e muitas vezes de doenças raras... O ensino de Medicina, limitado a esse hospital universitário (HU), fornecerá ao estudante treinamento valiosíssimo, colocando-o a par do que há de mais avançado em Medicina e despertando nele o interesse para orientar sua Medicina para esse alto padrão”. (Dutra de Oliveira, 1966: 325) Interessante ressaltar que, apesar da ênfase dada ao ensino no hospital- escola, o autor admite que se este fosse considerado o lugar exclusivo e único do ensino de medicina, alguns problemas poderiam ser levantados como o caráter muito especializado, limitado e selecionado da clientela do HU e, conseqüentemente, a não representatividade das demais doenças que, freqüentemente, acometem as populações. Nesse sentido, ressalta a necessidade de contato do estudante de medicina com a comunidade. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 31 O autor valoriza a “transformação do ensino clínico de informativo em formativo”, motivando os estudantes a: compreender que “cada paciente é um problema a resolver e que ele deverá aprender isso no curso médico, a usar o livro-texto, consultar fontes bibliográficas, discutir em grupo e assumir responsabilidades em sua formação”. (Dutra de Oliveira et al, 1967). Preocupado com a necessidade de melhor preparo do corpo docente da instituição, o autor propõe a organização de um curso de pós-graduação na FCMBB (Dutra de Oliveira, 1966). Neste período inicial, várias foram as publicações que divulgaram experiências pontuais de cursos e disciplinas ministrados. (Montelli e Souza, 1967; Meira, Montelli e Almeida, 1970.) Interessante notar que o contexto da década de 1960 e início dos anos de 1970 favorecia inovações, pois nestes verificaram-se, no Brasil, diversas experiências que buscavam superar o modelo de ensino médico vigente. Alguns exemplos podem ser identificados como o caso da Universidade de Brasília que em 1965 - 1966 passou a ministrar o curso básico por blocos de sistemas, procurando integrar disciplinas básicas a aplicadas e a Medicina Preventiva. Também a Universidade de São Paulo desenvolveu entre 1968 e 1976 um curso experimental que se orientava à formação de um médico generalista, com a integração disciplinar e o ensino clínico nos diversos níveis de atenção à saúde e a introdução do ensino das ciências sociais no currículo (Silva, 1994). Em 1968, Campana et al, em publicação interna, denominada “Filosofia de Ensino”, enfatizam a importância da “formação do médico geral, apto a satisfazer as demandas crescentes do interior de nosso país” (...) reservando-se “a formação do especialista ou pessoal universitário a cursos de pós- graduação, desenvolvidos pela Faculdade como um todo, pelos Departamentos ou pelas disciplinas” (Campana et al, 1968: 3). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 32 Assinalam que o ensino médico deveria se realizar “dentro da concepção moderna da Medicina Integral”, (...) relacionando “o paciente e sua condição clínica ao meio e à realidade em que vive” (1968: 4). O documento apresenta inúmeras proposições para um ensino inovador como a questão da integração curricular, seja entre os diversos cursos de graduação, seja no ensino aplicado, da necessidade do ensino extra hospital-escola e a possibilidade de mudanças nos critérios de avaliação dos estudantes caminhando-se para uma avaliação formativa. Valorizam, também, a necessidade de formação dos professores no campo da pedagogia e da didática (Campanha et al, 1968). Diversas foram as publicações que divulgaram uma série de proposições institucionais buscando construir uma Escola Médica com inovações pedagógicas, processos de integração interdisciplinar ou inderdepartamental, sistemas de avaliação formativa, trabalho em pequenos grupos e critérios de aprovação renovados (Almeida et al, 1970; Almeida et al, 1970 (b); Almeida e Magaldi, 1974). Havia, sem dúvida, um enorme esforço institucional na formulação e execução de um ensino médico inovador. A FCMBB acompanhou nos anos que se seguiram movimentos mais gerais no país. Nos anos setenta constituiu-se no Brasil uma “Comissão de Especialistas do Ensino Médico no âmbito do Ministério da Educação. Ao mesmo tempo, segmentos renovadores da educação médica participaram da construção das bases de um novo movimento sanitário” (Almeida, 1999: 48). Estes profissionais, de diferentes formas, na pesquisa acadêmica, na participação de políticas de saúde, nos congressos científicos ou de entidades, contribuíram com uma produção teórica que criticava o sistema de saúde vigente e com a formulação de propostas para a organização do sistema. Professores da então FMCBB, de diferentes formas, participaram deste movimento, desempenhando um papel importante neste processo que Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 33 privilegiou o estudo da prática médica, mas também se voltou à crítica do modelo formador. Decorridos 14 anos do primeiro marco referencial , Montelli et al, em estudo realizado entre os docentes, em 1978, sobre a qualidade do ensino e sobre a manutenção da proposição de formação do médico geral, constataram que vários postulados básicos propostos no início da faculdade não foram cumpridos. Citam como questões importantes: “a integração não tem presidido os cursos ministrados; o currículo pulverizou-se pelo grande número de disciplinas: o aprendizado é passivo e distanciado da realidade do profissional e de saúde” (Montelli et al,1980:61). Neste período, buscou-se, também, avaliar o ensino e adequá-lo à realidade da assistência. Colocou-se, ainda, se a escola deveria optar pela formação de um profissional de fácil absorção pelo mercado de trabalho ou se deveria “a partir da aceitação da irreversibilidade da prática institucional da medicina, formar médicos tecnicamente mais adequados às necessidades de saúde da população, ao mesmo tempo que exercitados quanto ao pensamento crítico” (Montelli et al, 1980: 62). Algumas proposições perderam-se ao longo do tempo, porém outras se constituíram em alicerce para a construção do curso de medicina, sendo até hoje mantidas, como a proposição de uma maioria de corpo docente em tempo integral e dedicação exclusiva, maior tempo de dedicação à assistência e ao ensino, o ensino em pequenos grupos a partir do terceiro ano médico, participação do aluno com responsabilidade na assistência ao doente, a partir do quarto ano e maior proximidade do corpo docente e discente (Montelli e Magaldi, 1988). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 34 Em 1976, foi criada a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP e a esta foram incorporados 15 institutos isolados de Ensino Superior, públicos. Entre estes institutos, estava a FCMBB, que foi desmembrada, dando fim àquele antigo projeto integrativo de diferentes cursos. Instituiu-se a Faculdade de Medicina de Botucatu que, atualmente, conta com dois cursos de graduação : Medicina Humana e Enfermagem. Montelli e Magaldi (1988) assinalam que a Faculdade passou por vários períodos de debates e reflexões e subseqüentes reformas curriculares. Consequentemente, nota-se que, de 1968 a 1978, houve um acréscimo de 100% no número de disciplinas, principalmente no quarto e quinto ano e em 1988, um novo aumento de disciplinas, principalmente, no quarto ano. Aumento este que resultou, principalmente, no surgimento de numerosas subespecialidades. Em 1989, a FMB iniciou, novamente, um amplo debate com a comunidade acadêmica sobre as possibilidades de realização de uma nova reforma curricular no curso médico. Este debate culminou em uma reforma curricular aprovada em 1996 e implantada em 1997. Concomitante a este processo, a FMB foi uma das Faculdades de Medicina do Brasil selecionadas para o desenvolvimento de um projeto denominado Projeto UNI, financiado pela Fundação Kellogg. Este projeto visava, entre outros objetivos, impulsionar o desenvolvimento de atividades inovadoras no ensino de profissões da saúde. “A proposta UNI funcionou como verdadeira catalisadora do processo de Reforma do Ensino Médico que passou a andar em passos mais acelerados, com objetivos mais claros e amplos” (Machado, Trezza e Ruiz, 1995). O novo currículo elaborado propunha o desenvolvimento de “23 módulos integrados, cada um com o objetivo de articular diferentes disciplinas em torno de um tema principal.” Estes módulos seriam “ Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 35 introduzidos gradualmente no currículo ainda tradicional” ( Mattos, 1999). Previa-se, também, a mudança de um ensino basicamente oferecido no Hospital-Escola para outros cenários de ensino como um Hospital Regional de Botucatu, um Ambulatório Regional Estadual de Especialidades, ambos em nível secundário, e um maior desenvolvimento de estágios em Centros de Saúde Municipais, pelas diferentes disciplinas. Foi organizada toda uma sistemática de incentivo à capacitação docente, principalmente, no campo das inovações metodológicas de ensino. Por meio de intercâmbio internacional, vários docentes foram enviados a diferentes países, assim como, professores de diversas escolas médicas de diferentes países do mundo trouxeram a Botucatu suas experiências de reformas curriculares do ensino médico. Houve um grande empenho inicial na elaboração e desenvolvimento de inovações, mas nem tudo foi efetivado e embora possam ser percebidos grandes avanços pontuais, como um todo a reforma curricular não ocorreu dentro do previsto e a desejada integração não se efetivou. No ano de 1999, membros da Comissão de Apoio Pedagógico (CAP), criada em 1995 e extinta em 1998, publicaram artigo que buscava resgatar, a partir do que se havia implantado no primeiro ano do novo currículo (1997), os progressos e os principais problemas vivenciados para se avançar na reforma. Neste artigo nota-se que a mudança proposta referia-se a um modelo de ensino híbrido, com disciplinas ou grupo de disciplinas do primeiro ano trabalhando com novas metodologias de ensino, em particular a ABP, em meio ao currículo tradicional. Muito embora se falasse em ter trabalhado a construção de módulos por núcleos temáticos, os mesmos não se referiam ao ensino do primeiro ano como um todo, mas às iniciativas de disciplinas em particular (Ruiz et al, 1999). Pode-se ainda perceber que os professores apresentaram grandes dificuldades em executar o projeto de integração, que o mesmo teve continuidade parcial e que a partir da crítica feita por professores e estudantes Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 36 foi formulada nova proposta integradora: cada disciplina caminharia dentro da sua proposta, seus objetivos e conteúdos e ocorreriam momentos integradores, com a participação de todas as disciplinas do ano, com núcleos temáticos que pudessem abarcar os conteúdos que estariam sendo ministrados em cada disciplina. Esta foi uma experiência com resultados favoráveis e até o momento atual por dez dias, no segundo ano, realiza-se este momento integrador. Outras disciplinas também buscaram renovar-se, como é o caso da Obstetrícia que passou a ministrar parte de seu curso em um hospital secundário de Botucatu, articulando o ensino com pesquisa diagnóstica sobre condições do parto no município e com propostas efetivas para redução da mortalidade materna. De diferentes formas, as áreas de Saúde Pública e Pediatria sempre estiveram envolvidas nas discussões e proposições da necessidade de revisão do currículo da FMB, mais voltado às necessidades de saúde da população e à formação de um médico geral. (Binder, Magaldi e Lopes, 1981; Rizzato, Trezza e Ramos, 1975). Do ponto de vista interno de cada um desses dois departamentos, pode- se constatar que há mais de três décadas os Departamentos de Saúde Pública (DSP) e de Pediatria (DP) da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP vêm desenvolvendo inovações educacionais na graduação médica. Diversas experiências extramuros e de ensino orientado à comunidade desenvolvem-se na formação de acadêmicos e de residentes de Pediatria e de Saúde Pública mediante realização de práticas de saúde em serviços de saúde da Universidade (Centro de Saúde Escola), creches e serviços de atenção primária à saúde municipais e estaduais de Botucatu e da região (Cyrino, 1995). Nestas proposições de ensino extramuros na graduação e na Residência Médica, desde a década de 1970, sempre existiu projeto integrador entre os Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 37 dois Departamentos e, especificamente, a área da Pediatria Social do Departamento de Pediatria. No planejamento das atividades do futuro CSE uma docente da Pediatria Social participou, não só na organização da área de Saúde da Criança, como também, do Conselho do CSE. Esta docente, ao longo desses anos, manteve sua atuação no projeto pedagógico do CSE. Na década de 1980, ao assumir a Coordenadoria Municipal de Saúde de Botucatu e na organização da primeira Unidade Básica de Saúde Municipal, em 1985, uma docente do Departamento de Saúde Pública solicitou a outra docente da área de Pediatria Social para participar dos trabalhos da organização e do atendimento à saúde da criança , resultando, posteriormente, em estágios dos alunos do curso de Pediatria do quarto ano médico, naquela UBS. Projetos de extensão e de pesquisas, também, têm sido desenvolvidos, conjuntamente, por docentes dos dois Departamentos. Na reforma ocorrida em 1997, dois cursos2 desses departamentos empenharam-se na possibilidade de reestruturação, tanto em relação à forma como no conteúdo, incluindo o processo de avaliação. Os pressupostos teóricos, a descrição, análise, avaliação e divulgação da reestruturação destes dois cursos poderão contribuir para encorajar as áreas envolvidas e para escola médica refletir sobre o processo de mudança e a possibilidade de melhoria do ensino médico. Esta é a hipótese da presente pesquisa. 2 No presente trabalho para simplificação de terminologia os dois casos em estudo: a disciplina de Semiologia Pediátrica ministrada ao 3º ano médico e a matéria Saúde Coletiva III, que contém cinco disciplinas, também ministrada ao 3º ano médico, foram chamados de Curso de Semiologia Pediátrica e Curso de Saúde Coletiva III. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 38 1.2 A proposta do estudo: contextualizando o problema “Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou nos perguntamos sobre nossa trajetória profissional, o centro exclusivo das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na experiência vivida na área da profissão. Fica de fora, como algo sem importância, a nossa presença no mundo. E´ como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não tivesse nada que ver com sua experiência de menino, de jovem, com os seus desejos, com seus sonhos. Com seu bem querer ao mundo ou com seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal-estar na passagem dos dias e dos anos” Paulo Freire Procurando rever as motivações que orientaram a realização deste estudo, emergem alguns conflitos e caminhos percorridos na realização desta pesquisa participante bem como considerou-se adequado situar o momento histórico da Faculdade de Medicina de Botucatu com relação ao ensino na graduação médica. Minha trajetória profissional trouxe-me ao Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu, em 1983. Havia cursado na graduação a Faculdade de Medicina de Jundiaí, uma escola médica isolada, na qual não havia nenhum docente em tempo integral, não se realizavam pesquisas acadêmicas e não ouvi falar em preparar estudantes para carreira universitária. Os anos vividos em Jundiaí foram especialmente enriquecedores para minha formação e dentre inúmeras contribuições pontuo aqui três, que se fizeram presentes na escolha do campo que hoje atuo. Apesar de não ser tradição naquela escola, por três anos desenvolvi uma pesquisa sobre “Os curandeiros na cidade de Jundiaí”, financiada pela FAPESP.O processo todo Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 39 de pesquisa foi uma abertura à curiosidade científica, a reflexão sobre outros processos de cura e a possibilidade de um trabalho etnográfico, de pesquisa qualitativa. Uma segunda influência, deve-se a busca, junto ao Centro Acadêmico, por um espaço para um projeto comunitário. Trabalhei com estudantes e docentes em um bairro de periferia, em parceria com uma escola de ensino fundamental do SESI de Jundiaí, tendo participado de uma rica discussão e vivência em educação popular e saúde. Tive, então, meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire e com um processo educativo que busca romper com a tradição autoritária e normatizadora da relação entre serviços de saúde e população. Insatisfeitos com o curso de graduação e motivados pelo momento político, que vivíamos no país e na instituição, um grupo de estudantes e professores decidiu se debruçar sobre a possibilidade de reforma do ensino médico. Alunos e professores realizaram um “Fórum de Debates”, cuja proposição fundamental era aumentar o espaço da prática clínica no curso médico. Trouxemos Paulo Freire a Jundiaí, que juntamente com outros professores, nos brindou com suas reflexões sobre a necessidade de transformação da educação no ensino superior, aproximando-a mais da educação problematizadora, qualificada e humanística, com compromisso com uma sociedade eqüitativa. Uma terceira contribuição foi meu estágio, na graduação, em um serviço de cirurgia coordenado por um ex-professor da faculdade. Tratava-se de uma prática corrente durante a graduação médica quando a Medicina caracterizava-se como prática liberal, mas já incomum para o estudante de medicina, na década de 1980. Minhas atividades consistiam no acompanhamento de pacientes antes, durante e após cirurgia, num ambulatório de hospital geral. Na vivência neste serviço aprendi muita clínica (discutir os casos clínicos e desenvolver o raciocínio clínico) e mais que tudo, Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 40 havia a preocupação de se compreender que, por trás de uma doença, havia um doente, com vida e características a serem aprendidas. Deste período ficaram marcas que muito influenciaram minha vinda à Botucatu. As múltiplas inquietações, naquele momento, referiam-se a possibilidade de aprofundar minha formação na área da Saúde Pública, poder me dedicar a pesquisa científica em uma Universidade Pública, entender melhor a relação educação e saúde na prática clínica e na Saúde Pública. Na residência médica em Medicina Preventiva e Social e posteriormente em Pediatria Social na FMB, participei como professora colaboradora da disciplina de Epidemiologia e realizei um trabalho de extensão que consistiu em organizar um Programa de Saúde Escolar (PSE), para o município de Botucatu, e realizar diagnóstico de saúde das creches de Botucatu. Iniciei, assim, meu trabalho de pesquisa no campo do estudo da criança em idade escolar, na interface educação e saúde, cujo objetivo central era o estudo e a intervenção no campo da atenção integral à saúde da criança na comunidade. Estas experiências na minha formação trouxeram inúmeras inquietações, principalmente, voltadas à necessidade de aprofundar a relação educação e saúde e a vontade de desenvolver um trabalho interdisciplinar e uma prática intersetorial. Realizei meu mestrado na Faculdade de Medicina da USP e foi um período de grandes descobertas, aquisição de novos conhecimentos e aprendizado intenso com muitas possibilidades de incorporar novas proposições à vida acadêmica. Confesso ter vivenciado, naquele momento, um sentimento de timidez, desconfiança ou insegurança ao me debruçar sobre meu trabalho. Minha dissertação de mestrado versava sobre a implantação e o desenvolvimento do Programa de Saúde Escolar de Botucatu e propunha Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 41 realizar uma pesquisa participante, do tipo pesquisa-ação3, na qual eu era sujeito e objeto da pesquisa, pois fui uma das formuladoras do PSE de Botucatu e estive presente em todo seu processo de construção. Com isto, ficava claro que as condições objetivas, as significações, as escolhas dos dados a serem analisados e as práticas relatadas representavam a preocupação de refletir e discutir uma prática de programação em saúde da qual eu fazia parte do material empírico. O estudo, abrangia o campo da Saúde Pública, da Epidemiologia e com suporte em outras áreas do conhecimento, como a Pedagogia, as Ciências Sociais e a Psicologia. Nesta ocasião, entrei em contato com o construtivismo de Emília Ferreiro, o que estimulou um aprendizado sobre questões da educação e sobre a construção do conhecimento, uma vez que compunham a equipe profissionais da área da saúde e da educação que vinham pesquisando e atuando no campo do processo ensino-aprendizagem 4. No estudo pudemos apreender a dificuldade de lidar com o setor Educação e a experiência da descontinuidade, pois todo o construído nas gestões anteriores é alterado nas mudança de administração pública e mesmo os professores não se fixam nas escolas de periferia, como assinala também Parente (2000). Nesses anos de trabalho com os professores das escolas públicas de ensino fundamental, buscando colaborar para a formação de professores atuantes, participantes, criativos e críticos a partir da aprendizagem pela experiência, tínhamos sempre a sensação, a cada final de ano, de um trabalho não terminado e sem continuidade. Apesar disso, acabamos por nos convencer que havia valido a pena, pois onde fosse o 3 Os termos pesquisa participante e pesquisa-ação foram empregados no sentido dado por Ezpeleta e Rockwell (1989) ou por Thiollent (1994): A pequisa-ação é um tipo de investigação social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. A pesquisa-ação é uma modalidade de pesquisa participante, que apresenta como elementos centrais a pesquisa e a participação. 4 É deste período a defesa de Doutorado da Profa. Dra. Maria Lúcia Toralles Pereira sob o tema “Eu não gosto de cópia: histórias de crianças” e de outras publicações e apresentações em congressos e reuniões científicas sobre o Programa de Saúde Escolar. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 42 professor lecionar levaria com ele algumas marcas daquele trabalho construído coletivamente, recuperando um pouco para si o caráter de uma prática profissional reflexiva, crítica e criativa (Toralles Pereira, Casemiro e Cyrino, 2001). A vivência nesta pesquisa que, também, se realizou enquanto projeto de extensão colocou-me diante de novas questões que têm me estimulado à pesquisa, o ensino e a extensão de uma Universidade mais parceira da comunidade. Assim tem-me possibilitado pensar o ensino médico na graduação, na residência médica e o ensino de outros profissionais em novos cenários como escolas, creches, centros de saúde, no qual todos os envolvidos, professores, estudantes, profissionais e comunidade sejam participantes ativos do processo. Uma outra importante situação aqui experimentada e questionada refere-se a possibilidade de realizar inovações pontuais. Mudanças inovadoras no espaço institucional, comunitário ou da articulação instituição-comunidade, ainda que se perceba grandes dificuldades na estrutura mais geral. Nesse sentido, valorizaram-se as relações sociais que se permitiram enquanto relações educativas no processo de individuação e socialização. Esta possibilidade de troca, de comunicação muito tem me instigado em busca de uma construção dialógica do espaço do estágio acadêmico, da vivência estudante-profissional de saúde e estudante-comunidade. Outra experiência que contribuiu para a elaboração deste estudo foi o exercício da coordenação do conselho de Residência Médica da FMB, no período de 1990 à 1993. Esta prática me permitiu refletir sobre o processo de aprendizagem por meio do treinamento em serviço, como é a modalidade residência, fazendo me envolver com questões mais gerais da Residência Médica. Com o trabalho conjunto com coordenadores de várias escolas e hospitais formamos um grupo que se empenhou na elaboração de instrumentos de avaliação dos programas de Residência Médica no Estado Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 43 com o objetivo de melhorá-los e apontar caminhos para adequação dos mesmos. Feuerwerker (1998), em estudo sobre a Residência Médica no Brasil cita este momento de reativação da Comissão Estadual em São Paulo, em 1993, mas não o valoriza como processo, destacando que o trabalho não teve continuidade e nem seu produto avaliativo foi relevante. Minha vivência neste processo foi outra. A oportunidade de conviver e conhecer inúmeros programas de residência médica do Estado de São Paulo possibilitou uma intensa troca entre todos os envolvidos.Permitiu uma reflexão sobre a grande diversidade de práticas, todas nomeadas como residência. Trocamos programas das várias especialidades, colaboramos uns com os outros, visando uma produção mais parceira e construtiva em relação a uma atuação de quem nos gerenciava (FUNDAP) ou nos credenciava (Comissão Nacional de Residência Médica). Foi um período importante em minha vida profissional, pois permitiu perceber o papel da Residência Médica na formação do futuro profissional, o papel do residente na prestação de serviços e conviver com a instigante questão colocada: A especialização precoce na graduação médica como uma pré-residência. Naquele espaço de discussão, representantes da Secretaria de Estado da Saúde mostravam a necessidade de se repensar a formação do médico geral na graduação, garantindo nesta o aprendizado nas grandes áreas e deixando à residência, a especialização. Este debate trouxe a percepção que inúmeras escolas compunham seus internatos como mini-residências, sem a preocupação de pensar a área de conhecimento para o futuro médico não especialista da mesma. Esta questão tem permeado o debate sobre os conteúdos da graduação, aqueles essenciais à formação do médico geral e à relação ensino na graduação/formação na residência. Retomei os estudos da pós-graduação em 1997, iniciando o programa na área de Pediatria da FMB e assim pude aprofundar meus conhecimentos no Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 44 campo da Pediatria Social. Também, nessa época, iniciou-se na F.M.B. a implantação do novo currículo, ocorrendo naquele período, um grande investimento interno para mobilizar os docentes nas questões da docência, valorizar o ensino em novos cenários (realizado por vários Departamentos), incentivar uma maior integração universidade, serviços de saúde e comunidade e uma produção científica em educação médica. Em meio ao curso de pós-graduação, realizei um mestrado em Educação Médica junto ao Departamento de Educação Médica da Universidade de Illinois, em Chicago, com financiamento da Fundação Kellogg. Esse mestrado trouxe conhecimentos sobre o momento atual da educação médica no mundo e permitiu-me iniciar estudo sobre a construção de novos cursos na área da saúde coletiva, ferramentas para a realização desta pesquisa. Neste mestrado o núcleo do curso tratava do ensino da Medicina e não da Saúde Pública e, desse modo, todas as disciplinas foram centradas no ensino da clínica, dirigidas a pesquisa clínica e ao professor de medicina clínica. Deixou-se claro, desde o início, que tratava-se de preparar docentes em Educação Médica para aprofundar questões relacionadas, essencialmente, ao processo de ensino-aprendizagem da prática clínica. Todavia este curso me permitiu grandes descobertas sobre a Educação médica e suas possibilidades de transformação, ainda que tenha abordado de forma muito superficial a articulação do coletivo com o individual na formação do médico e mesmo da influência dos problemas da organização do sistema de saúde ou da prática médica na instituição de ensino. Observei que, particularmente, no Brasil, esta discussão vem avançando, buscando-se uma maior articulação entre os problemas sanitários, o ensino e a produção de conhecimento crítico frente ao enfrentamento das situações concretas. Voltando ao processo de reforma do ensino na FMB, os anos de 1994 a 1997 foram um período de efervescência na instituição. Acreditava-se que Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 45 aquele seria um momento de grandes transformações no ensino médico da FMB. Embora os anos de 1998 e 1999 tivessem sido de impulsão dos Projetos UNI no Brasil, na FMB isto não se deu. A seqüência à implantação do novo currículo não foi o desencadear de um processo amplo de discussão com a comunidade acadêmica sobre os rumos do ensino médico na instituição. Ocorreram dificuldades técnicas e políticas e não se efetivou uma mudança no projeto institucional. Esta foi a percepção tanto de docentes da FMB, como de um assessor externo. Venturelli (2001) reconhece, na condição de assessor técnico de projeto de cooperação voltado às Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, Marília (FAMEMA) e de Londrina (UEL), que nas duas últimas foi possível colaborar para um processo de mudanças educacionais radicais nas carreiras médicas, enquanto na FMB sua atuação restringiu-se a contribuir para apoiar o preparo de futuras mudanças, uma vez que não se concretizaram várias reformas propostas. Todavia este trabalho na FMB, na visão do autor, é essencial para o êxito de mudanças futuras e, ainda, evitar dificuldades e conflitos desnecessários no processo de construção da mudança. Em 1999, a reforma curricular chegou ao terceiro ano da graduação e então deste 1998, acreditando que deveríamos nos empenhar para realmente renovar os cursos, antes ministrados como disciplinas, iniciamos os trabalhos com dois cursos especificamente: Semiologia Pediátrica e Saúde Coletiva III, mesmo entendendo que representariam esforços restritos. Neste período a vinda de um assessor técnico4, financiada pelos Projetos UNI do Brasil, trouxe à FMB um suporte fundamental à elaboração dos dois casos em estudo neste presente trabalho. Professores do 4 José.Venturelli é professor da Universidade de McMaster, Canadá, onde atua como pediatra, na área de terapia intensiva. Foi responsável pela difusão, nos últimos anos no Brasil, ao menos na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) e, também, na Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, de importantes conceituações para o desenvolvimento da aprendizagem baseada em problemas no ensino médico. Veio a Botucatu, em 1998 e 1999, ministrar um curso sobre novas metodologias em educação médica. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 46 Departamento de Pediatria e Saúde Pública puderam participar do curso formal ministrado por este assessor e também trabalhar sob sua orientação na elaboração dos novos cursos (Semiologia Pediátrica e Saúde Coletiva III). Deve se explicitar que outros cursos, matérias ou disciplinas também se renovavam neste mesmo período de estudo e uma disciplina5, com características inovadoras, foi criada na reforma curricular. Salienta-se que as coordenadoras dos cursos em estudo, Profa. Dra. Agueda B.P. Rizzato (Semiologia Pediátrica) e a pesquisadora deste estudo (Saúde Coletiva III) já vinham aplicando conhecimentos advindos da teoria construtivista, imprimindo assim, mesmo que de forma precária e parcial, conceitos e ações que buscavam a ruptura com o paradigma positivista e o compartilhar com outros saberes a construção do ensino e da prática médica. Da avaliação desse momento histórico e da necessidade da direção da instituição rever o currículo recém aprovado na FMB, docentes envolvidos nestes dois casos aqui estudados e docentes de outros Departamentos, que já vinham trabalhando na proposta da reformulação curricular têm, nos últimos três anos, investido na formulação e desenvolvimento de um Núcleo de Apoio Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina da FMB, visando rever questões fundamentais para o aprimoramento do ensino médico. Constituiu-se um grupo que tem buscado trabalhar em parceria com o Conselho de Curso da Medicina da FMB e com a participação efetiva da direção da instituição, que sinaliza para necessidade de revisão do currículo aprovado em 1996 frente a: Demandas internas da instituição e as Diretrizes Curriculares propostas pelo Ministério da Educação. Percebendo que havia muito a ser feito e ser pesquisado e talvez sem saber no início por onde começar, dado que tudo era importante, relevante e merecia ser pesquisado, optei por organizar este estudo em dois casos que 5 Introdução à Medicina, ministrada no 1º semestre do 1º ano de graduação médica, a partir de 1997, com carga horária de 4h/semana por 3 meses. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 47 estavam por se dar e acompanhar o processo de planejamento e execução dos mesmos, entendendo que com isso poderia trazer a tona dois casos distintos que buscaram avançar rumo à mudança e inovação em um contexto bastante complexo. A idéia era entrar no campo da Educação Médica, estudá-la em nossa instituição, valorizar o que já havia sido feito ao longo de tantos anos de esforço institucional, rumo à melhoria do ensino médico, poder mergulhar na realidade e trazer elementos para melhor compreendê-la. Novamente me sinto entrando em um terreno novo e novamente me proponho a realizar um estudo no qual sou sujeito e objeto do mesmo: pesquisar a prática do professor universitário e particularmente a minha própria prática docente. Esta possibilidade de pesquisa abriu-me um campo novo de investigação sobre o qual procurei aqui sistematizar. A potencialidade da pesquisa-ação está relacionada à possibilidade de produção de conhecimento sobre a inter-relação entre sujeitos e saberes envolvidos em uma prática social. Tentei assim, explicitar movimentos no ensino da Pediatria e da Saúde Pública que tem procurado uma orientação pedagógica inovadora no ensino médico, no caminho da Medicina Integral e da Medicina Comunitária. Neste processo foi possível perceber a ausência deste tipo de estudo e, principalmente, sentir que há um abismo entre o trabalho de pesquisa e o trabalho docente na graduação médica, que raramente se encontram ou convivem juntos. Foi um trabalho desenvolvido em conjunto, feito a muitas mãos, que tornou possível tantas descobertas. Apesar disso, aqui se revela o esforço solitário da pesquisadora em busca do registro de uma prática que não foi só minha, mas de um grupo que acreditou ser possível a construção de uma prática profissional em educação médica, orientada por uma proposta criativa e transformadora. Objetivamos, enquanto grupo, a construção de novos espaços de recriação de modelos, métodos e experiências. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 48 1.3 Objetivos do estudo Objetivo geral: • Contribuir para o processo de inovação na área do ensino médico e para o desenvolvimento da proposta de reforma curricular do curso de medicina da Faculdade de Medicina de Botucatu. Objetivos específicos: • Descrever os casos dos Cursos de Semiologia Pediátrica e de Saúde Coletiva ministrados ao terceiro ano médico nos anos de 2000 e 1999 respectivamente, como iniciativas de aplicação da aprendizagem por descoberta; • Analisar e interpretar os resultados destas iniciativas, enfatizando aspectos comuns e divergentes entre os casos. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 49 2 Transição de paradigmas na educação: Bases teóricas e metodológicas do estudo “...propor práticas que, desenvolvendo as contradições, podem levar ao encontro de formas de superação das mesmas contradições”. Lilia B. Schraiber, 1989 Schraiber (1989) apresenta rica discussão sobre as contradições da escola médica frente às propostas de reforma do ensino médico ocorridas no século XX destacando, os movimentos da Medicina Integral e da Medicina Comunitária, já apresentadas no capítulo introdutório. Ressalta que não é possível conceber as relações entre educação médica e prática médica “como relações de recíproca autonomia, e muito menos como relações em que as características da prática médica resultem dos padrões educacionais, mas, muito pelo contrário, sendo a dinâmica própria da prática médica que explica a dinâmica relativamente subordinada da educação médica” (1989:126). Nesse caminho, as duas referidas propostas de reforma de educação médica estariam fadadas ao insucesso. “O que não impede, evidentemente, que, na medida em que se possam conceber tais propostas de reforma como tentativas de respostas e contradições reais da prática e da educação médicas, possam ocorrer situações históricas nas quais as propostas de reforma educacional correspondam a rearranjos efetivos na prática médica e apesar de suas concepções ilusórias, alcancem objetivos paralelos aos que propõem” (1989:126). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 50 Assim, as reformas do ensino médico não podem ser vistas isoladamente ou deslocadas dos momentos em que se deram em sociedades concreta. Influenciados por estes dois modelos, a Medicina Integral e a Medicina Comunitária, acrescidos ou não de outras proposições, várias foram as escolas médicas no Brasil que se propuseram a reformar seu ensino, nos últimos quarenta anos. Contudo, estas reformas nem sempre se concretizaram embora seja possível ocorrer movimentos de mudança na educação médica, em que o grau de profundidade dos mesmos dependerão, para além do que foi colocado, das características das próprias propostas de intervenção, da “consistência teórico-metodológica, da solidez de sua base estrutural e da pertinência de suas estratégias” (Almeida, 1999). Almeida (1999), em estudo recente sobre as possibilidades de mudança da Educação Médica, apresenta que, baseado em estudo de Ferreira (1988), podem--se perceber diferentes propostas de mudança no campo da educação médica relativas a alterações nos processos, nas relações e nos conteúdos e que estas iniciativas poderiam sinteticamente ocorrer em planos diferentes de profundidade das mudanças: o plano da inovação, o plano da reforma e o plano da transformação. No plano da inovação estariam as mudanças da educação médica, “geralmente pontuais, localizadas, particulares e parciais, as inovações concentram-se nas atividades, nos meios e nas relações técnicas entre os agentes do ensino e o processo de ensino. Desenvolve-se em paralelo, respeitando o predomínio do tradicional, sem preocupação em aprofundar a análise dos fatores que determinam o modo dominante de formação” (Almeida, 1999:10). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 51 Para o autor, neste plano se enquadram intervenções que resultam em alterações isoladas de processos ou de conteúdos ou de relações. No segundo plano de mudança está o que o autor denominou de reforma, no qual “têm lugar as mudanças que buscam substituir dimensões mais abrangentes do processo de produção de médicos por outras que envolvem elementos essenciais do processo e algum grau de reintegração das bases conceituais da educação médica tradicional. Embora também introduzam alterações nas relações sociais entre os sujeitos e/ou atores envolvidos, incluindo entre eles os pacientes e a comunidade (...) Resultam em alterações combinadas, (...) caracterizando distintas reformas da educação médica” (1999:11). Como exemplo de reforma de ensino médico, recente, pode se citar o caso da Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA, que tem contemplado a interdisciplinaridade, a articulação entre ensino-serviços- comunidade, a ampla utilização de cenários de ensino extra-hospitalares e alteração dos conteúdos, processos e relações (Lima, 2000). A FAMEMA aboliu os departamentos, numa reorganização estrutural bastante diferente da anterior e reorganizou todo o currículo dos primeiros anos por módulos temáticos, com a participação de distintas disciplinas que se propuseram a integrar. Outro exemplo, também atual no ensino médico no Brasil, foi a reforma ocorrida na Universidade de Londrina, no Paraná. No terceiro ou plano estrutural, está a transformação do ensino médico, no qual “têm lugar as mudanças que buscam introduzir uma nova ordem no processo de produção de médicos e nas suas relações com a estrutura socioeconômica. Ou seja, engloba todo o contexto e a própria sociedade. Envolve a essência do próprio processo de Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 52 produção do conhecimento, a construção de novos paradigmas e os determinantes histórico-sociais” (1999:12). São exemplos de transformação da educação médica, a ocorrida na década de 50, na educação médica latino-americana que substituiu o modelo europeu de ensino pelo modelo flexineriano (norte-americano) ou a mudança do modelo parcialmente flexineriano implantado em Cuba, nos anos sessenta, pelo modelo da Medicina Social (Almeida, 1999). Para o estudo de um modelo de mudança na educação médica é necessário levar em conta o momento da instituição em estudo, seus limites e possibilidades. Para que ocorra uma proposta de intervenção rumo a uma mudança deve se ter claro que muitas vezes o possível, para aquele determinado momento, é atuar no plano das inovações, alterando-se conteúdos, processos ou relações podendo-se por meio das inovações impactuar “sobre as relações sociais e estas podem abrir o caminho para a produção de fatos e processos que alterem as estruturas” (Almeida, 1999:13). No presente caso em estudo, duas propostas de inovação em cursos singulares da graduação médica da FMB, a estratégia adotada consistiu “em percorrer uma cadeia de eventos, que começasse pela produção de fatos situados dentro do espaço das capacidades atuais dos sujeitos interessados e que têm como efeito sua ampliação” (Almeida, 1999:13). Vários autores vêm apontando a importância de se identificarem experiências inovadoras, que acontecem no limite de uma disciplina ou entre disciplinas de um mesmo ano e curso, “que vêm favorecendo rupturas com as formas tradicionais do ensinar e do aprender (...) e que possam contribuir para a melhoria do ensino e da aprendizagem nas universidades” (Cunha et al, 2001). Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 53 Nesta perspectiva a inovação é compreendida como uma possibilidade “de ruptura com o paradigma dominante, fazendo avançar em diferentes âmbitos, formas alternativas de trabalhos que quebrem com a estrutura tradicional” (Cunha et al, 2001:44). Assim, não é porque ocorreu uma agregação de novos elementos tecnológicos no ensino que se tenha uma inovação, “ao menos que estes representem novas formas de pensar o ensinar e o aprender, numa perspectiva emancipatória” (2001:44). Para se considerar uma experiência inovadora no ensino, pontuam-se algumas condições e características: “ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; gestão participativa, em que os sujeitos do processo inovador sejam protagônicos da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados; reconfiguração dos saberes (...); reorganização da relação teoria-prática, rompendo com a clássica proposição de que a teoria precede a prática, dicotomizando a perspectiva globalizadora; perspectiva orgânica no processo de concepção, desenvolvimento e avaliação da experiência desenvolvida” (Cunha et al, 2001:38). Contrapõe-se, assim, a uma visão de inovação como ente abstrato, colocando-se a inovação dentro de um contexto que é histórico e social, como entidade conflitual e contraditória. Muitas vezes na contra-mão do modelo dominante de ensino e mesmo de uma visão de inovação tecnicista e alienante, a inovação que procura explorar novas alternativas que se abrem ao conflito e contradições, pode ser relevante marco para a construção de novas possibilidades no ensino médico. Nesse sentido, é importante compreender que uma inovação pode tanto servir a perpetuação do modelo de ciência ou de educação hegemônico, como ser instrumento à sua negação. Assim, Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 54 “uma prática inovadora não o é por ter sido pensada do centro para a periferia, mas sim por ter sido trabalhada no contexto institucional das relações, que são relações de poder; uma prática inovadora não o é por introdução acrítica do novo no velho, e sim por guardar em si o germe da ruptura (Braga, Genro e Leite, 2002:32). Santomé (1994) citado por Braga apresenta interessante proposição sobre a possibilidade de inovação do ensino universitário a partir da idéia do trabalho interdisciplinar. O autor apresenta diferentes formas de integração disciplinar. A primeira possibilidade refere-se à integração de disciplinas que são desenvolvidas separadamente e que, em determinados momentos, é estabelecida “uma coordenação planejada, quando algumas partes de cada uma delas, para serem melhor compreendidas, necessitam de conteúdos típicos das outras” (1999:30). A segunda possibilidade é a integração por temas. Assim integram-se os conteúdos e atividades de diferentes disciplinas com temas que “atravessam” as disciplinas. A terceira refere-se à integração em torno de questões práticas, problemas do cotidiano “cuja compreensão e avaliação requerem conhecimentos, habilidades e procedimentos que não se localizam especificamente em uma disciplina e sim em várias”. São chamados problemas transversais e os conteúdos são trabalhados em cada momento em torno dos mesmos e não na forma disciplinar. “A quarta é a integração através de temas ou investigações propostas pelos alunos. A diferença dessa modalidade de integração em relação às anteriores é que são os próprios estudantes que decidem o tema ou problema que será utilizado como eixo para organizar os conteúdos das distintas áreas do conhecimento” (Braga, 1999:31). A inovação do ensino, assim pensada, permite um gradiente de possibilidades de ações interdisciplinares, que vão desde o trabalho dentro de uma única disciplina em que se percebe a importância do conhecimento de Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu 55 outras áreas. Assim, promovendo a ampliação de perspectivas e reduzindo suas fronteiras, passando pelo trabalho de integração de um grupo de disciplinas coordenadas até a formulação de um curso de graduação na sua plenitude. A inovação pode assim dar-se no espaço microinstitucional e ou no macroinstitucional. Em estudo recente sobre experiências inovadoras no ensino superior, Leite et al (1999), pesquisaram, em diferentes instituições e espaços do ensino superior, casos considerados de inovação. Ao apresentar as experiências de espaços acadêmicos mais restritos, como a mudança em sala de