Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Fundamentos de Geometria Hiperbólica Carlos Martinez Perez Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação – Mestrado Profissional em Mate- mática em Rede Nacional-PROFMAT como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre Orientadora Profa. Dra. Alice Kimie Miwa Libardi 2015 Perez, Carlos Martinez Fundamentos de geometria hiperbólica / Carlos Martinez Perez. - Rio Claro, 2015 76 f. : il., figs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Alice Kimie Miwa Libardi 1. Geometria não-euclidiana. 2. Geometria. 3. Ensino. I. Título. 516.9 P438f Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP TERMO DE APROVAÇÃO Carlos Martinez Perez Fundamentos de Geometria Hiperbólica Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Matemática Universitária do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, pela seguinte banca examina- dora: Profa. Dra. Alice Kimie Miwa Libardi Orientadora Prof. Dr. João Peres Vieira IGCE - UNESP/Rio Claro (SP) Prof. Dra. Denise de Mattos ICMC - USP/São Carlos (SP) Rio Claro, 25 de Agosto de 2015 Aos meus alunos, razão desse trabalho, que tanto me ensinam, dedico. Agradecimentos Agradeço a Deus pelo dom da vida e por criar um mundo repleto de arrebatadoras descobertas. Agradeço também: À minha esposa Adriana e às minhas filhas Ana Elisa, Geovanna e Joana, pelo incentivo e apoio, mesmo tendo se privado da minha companhia durante a realização deste trabalho. Aos meus pais Antonio (in memoriam) e Maria, por minha criação. Aos meus irmãos professores Cláudia, Célia e Celso, nos quais busquei me espelhar os tantos bons exemplos. À minha cunhada Beatriz e ao meu irmão Celso, um agrade- cimento especial tanto pela revisão deste trabalho quanto pelo inestimável incentivo. À minha querida orientadora Professora Dra. Alice Kimie Miwa Libardi, pela pa- ciância, incentivo e ternura. A todos os professores que marcaram minha vida. Em especial aos professores do programa Profmat, principalmente à querida Professora Suzi. Aos muitos amigos, colegas e parentes. Em especial, aos amigos Gilmar e Cleiton. O primeiro por comentários tão pertinentes e o outro, por vir de tão longe para assistir à defesa. A todo o pessoal da Unesp de Rio Claro. À Capes, pela bolsa de estudos e à Sociedade Brasileira de Matemática, por lutar pelo aperfeiçoamento do ensino desta ciência. The value of non-Euclidean geometry lies in its ability to liberate us from preconceived ideas in preparation for the time when exploration of physical laws might demand some geometry other than the Euclidean. Bernhard Riemann Resumo Nosso trabalho, a respeito dos fundamentos da Geometria Hiperbólica, apresenta o desenvolvimento histórico desta geometria a partir da polêmica em torno do quinto postulado de Euclides. Abordamos também a axiomática de Hilbert e alguns resultados da Geometria Neutra, antes de introduzir a Geometria Hiperbólica e suas infinitas pa- ralelas. Após a discussão a respeito de seus conceitos e teoremas básicos, é apresentado o Modelo do Semiplano Superior, forma de inserir a Teoria de Grupos e a Transfor- mação de Möbius, ferramentas algébricas facilitadoras para a introdução da métrica e da Trigonometria Hiperbólica. O objetivo deste trabalho é fornecer aos professores de Matemática e Física do Ensino Médio a oportunidade de um primeiro contato com a Geometria Hiperbólica. Palavras-chave: Geometria, Geometrias Não-Euclidianas, Geometria Hiperbólica, Ensino. Abstract Our work, about the foundations of Hyperbolic Geometry, presents the historical development of this geometry from the controversy around the fifth postulate of Euclid. It will also be treated the Hilbert axiomatic and some results of Neutral Geometry, before introducing the Hyperbolic Geometry and its infinite many parallels. After the discussion of its basic concepts and theorems, we present the Upper Half Plane Model, way to use the Group Theory and the Möbius Transformation, algebraic tools to facilitate the introduction of the metric and Hyperbolic Trigonometry. The objective of this work is to provide high school teachers of Mathematics and Physics the opportunity for a first contact with Hyperbolic Geometry. Keywords: Geometry, Non-Euclidian Geometries, Hyperbolic Geometry, Teaching. Lista de Figuras 2.1 Segmento PQ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2.2 Segmento AB prolongado com o segmento CD determinando o segmento AE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2.3 Círculo de centro O e raio OA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2.4 Ângulos retos ∠BAD e ∠CAD . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.5 Retas paralelas l e m . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.6 r e s se intersectarão em algum ponto à direita de t? . . . . . . . . . . . 24 2.7 Como consequência de S–2 a reta é infinita e sem vazios . . . . . . . . . 28 2.8 Teorema de Pasch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2.9 Teorema das barras cruzadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2.10 Axioma do transporte do segmento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 2.11 Axioma do transporte do ângulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 2.12 Comparação de segmentos e ângulos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 2.13 Reta m paralela à reta l por P . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 2.14 Definição de ângulos alternos internos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 2.15 Axioma de Dedekind . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 2.16 A perpendicular por um ponto em uma reta é única . . . . . . . . . . . 37 2.17 A perpendicular por um ponto fora de uma reta é única . . . . . . . . . 38 2.18 Teorema do ângulo externo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 2.19 Relação entre ângulos e lados no triângulo . . . . . . . . . . . . . . . . 40 2.20 O menor segmento entre um ponto e uma reta é o segmento perpendicular 41 2.21 Desigualdade triangular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 2.22 Soma das medidas dos ângulos internos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 2.23 Quadrilátero de Saccheri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 2.24 Dois triângulos com dois requisitos atendidos . . . . . . . . . . . . . . . 45 2.25 A soma das medidas de dois ângulos de um triângulo é sempre menor do que 180o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 2.26 Quadrilátero de Saccheri associado a um triângulo . . . . . . . . . . . . 47 2.27 Quadrilátero de Saccheri e a desigualdade base–topo . . . . . . . . . . 48 3.1 Hipérbole como um lugar geométrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 3.2 Hipérbole como secção cônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 3.3 Gráfico de y = 1/x . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 3.4 Hipérbole e assíntotas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 3.5 Duas paralelas à reta l . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 3.6 Primeiro Teorema da Geometria Hiperbólica – Triângulo retângulo . . 52 3.7 Primeiro Teorema da Geometria Hiperbólica – Triângulo genérico . . . 52 3.8 Infinitas paralelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3.9 Triângulos semelhantes são congruentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 3.10 O defeito tem propriedade aditiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 3.11 Pares de pontos equidistantes e perpendicular comum . . . . . . . . . . 55 3.12 A genialidade de Gauss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3.13 Superfície com curvatura negativa - Sela . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 3.14 Superfície com curvatura negativa - Pseudo-esfera . . . . . . . . . . . . 58 3.15 Triângulo esférico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 3.16 Par de paralelas à l passando por P no modelo H . . . . . . . . . . . . 63 3.17 Pares de paralelas assintóticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 3.18 Pares de paralelas divergentes com perpendicular comum . . . . . . . . 64 3.19 Estabelecendo uma métrica no modelo H . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 3.20 Um círculo hiperbólico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 3.21 Um triângulo hiperbólico com um ângulo reto . . . . . . . . . . . . . . 70 3.22 O mesmo triângulo após a aplicação de g . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 Sumário 1 Introdução 17 2 Uma Ciência Axiomática 19 2.1 De Euclides a Hilbert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 2.2 Os cinco postulados de Euclides . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2.3 O surgimento das Geometrias Não-Euclidianas . . . . . . . . . . . . . . 25 2.4 Os axiomas de Hilbert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 2.5 Geometria Neutra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3 Geometria Hiperbólica 49 3.1 Infinitas Paralelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 3.2 Um modelo para a Geometria Hiperbólica . . . . . . . . . . . . . . . . 62 3.3 Trigonometria Hiperbólica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 4 Considerações Finais 73 Referências 75 1 Introdução Quão reais são os objetos de estudo da Matemática? É uma pergunta de caráter filosófico, mas que não faz muito sentido para um Matemático, por considerar bastante real e palpável aquilo que estuda. Neste trabalho, procuraremos demonstrar que esta pergunta tem alguma relação com o tema tratado, Geometria Hiperbólica. Questionamentos sobre a razoabilidade aparecem com certa frequência na Matemá- tica. Muitas vezes, como no caso do estudo das Geometrias Não-Euclidianas, aconteceu de a Matemática antecipar-se estudando um objeto que, num primeiro momento, não parecia ter aplicação prática nem sentido epistemológico, dando margem a questiona- mentos dessa natureza. Assim, estudar uma Geometria Plana, que tem como cenário uma superfície com curvatura, contrariando a visão kantiana de o espaço físico ser eu- clidiano, pôde parecer um tanto insensato de início, mas revelou-se inspirador e real com o desenvolvimento da Física Moderna. O conhecimento da Geometria Hiperbólica por professores de Matemática ou de Física do Ensino Médio, para depois transmiti-lo aos seus alunos, mesmo que de forma superficial, precisa fazer parte da formação desses docentes, na perspectiva pessoal da atualização profissional quanto à riqueza da História da Ciência, nem que seja pela simples constatação da realidade objetiva da conformação do espaço, mas ainda para verificar que a ciência não é algo acabado, mas está em constante evolução, fruto do trabalho humano. Este trabalho de Geometria Hiperbólica será apresentado sob o ponto de vista do desenvolvimento histórico desta geometria. No capítulo 1, serão descritos os postula- dos de Euclides, a polêmica em torno do postulado das paralelas e a infrutífera busca de eminentes matemáticos a fim de prová-lo como um teorema, com o consequente surgimento de uma geometria neutra em relação a ele. Apresentar-se-á o surgimento da Geometria Hiperbólica, a partir da negação deste controverso postulado e a veri- ficação de que ele é a chave para a descrição do espaço físico, como foi estabelecido por Riemann, ao generalizar o estudo dos espaços n dimensionais, fornecendo a ferra- menta matemática da Geometria Diferencial que inspirou Albert Einstein e as Teorias da Relatividade. O capítulo 2, Geometria Hiperbólica, descreverá como as infinitas paralelas se apre- sentam nessa geometria, além da demonstração de algumas das consequências de sua 17 18 Introdução ocorrência. Serão também tratados os conceitos de curvatura e de área, tão importan- tes para diferenciar essa geometria da tradicional euclidiana. Para o desenvolvimento de resultados concretos nesse novo ambiente, será apresentado o Modelo do Semiplano Superior H e uma introdução à Teoria de Grupos, ferramenta algébrica que facilita o tratamento dos objetos geométricos e permite o estabelecimento da métrica hiper- bólica. O encerramento deste aprendizado elementar de Geometria Hiperbólica, para professores do Ensino Médio, procurará se estabelecer não só com um breve relato sobre Trigonometria Hiperbólica, mas também com a demonstração da versão do Teorema de Pitágoras nessa geometria. 2 Uma Ciência Axiomática 2.1 De Euclides a Hilbert Na antiguidade, egípcios, babilônicos, indianos e chineses utilizavam a matemática para resolver problemas práticos de um modo intuitivo e experimental. Para tanto, lançavam mão de receitas, de modo a enfatizar o “como” e não o “porquê” da solução ser efetiva. Os gregos, a partir de Tales de Mileto, no século VI a.C., começaram a tratar a geometria por meio de abstrações – pontos, retas, triângulos, círculos, planos, sólidos –, a partir da construção de proposições sujeitas a provas consistentes, calcadas no ra- ciocínio lógico dedutivo. Isto se deu provavelmente no berço da filosofia ocidental por influência dos debates dialéticos. A preocupação com tais provas era de encontrar o “porquê” de se poder generalizar determinada solução. Nesse contexto é natural se uti- lizar do Método Axiomático, voltado ao estabelecimento de axiomas ou postulados e, a partir destes, formularem-se proposições que devem seguir logicamente aos postulados. Em certos momentos, definições são necessárias. A obra Os elementos, de Euclides de Alexandria (cerca de 330-275 a.C.)[3], foi composta com cinco postulados e cinco noções comuns, numa organização de resultados novos ou já conhecidos, culminando num trabalho monumental. É natural que, para se estabelecer um sistema axiomático, as palavras e os símbo- los usados no discurso tenham de ter um significado único e universal e, além disso, alguns termos não definidos devam também ter uma aceitação geral. No livro I de Os elementos, Euclides, ao discorrer sobre Geometria Plana, refere-se aos entes indefinidos – pontos, retas e planos –, por meio das seguintes assertivas: 1. ponto é um lugar único no espaço, que não tem dimensão; 2. linha é um comprimento sem largura; 3. as extremidades de uma linha são dois pontos distintos; 4. uma linha reta é uma linha que jaz igualmente com os pontos dela mesma; 5. uma superfície é o que tem somente comprimento e largura; 19 20 Uma Ciência Axiomática 6. os extremos de uma superfície são linhas distintas; 7. uma superfície plana é uma superfície que jaz igualmente com suas linhas retas. A esses elementos – pontos, retas e planos –, Euclides aplica as seguintes noções do senso comum:[5] 1. dois entes iguais a um terceiro são também iguais entre si; 2. ao adicionarem-se partes iguais a entes iguais, os resultantes se equivalem; 3. o mesmo ocorre ao subtraírem-se partes iguais de entes iguais; 4. entes que coincidem entre si são iguais; 5. o todo é maior do que suas partes. A visão moderna desta Geometria, considerada matematicamente consistente após 20 séculos de evolução, tem na figura de David Hilbert (1862-1943) seu precursor mais notório. Sua estrutura geométrica de incidência estabelece a respeito dos indefinidos – pontos, retas e planos –, uma relação de pertinência, além das seguintes definições: 1. dois pontos definem uma reta e, se forem distintos, a reta é única; 2. se existe uma reta, então existem dois pontos distintos; 3. existe pelo menos um ponto que não pertence à reta definida por dois pontos distintos. Esses três pontos definem um plano único. O que está sendo descrito como espaço geométrico, de Euclides a Hilbert, é uma distribuição de pontos completamente homogênea em que funcionam noções comuns “de incidência”, “de estar entre” e “de congruência”, dando lugar a uma função distância. Estabelece-se, aí, um espaço métrico se a função distância se preserva, ou seja, se satisfeitas as três condições seguintes: 1. a distância entre dois pontos é a mesma, independente de qual ponto seja esco- lhido como partida; 2. a distância entre dois pontos é sempre maior ou igual a zero. Se a distância for zero, os dois pontos não são distintos; 3. a distância entre dois pontos distintos, adicionada à distância entre um deles e um terceiro, é sempre maior ou igual à distância entre o outro e o terceiro. A isso se denomina desigualdade triangular. Os cinco postulados de Euclides 21 Isto posto e escolhendo-se uma unidade de medida, pode-se estabelecer um sistema de coordenadas, o que permite a aplicação das ferramentas analíticas do cálculo para a descrição do espaço. A homogeneidade desse espaço fica evidente ao se observar que a noção de “estar entre”, envolvendo três pontos, só ocorre se os pontos forem colineares, ou seja, se ocorre a hipótese da igualdade na desigualdade triangular e vice-versa. A noção de congruência corrobora ainda com a preservação da função distância. Para descrever o desenvolvimento matemático neste trabalho, será usada a notação P ∈ ←→ AB para declarar que o ponto P pertence à reta ←→ AB, A ∗ B ∗ C ou C ∗ B ∗ A para declarar que o ponto B está entre os pontos A e C, AB ∼= CD para declarar que o segmento AB é congruente ao segmento CD, ∠APB ∼= ∠CQD para declarar que o ângulo de vértice P e semirretas −→ PA e −−→ PB é congruente ao ângulo de vértice Q e semirretas −→ QC e −−→ QD, 4ABC ∼= 4DEF para declarar que o triângulo ABC é congruente ao triângulo DEF, m∠A para referenciar a medida do ângulo ∠A e AB para referenciar a medida do segmento AB. 2.2 Os cinco postulados de Euclides Euclides estabeleceu a Geometria Plana sobre cinco postulados fundamentais, que são: Postulado I Para todo ponto P e para todo ponto Q, não idêntico a P, existe uma única reta que passa por P e Q. Isto significa que uma reta é determinada, de maneira única por dois pontos, sendo denotada por ←→ PQ. Os pontos P, Q – e todos os que ficam entre eles – determinam o segmento PQ. Figura 2.1: Segmento PQ Postulado II Para todo segmento AB e para todo segmento CD existe um único ponto E na reta ←→ AB tal que A ∗B ∗E ocorra e o segmento CD seja congruente ao segmento BE. Isto significa que se pode estender o segmento AB, determinando o ponto E, de modo a que o segmento BE seja congruente a um dado segmento CD. 22 Uma Ciência Axiomática Figura 2.2: Segmento AB prolongado com o segmento CD determinando o segmento AE Os postulados I e II podem ser referidos como os postulados da régua e envolvem noções “de incidência”, “de estar entre” e “de congruência”. Postulado III Para todo ponto O e para todo ponto A, não idêntico a O, existe um círculo de centro O e raio OA. Figura 2.3: Círculo de centro O e raio OA O postulado III pode ser referido como o postulado do compasso. Como a régua dos postulados I e II não tem marcação, a noção de congruência é garantida pelo compasso, mas além, está aí embutida a assunção da homogeneidade desse espaço que permite a noção de transporte de segmentos. Postulado IV Todos os ângulos retos são congruentes entre si. O postulado IV, apesar de ser óbvio e elementar, esconde uma particularidade, pois implica no espaço contínuo, sem vazios. Por exemplo, o contrário do que acontece Os cinco postulados de Euclides 23 Figura 2.4: Ângulos retos ∠BAD e ∠CAD com um toróide. No espaço que o toróide determina há ângulos retos que não podem ser sobrepostos. É o caso dos ângulos formados entre os meridianos do toróide e os seus círculos mais interno e mais externo. Esses ângulos são “encurvados” em direções opostas, não sendo congruentes [7]. Postulado V Para toda reta l e para todo ponto P, não pertencente a l, existe uma única reta m que passa por P e é paralela a l. Cabe ressaltar que retas paralelas são aqui entendidas como retas coplanares que não se intersectam. Figura 2.5: Retas paralelas l e m Aqui, o quinto postulado de Euclides está descrito como Diadochus Proclus (411- 485) o apresentou em seu trabalho de análise de Os elementos, no século V, comu- mente chamado de postulado de Playfair, pois foi assim enunciado num trabalho de John Playfair (1748-1819) sobre Geometria Euclidiana, em 1795. No original, Euclides estabeleceu o quinto postulado, declarando que se duas retas (r e s) são intersectadas por uma outra reta (t) transversal a elas, de modo que a soma dos ângulos internos 24 Uma Ciência Axiomática de um mesmo lado da transversal for menor do que dois ângulos retos, então as duas retas (r e s) se intersectam em algum ponto neste mesmo lado da transversal (t). Figura 2.6: r e s se intersectarão em algum ponto à direita de t? Além do uso de vários termos não definidos anteiormente, como menor, por exem- plo, e da aparente maior complexidade deste postulado em comparação aos quatro anteriores, a controvérsia gerada em torno dele, culminou nas inúmeras tentativas de diversos matemáticos de prová-lo como um teorema – usando para a prova, apenas os quatro primeiros postulados –. Isto se deve não só ao fato de os matemáticos acusarem Euclides de que, para simplificar suas provas, empregou um teorema não provado, mas também devido ao próprio Euclides ter retardado seu uso o quanto pôde, a fim de pro- var as proposições em Os Elementos, mesmo que isso tornasse tais provas mais simples. Euclides usou o quinto postulado pela primeira vez em sua vigésima nona proposição [7]. Levando em conta a impossibilidade de estender os segmentos indefinidamente para garantir que eles se intersectam em algum lugar – dado o fato de esta intersecção poder ocorrer muito, muito longe –, deve-se notar ainda que o quinto postulado, da maneira como foi declarado por Euclides, é muito mais um critério de não paralelismo e pode ser entendido meramente como instruções para a construção de triângulos [6]. Finalmente, cabe ressaltar a convergência do trabalho de Euclides com o conceito de área. Euclides procurou uma maneira de comparar áreas de figuras, reputando-as iguais caso possuíssem a mesma área. O Livro I culmina na prova do Teorema de Pitágoras, usando o conceito de área dessa forma. A área assume um papel central na matemática grega pela falta de uma simbologia algébrica que desse conta de tomar o quadrado de uma quantidade qualquer [7]. Talvez, se René Descartes (1596-1650) fosse contemporâneo de Proclus, a matemática teria se poupado de mil anos de atraso. O surgimento das Geometrias Não-Euclidianas 25 2.3 O surgimento das Geometrias Não-Euclidianas Nessas tentativas de demonstração do quinto postulado a partir das noções pri- mitivas e dos quatro primeiros postulados, as quais perduraram por mais de dois mil anos, matemáticos notáveis utilizaram-se de suposições que equivaliam logicamente ao quinto postulado, num raciocínio circular e vicioso, não alcançando sucesso na prova ou demonstração. Alguns outros, assumiam axiomas equivalentes ao quinto postulado, como Alexis–Claude Clairaut (1713-1765), que para tornar a geometria mais simples aos estudantes, estabeleceu um axioma declarando que retângulos existem. O que fal- tou a esses matemáticos foi avançar além de sua intuição para perceber que a geometria bidimensional de Euclides tem como cenário uma superfície sem curvatura, perfeita- mente plana em todas as direções. Nessa superfície euclidiana, de curvatura nula, o quinto postulado fica perfeitamente estabelecido como Euclides o propôs, ou ao seu equivalente Playfair, ou seja, por um ponto fora de uma reta passará somente uma paralela a essa reta. A noção de curvatura de uma superfície é uma propriedade tratada pela Geometria Diferencial, estudo da Geometria que usa os recursos do Cálculo. Esse novo ramo da Geometria foi iniciado por Carl Friedrich Gauss (1777-1855), o qual, ao negar a natureza absoluta da Geometria Euclidiana, estabeleceu em 1827, em seu Teorema Egrégio, que a curvatura é uma propriedade intrínseca da superfície [4]. Essa propriedade intrínseca – curvatura – será abordada de forma simplificada mais adiante, neste trabalho. No caso de a superfície em questão apresentar curvatura, a negação do quinto postu- lado torna-se um axioma que se junta aos quatro primeiros para estabelecer geometrias independentes e consistentes conhecidas como Geometrias Não-Euclidianas. Da inde- pendência do quinto postulado em relação ao outros quatro decorre a impossibilidade de prová-lo como um teorema, resultando na construção destas geometrias. Negar o quinto postulado de Euclides, estabelecendo que por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma paralela dá surgimento à Geometria Elíptica, da qual a Geometria Esférica é um caso particular. Se, por outro lado, for estabelecido que por tal ponto passam pelo menos duas paralelas, o que surge é a Geometria Hiperbólica, tema deste trabalho. A Geometria Elíptica Plana tem como cenário uma superfície com curvatura posi- tiva, o que implica em uma superfície finita, fechada em si mesma, como a superfície de uma esfera (no caso de a curvatura ser constante), ou de um elipsóide. Sobre essa superfície, a menor distância entre dois pontos é chamada de geodésica, que correspon- deria à reta na Geometria Euclidiana. Todas as diferentes geodésicas dessa superfície se cruzarão em dois pontos antipodais, sendo portanto impossível a ocorrência de para- lelas. O conceito de geodésica, não é exclusivo dessa geometria e será aplicado também na discussão da Geometria Hiperbólica. Por sua vez, a Geometria Hiperbólica Plana se desenvolve sobre uma superfície com curvatura negativa. Nesta superfície, por um ponto não pertencente a uma geodésica 26 Uma Ciência Axiomática passam pelo menos duas geodésicas que não intersectam a primeira e que são, portanto, paralelas a ela. O primeiro matemático a publicar sobre Geometria Hiperbólica, em 1829, foi Ni- kolai Ivanovich Lobachevsky (1792-1856) num artigo escrito em russo para a revista Mensageiro de Kazan, que não atraiu muita atenção e em que nomeava sua geometria de imaginária, dado seu caráter contrário ao senso comum. Apesar dos ataques que recebeu, continuou a publicar outros artigos em russo culminando com um tratado em alemão, em 1840. Apesar de ter sido eleito, em 1842, para a Sociedade Cientí- fica de Göttingen, por recomendação de Gauss que louvava veladamente seu trabalho, Lobachevsky não desfrutou em vida de um reconhecimento generalizado. Contemporâneo de Lobachevsky, János Bolyai (1802-1860) publicou, na Hungria, em 1832, um trabalho independente no qual desenvolveu o que chamou de Ciência Absoluta do Espaço. O artigo veio a público como anexo no livro de seu pai, Farkas Bolyai (1775-1856), referido como Tentamen. O pai orgulhoso, que já havia dedicado muito de seu tempo na tentativa de provar o quinto postulado, enviou um exemplar a Gauss, seu antigo colega de faculdade, com quem mantinha uma correspondência ativa. Mas, para desapontamento do pai e desespero do filho, Gauss, apesar de aprovar o artigo, respondeu que elogiar o trabalho de János seria elogiar a si mesmo, por já haver encontrado resultados semelhantes bem antes, sem ter publicado nada, segundo consta, a fim de não contrariar o estabelecido por Immanuel Kant (1724-1804) a respeito da natureza euclidiana do espaço físico [6]. Como provam as correspondências de Gauss, ele teria precedido seus concorrentes no estabelecimento desta nova geometria, porém para seu próprio deleite apenas. Embora não se possa afirmar peremptoriamente que haja alguma ligação entre os trabalhos de Lobachevsky e as descobertas de Gauss, cabe, no entanto, ressaltar a amizade deste e de seu antigo professor Johann Christian Martin Bartels (1769-1836), o qual veio a trabalhar na Universidade de Kazan. O mesmo se pode dizer da relação de amizade de Gauss e Farkas Bolyai, pai de János [8] [14]. Ao tomar o contexto da Geometria Diferencial estabelecida por Gauss, cujo foco eram as propriedades de regiões infinitamente pequenas de uma superfície, Georg Frie- drich Bernhard Riemann (1826-1866), em sua palestra denominada Sobre as Hipóteses que Servem de Fundamento à Geometria, como requisito para sua admissão como pro- fessor contratado na Faculdade de Filosofia de Göttingen, em 10 de junho de 1854, generalizou a teoria das superfícies curvas com qualquer número de dimensões e esta- beleceu as relações métricas desses espaços [11]. O trabalho de Riemann teve alguma influência na inspiração de Albert Einstein (1879-1955), fornecendo-lhe a abordagem matemática necessária para o desenvolvi- mento da Teoria Geral da Relatividade, de 1916 [8]. Quando, em 1905, Einstein esta- beleceu a Teoria da Relatividade Restrita, tornando indissociáveis espaço e tempo, era necessária uma ferramenta de cálculo que tratasse dessas quatro dimensões (três do Os axiomas de Hilbert 27 espaço e uma do tempo). A questão é mais profunda do que simplesmente a aplicação de uma métrica para o espaço físico, pois implica ainda na deformação do continuum espaço–tempo. A conclusão de ser essa deformação a causa da gravidade devido à presença de massa, demolindo a hegemonia newtoniana de um século e meio no pen- samento científico, trouxe consigo um maneira mais generalizada e precisa de explicar a realidade [8]. 2.4 Os axiomas de Hilbert Ao tomar-se os axiomas de Euclides com extremo rigor lógico e matemático, pode-se verificar que este negligenciou alguns pontos – como o estabelecimento de que: pontos e retas existem; nem todos os pontos são colineares; qualquer reta tem pelo menos dois pontos; e as retas e os círculos são contínuos, ou seja, não têm buracos ou vazios; além de basear algumas de suas provas apenas em diagramas (desenhos feitos com régua e compasso) – que embora exatos, poderiam não ser gerais. Todas as falhas acima apontadas só foram matematicamente corrigidas depois do aparecimento tanto das Geometrias Não-Euclidianas quanto da Teoria dos Conjuntos de Georg Cantor (1845-1918), por Moritz Pasch (1843-1930), chamado de pai do rigor na Geometria, e por David Hilbert (1862-1943). Este, em seu trabalho Fundamentos de Geometria, de 1899, estabeleceu um conjunto de axiomas, que, com algumas modificações, são descritos a seguir [6]. Axiomas de incidência I–1: Dados dois pontos distintos, existe uma única reta passando por esses pontos. Este axioma é exatamente o mesmo que o primeiro axioma de Euclides. I–2: Qualquer reta possui pelo menos dois pontos. I–3: Existem pelo menos três pontos distintos e não colineares, ou seja, que não pertencem à mesma reta. Este axioma garante que, além da existência de no mínimo três pontos, dada uma reta, um deles não pertence a ela. Axiomas de separação S–1: Se A ∗ B ∗ C ocorre, então A, B e C são três pontos distintos e colineares e C ∗B ∗ A também ocorre. S–2: Dados dois pontos distintos B e D, existem pontos A, C e E pertencentes a ←→ BD de modo que A ∗B ∗D, B ∗ C ∗D e B ∗D ∗ E ocorrem. Veja a figura 2.7. 28 Uma Ciência Axiomática Figura 2.7: Como consequência de S–2 a reta é infinita e sem vazios S–3: Dados 3 pontos distintos e colineares, apenas um deles está entre os outros dois. Este axioma tem algumas consequências importantes. A primeira delas é que as retas não são fechadas em si mesmas, como os círculos. Assim, ao se assumir este axioma, fica eliminada a possibilidade de a Geometria Euclidiana acontecer em uma superfície com curvatura positiva. O cenário é uma superfície plana e infinita. Como ressaltou Riemann, se a curvatura do espaço do Universo for positiva, então ele é limitado. Além disso, se C ∗ A ∗ B ocorre, dado o que declara os axiomas S–2 e S–3, toda semirreta −→ AB tem uma semirreta oposta −→ AC. Desse modo, uma propriedade interessante, estabelecida por alguns autores como um axioma, é a separação da reta, que estabelece: dados C ∗ A ∗ B em l (hipótese), qualquer ponto P, pertencente a l, estará ou na semirreta −→ AB ou na semirreta −→ AC. A prova desta propriedade: Demonstração. 1. P pertence a −→ AB, ou não. Portanto, temos de provar que se P não pertence a −→ AB, então deve pertencer a −→ AC. Não resta outra possibilidade para a posição de P. 2. Nesse caso, de P não pertencer a −→ AB, temos que P ∗ A ∗ B ocorre pelo axioma S–3. 3. Considerando-se que P e C são pontos distintos, novamente pelo axioma S–3, temos uma de três possibilidades para a posição relativa entre P, A e C. Ou C ∗ A ∗ P ocorre, ou C ∗ P ∗ A ocorre, ou P ∗ C ∗ A ocorre. A primeira das possibilidades é um raciocínio absurdo, já que se C∗A∗P ocorresse, P pertenceria à semirreta −→ AB, contrário ao que foi estabelecido em 2. Supõe-se, então, que C ∗ A ∗ P ocorre, para verificar se alguma contradição é encontrada. 4. Mais uma vez pelo axioma S–3, temos uma de três possibilidades para a posição relativa entre P, B e C. Ou C ∗B ∗ P ocorre, ou C ∗ P ∗B ocorre, ou P ∗ C ∗B ocorre. 5. A possibilidade C ∗ B ∗ P deve ser descartada, pois combinada com P ∗ A ∗ B, como declarado no passo 2, dá como resultado que A∗B∗C ocorre, contradizendo a hipótese (C ∗ A ∗B). Os axiomas de Hilbert 29 6. A possibilidade C ∗ P ∗ B deve ser descartada, pois combinada com C ∗ A ∗ P , como declarado no passo 3, dá como resultado que A∗P ∗B ocorre, contradizendo o passo 2 (P ∗ A ∗B). 7. A possibilidade P ∗C∗B deve ser descartada, pois combinada com C∗A∗B, como declarado na hipótese, dá como resultado que A ∗ C ∗ P ocorre, contradizendo o passo 3 (C ∗ A ∗ P ). 8. Como foi obtida uma contradição nas três possibilidades, C ∗ A ∗ P não ocorre. 9. Assim, do passo 3, só sobram as possibilidades C∗P ∗A ou P ∗C∗A, concluindo-se que P pertence à semirreta oposta −→ AC. S–4: Para toda reta l e para quaisquer três pontos A, B e C, não pertencentes a l, tem-se: a) se A e B estão do mesmo lado de l e B e C estão do mesmo lado de l, então A e C estão do mesmo lado de l; b) se A e B estão em lados opostos de l e B e C estão em lados opostos de l, então A e C estão do mesmo lado de l. Este axioma é conhecido como o da separação do plano e garante que essa Geo- metria é bidimensional. Além disso, faz com que o quinto postulado tenha sentido da maneira como Euclides o descreveu, pelo fato de nele se mencionarem duas retas que se encontram em um dos lados de uma transversal. A reta define, então, dois semi- planos distintos e que não têm nenhum ponto em comum. Pode-se definir, ainda, uma região, chamada de interior de um ângulo, como sendo a intersecção de dois dos quatro semiplanos, definidos por duas retas concorrentes. Assim, o interior de um triângulo pode ser definido como a intersecção de seus três ângulos. A propriedade seguinte foi usada por Euclides sem uma prova formal. Teorema de Pasch: Se A, B e C são pontos distintos e não colineares e l é uma reta qualquer que intersecta AB em um ponto entre A e B, então, l também intersecta AC ou BC. Se C pertence a l, então, l intersecta ambos AC e BC. Demonstração. Para provar esse teorema, deve-se observar que A e B pertencem, por definição, a lados opostos de l. Se C pertence a l, não há nada a provar, Se C não pertence a l, então, C está em um dos lados de l. Se C está do mesmo lado que A, então, l intersecta BC e não intersecta AC. Se C está do mesmo lado que B, então, l intersecta AC e não intersecta BC. Veja a figura 2.8. 30 Uma Ciência Axiomática Figura 2.8: Teorema de Pasch Outro importante teorema é o das Barras Cruzadas. Teorema das Barras Cruzadas: Se a semirreta −−→ AD está entre as semirretas −→ AB e −→ AC, então, a semirreta −−→ AD intersecta o segmento BC. Veja a figura 2.9. Figura 2.9: Teorema das barras cruzadas Demonstração. Para se provar este resultado, deve-se verificar que, pela hipótese, D está no interior do ângulo ∠CAB. Seja E um ponto de modo que E ∗ A ∗ C ocorra. Como ←→ AD intersecta o segmento EC no ponto A, entre C e E, estes pontos (C e E) estão em lados opostos da reta ←→ AD. O ponto B está no interior do ângulo ∠DAE, então, B e E estão do mesmo lado de ←→ AD e B e C, em lados opostos. Seja G um ponto entre B e C, que pertença a ←→ AD. G está no interior do ângulo ∠CAB. Então, G pertence à semirreta −−→ AD ou à semirreta oposta a ela. Supondo, por absurdo, que G pertença à semirreta ←−− AD, então, G não está no interior do ângulo ∠CAB, contradizendo o que foi colocado antes. Portanto, G pertence à semirreta −−→ AD. Axiomas de congruência C–1: Sejam A e B pontos distintos. Seja A’ um outro ponto qualquer. Então, para cada semirreta r que parta de A’, existe um único ponto B’, sendo B′ 6= A′ e Os axiomas de Hilbert 31 AB ∼= A′B′. A figura 2.10 mostra essa situação. Esse axioma garante que a métrica no plano euclidiano é a mesma em qualquer lugar, ou seja, podem-se transportar os segmentos em qualquer direção, sem que haja deformação. Figura 2.10: Axioma do transporte do segmento C–2: Qualquer segmento é congruente a si mesmo e se AB ∼= CD e AB ∼= EF , então, CD ∼= EF . C–3: SeA∗B∗C eA′∗B′∗C ′ ocorrem, AB ∼= A′B′ eBC ∼= B′C ′, então, AC ∼= A′C ′. C–4: Seja um ângulo ∠BAC qualquer. Seja uma semirreta −−→ A′B′ qualquer, par- tindo de um ponto qualquer, A’. Então, existe uma única semirreta −−→ A′C ′, em um dos lados da reta ←−→ A′B′, de modo a que ∠B′A′C ′ ∼= ∠BAC. Este axioma garante que os ângulos também possam, como em C–1 para segmentos, ser transportados sem sofrer deformação. A figura 2.11 mostra essa situação. C–5: Todo ângulo é congruente a si mesmo e se ∠A ∼= ∠B e ∠A ∼= ∠C, então, ∠B ∼= ∠C. Este axioma para os ângulos é o correspondente ao axioma C–2, para os segmentos. É interessante perceber as ideias por trás dos axiomas. Até aqui, em relação a segmentos e ângulos, estão colocadas noções de reflexividade, transitividade e simetria que permitirão construir uma forma de descrever consistentemente esse espaço, foco da Geometria Euclidiana, o plano com curvatura nula. O natural, ou óbvio, agora, seria introduzir um axioma para os ângulos que corres- pondesse ao axioma C–3, para os segmentos. Seria um axioma que envolvesse a soma de ângulos. Este axioma, no entanto, não será necessário, posto que pode ser provado usando o próximo axioma. 32 Uma Ciência Axiomática Figura 2.11: Axioma do transporte do ângulo C–6 - Primeiro caso de congruência de triângulos (LAL): Em um triângulo, se dois lados e o ângulo incluso entre esses lados, forem congruentes a dois lados e ao ângulo incluso entre esses lados de outro triângulo, respectivamente, então, esses dois triângulos são congruentes. Este axioma faz a junção dos axiomas de congruência de segmentos e ângulos. Por definição, dois triângulos são congruentes quando existe uma relação de congruência entre os ângulos e os segmentos correspondentes. Isto implica em uma correspondência entre as posições relativas dos vértices dos dois triângulos. Então, num modo simplista de descrever, um triângulo poderá deslizar no plano para encontrar seu parceiro de congruência, mas não poderá saltar para fora dele a fim de ser virado e atingir o mesmo objetivo, a menos que o triângulo em questão seja isósceles, como será visto adiante. Essa ideia simples de superposição foi tomada por Euclides para provar o primeiro caso de congruência de triângulos ao invés de tomar esse caso como axioma. Não se trata de uma ideia imprecisa, pelo contrário, mas o outro caminho tem uma peculiar distinção em termos de lógica e de elegância [6]. Com esse conjunto de axiomas estabelecido, é possível provar a próxima proposição, a respeito de triângulos isósceles. Proposição: Se em um 4ABC, AB ∼= AC, então, ∠B ∼= ∠C. Demonstração. A prova dessa proposição se faz ao se comparar dois triângulos em que os vértices assim se correspondam: A com A, B com C e C com B. Sob essa correspon- dência, dois lados e o ângulo formado por eles no triângulo 4ABC são congruentes a Os axiomas de Hilbert 33 dois lados e ao ângulo formado por eles no triângulo 4ACB, por construção e pelo axioma C–5. Assim, 4ABC ∼= 4ACB, pelo caso LAL, o que implica na congruência dos ângulos ∠B e ∠C. A definição seguinte permite se comparar segmentos e ângulos. Definição: Referindo-se à figura 2.12, se A ∗C ∗B ocorre, considera-se que AB > AC. Considera-se, ainda, que, se a semirreta −→ OR está no interior de ∠POQ, ∠POQ > ∠POR. Figura 2.12: Comparação de segmentos e ângulos Definição: Um ângulo será chamado agudo se for menor do que um reto e obtuso, caso seja maior. Axiomas de continuidade Logo na primeira proposição em Os elementos, para construir um triângulo equilá- tero, Euclides toma, sem prova subjacente, o ponto de intersecção entre dois círculos. Sem poder fundamentar suas conclusões em diagramas e desenhos, uma ciência axio- mática não pode prescindir de um embasamento lógico que lhe dê consistência. Para dirimir essa dúvida, e outras de mesmo caráter, Hilbert propôs a assunção de três pro- priedades. PC–1 Propriedade de continuidade círculo–círculo: Se um círculo tem um ponto dentro e um ponto fora de outro círculo, então, os dois círculos se intersectam em dois pontos. PC–2 Propriedade de continuidade reta–círculo: Se uma reta passa por um ponto dentro de um círculo, então, a reta intersecta o círculo em dois pontos. 34 Uma Ciência Axiomática PC–3 Propriedade de continuidade segmento–círculo: Se uma extremidade de um segmento está dentro de um círculo e a outra extremidade está fora dele, então, o segmento intersecta o círculo em um ponto. Axioma de paralelismo Com os axiomas estabelecidos até aqui é possível desenvolver-se uma geometria, chamada Geometria Neutra, que não assume o quinto postulado de Euclides ou o pos- tulado das paralelas de Hilbert. Os resultados dessa geometria são válidos tanto na Geometria Euclidiana como na Geometria Hiperbólica, mas não são válidos na Geo- metria Elíptica, devido ao fato de, nesta geometria os axiomas de separação não serem válidos. Para completar a axiomática da Geometria Euclidiana, temos o último axioma de Hilbert, a seguir. Axioma euclidiano das paralelas de Hilbert: Para toda reta l e para todo ponto P, não pertencente a l, existe uma única reta m que passa por P e é paralela a l. Veja a figura 2.13. Figura 2.13: Reta m paralela à reta l por P Para que se tenha uma exata dimensão da importância e independência do quinto postulado de Euclides, das paralelas, ou o seu equivalente acima descrito, verificando-se quais resultados seriam passíveis de prova sem ele, devem-se tomar algumas proposições da Geometria Neutra, em que não há o axioma das paralelas. É o que será feito a seguir. 2.5 Geometria Neutra O objetivo do estudo da Geometria Neutra, num trabalho de Geometria Hiperbólica, é verificar qual é o papel do postulado das paralelas para se entender sua independência em relação aos outros postulados. Antes de aprofundar este tema, duas definições se fazem necessárias. Geometria Neutra 35 Definição: Dadas duas retas l e l’ cortadas por uma reta transversal t, como na figura 2.14, chamam-se ângulos internos aos ângulos ∠A′B′B, ∠ABB′, ∠C ′B′B e ∠CBB′. Os ângulos (∠ABB′ e ∠C ′B′B) e (∠A′B′B e ∠CBB′) são chamados de ângulos alternos internos. Figura 2.14: Definição de ângulos alternos internos Definição: Duas retas, distintas e coplanares, são ditas paralelas se não se inter- sectam. Tendo em vista a peculiaridade das retas paralelas na Geometria Hiperbólica – pe- culiaridade a ser tratada mais adiante –, devemos ressaltar o fato de esta ser uma das definições mais importantes deste trabalho. Os objetos principais de estudo da Mate- mática são os números e o espaço. Antes de aprofundar o tema a respeito da Geometria Neutra, cabe estabelecer as bases que permitirão tratar medidas de segmentos e ângu- los, ou seja, entrelaçar os dois objetos de estudo da Matemática de modo a facilitá-lo, apesar de não ter sido esta a abordagem de Euclides, ao escrever Os elementos. As dificuldades dos gregos em lidar com segmentos incomensuráveis, ou seja, com os núme- ros reais, e a sua álgebra puramente geométrica, além da posterior falta de apreço dos romanos pela Matemática, impediram o desenvolvimento deste campo, e das ciências, com maior rapidez. Isso, sem mencionar a monopolização do conhecimento pela igreja, na Europa, na Idade das Trevas [4]. Axioma de Dedekind: Julius Wilhelm Richard Dedekind (1831-1916) estabele- ceu, em 1871, o que pode ser considerado como a recíproca do axioma de separação S–3. O conjunto de todos os pontos de uma dada reta l é uma união disjunta Σ1 ∪Σ2, de dois conjuntos não vazios, de modo que nenhum ponto de um subconjunto está entre pontos do outro subconjunto. Então, existe um único ponto O de l, tal que um 36 Uma Ciência Axiomática dos dois subconjuntos é uma semirreta a qual tem como ponto inicial o ponto O e o outro subconjunto é a semirreta oposta. Isto garante que a reta l não tem buracos. Tomando-se ainda, um segmento qualquer como unidade de medida, existem pontos únicos P e Q, com P ∗O ∗Q, que distam aquela unidade de medida de O. Veja a figura 2.15. Figura 2.15: Axioma de Dedekind O axioma de Dedekind permite estabelecer uma correspondência biunívoca entre os pontos de uma reta e os números reais. Assim, a cada ponto corresponde exatamente um número real, que se pode chamar de coordenada do ponto, e vice-versa. A distância entre dois pontos quaisquer será o valor absoluto da diferença entre os números corres- pondentes. Da mesma forma, podemos fazer corresponder a cada ângulo, um número real entre 0 e 180, ou seja, dada um reta l definindo dois semiplanos, para cada número real entre 0 e 180, há exatamente uma semirreta em cada semiplano, a qual define um ângulo com tal medida. Isto posto, e com as definições prévias estabelecidas, pode-se proceder ao Teorema dos Ângulos Alternos Internos. Teorema dos Ângulos Alternos Internos: Se duas retas, cortadas por uma transversal, formarem um par de ângulos alternos internos congruentes com relação a esta transversal, então, as duas retas são paralelas. Demonstração. Para provar este teorema, novamente com referência à figura 2.14, toma-se como hipótese que as retas l e l’ se intersectam em um dos lados da transversal (essa intersecção ocorreria no ponto D), o que é um absurdo, pois são paralelas. Como o axioma S–4 garante que a reta t define dois lados disjuntos, utilizando o axioma C–1, encontra-se o ponto E na reta ←−→ B′C ′, no lado oposto a D em relação a t, de modo que B′D ∼= B′E. Isto equivale a construir o triângulo 4B′BE, reflexão do triângulo 4B′BD em relação a t, obtendo um outro ponto de intersecção (E), violando o axi- oma I–1. Nesse caso, B′E ∼= BD e, como o segmento BB′ é congruente a si mesmo, 4B′BD ∼= 4BB′E, pelo caso LAL, já que, por hipótese, ∠EB′B ∼= ∠DBB′. Então, ∠DB′B ∼= ∠EBB′. Mas, como ∠DB′B é o suplementar de ∠EB′B, ∠EBB′ deve Geometria Neutra 37 ser suplementar de ∠DBB′, pois ângulos congruentes têm suplementares congruentes. Então, o ponto E pertence a l, o que leva l e l’ a ter dois pontos de intersecção (D e E) – um absurdo. Assim, l e l’ são paralelas. Isso significa que duas retas perpendiculares a uma mesma reta são paralelas, pois formam ângulos alternos internos congruentes com ela. Outra consequência importante é que existe uma única perpendicular (r) a uma reta qualquer (l) passando por um ponto qualquer (P). A demonstração deste corolário deve ser dividida em duas partes. Demonstração. Primeira, considera-se o ponto P pertencente à reta l. O axioma C–4, garante que a perpendicular existe. Para provar ser única a perpendicular por P, supõe- se que existam duas perpendiculares (r e r’) a l por P. Veja a figura 2.16. Assim, r e r’ formam um ângulo α entre si. Mas r e r’, por definição, formam ângulos retos com l. Então, como os ângulos que r e r’ formam com l são retos e suplementares, não sobra espaço para o ângulo α; portanto, r e r’ coincidem. Figura 2.16: A perpendicular por um ponto em uma reta é única Agora, considera-se o ponto P como não pertencente à reta l. Veja a figura 2.17. Para provar a existência da perpendicular a l por P, sejam dois pontos distintos em l, A e C. Se PA é perpendicular a l, está provada sua existência. Por outro lado, se PA não é perpendicular, no semiplano oposto ao que contém o ponto P, através do axioma C–4, define-se a semirreta −−→ AD, com ∠PAC ∼= ∠CAD. Através do axioma C–1, define-se o ponto P’ na semirreta −−→ AD, com AP ∼= AP ′. Os triângulos 4PAB e 4P ′AB são congruentes (LAL). O ponto B é a intersecção de PP ′ com l e é chamado de pé da perpendicular a l por P. Como os ângulos ∠PBA e ∠P ′BA são congruentes e suplementares, conclui-se que PP ′ é perpendicular a l. Para provar que PP ′ é a única perpendicular a l passando por P, supõe-se que existam duas retas perpendiculares a l, passando por P. O teorema dos ângulos alternos internos garante que essas perpen- diculares coincidem, pois os ângulos alternos internos são retos e ambas passam por P. 38 Uma Ciência Axiomática Figura 2.17: A perpendicular por um ponto fora de uma reta é única Ainda mais importante, se l é uma reta qualquer e P qualquer ponto não perten- cente a l, existe pelo menos uma reta paralela a l passando por P. Para se demonstrar este resultado, basta verificar que, como demonstrado acima, só há uma perpendicular a l passando por P, a qual pode ser chamada t (transversal). Novamente, só há uma perpendicular a t passando por P, e esta pode ser chamada m. Então, l e m são pa- ralelas. Não é possível, como será visto adiante, provar que esta reta m, paralela a l, é única. Isso seria equivalente a provar o postulado Playfair ou o quinto postulado de Euclides. Por isso foi declarado que existe pelo menos uma paralela e não exatamente uma. Com a ressalva de ser colocado a posteriori, é um resultado que deixa antever o desenvolvimento de outra geometria diferente da euclidiana. Definição: O ângulo suplementar de um ângulo qualquer de um triângulo é cha- mado de ângulo externo a este triângulo. Os dois outros ângulos do triângulo, que não aquele do qual foi tomado o suplementar, são chamados de ângulos internos não adjacentes a este ângulo externo. Todo triângulo possui seis ângulos externos, sendo três pares de ângulos congruentes. Teorema do Ângulo Externo: Um ângulo externo de um triângulo é sempre maior do que qualquer um dos ângulos internos não adjacentes a ele. A figura 2.18 apresenta a situação e será referida na demonstração do teorema. Demonstração. Para provar que ∠ACD é maior que ∠A e que ∠B, toma-se um deles Geometria Neutra 39 Figura 2.18: Teorema do ângulo externo por vez. Considera-se, então, que ∠BAC ∼= ∠ACD. Se isso for verdadeiro, pelo teorema dos ângulos alternos internos, ←→ AB é paralela a ←→ CD, contradizendo a hipótese que essas retas se cruzam em B. Supõe-se, então, por redução ao absurdo, que ∠BAC > ∠ACD. Então, existe uma semirreta −→ AE, entre −→ AB e −→ AC, de modo a que ∠CAE ∼= ∠ACD. Esta semirreta intersecta BC no ponto G, pelo teorema das barras cruzadas. Mas, ainda de acordo com o teorema dos ângulos alternos internos, −→ AE e −−→ CD são paralelas, contradizendo a hipótese de essas retas se cruzarem em G. Portanto, ∠BAC não é congruente e nem maior do que ∠ACD, só restando ser menor. Para o ângulo ∠ABC o raciocínio é idêntico, mas deve-se tomar o ângulo externo ∠BCF , que é congruente a ∠ACD, pois são opostos pelo vértice. Uma consequência desse teorema é que se um triângulo tem um ângulo reto ou obtuso, os outros dois ângulos devem necessariamente ser agudos. Proposição: Em um triângulo 4ABC, o maior lado fica oposto ao maior ângulo e vice-versa, ou seja, AB > AC ⇔ ∠ACB > ∠ABC. Veja a figura 2.19. Se AB > AC, então, ∠ACB > ∠ABC. Demonstração. Para provar que ∠ACB > ∠ABC, toma-se um ponto D em AB de modo que AD ∼= AC, já que por hipótese, AB > AC. Como ∠ADC é externo ao 4BCD, ∠ADC > ∠ABC, um ângulo interno não adjacente ao ∠ADC. O 4ADC é isósceles por definição, então, ∠ACD ∼= ∠ADC. Portanto, ∠ACD > ∠ABC e mais ainda, ∠ACB > ∠ABC, como se desejava demonstrar. Reciprocamente, se ∠ACB > ∠ABC , então, AB > AC. Para provar que AB > AC, nega-se que AB seja maior do que AC. Nesse caso, AB só pode ser igual ou menor do que AC. Se AB < AC, então, pelo que foi provado anteriormente, ∠ACB < ∠ABC, contradizendo a hipótese. Se AB ∼= AC, então, o 40 Uma Ciência Axiomática Figura 2.19: Relação entre ângulos e lados no triângulo 4ABC é isósceles e ∠ACB ∼= ∠ABC, novamente contradizendo a hipótese. Portanto, só resta a possibilidade de AB > AC. Proposição: O menor segmento unindo uma reta a um ponto fora dela é o seg- mento perpendicular. Demonstração. Para provar esta proposição, referindo-se à figura 2.20, tome um ponto P, não pertencente a uma reta l. Seja r a perpendicular a l passando por P e Q, o pé desta perpendicular. Seja R um ponto qualquer de l, distinto de Q. Seja S um ponto em l de modo que S ∗Q ∗R ocorra. O ∠PQS é reto, já que r é perpendicular a l. Pelo teorema do ângulo externo, este ângulo (∠PQS) é maior do que ∠PRQ, e portanto, baseado na proposição anterior, PQ < PR. As duas proposições anteriores serão importantes mais adiante, ao tratar-se dos quadriláteros de Saccheri. Proposição – Desigualdade triangular: Se AB, BC e AC são os comprimentos dos lados AB, BC e AC de um 4ABC qualquer, então, AC < AB + BC. Veja a figura 2.21. Demonstração. Para provar essa proposição, deve-se lançar mão do axioma C–1, fa- zendo com que o segmento BC seja replicado sobre a semirreta −→ AB, a partir de B, definindo o ponto D. Forma-se, então, um 4BCD, isósceles, e portanto, com Geometria Neutra 41 Figura 2.20: O menor segmento entre um ponto e uma reta é o segmento perpendicular Figura 2.21: Desigualdade triangular ∠BCD ∼= ∠BDC. Temos que AD = AB + BD e BD ∼= BC, por construção. Subs- tituindo, temos AD = AB + BC. A semirreta −−→ CB está entre as semirretas −→ CA e −−→ CD, pois ∠ACD > ∠BCD, por construção. Então, ∠ACD > ∠ADC, pois este último é congruente a ∠BCD. Portanto, AD > AC, pela proposição anterior. Mas como AD = AB + BD, conclui-se que AB + BC > AC. Como já foi mencionado, todos os resultados da Geometria Neutra, mostrados até aqui, são válidos tanto na Geometria Euclidiana quanto na Geometria Hiperbólica. No entanto, para a Geometria Elíptica, esse conjunto de axiomas não convém, já que o axioma S–3 não vale, nem os teoremas dos ângulos alternos internos, pela inexistência de paralelas, e do ângulo externo, pois um triângulo pode ter dois ângulos retos nesta geometria. Propõe-se agora assumir o axioma das paralelas de Hilbert para provar um resultado importante o qual mostra uma diferença entre as Geometrias Euclidiana e Hiperbólica. Esse resultado refere-se à soma dos ângulos internos de um triângulo. Proposição – Soma das medidas dos ângulos de um triângulo: A soma das medidas dos ângulos de qualquer triângulo é 180o, desde que seja assumido o axioma 42 Uma Ciência Axiomática euclidiano das paralelas de Hilbert. A figura 2.22 auxilia na prova desta proposição. Figura 2.22: Soma das medidas dos ângulos internos Demonstração. Assim, seja um triângulo 4ABC qualquer. Toma-se a paralela à reta ←→ AC que passa por B. Os ângulos alternos internos com respeito às transversais ←→ AB e ←→ BC são congruentes, como assegura o Teorema dos Ângulos Alternos Internos. Os ângulos formados no vértice B somam 180o e são exatamente os ângulos do triângulo. Um corolário importante desta proposição é o fato de – lembrando que, agora, se está assumindo o axioma euclidiano das paralelas de Hilbert – a medida de um ângulo externo de um triângulo ser igual à soma das medidas de seus dois ângulos internos não adjacentes. Como a soma dos três ângulos internos é 180o e a soma de um externo com seu adjacente externo também é 180o, basta cancelar a medida deste ângulo adjacente externo nos dois lados desta igualdade para obter o resultado. Quadriláteros de Saccheri Giovanni Girolamo Saccheri (1667-1733) foi um padre jesuíta e matemático itali- ano que dedicou boa parte de seu tempo em análises críticas da Geometria Euclidi- ana, principalmente do axioma das paralelas, numa abordagem cujo objetivo era obter consequências contraditórias da negação desse axioma. Ao não conseguir obter tais contradições, já que estava no caminho certo e suficientemente perto de desenvolver as Geometrias Não-Euclidianas, fez pressuposições injustificadas alegando que a hipótese do ângulo agudo, descrita a seguir, era absolutamente falsa devido a ser repugnante à natureza das linhas retas. Publicou, pouco antes de sua morte, a obra Euclides ab Omni Naevo Vindicatus (Euclides liberto de todas as falhas). Cabe reparar na ironia deste título. Se Saccheri tivesse sucesso no seu intento, ao contrário de libertar Eucli- des de falha, estaria, na verdade, mostrando que ele cometeu um erro de redundância, pois teria estabelecido um postulado passível de prova. De qualquer maneira, o título escolhido não causou maiores polêmicas junto aos inquisitores da igreja católica [6]. Geometria Neutra 43 Definição: O quadrilátero convexo �ABDC, em que os ângulos adjacentes à base ∠A e ∠B são retos e os dois lados AC e BD são congruentes, é chamado de quadrilátero de Saccheri. Veja a figura 2.23. Figura 2.23: Quadrilátero de Saccheri Não é difícil provar, por congruência de triângulos, as seguintes afirmações: • os ângulos de topo, ∠C e ∠D, são congruentes; • a reta ligando os pontos médios da base e do topo é perpendicular a ambos esses lados; • as diagonais, AD e BC, são congruentes. Se for assumido o axioma euclidiano das paralelas de Hilbert, os ângulos de topo serão retos. Por outro lado, se for assumido que os ângulos de topo possam ser ambos agudos ou obtusos, implicitamente está se negando este axioma. Foi o que fez Saccheri, na busca por alguma contradição nas duas hipóteses que não a euclidiana. Saccheri nomeou estas três hipóteses conforme segue: • Hipótese do ângulo reto: m∠C = m∠D = 1 ângulo reto. Nesse caso, AB = CD. • Hipótese do ângulo obtuso: m∠C = m∠D > 1 ângulo reto. Nesse caso, AB > CD. • Hipótese do ângulo agudo: m∠C = m∠D < 1 ângulo reto. Nesse caso, AB < CD. Não só para se provar as afirmações acima sobre as medidas da base e do topo, mas também para se demonstrar não se sustentar a hipótese do ângulo obtuso, faz-se necessária a introdução do Teorema de Saccheri–Legendre. Antes porém, um teorema e três proposições também necessárias. 44 Uma Ciência Axiomática Teorema: Existe uma correspondência biunívoca entre os pontos de uma reta e os números reais. Esta bijeção é também chamada de sistema de coordenadas para a reta em questão. Em conjunção com o axioma de Dedekind, este teorema permite associar a cada ponto da reta um único número real, que será a coordenada do ponto em relação à reta. O ponto da reta associado ao número zero é a origem do sistema de coordenadas. Assim, seja um segmento AB, em que a e b sejam as coordenadas de suas extremidades A e B. A medida do segmento AB será dada por AB, o valor absoluto da diferença das coordenadas a e b. A ordenação dos números reais garante a consistência dessa abordagem. Proposição 1: Todo segmento tem um único ponto médio. Demonstração. Para demonstrar a existência do ponto médio, considere um segmento AB, com as coordenadas dos extremos sendo a e b. Considere, ainda, um número m de- notado por a+b 2 . O axioma de Dedekind e o axioma S–3 garantem que existe um ponto M com esta coordenada. Deve-se provar que M está entre A e B e que AM ∼= MB. Os comprimentos de AM e MB são dados por: AM =| a−m |=| a− a+ b 2 |=| a 2 − b 2 | MB =| m− b |=| a+ b 2 − a |=| a 2 − b 2 | O que significa que AM = MB e, como o número a+b 2 está entre a e b, o ponto M está entre A e B (A ∗M ∗B). Para provar a unicidade do ponto médio, supõe-se a existência de um outro ponto médio M’, com coordenada m’, de modo a que AM ′ ∼= M ′B. Assim, se a < m’ < b, então a - m’ = m’ - b. Ou seja, m′ = a+b 2 . E se b < m’ < a, então b - m’ = m’ - a. Ou seja, m′ = a+b 2 . Como têm a mesma coordenada a+b 2 , M e M’ são o mesmo ponto e o ponto médio é único. Proposição 2: Dado um triângulo ABC, existe um triângulo AEC cuja soma das medidas de seus ângulos é igual à soma das medidas dos ângulos do triângulo ABC, mas que possui um ângulo de medida menor ou igual à metade da medida de um dos ângulos do triângulo ABC. Demonstração. Para demonstrar a proposição, seja um triângulo ABC e seja o ponto D o ponto médio do segmento BC. Na semirreta −−→ AD define-se o ponto E, de modo Geometria Neutra 45 que AD ∼= DE, através do axioma C–1. A figura 2.24 mostra essa situação. Deve-se mostrar primeiro que: m∠AEC +m∠ACE +m∠EAC = m∠ABC +m∠BAC +m∠ACB Da congruência dos triângulos ADB e EDC, tem-se que ∠ABD ∼= ∠ECD e ∠BAD ∼= ∠CED. Então, vem: m∠ABC +m∠BAC +m∠ACB = m∠ECD +m∠BAD +m∠DAC +m∠ACB e m∠ABC +m∠BAC +m∠ACB = m∠AEC +m∠ACE +m∠EAC Figura 2.24: Dois triângulos com dois requisitos atendidos Em seguida, deve-se mostrar que m∠AEC ou m∠EAC 6 1 2 m∠BAC. Mas, m∠BAC = m∠BAD+m∠DAC = m∠AEC+m∠EAC. Então, segue o resultado, pois, se o todo é maior do que as partes, ou os ângulos ∠AEC e ∠EAC são iguais à metade de ∠BAC ou um deles é maior e o outro, menor. Proposição 3: A soma das medidas de dois ângulos internos de um triângulo é sempre menor do que 180o. 46 Uma Ciência Axiomática Demonstração. Para a prova desta proposição, referindo-se à figura 2.25, basta tomar o Teorema do ângulo Externo para verificar que m∠B < β e que β+m∠C = 180o. Então, m∠B +m∠C < β +m∠C m∠B +m∠C < 180o Figura 2.25: A soma das medidas de dois ângulos de um triângulo é sempre menor do que 180o Teorema Saccheri–Legendre: A soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo qualquer é menor ou igual a 180o, ou seja, dado 4ABC, m∠A + m∠B + m∠C 6 180o. Demonstração. Para demonstrar este teorema, deve-se supor que exista um triângulo ABC com a soma das medidas de seus ângulos maior do que 180o, para encontrar uma contradição, provando o resultado. Então, para esse suposto triângulo, m∠A + m∠B + m∠C = 180o + δ, com δ sendo um número positivo. Dado o que foi colocado na proposição 2, acima, existe um triângulo 4A1B1C1, que satisfaça: m∠A1 +m∠B1 +m∠C1 = 180o + δ m∠A1 6 1 2 m∠A Assim, iterando dessa mesma forma, vai-se obter um triângulo que satisfaça: m∠An +m∠Bn +m∠Cn = 180o + δ m∠An 6 1 2n m∠A Ao atingir um n0 suficientemente grande, de modo a que 1 2n0 < δ, o triângulo obtido satisfará: Geometria Neutra 47  m∠An0 +m∠Bn0 +m∠Cn0 = 180o + δ m∠An0 < δ A esta altura, tem-se m∠Bn0 + m∠Cn0 = 180o + δ −m∠An0 a qual será maior do que 180o, contrariando o que ficou, acima, estabelecido pela proposição 3. Portanto, m∠An +m∠Bn +m∠Cn 6 180o. Este resultado será usado não só a fim de provar não caber a hipótese do ângulo obtuso na Geometria Neutra, mas também para obter as relações entre os tamanhos da base e do topo do quadrilátero de Saccheri, nas outras duas hipóteses. Como con- sequência desse resultado, tem-se que a soma das medidas dos ângulos internos de um quadrilátero é menor ou igual a 360o. Proposição: A hipótese do ângulo obtuso não é válida na Geometria Neutra. Demonstração. Para demonstrar esta proposição faz-se uso da figura 2.26 que associa um triângulo qualquer a um quadrilátero de Saccheri, da seguinte maneira: seja o triângulo EDC em que se definem os pontos médios do lado ED, como ponto M, e do lado EC, como ponto N. Assim, EM ∼= MD e EN ∼= NC. Sobre a reta ←−→ MN definem- se duas perpendiculares passando por D e C. A intersecção dessas perpendiculares com ←−→ MN definirá os pontos B e A. Assim, fica definido o quadrilátero �ABDC, com os ângulos A e B retos. O quadrilátero aparece invertido com relação ao desenho usual. Define-se, então, a perpendicular ao segmentoMN , passando pelo ponto E, que intersecta MN em F. Figura 2.26: Quadrilátero de Saccheri associado a um triângulo 48 Uma Ciência Axiomática Observa-se que 4EMF ∼= 4DMB e 4ENF ∼= 4CNA, pelo caso LAA. Então, EF ∼= BD ∼= AC e o quadrilátero formado é um Quadrilátero de Saccheri. Como impõe o Teorema de Saccheri–Legendre, a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo, na Geometria Neutra, é menor ou igual a 180o. Então, α+γ+ε+ζ 6 180o. Note que ∠E = α + γ. Como α = β e γ = δ, tem-se que β + ε + δ + ζ 6 180o. Mas β + ε = ∠D e δ + ζ = ∠C, são os ângulos de topo do quadrilátero. Então, ∠D + ∠C 6 180o e mais, ∠D ∼= ∠C. Portanto, esses ângulos não podem ser maiores do que 90o, eliminando a hipótese do ângulo obtuso para o Quadrilátero de Saccheri. Removida a hipótese do ângulo obtuso, resta provar que a medida do segmento de topo do Quadrilátero de Saccheri é maior ou igual à medida da base. Proposição: No Quadrilátero de Saccheri, a medida da base é menor ou igual à medida do segmento de topo. Demonstração. Com o intuito de demonstrar essa proposição, referindo-se à figura 2.27, seja um Quadrilátero de Saccheri �ABDC. Deve-se observar que ∠A = α+ β = 90o, por definição. O ponto D é interno ao ângulo CAB. Apelando ao Teorema de Saccheri–Legendre, β + γ + 90o 6 180o, ou β + γ 6 90o. Então, α+ β > β + γ. Assim, conclui-se que α > γ. Como já foi provado que o maior lado de um triângulo fica oposto ao maior ângulo, observando os triângulos ACD e ABD, nota-se que a diagonal AD é comum a ambos e, por definição, AC ∼= BD, e portanto, CD > AB. Figura 2.27: Quadrilátero de Saccheri e a desigualdade base–topo Assim, no caso euclidiano, a hipótese do ângulo reto, a base e o topo são congruentes e o quadrilátero é um retângulo. Na hipótese do ângulo agudo, inimiga de Saccheri, o topo é maior do que a base. Nesse caso, a geometria em questão é a Geometria Hiperbólica, o estranho novo mundo de János Bolyai, com suas infinitas paralelas e em que retângulos não existem. É o que será tratado no próximo capítulo. 3 Geometria Hiperbólica Antes de descrever alguns resultados em Geometria Hiperbólica, cabe revisar alguns conceitos de cônicas, especificamente da hipérbole. A hipérbole é o lugar geométrico dos pontos de um plano, cuja diferença, em valor absoluto, das distâncias a dois pontos distintos fixos desse plano, é constante e menor que essa distância. A figura 3.1 mostra a determinação desses pontos. Figura 3.1: Hipérbole como um lugar geométrico Ela pode ser obtida ao se intersectar uma superfície cônica circular regular com um plano paralelo (mas, não necessariamente) ao eixo principal do cone, como na figura 3.2. Figura 3.2: Hipérbole como secção cônica O gráfico de uma função racional y = 1/x, na figura 3.3, também representa os dois 49 50 Geometria Hiperbólica ramos de uma hipérbole. Figura 3.3: Gráfico de y = 1/x Há que se notar como os ramos da hipérbole se aproximam mais e mais das as- síntotas sem nunca tocá-las. Este é o conceito que define as paralelas na Geometria Hiperbólica Plana, ou seja, geodésicas coplanares, numa superfície com determinada curvatura, que não se intersectam, como na figura 3.4. Ao contrário das retas parale- las da Geometria Euclidiana Plana, que mantém sempre a mesma distância entre si, essa abordagem de paralelismo da Geometria Hiperbólica foge ao senso comum ou à intuição. Figura 3.4: Hipérbole e assíntotas 3.1 Infinitas Paralelas Para o desenvolvimento desta geometria, que tanto agradou a Gauss, deve-se negar o quinto postulado de Euclides, substituindo-o por: Dada uma reta l e um ponto P, não pertencente a l, existem pelo menos duas retas distintas paralelas a l passando por P. A figura 3.5 mostra esta situação. Na superfície não-euclidiana em que esta confi- guração é válida, toda a reta l está no interior do ângulo ∠APB. As retas ←→ PA e ←→ PB Infinitas Paralelas 51 são geodésicas paralelas a l no plano hiperbólico de curvatura negativa, e são duas, entre as infinitas geodésicas que, passando por P, não intersectam l. Figura 3.5: Duas paralelas à reta l Assim, para estabelecer alguns teoremas com conceitos e propriedades essenciais dessa geometria, e de volta ao quadrilátero de Saccheri, deve ser possível verificar a impossibilidade da ocorrência de retângulos nesse plano. Isso pode ser provado com o próximo teorema. Teorema 1 da Geometria Hiperbólica: Na Geometria Hiperbólica, a soma das medidas dos ângulos internos de qualquer triângulo é menor do que 180o. Demonstração. Para provar este resultado, referindo-se à figura 3.6, toma-se o caso particular de o triângulo em questão ser retângulo. Assim, considera-se o triângulo 4ABC, reto em A. Se fosse assumida a suposição de que a soma dos ângulos internos é igual a 180o, contrariando aquilo que se quer provar, os ângulos ∠B e ∠C seriam complementares. Usando-se o axioma S–4, define-se o ponto D, no lado oposto a A, em relação ao segmento BC, de modo que se tenha ∠ACB ∼= ∠CBD e AC ∼= BD. Isto implica em que o ângulo ∠ABD seja também reto, pois é formado por dois ângulos complementares. Se isso é válido, 4ACB ∼= 4DBC, pelo caso LAL. Então, o quadrilátero �ABCD é um quadrilátero de Saccheri e se está assumindo a hipótese do ângulo agudo. Mas, isto é impossível já que o ângulo ∠D é reto, ou seja, não há como a soma dos ângulos do 4ABC somarem 180o, restando a única possibilidade de somarem menos do que isso, pois a hipótese do ângulo obtuso já havia sido descartada por Saccheri na Geometria Neutra. A fim de generalizar o resultado para qualquer triângulo, referindo-se à figura 3.7, toma-se um triângulo ABC qualquer. Pode-se decompô-lo em dois triângulos retân- gulos ao se tomar a altura ao maior dos lados desse triângulo, no caso o lado AB, definindo-se o ponto D. A soma dos ângulos internos desses dois triângulos retângulos é menor do que 180o, como provado anteriormente, e será 90o +m∠A+m∠C+m∠B+ 90o < 360o. Portanto, m∠A+m∠B +m∠C < 180o 52 Geometria Hiperbólica . Figura 3.6: Primeiro Teorema da Geometria Hiperbólica – Triângulo retângulo Figura 3.7: Primeiro Teorema da Geometria Hiperbólica – Triângulo genérico Uma consequência desse teorema da Geometria Hiperbólica é que todos os quadri- láteros convexos têm soma de ângulos menor do que 360o, como foi visto ao se tratar dos quadriláteros de Saccheri. Isto implica na inexistência de retângulos na Geometria Hiperbólica. Teorema 2 da Geometria Hiperbólica: Na Geometria Hiperbólica, em que retângulos não existem, para toda reta l e para todo ponto P, não pertencente a l, existem pelo menos duas paralelas distintas a l que passam por P. Além disso, existem infinitas paralelas a l passando por P. Demonstração. Para provar este importante teorema, referindo-se à figura 3.8, deve-se baixar a perpendicular PQ à reta l e depois definir a reta m perpendicular a PQ em P. Seja R outro ponto qualquer em l. Define-se a reta t, perpendicular a l por R. Define-se Infinitas Paralelas 53 a perpendicular à reta t, que passa por P. O ponto S é a intersecção desta perpendicular com t. Então, ←→ PS e m são paralelas a l, pois ambas fazem ângulos alternos internos iguais (retos) com perpendiculares de l. Se for assumido que m e ←→ PS são a mesma reta, e portanto S pertence a m, isso significaria ser PQRS um retângulo, o que contradiz a hipótese de esta ser a Geometria Hiperbólica. Assim, existem duas paralelas a l passando por P. Ao variar o ponto R, obtêm-se infinitas paralelas a l passando por P. Deve-se pensar no segmento RS como o segmento que liga os pontos médios do topo e da base do Quadrilátero de Saccheri que, no caso desta figura, aparece cortado ao meio. Naturalmente, o ângulo entre PS e PQ é agudo. Figura 3.8: Infinitas paralelas Teorema 3 da Geometria Hiperbólica: Na Geometria Hiperbólica, se dois tri- ângulos são semelhantes, então, são congruentes. Demonstração. Para a prova deste teorema, referindo-se à figura 3.9, assume-se o con- trário, ou seja, que 4ABC e 4A′B′C ′ são semelhantes, mas não congruentes, o que significa que seus ângulos correspondentes são congruentes, mas seus lados correspon- dentes, não. Sem perda de generalidade, supõe-se que AB > A′B′ e AC > A′C ′. Assim, pode-se encontrar o ponto B” em AB e o ponto C” em AC de modo que AB′′ ∼= A′B′ e AC ′′ ∼= A′C ′. Então, pelo caso LAL, 4A′B′C ′ ∼= 4AB′′C ′′. Então, ∠AB′′C ′′ ∼= ∠B′ e ∠AC ′′B′′ ∼= ∠C ′. Mas, por definição, como ∠B ∼= ∠B′ e ∠C ∼= ∠C ′; logo, ∠AB′′C ′′ ∼= ∠B e ∠AC ′′B′′ ∼= ∠C. Assim, os segmentos BC e B′′C ′′ são paralelos e o quadrilátero BB”C”C é convexo e tem a soma de seus ângulos exatamente igual a 360o, o que contradiz o teorema anterior. Portanto, triângulos semelhantes são con- 54 Geometria Hiperbólica gruentes na Geometria Hiperbólica. Não se pode, nessa geometria, ampliar ou reduzir um polígono sem que ele sofra distorção. Figura 3.9: Triângulos semelhantes são congruentes Definição: Como na Geometria Hiperbólica, a soma dos ângulos internos de um tri- ângulo ABC qualquer é menor do que 180o, define-se o defeito desse triângulo, δ(ABC), como a medida do ângulo suplementar à soma dos seus ângulos, ou seja, δ(ABC) = 180o − (m∠A+m∠B +m∠C) Quanto ao defeito, essa fórmula é válida se os ângulos forem medidos em graus. No caso de se usar radianos como unidade de medida de ângulos, tratando-os como números reais, a fórmula será: δ(ABC) = π − (m∠A+m∠B +m∠C) Proposição: Seja um triângulo ABC em que B ∗ D ∗ C ocorre, como mostra a figura 3.10, então, δ(ABC) = δ(BAD) + δ(CAD) Figura 3.10: O defeito tem propriedade aditiva Infinitas Paralelas 55 Demonstração. A prova dessa proposição segue diretamente do fato de os ângulos em D serem suplementares e de m∠A = m∠BAD +m∠DAC Além disso, deve-se observar que o defeito de um dado triângulo é exatamente igual ao defeito de outro triângulo congruente a ele. Essas duas propriedades do defeito, a aditividade e sua invariância sob congruência, serão importantes ao tratar-se, mais adiante, do conceito de área na Geometria Hiperbólica. Proposição: Na Geometria Hiperbólica, se l e m são paralelas, então, qualquer conjunto de pontos de l, equidistantes de m, tem no máximo dois pontos. Veja a figura 3.11. Figura 3.11: Pares de pontos equidistantes e perpendicular comum Demonstração. Para provar esta proposição, basta verificar que na Geometria Hiperbó- lica retângulos não existem. Esta proposição estabelece que podem ocorrer, no máximo, dois pontos com a mesma distância entre duas paralelas. A única outra possibilidade é que não ocorra nenhum ponto com esta característica, o que leva à conclusão de que, neste caso, todos os pontos das duas paralelas têm distâncias diferentes. Essas duas possibilidades decorrem dos dois tipos de paralelas possíveis nessa geometria. Essa classificação de paralelas será vista em seguida. Proposição: Na Geometria Hiperbólica, se l e m são paralelas e se existe um par de pontos em l, equidistantes de m; então, l e m têm um único segmento perpendicular a ambos, que se situa no ponto médio desses pontos equidistantes. Essa perpendicular comum é o menor segmento unindo qualquer ponto de l a qualquer ponto de m. 56 Geometria Hiperbólica Demonstração. Para provar esta proposição, ainda se referindo à figura 3.11, basta ve- rificar que ABB’A’, CDD’C’, EFF’E’ e assim por diante, são quadriláteros de Saccheri, com o segmento MM ′ no ponto médio do segmento AB. A reta m diverge da reta l à direita e à esquerda do segmento MM ′. Deve-se estar atento ao fato de que esta configuração mostrada na figura 3.11, com l e m divergindo em ambos os lados, é o caso mais comum entre as infinitas retas hiper- bólicas paralelas dessa geometria. Pode ocorrer que duas retas hiperbólicas paralelas sejam divergentes em uma direção e convergentes assintoticamente em outra. O que vai diferenciar um tipo de paralela de outro é a existência do segmento perpendicular comum. Assim, se existe este segmento, chamam-se essas paralelas de divergentes, ou ultraparalelas. Caso contrário, chamam-se de paralelas assintóticas. Além das geodésicas paralelas, as quais passam por um ponto não pertencente a outra, naturalmente há também as que passam por esse ponto e concorrem com ela. Uma questão que surge, então, é: deve haver uma última geodésica concorrente e uma primeira paralela, a partir daquela concorrente. Essa primeira paralela assintótica é chamada de paralela limite à reta passando pelo ponto. Existem duas paralelas limites, uma de cada lado da perpendicular comum. O ângulo que cada uma dessas paralelas assintóticas faz com a perpendicular comum é o mesmo, por simetria, e é chamado de ângulo limite ou ângulo de paralelismo [6]. Uma construção interessante proposta por Gauss em 1831, e que não faz uso do quinto postulado, aparece na figura 3.12. Essa figura apoia o entendimento da ideia da paralela limite. Seja uma reta ←→ AB e um ponto P, não pertencente a ela. Toma-se, então, a perpendicular AP de P até ←→ AB. Uma reta ←→ PQ é dita paralela limite a ←→ AB, em P, se, para qualquer reta ←→ PS, em que S esteja no interior dos ângulos ∠APQ e ∠PAB, sendo 0 < m∠APS < m∠APQ, ←→ PS intersecta ←→ AB. Figura 3.12: A genialidade de Gauss Ao se considerar o conjunto das retas que passam por P, a paralela limite ←→ PQ é a primeira reta emanando de PA em direção a B, a qual falha em intersectar ←→ AB. Sem assumir o quinto postulado não se pode afirmar se essa primeira paralela é também a última, caso em que se estaria tratando com uma Geometria Euclidiana [7]. Infinitas Paralelas 57 Se o ângulo limite é α, escolhendo-se uma unidade de medida e nomeando-se o comprimento do segmento AP de d, pode-se estabelecer o teorema Lobachevsky-Bolyai que propõe a relação: [7] tan( α 2 ) = e− d k Cabe notar que se d tende a um valor muito grande, o ângulo de paralelismo tende a zero. Se, por outro lado, tomarmos d com valor cada vez menor, o ângulo vai ficando mais próximo a 90o, como o ângulo de paralelismo da Geometria Euclidiana. O mesmo ocorrendo quando a constante k, que é uma característica desta geometria, tende a infinito. Neste caso, independente do valor de d, se k tende a infinito, α tende a 90o, ou π 2 radianos. Esta constante foi referida por Gauss, em carta a Franz Adolph Taurinus (1794-1874), em 1824, como não sendo possível ser fixada a priori. A curvatura do plano hiperbólico: Cabe, então, nesse ponto do trabalho, discutir outro conceito muito importante, aquele que distingue as diversas geometrias planas, ou seja, a curvatura de uma su- perfície, conforme foi definida por Gauss. Para tanto, parte-se da propriedade que distingue uma reta de uma circunferência. A reta tem curvatura zero, ou seja, pode-se pensar nela como uma circunferência de raio infinito. A circunferência, por outro lado, tem a mesma curvatura em todos os seus pontos. Comparando-se duas circunferên- cias de raios diferentes, pode-se verificar que uma circunferência de raio menor é mais encurvada que uma de raio maior. Portanto, a curvatura é inversamente proporcional ao raio da circunferência. Gauss, em seus estudos de óptica, definiu a curvatura, nesse caso, como sendo K = 1/R. Em relação a curva diferente de uma circunferência, ou seja, que não tem curvatura constante, esta deve ser determinada para cada ponto da curva. Nesse caso, continua valendo, para o cálculo da curvatura num ponto qualquer da curva, a expressão K = 1/R. R é o raio (chamado “raio de curvatura”) do círculo, cujo centro (chamado “centro de curvatura”) se encontra na linha normal (perpendicular) e interior (que diz respeito ao mesmo lado descrito pela curva) e que melhor a aproxima naquele ponto. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) chamou este círculo de osculante. Dentre os inúmeros círculos que tangenciam a curva, no ponto em questão, o raio de curvatura é o raio do maior deles. No tocante a uma superfície encurvada, Gauss definiu a curvatura em um ponto como o produto entre a maior e a menor, naquele ponto. Dentre todos os possíveis círculos osculantes às curvas formadas pela intersecção da superfície em questão, com planos concorrentes a ela, naquele ponto, tomam-se os de menor e maior raio para definir estas curvaturas maior e menor, respectivamente. Se a superfície for plana, todas as sua intersecções com planos concorrentes serão retas. A curvatura de Gauss, portanto, será nula. 58 Geometria Hiperbólica Se a superfície for encurvada, num ponto, para o mesmo lado, terá curvatura positiva naquele ponto, pois os círculos osculantes ficarão do mesmo lado (interno). Assim, uma esfera tem curvatura constante K = 1/R2. Se a superfície for tal que os círculos osculantes, num determinado ponto, ficam em lados opostos da superfície, a curvatura será negativa, nesse ponto, pois será o produto de dois números com sinais diferentes. Este é o cenário da Geometria Hi- perbólica. Como exemplos desse tipo de superfície, temos a sela na figura 3.13 e a pseudo-esfera na figura 3.14. A pseudo-esfera é gerada a partir da rotação de uma tractriz em torno de sua assíntota e foi assim batizada por Eugênio Beltrami (1835- 1900), por possuir curvatura constante negativa K = −1/R2. Beltrami, em seu Ensaio sobre uma interpretação da Geometria Não-Euclidiana, de 1868, foi o primeiro mate- mático a concretizar resultados da Geometria Hiperbólica, não só usando essa superfície como modelo, mas também mostrando que ela é tão consistente quanto a Geometria Euclidiana [14]. Cabe ressaltar que uma superfície completa (sem singularidades) – não é o caso da pseudo-esfera –, com curvatura constante negativa é uma abstração, não sendo possível incorporá-la em R3 [6]. Figura 3.13: Superfície com curvatura negativa - Sela Figura 3.14: Superfície com curvatura negativa - Pseudo-esfera Infinitas Paralelas 59 A curvatura de uma superfície descrita até aqui é um conceito local, ou seja, é a curvatura em um ponto. Resultados mais avançados sobre esse tema não serão descritos neste trabalho, por envolverem conceitos da Geometria Diferencial, a qual não é o seu foco. De qualquer maneira, cabe enfatizar, como já foi mencionado quando da discussão do surgimento das Geometrias Não-Euclidianas, o Teorema Egrégio de Gauss. Este estabelece que a curvatura é uma propriedade intrínseca da superfície, ou seja, pode ser determinada sem sair da superfície, sem a necessidade dos círculos osculantes, utilizando apenas a medida da área de uma região. Gauss, por meio do mapeamento da superfície sobre uma esfera de raio unitário, mostrou ser possível determinar a curvatura total dessa superfície, ou de uma região. Essa curvatura será proporcional à área dessa região. O Conceito de Área na Geometria Hiperbólica: Ao se trabalhar na Geometria Euclidiana, o conceito de área, quantidade de superfí- cie abarcada por determinado polígono, está intimamente ligado à figura do retângulo, que não existe na Geometria Hiperbólica. A área do retângulo, na Geometria Eu- clidiana, é calculada pela medida de sua base vezes a medida de sua altura. Esse número vai computar quantas unidades de área cabem nesse retângulo. Realmente, se um retângulo tem b unidades de comprimento na base e h unidades de comprimento na altura, sua área terá bh unidades de área (um quadrado medindo uma unidade de comprimento de lado). Essa unidade de comprimento pode ser o metro ou outra qualquer que se resolva escolher. Em qualquer unidade, a área será proporcional à unidade de medida. Pode-se provar essa afirmação escolhendo uma unidade de medida qualquer, por exemplo n. O retângulo cuja área se quer descobrir mede bn na base e hn na altura. Então, sua área A será A = bhn2. Poderia se dizer que a área é igual a bh unidades de área. Se isso estiver correto, e se aumentarmos essa unidade em uma unidade, fazendo-a valer agora (n+1), a área do novo retângulo será dada por A = b(n + 1)h(n + 1) = bh(n + 1)2 = bh(n2 + 2n + 1). A nova área foi aumentada em bh(2n + 1) unidades de área. Isso corresponde exatamente ao acréscimo de bhn unidades de área, aumentadas na altura, bhn unidades de área, aumentadas na base, e bh unidades de área, a fim de fechar o canto do novo retângulo. Partindo da área do retângulo, pode-se calcular a do triângulo, que será metade daquela, e com esta calcular a área de outros polígonos, por triangulação. Mas como determinar a área de um triângulo numa geometria em que retângulos não existem? Usando-se o caso mais simples da Geometria Esférica, consegue-se inferir a resposta a essa pergunta, usando o Teorema de Girard, proposto em 1626 por Al- bert Girard (1595-1632). Sobre uma esfera de raio R determina-se o triângulo 4ABC, conforme a figura 3.15. Tal triângulo é definido pela intersecção de três fusos esféricos. Essa intersecção define, na realidade, dois triângulos antipodais idênticos, 4ABC e 4A′B′C ′. A área total da superfície esférica é A = 4πR2. A área de um fuso esfé- 60 Geometria Hiperbólica rico, calculado por uma regra de três simples, é dado por 2θR2, em que θ é o ângulo diédrico, definido por dois semiplanos que se intersectam no eixo de dois pontos anti- podais, determinando o fuso na superfície da esfera. Esse ângulo é igual aos formados na superfície da esfera, tendo os pontos antipodais como vértices. Então, cada fuso determina um ângulo interno do triângulo 4ABC. Tomando-se o triângulo 4ABC, junto com os três fusos que lhe deram origem, cobre-se metade da área da esfera, com a área do triângulo 4ABC, A(4ABC) contada três vezes. Então, pode-se escrever: 2πR2 = 2αR2 + 2βR2 + 2γR2 − 2A(4ABC) Onde α, β e γ são os ângulos internos do triângulo 4ABC. Uma manipulação algébrica adequada levará ao resultado: A(4ABC) = R2(α + β + γ − π) Conclui-se, portanto, que a área do triângulo esférico é proporcional ao excesso (em relação a π) da soma dos ângulos internos do triângulo, medida em radianos. O fator de proporcionalidade é R2 e, como a curvatura da esfera é K = 1/R2, tem-se K.A(4ABC) = α + β + γ − π [7]. Figura 3.15: Triângulo esférico Gauss estabeleceu, em 1827, este mesmo resultado, formulando: K.A(4ABC) = m∠A+m∠B +m∠C − π E analisou as três possibilidades para a curvatura K: 1. se K é positivo, os dois lados da equação são positivos. Então, a soma dos ângulos internos do triângulo é maior do que π e a área é proporcional a este excesso, conforme visto anteriormente no Teorema de Girard, o caso particular de K constante. Para o caso geral, esta é a Geometria Elíptica; Infinitas Paralelas 61 2. se K = 0, a soma dos ângulos do triângulo é igual a π, caso da Geometria Euclidiana; 3. se K é negativo, a soma dos ângulos internos é menor do que π. O lado direito da igualdade será o defeito com sinal negativo, como no caso da pseudo-esfera, para K constante. Este é o caso da Geometria Hiperbólica. Novamente, temos área e defeito proporcionais. Muito antes, em 1794, ainda com 17 anos, Gauss já havia estabelecido: para deter- minar a área, nesta geometria, era necessário encontrar uma função, a fim de relacionar um número a todo triângulo, que seria sua área. Essa função deveria respeitar tanto a congruência, pois triângulos congruentes deviam ter a mesma área, quanto a aditi- vidade, pois num triângulo dividido em dois outros, as áreas destes deviam somar a do triângulo dividido. Gauss verificou que essas propriedades eram respeitadas pelo defeito do triângulo, como foi visto anteriormente neste trabalho, quando da definição deste conceito. A área devia ser proporcional ao defeito. Tal relação foi chamada por Gauss de primeiro teorema dessa nova geometria, o qual vai abaixo descrito [6]. Teorema da Área da Geometria Hiperbólica: Nesta geometria existe uma constante positiva k, de modo que para qualquer triângulo ABC dado: Area(4ABC) = k2δ(4ABC) O resultado acima mostra o seguinte dado: diferentemente da Geometria Eucli- diana, na qual se pode ter triângulos com área tão grande quanto se queira; na Hi- perbólica, a área de um triângulo hiperbólico tem um limite máximo que nunca será ultrapassado, porque o defeito nunca será maior do que π. Então, nesta geometria, nenhum triângulo terá área maior do que πk2. A constante k faz a ligação da unidade escolhida para o comprimento com a unidade de área. A prova deste teorema não será mostrada neste trabalho por envolver resultados avançados da Geometria Diferencial. Para relacionar a curvatura K com a constante k deste teorema, a mesma menci- onada na carta de Gauss a Taurinus, faz-se R = ik, sendo i a unidade imaginária dos números complexos. Então, K = −1/k2 é a curvatura do plano hiperbólico, que pode ser descrito como uma esfera de raio imaginário [6]. Nesse ponto, convém registrar um sumário das consequências já provadas, ao se assumir o quinto postulado com inúmeras paralelas. • Assume-se a hipótese do ângulo agudo no quadrilátero de Saccheri. • A soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 180o. O ângulo suplementar dessa soma é chamado de defeito. 62 Geometria Hiperbólica • Os ângulos superiores do quadrilátero de Saccheri são agudos. • O segmento de topo do quadrilátero de Saccheri é maior que a base. • O segmento que une os pontos médios de ambos (base e topo) no Quadrilátero de Saccheri é a única perpendicular a ambos e é o menor segmento entre eles. • Retângulos não existem. 3.2 Um modelo para a Geometria Hiperbólica Um modelo geométrico é uma maneira de interpretar os objetos geométricos de um modo que os axiomas façam sentido sob essa interpretação. A principal propriedade do modelo é a sua exatidão na representação dos teoremas como consequência dos axiomas. Nesse caso, pode-se considerar o modelo consistente [6]. Um modelo, dentre tantos possíveis, para a Geometria Hiperbólica, é o modelo do semiplano superior, desenvolvido por Jules Henri Poincaré (1854-1912). Neste modelo, os pontos do plano hiperbólico serão representados como números complexos z, dados por z = x+ iy, do plano complexo C, como sendo: H = {z ∈ C | y > 0} em que os números reais x e y significam, respectivamente, a parte real (<(z)) e a parte imaginária (=(z)) de z. Deve-se observar que o eixo real R não faz parte de H. Por definição, há duas maneiras de representar as retas hiperbólicas nesse modelo, ambas como objetos euclidianos em C: • a intersecção de H com uma reta euclidiana perpendicular ao eixo real R de C; • a intersecção de H com um círculo euclidiano cujo centro está no eixo real R de C. A figura 3.16 mostra três retas hiperbólicas construídas dessa maneira. Deve-se observar que todas as retas hiperbólicas que passam por P e não intersectam l são paralelas a ela. Os pontos sobre o eixo real R são considerados no infinito e todas as retas hiperbólicas do modelo são perpendiculares a ele. Cabe então, como parte da verificação da consistência do modelo e da observância do primeiro postulado, mostrar que, dados dois pontos distintos quaisquer z1 = x1+iy1 e z2 = x2 + iy2, existe uma única reta hiperbólica passando por eles. Para mostrar a existência, há dois casos a considerar, x1 = x2 e x1 6= x2. No primeiro caso (x1 = x2), a reta euclidiana de equação L = {z ∈ C | x = x1} é perpendicular ao eixo real e passa por z1 e z2. Portanto, l = H ∩ L é a reta hiperbólica que passa por z1 e z2. No segundo caso, (x1 6= x2), devido a reta euclidiana que passa por z1 e z2 não ser perpendicular ao eixo real, toma-se o círculo euclidiano cujo centro é o ponto de Um modelo para a Geometria Hiperbólica 63 Figura 3.16: Par de paralelas à l passando por P no modelo H intersecção do eixo real com a mediatriz do segmento euclidiano que une z1 e z2 e cujo raio é igual à distância euclidiana entre este centro e z1. Estando o centro sobre a mediatriz, essa distância é a mesma para z2. Assim, este círculo euclidiano passa por z1 e z2 e a sua intersecção com H é a reta hiperbólica desejada. A unicidade destas retas hiperbólicas decorre da unicidade da reta e do círculo euclidianos construídos. Para obter a equação do círculo euclidiano, deve-se verificar o seguinte: o segmento que une z1 e z2 tem inclinação m = y2 − y1 x2 − x1 . Sua mediatriz passa pelo ponto de coordenadas 1 2 (z1 + z2) e tem inclinação − 1 m = x1 − x2 y2 − y1 . Assim, supondo-se que os pontos dessa mediatriz tenham coordenadas (x, y), sua equação será dada por: y − 1 2 ( y1 + y2 ) = [ x1 − x2 y2 − y1 ]( x− 1 2 ( x1 + x2 )) Ao denominar-se o centro do círculo euclidiano de zc, ao verificar-se o fato de ele pertencer à mediatriz e de sua parte imaginária yc ser nula (eixo real), pode-se obter a sua parte real xc fazendo y = 0 na equação da mediatriz: 0− 1 2 ( y1 + y2 ) = [ x1 − x2 y2 − y1 ]( xc − 1 2 ( x1 + x2 )) xc = 1 2 [ y2 − y1 x1 − x2 ]( (x1 − x2)(x1 + x2) y2 − y1 − (y1 + y2) ) xc = 1 2 [ (x1 + x2)(x1 − x2)− (y2 − y1)(y1 + y2) x1 − x2 ] xc = 1 2 [ (x1) 2 − (x2) 2 + (y1) 2 − (y2) 2 x1 − x2 ] xc = 1 2 [ |z1|2 − |z2|2 x1 − x2 ] O raio r do círculo euclidiano pode ser obtido ao se calcular a distância euclidiana entre o centro e qualquer dos pontos z1 ou z2, assim: r = |zc − z1| ou r = |zc − z2| 64 Geometria Hiperbólica É interessante notar queH, sendo um modelo euclidiano, tem os objetos geométricos construídos a partir do uso dos conceitos dessa geometria, para representar objetos da Hiperbólica. Neste contexto, e referindo-se à classificação das paralelas, pode-se verificar como elas se apresentam no modelo. A ocorrência da perpendicular comum, como foi visto anteriormente, determinará essa classificação. Assim, na figura 3.17, aparecem as retas hiperbólicas assintóticas, as quais não possuem a perpendicular comum. Essas paralelas se intersectam em um ponto no infinito. As retas l e m possuem infinitas perpendiculares euclidianas, mas nenhuma é uma reta hiperbólica (reta perpendicular ao eixo real ou círculo com centro no eixo real). As retas hiperbólicas n e o tem uma perpendicular comum que, além de estar sobre o eixo real, o qual não faz parte de H, não é uma reta hiperbólica. Finalmente, as retas r e s, com um ponto em comum no eixo real, ou seja, no infinito, não admitem uma perpendicular comum que seja uma reta hiperbólica. Figura 3.17: Pares de paralelas assintóticas Na figura 3.18 aparecem as paralelas divergentes (ultraparalelas) e sua única per- pendicular comum. O caso de r e s é trivial, pois sendo círculos euclidianos concêntricos, possuem a perpendicular comum t (raio dos círculos euclidianos). As retas l e m contam com n como perpendicular comum. E o e q têm p nessa condição. Figura 3.18: Pares de paralelas divergentes com perpendicular comum Para a determinação da perpendicular comum (n ou p na figura 3.18), deve-se aplicar o Teorema de Pitágoras tendo os raios como catetos. Considere-se o caso de o e q, sendo o caso de l e m, equivalente. Ao denotar o centro de o de c1 e seu raio de r1 e o centro de q de c2 e seu raio de r2, procura-se determinar o centro c e o raio r de p, uma circunferência (reta hiperbólica no modelo) que seja ortogonal a ambas, o e q. Um modelo para a Geometria Hiperbólica 65 Assim, pode-se escrever: |c− c1|2 = r2 + r21 e |c− c2|2 = r2 + r22 E, para garantir que as retas hiperbólicas o e q não têm pontos em comum: |c− c1| > r1 e |c− c2| > r2 Então, (c1 − c)2 = r2 + r21 e (c2 − c)2 = r2 + r22 c21 − 2cc1 + c2 = r2 + r21 e c22 − 2cc2 + c2 = r2 + r22 r2 = c21 − 2cc1 + c2 − r21 e r2 = c22 − 2cc2 + c2 − r22 c21 − 2cc1 + c2 − r21 = c22 − 2cc2 + c2 − r22 2cc2 − 2cc1 = r21 − r22 + c22 − c21 c = r21 − r22 + c22 − c21 2(c2 − c1) O raio de p será dado por: r = √ (c− c1)2 − r21 > 0 ou r = √ (c− c2)2 − r22 > 0 Surge, então a questão da distância. Para que o modelo H represente a Geometria Hiperbólica é necessária a conclusão de que as retas hiperbólicas, da maneira como foram descrita, sejam geodésicas, ou seja, linhas de menor distância. Para tanto, seja: Γ = {z 7→ az + b cz + d | a, b, c, d ∈ R, ad− bc > 0} Γ é um grupo, ou seja, admite uma operação interna (composição) e esta é asso- ciativa. Admite também um elemento neutro (identidade) e uma operação inversa. Assim, se g ∈ Γ, então g mapeia H em H. Seja, então, g(z) = az + b cz + d . g(z) = (az + b) (cz + d) . cz + d cz + d A parte imaginária de g(z) será dada por: =[g(x+ iy)] = (ad− bc)y) |cz + d|2 > 0 Tendo a parte imaginária maior do que zero, conclui-se que g mapeia H em H. Isso também vale tanto para o semiplano inferior quanto para eixo real, unido com um ponto no infinito (R∪∞). g mapeia esses elementos neles mesmos. Devido a Γ ser um grupo, o mesmo vale para g−1. Então, os coeficientes a, b, c e d podem ser escolhidos como números reais. 66 Geometria Hiperbólica Se c = 0, a questão é trivial. Ao se tomar não só c 6= 0, mas também ao se colocar os outros coeficientes na escala de c (dividindo-os por c), tem-se c = 1. Calculando g(∞) obtém-se a. Calculando-se g−1(∞), obtém-se −d; então, os coeficientes a e d são reais. Se a = 0, b é real e se a 6= 0, g−1(0) = −b a , então, b é também real. Em resumo, se g(z) = (az + b) (cz + d) e g ∈ Γ, pode-se assumir os coeficientes a, b, c, e d como números reais. Assim, para todo z, tem-se: g(z) = g(z̄) Uma reta hiperbólica L que passe pelos pontos zP e zQ, será um circulo euclidiano C. Este círculo passará também pelos pontos zP e zQ. Então, aplicando-se g(z), g(C) passará por g(zP ), g(zQ), g(zP ) e g(zQ). Ou ainda, considerando-se que g(z) = g(z̄), g(C) passará por g(zP ), g(zP ), g(zQ) e g(zQ). Isto implica em que g(C) é ortogonal ao eixo real R, provando que g(L) é, também, uma reta hiperbólica. A transformação g ∈ Γ preserva os objetos geométricos ponto e reta. Essa transformação é denominada Transformação de Möbius, como reverência a August Ferdinand Möbius (1790-1868). Então, seja a reta hiperbólica L, definida por dois pontos zP e zQ, em H, e sejam ainda, φ e θ seus pontos extremos, como mostra a figura 3.19, de modo que φ, zP , zQ e θ ocorram nessa ordem em L; pode-se procurar por uma Transformação de Möbius algebricamente ajustada para apresentar g(φ) = 0 e g(θ) =∞. Figura 3.19: Estabelecendo uma métrica no modelo H Estabelece-se, assim, uma régua com que medir distâncias. A razão cruzada entre quatro pontos permite estabelecer uma unidade de medida projetiva. A razão cruzada de quatro pontos distintos z1, z2, z3 e z4, [z1, z2, z3, z4] é definida como: [z1, z2, z3, z4] = (z1 − z3)(z2 − z4) (z1 − z2)(z3 − z4) Quando z4 tende ao infinito, a razão cruzada tende a z1 − z3 z1 − z2 . Assim, após aplicar- se a transformação adequada, g(zP ) = ia, e g(zQ) = ib, com 0 < a < b, a razão cruzada Um modelo para a Geometria Hiperbólica 67 entre os pontos, assumindo-se que uma Transformação de Möbius preserva a razão cruzada, será:[2] [φ, zP , zQ, θ] = [0, ia, ib,∞] = (0− ib) (0− ia) = b a > 1 Essa generalização permite estabelecer a seguinte definição: Definição: A distância hiperbólica entre dois pontos do plano hiperbólico zP e zQ é ρ(zP , zQ) = log [φ, zP , zQ, θ], se zP 6= zQ ou zero, se zP = zQ. Da maneira como está colocada, esta definição estabelece uma distância aditiva, ou seja, aproximando-se de θ, a distância entre dois pontos aumenta. Além disso, já que a composição preserva a distância, ao mapear quaisquer dois pontos para o eixo imagi- nário (reta), fica provado que o segmento hiperbólico unindo zP e zQ é uma geodésica, ou seja, uma linha de menor distância. Teorema: Dados dois pontos zP e zQ, senh2 1 2 ρ(zP , zQ) = |zP − zQ|2 4=(zP )=(zQ) e cosh2 1 2 ρ(zP , zQ) = |zP − zQ|2 4=(zP )=(zQ) A prova deste teorema se faz escolhendo g em Γ de modo a ter g(zP ) = ia e g(zQ) = ib, com 0 < a < b. Ao aplicar o mapa z 7→ z a , pertencente a Γ, pode-se fazer a = 1. Assim, ρ(zP , zQ) = ρ(i, ib) = log(b), e senh2 1 2 ρ(zP , zQ) = senh2(log √ b) = (b− 1)2 4b Definindo F (zP , zQ) como F (zP , zQ) = |zP − zQ|2 4=(zP )=(zQ) e assumindo que F seja invariante sob qualquer g em Γ, F (g(zP ), g(zQ)) = F (zP , zQ) = F (i, ib) = (b− 1)2 4b como cosh2(z) = 1 + senh2(z), os dois resultados seguem. Outro objeto geométrico importante na Geometria Hiperbólica