EVELAINE MARTINES BRENNAND “Enquanto governa a maldade, a gente canta a liberdade” Coletivo de Cultura do MST: Caminhos para a criação de uma cultura contra-hegemônica SÃO PAULO 2017 EVELAINE MARTINES BRENNAND “Enquanto governa a maldade, a gente canta a liberdade” Coletivo de Cultura do MST: Caminhos para a criação de uma cultura contra-hegemônica. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como exigência para obtenção do título de mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, área de Geografia, na linha de pesquisa “Educação, Saúde e Cultura” Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro SÃO PAULO 2017 EVELAINE MARTINES BRENNAND “Enquanto governa a maldade, a gente canta a liberdade” Coletivo de Cultura do MST: Caminhos para a criação de uma cultura contra-hegemônica Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como exigência para obtenção do título de mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, área de Geografia, na linha de pesquisa “Educação, Saúde e Cultura”. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) _____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Roseno (Universidade Estadual de Minas Gerais) ______________________________________________ Prof.ª. Dr.ª Silvia Beatriz Adoue (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) São Paulo, 04 de dezembro de 2017 Às trabalhadoras e trabalhadores Sem Terra Aos Artistas da Caminhada AGRADECIMENTOS Gracias a la vida que me ha dado tanto Violeta Parra Aqui não tem o espaço necessário para dar conta do tamanho da gratidão àqueles que estiveram nos diversos estágios de minha vida, que auxiliaram a me forjar como mulher e militante. Esta dissertação faz parte desta construção. Um caminho que não se trilha só. Impossível desvincular as pessoas que estiveram comigo nesta caminhada militante de quase trinta anos, dos quais, os últimos vinte junto ao MST. Portanto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra que faz manter aquecida a nossa Mística Revolucionária, principalmente nos momentos mais difíceis na luta de classes, minha eterna gratidão. Aos meus companheiros e companheiras de vida e de luta, camaradas do Coletivo Nacional de Cultura que sempre foram meu sustentáculo frente aos desafios que a vida militante nos traz: Ana Chã, Rafael, Minerin, Douglas, Juliana, Lupércio, Révero, Guê, Jade, Luciana Frozi, Sylviane, Ana Emília. Aos militantes mais “jovens” do Coletivo de Cultura, que de certa forma, vi “crescer” tanto de tamanho como em maturidade militante: Júlio Moreti, Raul, Luana, Luara, Julia Iara, Dandara, que me fazem acreditar que vale a pena seguir lutando! Aos camaradas da Brigada Apolônio de Carvalho que tanto contribuíram para que este mestrado fosse realizado, principalmente às amigas mulheres guerreiras que estiveram sempre presentes e que foram meu porto seguro nos períodos de estudo na ENFF: Simone Silva, Ana Terra e Isis. À Brigada Cândido Portinari: Thiago, Joatan, Jailson, Prado, Josemar, Acir que sempre estão no “front de batalha” na produção de nossas artes, e aos recém-chegados mineiros Paulo, Ana Maria e ao Gauchinho Júlio que estão produzindo a todo vapor por todos os cantos e encantos das Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Ao meu querido amigo Anderson Augusto, companheiro de “tantas pinceladas” e loucuras sonhadas e realizadas. À Irmã Elda Broilo, nossa artista militante, precursora das artes plásticas no MST, que com sua sabedoria e paciência abriu os caminhos na produção de nossas pinturas. Aos companheiros e companheiras do Escritório Nacional do MST em Brasília, que contribuíram para que eu disponibilizasse do tempo necessário para concluir esta pesquisa. Aos companheiros e companheiras da Turma Manuela Sáenz pela união, cumplicidade e estudo coletivo que nos proporcionou um processo rico de debates e de produção do conhecimento. Aos coordenadores do curso e professores que dedicaram tempo e estudo durante nosso período da realização das disciplinas, que contribuíram enormemente para a produção desta pesquisa. Ao IPPRI, que acolheu a nosso mestrado se demonstrando um espaço cooperativo e interdisciplinar, nos dando o suporte necessário para nossa produção acadêmica, particularmente ao Companheiro Jeferson, secretário do curso, que sempre que necessitamos se mostrou solidário e disponível a fim de resolver nossas demandas. À minha querida camarada e orientadora Bernadete, pelo carinho, pela compreensão e paciência durante a difícil gestação desta pesquisa. À minha família, que mesmo estando distante, sempre está presente, especialmente à minha mãe, Dona Maria que sempre brincou de fazer arte, abriu as portas, mesmo sem perceber, para meu fazer artístico. Ao meu pai (em memória) que me traz boas memórias a partir dos toques de seu pandeiro. Ao meu amor Cláudio, o companheiro que a vida me presenteou, pelo estímulo, carinho e apoio na revisão desta pesquisa e principalmente pelas nossas gostosas conversas durante o processo de produção desta dissertação. E por fim, a todas e todos que lutam contra a indignidade da exploração levantando bandeiras da humanidade. RESUMO Esta pesquisa se propõe analisar os processos formativos e de consolidação do Coletivo Nacional de Cultura do MST. Para tanto, visamos buscar os primeiros elementos estéticos relativos aos processos iniciais, quando do surgimento histórico do MST, no empenho de elucidar e correlacionar a luta pela terra realizada pelo Movimento, com algumas de suas matrizes culturais. Assim, objetiva-se ter um “olhar cultural” sobre o MST, sua luta contra- hegemônica e as formas de resistência em seus territórios, além de se buscar na história do MST suas relações com ideias sobre cultura e arte. A pesquisa dedica mais ênfase no período compreendido entre 2003 e 2010, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva. Pretendemos contribuir na reflexão sobre o caminho que o MST percorreu no debate geral sobre as ideias de cultura, a partir de uma abordagem marxista, e de como e seu Coletivo Nacional de Cultura avançou no desafio em criar uma produção artística contra-hegemônica para contribuir na formação cultural de todo o MST. Este desafio transcorre pelo desenvolvimento humano em sua forma integral, na formação de valores humanos anti- capitalistas, objetivando a melhoria das formas de vida para a constituição de territórios de resistência. Palavras-chave: Questão Agrária. Território. Hegemonia. Cultura. Organização Social. ABSTRACT This research proposes to analyze the formative and consolidation processes of the National Collective of Culture of the MST. For this purpose, the aim is to search for the first aesthetic elements related to the initial processes of the historical emergence of the MST, in an effort to elucidate and correlate the struggle for land carried out by the Movement, alongside some of its cultural matrices. The objective is to produce a cultural perspective of the MST, highlighting the counter-hegemonic struggle and the forms of resistance encountered in its territory, as well as searching through the history of the MST for its relationship with Art and Culture. The research focuses more on the period between 2003 and 2010, during the government of Luís Inácio Lula da Silva. The intention is to contribute to the reflection upon the path that the MST has taken in the general debate about the ideas of Culture, based on a Marxist approach, and how the National Collective of Culture advanced through the challenge of creating a counter-hegemonic artistic production that contributes to the entire MST. That challenge elapses through human development in its integral form, in the formation of anti- capitalist human values, aiming at the improvement of ways of living for the constitution of territories of resistance. Keywords: Agrarian Question. Territory. Hegemony. Culture. Social Organization. RESUMEN Esta investigación propone analizar los procesos formativos y de consolidación del Colectivo Nacional de Cultura del MST. Para ello, buscamos desde el surgimiento histórico del MST los primeros elementos estéticos en el inicio, con el objetivo de elucidar y correlacionar la lucha por la tierra realizada por el MST con algunas de sus matrices culturales. De esta forma, se plantea el objetivo de un “mirar cultural” al MST, su lucha anti hegemónica y las formas de resistencia en sus territorios, además de buscar en la historia del MST sus relaciones con ideas sobre cultura y arte, en una investigación que pone énfasis en el periodo comprendido entre 2003 y 2010, durante el gobierno de Luís Inácio Lula da Silva. Pretendemos contribuir con la reflexión sobre el camino que recorrió el MST en el debate general sobre las ideas de cultura, a partir de un abordaje marxista y cómo su Colectivo Nacional de Cultura avanzó en el desafío de crear una producción artística anti hegemónica, para contribuir con la formación cultural del Movimiento. Este desafío es por el desarrollo humano integral y la formación de valores humanos anticapitalistas, con el objetivo de mejorar las formas de vida en la constitución de territorios de resistencia. Palabras clave: Cuestión Agraria. Territorio. Hegemonía. Cultura. Organización Social. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Manifestação em São Paulo Contra as mortes de lideranças sindicais e de movimentos sociais………………………….………….…………........... 50 Figura 2 - Figura 2 - Recursos disponibilizados pelo Ministério da Cultura – MinC entre os anos 2004-2010………….………….………….…….................. 63 Figura 3 - Celebração no Santuário dos Mártires em S. Félix do Araguaia-MT…..... 79 Figura 4 - Celebração cristã em memória aos mártires tombados nas lutas sociais.... 80 Figura 5 - Ato de abertura do I Congresso Nacional do MST………......................... 82 Figura 6 - I Romaria da Terra em Goiás em 1984…………………........................... 83 Figura 7 - Mural da Igreja Santa Maria de Los Angeles, Barrio Riguero, Managua – Nicarágua…………………………….......................................................... 83 Figura 8 - Celebração no Santuário dos Mártires na Prelazia de São Félix do Araguaia…………………………………………………………............... 84 Figura 9 - Mural Santuário dos Mártires – S.Felix do Araguaia-MT….…………...... 85 Figura 10 - Painéis e murais com elementos e símbolos reliogiosos………….............. 86 Figura 11 - Mostra de produções artísticas………….………….………….…….......... 87 Figura 12 - Cartaz de Incentivo à produção agrícola produzido pelo Governo Revolucionário Sandinista – Nicarágua………….………….…………..... 88 Figura 13 - Cartaz I Congresso do MST……………………………….…………........ 88 Figura 14 - Painel I Congresso do MST……………………………….…………......... 89 Figura 15 - Bandeira do MST…………………………………………......................... 89 Figura 16 - Foto Brigada Patativa do Assaré com Augusto Boal……….…………...... 121 Figura 17 - Cena da peça “Privatileite” criada pela Brigada Patativa do Assaré…........ 121 Figura 18 - Brigada Patativa do Assaré criando cenário e figurinos……....................... 121 Figura 19 - Apresentação do Teatro Procissão na Marcha Nacional do MST em 2005………….………….………….………….………….…………......... 122 Figura 20 - Brigada Patativa do Assaré na produção de bonecos................................... 122 Figura 21 - Brigada Patativa do Assaré em atividade como ator Nelson Xavier no Encontro Unitário dos Trabalhadores e Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas em 2012....………………………… ................. 122 Figura 22 - Oficina de Formação para os agentes do Cinema da Terra.......................... 126 Figura 23 - Sessão do Cinema da Terra…………………………………...................... 126 Figura 24 - Oficina de produção audiovisual………………………….......................... 126 Figura 25 - Oficina e gravação do Documentário ”Lutar Sempre.................................. 127 Figura 26 - Processo de preparação de produção do Painel do VI Congresso do MST – Preparando o espaço de produção – revestimento com papelão e lona preta.............................................................................................................. 129 Figura 27 - Preparando a tela do Painel – tecido de algodão cru com base tinta látex branca……………………………………................................................... 129 Figura 28 - Brigada Cândido Portinari fazendo a ampliação do desenho coletivamente no sistema de quadrículas…………………......................... 130 Figura 29 - Início da pintura do painel…………………………………........................ 130 Figura 30 - Figura 30 - Reta final do processo de pintura ............................................. 131 Figura 31 - Equilibrando escada para fotografar o painel de cima para ver possíveis imperfeições………………………………................................................. 131 Figura 32 - Brigada Cândido Portinari e militantes do coletivo de cultura acompanhamento a colocação do Painel no local do Congresso ……........ 132 Figura 33 - Primeira versão do painel…………………………………......................... 132 Figura 34 - Versão final do painel………………………………………....................... 133 Figura 35 - Painel instalado acima do palco do VI Congresso do MST…..................... 133 Figura 36 - Apresentação da Brigada Semeadores……………………......................... 137 Figura 37 - Apresentação da Brigada Filh@s da Terra…………………....................... 142 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABI Associação Brasileira de Imprensa AGITPROP Agitação e Propaganda AI-5 Ato Institucional Nº 5 ALCA Área de Livre Comércio das Américas CEB’S Comunidades Eclesiais de Base CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNC Conselho Nacional de Cultura CPC Centro Popular de Cultura CPT Comissão Pastoral da Terra CTO Centro de Teatro do Oprimido CUT Central Única dos Trabalhadores DOI-CODI Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna ENFF Escola Nacional Florestan Fernandes FNC Fundo Nacional de Cultura FSLN Frente Sandinista de Libertação Nacional INCE Instituto Nacional de Cinema Educativo INL Instituto Nacional do Livro MARCA Movimento dos Artistas da Caminhada MCP Movimento de Cultura Popular MEB Movimento de Educação de Base MEC Ministério da Educação e Cultura MINC Ministério da Cultura MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONG Organização Não Governamental PC DO B Partido Comunista do Brasil PDT Partido Democrático Trabalhista PRONERA Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária PT Partido dos Trabalhadores SER Serviço de Radiodifusão Educativa SNT Serviço Nacional de Teatro SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro UFPE Universidade Federal de Pernambuco UFPI Curso de Licenciatura em Arte Educação com a Universidade Federal do Piauí UNB Universidade de Brasília UNE União Nacional dos Estudantes URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 15 2 MST, TERRITÓRIO E LUTA CONTRA-HEGEMÔNICA............................. 20 2.1 Um recorte do conceito de cultura....................................................................... 29 3 FORMAÇÃO CULTURAL NO BRASIL – HISTÓRIA E DISPUTA ............ 37 4 PARA ALÉM DAS ARTES: O MST E AS RELAÇÕES COM O ESTADO NA LUTA POR DIREITOS.................................................................................. 66 4.1 Rede Cultural da Terra – Articulações entre o Coletivo Nacional de Cultura e o Ministério da Cultura...................................................................................... 69 5 A CULTURA NO MST - NA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA CONTRA-HEGEMÔNICA.................................................................................. 75 5.1 Raízes culturais e as primeiras intervenções artísticas...................................... 75 5.2 Pensar e organizar Cultura no MST.................................................................... 90 5.3 O Coletivo Nacional de Cultura........................................................................... 91 5.4 I Oficina Nacional dos Músicos do MST............................................................. 92 5.5 Seminários “ O MST e a Cultura” – 1998 e 1999. ............................................. 93 5.6 O MST e a Consulta Popular................................................................................ 95 5.7 I Festival Nacional das Canções da Reforma Agrária........................................ 96 5.8 Oficina Nacional de Artes e Comunicação.......................................................... 98 5.9 O MST e a “Revolução Cultural”........................................................................ 100 5.10 I Semana Nacional de Cultura Brasileira e da Reforma Agrária..................... 103 5.11 A consolidação orgânica do Coletivo Nacional de Cultura e suas linhas políticas e ações...................................................................................................... 104 5.12 As Brigadas Culturais........................................................................................... 111 6 A ARTE MILITANTE NOS TERRITÓRIOS DE REFORMA AGRÁRIA............................................................................................................... 119 6.1 Brigada Patativa do Assaré................................................................................... 119 6.2 Brigada Eduardo Coutinho................................................................................... 122 6.3 Brigada Cândido Portinari................................................................................... 127 6.4 Brigadas Estaduais de Cultura............................................................................. 134 6.4.1 Brigada Semeadores................................................................................................. 134 6.4.2 Brigada Estadual Filh@s da Terra........................................................................... 138 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 142 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 148 ANEXO A - DISCURSO DE POSSE DO MINISTRO GILBERTO GIL........ 153 ANEXO B – DISCURSO DO MINISTRO DA CULTURA, GILBERTO GIL NO LANÇAMENTO DO PROJETO REDE CULTURAL DA TERRA................................................................................................................... 158 15 1 INTRODUÇÃO Acredito que em nossa gente estão guardadas as sementes que esperam a terra ser libertada. [...] porque encontramos em cada abraço, cada olhar cúmplice, em cada gesto de ousadia, os esboços de um tempo emancipado que vamos desenhando e construindo com nossa luta. Mauro Iasi Esta pesquisa, na qual batizamos com o título “Enquanto reina a maldade, a gente canta a liberdade”, foi inspirada na canção de Zé Vicente, poeta cantador das Comunidades Eclesiais de Base, composta durante nosso pequeno período de ascenso da luta de classes, que teve seu início no processo de abertura política no final dos anos 1970 e vai até a chegada do neoliberalismo, no início dos anos de 1990. As artes, pinturas, poemas e canções faziam pulsar a nossa mística militante e nos impulsionava para seguirmos na luta. E neste pulsar coletivo, nasce o MST. “O que vale é o amor Se é pra ir à luta, eu vou! Se é pra tá presente, eu tô! Pois na vida da gente o que vale é o amor. É que a gente junto vai Reacender estrelas vai Replantar nosso sonho em cada coração. Enquanto não chegar o dia Enquanto persiste a agonia A gente ensaia o baião. É que a gente junto vai Reabrindo caminhos vai Alargando a avenida pra festa geral Enquanto não chega a vitória A gente refaz a história Pro que há de ser afinal. É que a gente junto vai Vai pra rua de novo, vai Levantar a bandeira do sonho maior. Enquanto eles mandam, não importa A gente vai abrindo a porta Quem vai rir depois, ri melhor. Esse amor tão bonito vai Vai gerar nova vida, vai Cicatrizar feridas, fecundar a paz Enquanto governa a maldade A gente canta a liberdade O amor não se rende jamais.” Esta pesquisa é motivada por esta mística, que está longe de ser um réquiem saudosista, mas parte das bagagens sentidas e vividas que carregamos desde aquele período histórico. Foi lá onde tudo começou, onde fomos nos forjando e sendo forjados na militância. Experiências das lutas vividas, convertidas em sentimentos e transformadas em arte, e nesta 16 alquimia de transformar sentimentos em símbolos, nos reconhecemos e nos sentimos coletivamente como companheiros e companheiras, nos fortalecendo para seguirmos lutando. Somos seres coletivos! Segundo Iasi (2008, p. 11) “os poemas que lancei no mundo encontram abrigo com outros camaradas [...] porque quando falamos de nossas dores esperanças, de nossos amores e nossas lutas, estamos falando desta substância comum que nos liga na indissolúvel solidariedade de nossa classe”. O artista produz sua arte e se completa com a outra parte que trazemos em nós. “Quem produz tem sua parte cravada na alma e aquele que “desfruta” a refaz [...] arte coletiva que só existe porque há sentimentos comuns” (IASI, 2008, p. 11). O processo de produção desta dissertação fez com que olhássemos todo um caminhar. Debruçar neste objeto de pesquisa foi discorrer sobre um processo coletivo no qual tivemos e temos a alegria de fazer parte. Portanto, se torna impossível seguirmos determinadas “convenções” acadêmicas, onde o pesquisador busca “o distanciamento científico frente ao seu objeto”. Vamos no sentido do que nossa pesquisa percorre: os caminhos para a criação de uma cultura contra-hegemônica, ou seja, pretendemos desde aqui flexibilizar algumas convenções, efetivando isto na forma, uma dissertação em que estamos amalgamados dentro do próprio objeto, um olhar de dentro e cheio de intencionalidade, a fim de analisar politicamente o nosso caminhar nos processos formativos e de consolidação do Coletivo Nacional de Cultura do MST e sua contribuição na luta de classes. Todavia, iremos dispor de métodos que guiam uma pesquisa, compreendendo que o arcabouço produzido pela academia, no que se refere às ferramentas que contribuem no processo de produção do conhecimento, é de real valor e deve ser apropriada pela classe trabalhadora. O primeiro passo, foi obter um referencial teórico conceitual que fosse capaz de dar sustentação a esta pesquisa, inicialmente trazendo uma reflexão sobre a origem da natureza política e histórica do MST no empenho de elucidar e correlacionar a luta pela terra realizada por este movimento social, com algumas de suas matrizes culturais, objetivando ter um “olhar cultural” do MST na luta contra-hegemônica, suas formas de resistência, buscando-se na história do MST a concepção das ideias sobre cultura e arte desenvolvidas em meio à luta pela terra, dando mais ênfase no período compreendido entre 2003 e 2010, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva. 17 Visamos, desta forma, contribuir na reflexão sobre como o MST percorreu os debates sobre a ideia de cultura, a partir de uma abordagem marxista, e de como o Coletivo Nacional de Cultura avançou em sua atuação no desafio de criar uma produção artística contra- hegemônica, visando contribuir na formação cultural de todo o MST. Na busca para atingir a realização desta pesquisa, foram realizados os seguintes procedimentos: a) A partir da própria experiência nestes 20 anos de militância, que nos permitiu vivenciar quase todo o processo de debates, de desenvolvimento da cultura e do fazer artístico no interior do MST. Esta experiência permitiu, assim, conhecer de antemão militantes envolvidos, bem como ter contribuído efetivamente na elaboração e produção, além de ter livre acesso ao conjunto do acervo de documentos existentes, pavimentando os possíveis caminhos trilhados na pesquisa; b) O estudo do referencial teórico desta pesquisa permitiu adentrar, aprofundar e correlacionar o processo da constituição da ideia de cultura no MST. Este referencial também contribuiu para a recuperação dos processos históricos, no que concerne ao resgate da herança cultural do Movimento, possibilitando realizar uma reflexão sobre o processo de desenvolvimento da cultura e sua evolução em uma lógica de ação mútua, permitindo relacionar com outras experiências realizadas na história sobre as diversas construções sobre o debate e a ação cultural; c) Exercício de síntese, a partir da pesquisa e análise da elaboração teórica realizada sobre as questões culturais realizadas por militantes do MST, a fim de buscar constituir uma linha de pensamento do processo de estudos sobre a ideia de cultura construída em sua história, porém privilegiando determinados aspectos relativos aos objetivos desta pesquisa. d) Foram inseridas imagens e fotos a fim de retratar diversas experiências vividas e experimentos artísticos. Entendendo que a fotografia na pesquisa visa contribuir efetivamente para o alargamento da visão através de imagens que constituem memórias legadas e que constituem visões diferenciadas dos processos vivenciados pelos trabalhadores e trabalhadoras (CIAVATTA, 2012). A pesquisa está dividida em cinco parte. No item “MST, território e luta contra- hegemônica” é apresentado um levantamento teórico sobre conceitos de território e hegemonia, percorrendo e tecendo as relações entre a luta pela terra, constituição do MST e a 18 luta maior como um movimento contra hegemônico, em luta permanente contra as formas hegemônicas ditadas pelo capital e na busca incessante de criar novos sujeitos sociais e novas formas de organização da vida, intervindo culturalmente dentro de uma perspectiva das práxis social. Em seguida foi apresentado um referencial teórico conceitual de ideias de cultura, traçando uma linha histórica para compreender os processos relativos ao confronto de conceitos por diversas linhas de pensamento, que intentam se constituir como referência teórica conceitual nos processos de disputa hegemônica em relação ao campo cultural e artístico. No capítulo “Formação cultural no brasil – história e disputa” foi realizado um recorrido histórico, no que concerne à formação e constituição dos processos culturais no Brasil, em consonância com as ações políticas dos períodos e a relação e intervenção do Estado brasileiro sobre a intencionalidade de se construir uma visão em sua perspectiva dominante. No capítulo “Para além das artes: o MST e as relações com o estado na luta por direitos” adentramos sobre as relações do MST com o Estado, na luta por direitos, na perspectiva de conquistas em uma lógica contra-hegemônica, a fim de amenizar as desigualdades e formar processos de resistência nos territórios ocupados e conquistados e também sobre as relações efetivadas pelo Coletivo Nacional de Cultura com o Ministério da Cultura. No capítulo “A cultura no MST - na construção de uma cultura contra-hegemônica” transcorremos em questões mais internas, sobre o desenvolvimento e organização da cultura no MST, porém vamos caminhar um pouco, também, na sua “pré-história”, com o objetivo de traçar uma linha de herança histórica, no que concerne à produção simbólica, canções, poemas, pinturas que se tornaram referência estética, que contribuiu para o processo de formação e constituição do MST. Este processo se constituiu para construir caminhos na luta para romper com a lógica capitalista, através do exercício de implementar novas formas de assentamentos e nos processos de formação permanente, em vistas à constituição de novos valores humanos. Por fim, no capítulo “A arte militante nos territórios de Reforma Agrária” foi analisado com maior ênfase o período em que o Coletivo Nacional de Cultura se desafia, de forma mais consciente e crítica, a lutar contra as formas hegemônicas de representação da realidade, debruçando-se sobre quais providências devem ser tomadas, a fim de se constituir 19 um coletivo de produção cultural em uma perspectiva contra-hegemônica, através da organização das brigadas de cultura. 20 2 MST, TERRITÓRIO E LUTA CONTRA-HEGEMÔNICA Não pediremos esmolas ao tempo! Nós, cada um de nós, temos na mão as rédeas de todos os mundos! Maiakovski As áreas de Reforma Agrária conquistadas através das lutas encampadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vivem em processo constante de disputa territorial contra o agronegócio, mas, para além desta disputa, é necessário entender que nestas áreas, a luta não se dá somente pelos meios de produção, mas também, contra aos padrões hegemônicos formados pela cultura capitalista. Portanto, é necessário analisá-los como territórios culturais no que concerne à produção e reprodução da vida. A luta por tais territórios se desenvolve pelo direito dos camponeses ao uso da terra, na conquista de direitos e pela causa ideológica por uma sociedade igualitária. Porém, os modelos e relações sociais estabelecidos pelo mercado dominado através do grande capital e suas grandes cadeias de produção buscam impor sua visão hegêmonica dentro dos territórios conquistados. Por território compreendemos através do pensamento de Haesbaert (2001), no sentido em que o território tem em si sua dimensão simbólica e material. Desde a origem, o território nasce com este duplo significado, ou seja, tem a ver com dominação e conquista do espaço territorial, normalmente denominado pelo poder do Estado, e ao mesmo tempo, se refere ao uso: para aqueles que usufruem de um determinado território. Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo- territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufruí-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. (HAESBAERT, 2001, p. 6774) Dentro desta perspectiva, Porto-Gonçalves observa a identificação dos sujeitos referentes determinado espaços se territorializa. Entretanto o Capital e seus aparelhos de manutenção do poder hegemônico disputam o espaço territorial. Este poder faz um movimento intenso a fim de sobrepor vivemos aos “sabores, saberes, poderes” (PORTO- GONÇALVES, 2006) das comunidades, através imposição e convencimento sistemático dos modelos determinados pelo agronegócio. [...] para nós, latino-americanos e caribenhos, as tensões, resistências e tragédias 21 fazem com que reinventemos permanentemente a vida a partir dos sentimentos de quem, desde os processos de colonização, já sofreu a expulsão de suas próprias terras, inclusive a perda de direito de falar a própria língua, sendo que estes sentimentos perpassam a história, porque a modernidade chega com a mão santa da chibata ou com o glifosato da Monsanto e não podemos esquecer que o agronegócio da soja é tão moderno-colonial como foi ontem, o do açúcar com seus engenhos. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 154) Podemos observar em Fernandes (2008) que o embate entre o Capital e o Campesinato organizado pelos Movimentos Sociais, se dá na disputa pelos territórios, onde se produzem as relações sociais e defendem modelos divergentes: Na atualidade, no campo brasileiro, o capital tem o nome de agronegócio, que procura se apropriar das terras e subalternizar o campesinato através da terceirização da produção (que muitos chamam de integração) ou expropriá-lo através da verticalização da produção, controlando todos os sistemas que o compõe. (FERNANDES, 2008, p. 18). A confrontação permanente entre o Agronegócio e o Campesinato organizado pelo MST é incessante, fazendo com que a disputa territorial permaneça no cotidiano dos sujeitos sociais para além da conquista da terra, mas também na disputa ideológica que se desdobra nas formas de produção de toda cadeia produtiva desenvolvida nestes territórios, nos processos de organização da comunidade, das famílias, ou seja, em toda sua base cultural, se configurando em uma luta permanente, em que os processos da luta por terra e território vão concebendo novas relações políticas, culturais e econômicas, que começam a ser experimentados, desde os acampamentos e os processos de mobilizações, seja pela pauta da Reforma Agrária, pelas políticas públicas, ou por ações com as demais forças políticas por pautas em comum. Os territórios não existem a não ser pelas relações sociais e de poder que os conformam e, assim, sempre afirmam os sujeitos sociais que por meio deles se realizam. Por isso, mais que a idealização de qualquer territorialidade é preciso verificar as relações que as conformam. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 179). Os processos de constituição de novos territórios através das lutas encampadas pelo MST, tendo como método a ocupação de terras, sejam públicas ou privadas, se configuram em uma construção histórica, desconstruindo e desnaturalizando o conceito da posse e uso da terra originada desde o processo de colonização das Américas. Segundo Porto-Gonçalves (2006, p. 161): De tal forma a territorialidade inventada pelos portugueses e espanhóis conseguiu impor-se ao mundo que sequer nos damos vontade que os territórios não são substâncias a-históricas e que são sempre inventados e, como tais, realizam concretamente os sujeitos históricos que os instituíram. Portanto, há que se 22 considerar o território e seus sujeitos instituintes e, assim, é fundamental que desnaturalizemos esse conceito. Podemos considerar que um dos processos de desnaturalização do conceito de territorialidade, determinada pela hegemonia do Capital, foi alavancada no fim dos anos de 1970 e início de 1980 com o processo de ocupações de terra e o surgimento do MST. Segundo Stédile (2005) a gênese do MST foi determinada por uma série de fatores, principalmente pelo aspecto socioeconômico que impactou fortemente os pequenos agricultores familiares, arrendatários, parceiros e filhos de agricultores devido às grandes transformações na agricultura brasileira, com a introdução extensiva da soja que contribuiu para agilizar os processos de mecanização na lavoura, na década de 1970. Este avanço do capital na agricultura fez com que um enorme contingente de agricultores, sobretudo oriundos da região sul do país, fosse descartada, sendo que uma parte desta massa de trabalhadores migrou para as regiões de novas colonizações propostas pelo governo militar do período, especialmente para Rondônia, Pará e Mato Grosso. Entretanto o modelo proposto para os agricultores que migraram era culturalmente diferenciado do que eles conheciam, frustrando a possibilidade de poderem produzir na forma que tinham desenvolvido em seus antigos territórios. Assim, o sonho dos que ainda pretendiam migrar e desbravar estas terras foi desfeito, a partir da chegada das notícias daqueles que já haviam partido de suas comunidades. A outra parte deste contingente migrou para as cidades, motivados pelo processo de industrialização do país, porém no final dos anos 1970 começaram a aparecer sinais de crise na indústria brasileira que se estendeu até o final da década de 1980. Devido a esta conjuntura, uma parte destes agricultores optou em não migrar, seja para a colonização oferecida pelo governo, seja ir para cidade, criando desta forma um processo de resistência camponesa. Assim, o MST surge a partir das condições objetivas do desenvolvimento da agricultura, buscando se contrapor à política excludente do capital para os territórios rurais. [...] em torno da questão agrária que vai emergir um dos mais importantes movimentos sociais da América Latina e Caribe, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Brasil. Sua estratégia de apropriação de terras com seus acampamentos e assentamentos tem contribuído, tal como na Colômbia, para que as classes dominantes tradicionais, não acostumadas à lógica do direito mas, sim à lógica do favor, apelem para a violência aberta, como o demonstram os grupos paramilitares colombianos e o aumento da violência privada no Brasil, como vem ocorrendo nas regiões de expansão dos grandes latifúndios produtivos do agronegócio, como demonstram fartamente documentos da Comissão Pastoral da 23 Terra (CPT, 2004). (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 170). A disputa se confere para além das terras e territórios específicos, pois para se ter hegemonia faz-se necessário ao Capital avançar para a disputa cultural, consolidando as várias facetas na constituição da hegemonia, com a capacidade de unificar em torno de seu projeto político diversos grupos, que mesmo com suas contradições de classe, constrói inter- relações e articulações entre tais forças que são tanto divergentes quanto convergentes entre si a depender dos interesses estratégicos e específicos, através de ações políticas, fazendo certas concessões, porém mantendo sempre o controle hegemônico. Gramsci (2001) observa que apenas a coerção, através de repressão e violência, como forma de defesa do capital/classe dominante, não é suficiente para dominar a sociedade, cuja dominação de classe também se dá pelo convencimento, consentimento e naturalização do sistema imposto às classes dominadas, devido aos diversos organismos privados da sociedade civil que constituem, de forma articulada, a formação dos padrões hegemônicos de representação da realidade, elaborando e difundindo cotidianamente como um instrumento ampliado da dominação de classe através dos meios de comunicação de massa, indústria cultural, igrejas, meios de comunicação social, etc. – na elaboração e difusão da ideologia dominante, que tem como consequência a desagregação humana. Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. (GRAMSCI, 2001, p. 94). Os processos de desagregação humana fazem parte do próprio mundo capitalista e são colocados em “xeque”, devido aos excessos nas formas de expropriação e de autoritarismo, práticas estas, que colocam em dúvida a “universalização de imaginários” dos símbolos materiais, das normatividades estabelecidas e da produção de imagens naturalizadoras do comportamento social capitalista (CECEÑA, 2005, p. 37). Em “contrapelo” ao domínio do pensamento hegemônico, decorrente de sua própria debilidade e contradições, surgem grupos organizados que lutam pela superação do modelo capitalista, na perspectiva de constituírem forças contra-hegemônicas. Segundo Gramsci (2001) a luta pela hegemonia está diretamente relacionada ao controle da direção ideológica. Quando o MST e outros setores de trabalhadores na 24 perspectiva da luta de classes se organizam por um projeto de organização social visando a elevação da consciência política na perspectiva da conquista da terra, colocando em “xeque” os conceitos de território e propriedade da terra, disputa diretamente com os padrões hegemônicos “naturalizados” pela classe dominante. Gramsci (2001) analisa que a luta pela emancipação política não se dá somente no campo da economia, mas também pelo acesso e produção de bens culturais e educacionais. A falta de acesso à educação e cultura impõe à classe trabalhadora uma condição de subalternidade, impossibilitando-lhe que constitua uma nova cultura. Ao nos indagarmos sobre uma nova cultura decorrente de um novo projeto cultural, que seja capaz de desconstruir o domínio ideológico da classe dominante, devemos levar em conta que é na luta contra-hegemônica que se possibilitará mudanças que possam superar as contradições fundamentais. A hegemonia é uma ação de classe, é a maneira que o poder é exercido para além de um conjunto de indivíduos de uma determinada classe, mas predominantemente através da cultura (GRAMSCI, 2001), portanto, para a construção de um processo contra-hegemônico é proposto uma luta pelo “desmonte” do intelectual orgânico da classe dominante e formar o intelectual orgânico da classe trabalhadora. Nessa perspectiva de superação e combate contra os padrões hegemônicos, estes segmentos organizados se articulam e constroem novos modos de pensar e elaboram novas formas de organização social, na perspectiva de construção de um outro mundo possível, saindo assim do senso comum, organizando e formando os sujeitos sociais a serem capazes de produzir um processo contra-hegemônico. Para Gramsci, este processo só se dá com o aprofundamento e aperfeiçoamento no que concerne ao conhecimento da realidade, tendo como premissa fundamental que a luta ocorra em um processo combinado simultaneamente para a transformação social e da própria consciência de classe, constituindo-se a “crítica real da racionalidade e historicidade dos modos de pensar” (GRAMSCI, 2001, p. 95), através do exercício da práxis social. Por práxis social, conforme afirma Sánchez Vázquez, se constitui em atividade prática que faz e refaz coisas, isto é, transmuta uma matéria ou uma situação, é “o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais o sujeito modifica uma matéria prima dada” (VÁZQUEZ, 2007, p. 245). Dentro de uma perspectiva política vale destacar a conceito de destacar o conceito de práxis social se define no processo em que grupos sociais aspiram mudanças nas relações 25 econômicas, políticas e sociais em determinados processos históricos a fim de mudar um sistema. Segundo Palazón (2007), em seus estudos sobre Vázquez: A práxis é uma prática que aspira melhorar radicalmente uma sociedade: tem um caráter futurista; trabalha a favor de um melhor porvir humano. A práxis revolucionária aspira uma ética, aspira viver bem com e para os outros em instituições justas. Isto supõe a mudança das circunstâncias sociais e do próprio ser humano. Os indivíduos são condicionados pela situação social em que se encontram. Este ser-estar em uma situação provoca suas reações mais ou menos revolucionárias ou, ao contrário, adaptadas a um status quo. Se o comportamento histórico não é previsível, deve sim explicar por que e como arraigam os projetos coletivos. (PALAZÓN MAYORAL, 2007, p. 337) No decorrer da história foram criadas diversas formas e experiências de organização e de luta por direitos, nas várias dimensões da vida social, desde processos reivindicatórios corporativos e de classe, passando por organizações de dimensão comunitária, chegando até às relativas em de questões de etnia, de raça, de gênero, etc., até aos processos revolucionários, tornando-se importantes protagonistas no que concerne à acumulação de forças políticas e para a formação e organização das massas populares. O MST surge no processo de busca dos camponeses e camponesas em superar suas barreiras em relação à sobrevivência, mas também, da “herança cultural de lutas” realizadas por organizações sociais e levantes populares, durante os vários contextos políticos e históricos da humanidade, assim avançando para o processo de construção da consciência na formação de novos sujeitos sociais, através de um processo sociocultural e histórico. [...] a consciência nunca pode ser mais que o ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida real”. Nesta mesma direção, a cultura corresponde ao desenvolvimento deste ser consciente. Cada modo de produção produz sua cultura, que se coloca como reflexo destas relações produtivas, como um universo capaz de conter as características e as contradições originárias destas relações. (BEZERRA, 2006, p. 24). A formação dos Sem Terra1, pode ser considerada pela produção da forma de um novo modo de pensar e de organizar sua vida, em sua relação com a natureza, resistência e necessidade de viver no campo, principalmente na relação com os demais sujeitos sociais: 1 Sem Terra é uma identidade historicamente construída, primeiro como afirmação de uma condição social: sem-terra, e aos poucos não mais como uma circunstância de vida a ser superada, mas como uma identidade de cultivo: Sem Terra do MST! Isto fica ainda mais explícito na construção histórica da categoria crianças Sem Terra, ou Sem Terrinha, que não distinguindo filhos e filhas de famílias acampadas ou assentadas, projeta não uma condição, mas um sujeito social, um nome próprio a ser herdado e honrado. Esta identidade fica mais forte à medida que se materializa em um modo de vida, ou seja, que se constitui como cultura, e que projeta transformações no jeito de ser da sociedade atual e nos valores (ou anti-valores) que a sustentam. 26 outros Sem Terra, militantes sociais de diversos movimentos políticos, comunitários, religiosos, etc. A formação desta práxis social interativa, seja no cotidiano da vida nos acampamentos e assentamentos, nos processos de luta pela terra e por justiça social, seja na busca de conquistas sociais no âmbito do direito as políticas públicas (educação, saúde, cultura, créditos para produção agrícola, etc.) e na luta contra a hegemonia do capital “reside uma relação de reciprocidade entre o momento da produção (trabalho) e os demais momentos” (BEZERRA, 2006, p. 28). O ser social se constitui também através de outras esferas, tais como a política, a arte, os valores morais, a religiosidade, o lazer, dentre outras que, na verdade, realizam a mediação com a natureza e com os outros homens. No entanto, estas esferas são, inquestionavelmente secundárias, em um sentido ontológico, em relação ao trabalho, que é o lócus primeiro de realização da vida social. (BEZERRA, 2006, p. 28). A vida destes sujeitos sociais começa a produzir uma nova forma de refletir e produz também uma nova forma de organizar sua vida, a partir das relações sociais e organizativas nos acampamentos, na relação na própria formação como militante social, se relacionando e produzindo um determinado modelo de vida, construído a partir da relação com a natureza, na constituição de uma práxis social interativa. Podemos identificar, sob o aspecto da cultura, dentro de uma perspectiva antropológica que os Sem Terra buscam construir outra forma de vida específica, que vai além das relações da conquista da terra e direito ao trabalho, mas também consiste nas conexões de mutualidade entre a organização das formas do meio de produção e da própria organização das outras instâncias da vida, onde podemos considerar o que chamamos de organizar aspectos da infraestrutura com componentes de caráter da superestrutura. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que se erguem sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as Constituições que, depois de ganha uma batalha, a classe triunfante redige, as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais na cabeça dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o seu desenvolvimento ulterior até a sua conversão num sistema de dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, em muitos casos predominantemente, a sua forma. Aqui está presente a interação de todos esses fatores, na qual, através de toda a multidão infinita de casualidades [...], acaba sempre por impor-se como necessidade o movimento econômico (MARX; ENGELS, 2010, p. 103-104). Podemos considerar que a superestrutura seja a parte mais complexa da vida social. Temos de avaliar a ‘superestrutura’ em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar ‘a base’, afastando-a da noção 27 de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico (WILLIAMS, 2011, p. 47) É necessário estar focado para observar que na vida social o poder hegemônico busca uma fragmentação aparentemente insociável entre cultura, modos de produção, política e consciência. Portanto, é imprescindível desconstruir esta visão, pois não podemos conceber estas questões como desconectadas da organização da vida social. As relações vividas pelo homem [...] irão dialeticamente influenciar, e em muitos casos, redirecionar o trabalho e a esfera da produção. Sobretudo nas sociedades mais complexas, onde esta esfera da práxis interativa parece dispor de relativa autonomia, podemos afirmar que os costumes, os valores, as relações provenientes desta esfera exercem sobre o modo de trabalho e de produção uma influência que não é mais marginal, direcionando-os conforme a organização deste ou daquele tipo de sociedade enquanto universo cultural. (BEZERRA, 2006, p. 29-30) Realizar enfrentamentos, formular e criar novas formas de vida estão contidas nas principais linhas políticas definidas pelo MST. Lutar por outra cultura, que se contraponha, mas que ao mesmo tempo esteja inserida em uma sociedade subordinada à hegemonia do capital, é estar em confronto permanente e de forma mais ampla do que a luta específica pela conquista da terra e dos meios de produção. É impossível pensarmos em transformações na esfera do trabalho, sem levarmos em conta a configuração cultural e política de uma sociedade como um todo, onde os territórios estão inseridos em um contexto social desigual, em que as representações e padrões hegemônicos de representação da realidade são naturalizadas (VILLAS BÔAS, 2007, p. 6). Portanto, os Movimentos Sociais são vítimas do neoliberalismo globalizado (HOUTART, 2007, p. 463). Compreende-se, assim, que para a formação do pensamento contra-hegemônico tenha, de fato, ascendência sobre os sujeitos sociais, ela não deve permear somente os meios de produção, mas sim, toda esfera da vida social, ou seja, sua cultura. Porém, temos que entender que a cultura é edificada desde o desenvolvimento das forças produtivas para a garantia da sobrevivência humana, bem como em sua relação com a natureza. As relações entre trabalho e cultura devem ser consideradas esferas constitutivas do ser social: A cultura surge como esfera determinada pelo trabalho, constrói-se como a manifestação da consciência social. [...] Assim, cada forma diferenciada de organizar o trabalho e a vida material corresponde um universo cultural equivalente, o qual se constrói como algo dinâmico e historicamente referenciado. (BEZERRA, 2006, p.23) 28 Dentro do bojo da práxis social, precisamos considerar a dimensão pedagógica, dos processos formativos realizados nos espaços organizados pelo MST, que segundo Caldart (2004) extrapola os limites da questão agrária e perpassa para a força política e na construção de um novo sujeito sociocultural. O MST, em seu processo histórico e político, forja uma práxis pedagógica a partir das experiências cotidianas nos processos de luta pela terra e em suas ações formativas, onde este fazer político baseia-se nos ideais da igualdade e justiça social, na construção de práticas culturais e educativas que assentem novas relações entre o ser humano e a natureza, e as relações de trabalho que superem a exploração e a alienação. Este processo como forma de contestação adquire força cultural e simbólica, porque suas ações se enraízam em uma questão social que é forte e justa. (CALDART, 2004, p. 22). Este processo pedagógico se dá desde o período de acampamento, em que o MST busca organizar os grupos em um contínuo processo de formação coletiva, na constituição de uma nova cultura na construção de um novo sujeito histórico.(HOUTART, 2007, p. 461) Segundo Houtart (2007) os movimentos sociais nascem das contradições criadas pelo capital e para serem reconhecidos como grupo social coletivo necessitam de serem reconhecidos pela história, como mais do que uma simples revolta, mais de que um grupo de interesses, mais do que uma iniciativa com autonomia do Estado (TOURAINE, 1999, apud HOUTART, 2007, p. 462). Os movimentos nascem da percepção de objetivos como metas de ação, mas para existirem no tempo necessitam um processo de institucionalização. Criam-se papéis indispensáveis para sua reprodução social. Assim nasce uma permanente dialética entre metas e organização cujo perigo potencial sempre presente é a possibilidade de que a lógica de reprodução se imponha sobre as exigências dos objetivos procurados. (HOUTART, 2007, p. 462). Nos processos de resistência contra a ofensiva do capital, o MST, através de sua organicidade e processos de formação, foca na constituição de outros modelos de assentamentos, que divirjam ao modelo proposto pelo agronegócio, onde possam ser constituídas novas práticas, em níveis de existência individual e coletiva. Essas práticas e linhas políticas, definidas pelo MST, têm como perspectiva contribuir na construção de um território favorável ao desenvolvimento humano de forma integral, que articule as diversas esferas da vida, que implique também na dimensão cultural, na mudança de matriz tecnológica de produção através da agroecologia e na preservação do meio ambiente. O MST é o movimento camponês mais atuante na luta pela terra no Brasil. Nessas três décadas de existência do Movimento, dezenas de outros movimentos surgiram. Em 2008, o número de movimentos camponeses na luta pela terra era noventa e três (MASSARETTO, 2008). O crescimento do número de movimentos intensifica a 29 disputa territorial que tem à frente o MST, que é responsável por 63 por cento das famílias que lutaram por terra nos últimos sete anos. (FERNANDES, 2008, p. 83) Podemos considerar que, para o MST, o assentamento deve ser um território de resistência cultural, sendo o acampamento a “primeira escola” de formação política e humana do Movimento, com o objetivo de dar os “primeiros passos” na construção de novas práticas individuais e coletivas, a fim de fortalecer o exercício de ações, no que concerne aos valores humanos para a elevação do nível de consciência dos sujeitos de sua base social e militância. A formação do MST combina ideias, práticas e valores a cada dia, construindo e interligando os vários tipos de consciência: política, ecológica, medicinal, agrícola, pedagógica, estética, artística, etc. Circunscrito nos processos de resistência, o assentamento é um território conquistado e forjado na luta cotidiana, através das relações estabelecidas pelos sujeitos, pelas identidades, pelas bagagens culturais trazidas, conquistadas no período de acampamento e pelas tradições e formação já vivenciadas e incorporadas pelos sujeitos sociais, refletindo várias dimensões da vida. Estes sujeitos são cercados pelas relações vivenciadas na sociedade do capital, que se dão em meio à contradição entre a idealização de um novo modo de vida e a luta pela sobrevivência cotidiana, pois o assentamento significa a apropriação não mais apenas no campo simbólico, mas também da materialização das lutas de resistência nos territórios em disputa. Assim, constata-se que após a conquista da terra, é necessário também buscar formas de sustentabilidade, uma vez que é imprescindível a conquista de políticas públicas haja sustentação no território conquistado. Sobre a luta por direitos, através das políticas públicas, é necessário levantar suas contradições: a disparidade de um Estado capitalista, voltado aos interesses dos setores privados e das elites, em relação a um governo que tem na sua concepção a formulação e constituição de políticas de desenvolvimento social. 2.1 Um recorte do conceito de cultura Para pensar cultura como forma de organização da vida, faz-se necessário interpretá-la como relacionada aos modos de produção e seus processos históricos. Faz-se necessário também, analisar as relações culturais e seus conceitos, organizados pelos diversos períodos históricos, para que o MST avance no delineamento conceitual de cultura. 30 A investigação sobre questões do âmbito cultural, na perspectiva da análise no viés marxista. Não trataremos de uma revisão bibliográfica sobre o conceito de cultura, o que poderá ser desenvolvido em outros trabalhos. Também considerando a discussão de Cunha (2009, p. 313) sobre o conceito de cultura e “cultura”, apontamos que aqui nesse trabalho nos aproximamos do que a autora chama de “cultura para si”. Uma vez que o recorte de análise dessa pesquisa são os processos formativos e de consolidação do Coletivo Nacional de Cultura do MST, outra questão tangente é a construção identitária dos militantes. Sobre a questão da identidade a abordagem se coloca no âmbito do que Hall (2006, p. 45) chamou de “política de identidade”. Para realizar esta análise teórica, optamos por escolher os estudos de Raymond Williams, expoente intelectual do denominado Movimento Britânico chamado de Nova Esquerda2. Segundo Cevasco (2008) através dos Estudos Culturais em Raymond Williams, o conceito de cultura pode ter significados distintos de acordo com a visão política em determinados períodos históricos. A autora concorda também com Williams, que o termo cultura no século XVIII é relacionado à produção agrícola, na conotação do cuidar. Posteriormente, no final do século XVIII o conceito se amplia para uma abrangência metafórica ligada ao cultivo das faculdades mentais e espirituais. O conceito de cultura começou, assim, a ter correlação com a palavra civilização, passando a ser usado como substantivo abstrato para designar o processo intelectual e espiritual. Destaca-se que o termo civilização era aceito como um estado realizado, a partir da palavra civitas, ou seja, ordenado e educado, havendo uma alteração conceitual em contraposição ao estado de barbárie natural (CEVASCO, 2008, p. 16). A partir deste período foram encampados vários debates e tomadas de posição sobre o conceito de cultura, onde os iluministas franceses, corroborando com a ideia de civilização sustentada pela crença da razão, iniciam sua contribuição teórica para a incorporação do novo conceito para o avanço dos ideais capitalistas. Para os iluministas, o progresso das sociedades era sustentado pela crença da civilização constituída através da razão. Este pensamento recebeu vários ataques, principalmente dos intelectuais alemães, que defendiam a tradição nacional contra a civilização moderna e com isso no romantismo 2 Movimento que, a partir do final dos anos 50, reuniu diversos intelectuais e artistas em torno de novas formas de pensar e fazer política. Entender esse movimento é relevante, pois constitui a base sócio-histórica dos Estudos Culturais. 31 alemão, cultura passaria a ser tudo que fosse relacionado com valores subjetivos, voltados para as questões do espírito, para os sentimentos e emoções, se contrapondo à proposição desenvolvida pelos intelectuais franceses para o uso da razão, na criação e adoção de valores universais como forma de avançar para o progresso definido e defendido pelos iluministas. Enfim, o debate era uma disputa entre o lado francês, que buscava a hegemonia europeia através de termos universais e que fosse aplicado em todas as sociedades da época, contra os intelectuais alemães que estavam preocupados em resgatar e valorizar a moral, o comportamento e os costumes tradicionais dos povos germânicos. No século XIX, quando começaram a surgir os grandes acontecimentos científicos, que colocaram em xeque valores formados dentro de uma visão teológica da origem da Terra e, com isso, a possibilidade de desconstruir os processos comunitários que a religião instituiu em séculos, a partir do advento da teoria evolucionista de Charles Darwin, Mathew Arnold escreve sobre a possibilidade de a cultura ser a “nova religião”, a fim de desempenhar a função social de “juntar” as pessoas em comunidade. O futuro da poesia (cultura) é muito grande, pois é na poesia quando é digna dos seus mais altos desígnios que o futuro de nossa raça vai encontrar um apoio cada vez mais amplo. Não há credo que não tenha sido abalado, não há dogma que não tenha sido questionado, não há tradição que não tenha sido abalada. Nossa religião se materializou em fatos, e agora os fatos a abalam, mas para a poesia a ideia é tudo, o resto do mundo é uma ilusão divina, a poesia se apoia na emoção e a emoção se alia à uma ideia e a ideia é um fato. (MATHEW, 1869, p. 53 apud CEVASCO, 2008, p. 18). O autor citado acima concebe a cultura como uma esfera superior, a partir da qual se poderia julgar a sociedade, pois a cultura seria autônoma, fora do conflito social como o “espaço da doçura e da luz”. Este conceito só teria sentido se a humanidade não fosse dividida em classes sociais, portanto a esfera de apreciação e definição dos valores artísticos era destinada às pessoas de alto nível intelectual e social. Nesta mesma perspectiva, Leaves reflete a posição elitista da burguesia, em um momento que se dão os primeiros passos rumo ao surgimento Indústria Cultural. O autor busca preservar a cultura como a grande tradição da humanidade, uma forma de reagir frente à sociedade de massas. Em qualquer período, é de uma minoria muito pequena que depende a apreciação perspicaz da arte e da literatura: apenas alguns são (com exceção de casos de tipo simples e familiar) capazes de um juízo espontâneo, de primeira-mão. Embora maior, é ainda uma pequena minoria que é capaz de endossar esse juízo de primeira- mão por meio de uma reação pessoal genuína [...] A minoria capaz não apenas de apreciar Dante, Shakespeare, Baudelaire, Hardy (para citar importantes exemplos), 32 mas de reconhecer que seus sucessores mais recentes constituem a consciência da raça em um dado momento. [...] dessa minoria depende nosso poder de tirar proveito da melhor experiência humana do passado; ela mantém vivas as parcelas mais sutis e perecíveis da tradição. Dela dependem os padrões implícitos que ordenam o modo de vida mais refinado de nossa época, a percepção de que esse vale mais que aquele, de que essa e não aquela é a direção que tomamos. Sob sua guarda, para usar uma metáfora que é também metonímia e admite bastante reflexão, está a língua, o idioma cambiante do qual depende o modo de vida refinado e sem o qual a distinção do espírito é frustra e incoerente. Por “cultura” eu me refiro ao uso de tal língua. (LEAVES, 1930 apud CEVASCO, 2008, p. 20). Leaves busca salvaguardar à burguesia a função de ser a detentora da produção cultural, porém, com o advento da Indústria Cultural, a classe trabalhadora começa a ter acesso a livros baratos, acesso a filmes, pois até então a disseminação da cultura era restrita e o sentido de comunidade era organizado pelos os grandes “curas”, constituindo uma forte mudança de paradigmas sobre o sentido de cultura. Este conceito de cultura vigorou até os anos 1960, em que cultura era realizada por uma minoria que pretensiosamente acreditava preservar a grande tradição da humanidade, ou seja, uma cultura referente ao erudito, elitista, uma minoria detentora do poder de usufruir e endossar o que era ou não cultura, no que concerne à produção do conjunto de obras artísticas. A partir dos anos 1960, depois da passagem de duas guerras mundiais, o avanço das tecnologias voltadas aos meios de comunicação de massa e da expansão da indústria cultural, o sentido de cultura somente como erudição vai perdendo o espaço e a palavra cultura é substituída por culturas (CEVASCO, 2008, p. 24). Foi neste contexto histórico que um grupo de intelectuais britânicos marxistas, que, atentos às diversas mudanças sociais, levantaram a necessidade de reformular o conceito de cultura, de forma que atendesse aos anseios das transformações culturais que aconteciam naquela época na Europa, que passava por uma grande crise política e econômica, principalmente na Inglaterra. Estes pensadores criaram uma nova disciplina, na qual se denominaria como Estudos Culturais. Dentre estes intelectuais, se destacavam Edward R. Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams, que eram oriundos do Partido Comunista da Grã-Bretanha, romperam com o partido por discordarem da forma de atuação da URSS, sede do Comitern, sobretudo decorrente tanto da invasão da Hungria em 1956 como da ortodoxia e conservadorismo sustentado pelo regime soviético. Após o rompimento, criam um novo grupo com o objetivo de rever o pensamento marxista e pensar novas formas de organização em vistas à transformação social. Este grupo ficou conhecido como Nova Esquerda. Sua posição na sociedade era contra o conservadorismo da direita e contra o reducionismo e dogmatismo do 33 Partido na URSS. A disciplina criada e denominada Estudos Culturais surge a partir do desenvolvimento de projetos de intervenção política na sociedade britânica, principalmente voltada para a educação pública, que era uma das grandes inquietações deste movimento. A atuação era realizada através de uma experiência com trabalhadores de um curso noturno, em que os estudantes eram provocados ao debate, com base em suas próprias demandas. Os trabalhadores levantaram a necessidade de entender a vida, a sociedade, entender como vivem, onde estão e para onde vão, bem como pelo direito de usufruir da “alta cultura” que sempre lhes foi negada. O desafio era repensar e formular um novo conceito de cultura, no entanto, sem abandonar o pensamento marxista em que, também, fosse oposição aos valores determinados pelas elites, considerando e valorizando a cultura da classe trabalhadora. O Movimento Nova Esquerda também se dedicou em estudar, traduzir e publicar livros e textos de pensadores marxistas. Buscaram rever a tônica economicista e encontrar a forma para incluir a preocupação com as questões culturais. Williams, no livro Marxismo e literatura, na perspectiva em definir cultura, demonstra a alta complexidade em construir este conceito, sendo imprescindível colocá-lo dentro de um determinado contexto histórico e tendo como premissa o materialismo histórico, portanto, vê a necessidade de resgatar diversas teorias culturais e outras que possibilitavam a pensar sobre o tema. Williams observa que no processo histórico, cultura, até então, era entendida sob os seguintes aspectos: - A cultura como cultivo e consequentemente ligada aos cuidados com o desenvolvimento das habilidades humanas, se referindo como progresso unido aos ideais universais (Iluminismo Francês); - A cultura como sinônimo de erudição; - A cultura como conjunto de ideias e valores compartilhados em que dá sentido ao pertencimento a um grupo social, com objetivo de uma coesão social. (Romantismo Alemão). Para Williams, o que vigorou até os anos 1960, cultura era vista como a “alta cultura” em que a ação cultural era somente a concessão das elites na difusão de produtos para as demais classes. O conceito da palavra era entendido como produto separado da vida comum, era produzido e centrado nas artes e na educação para o “topo da pirâmide social”. Segundo Cevasco (2008, p. 110): 34 Em contraste com essa concepção, Williams se apropriou da noção, antes mais recorrente em antropologia, de cultura como um modo de vida justamente para demonstrar que se trata de algo comum a toda a sociedade, que inclui, além das grandes obras – modos de descoberta e de criação, os significados e valores que organizam a vida comum. (CEVASCO, 2008, p. 110). Os estudos produzidos por Williams tinham como objetivo criar outro conceito que fosse capaz de entender, dentro de um olhar marxista, como a produção cultural era uma força geradora de sustentação do capitalismo e, ao mesmo tempo, também uma forma de emancipação humana. A questão em jogo era de que forma a cultura se constituía em um instrumento de produção de hegemonia da sociedade, mas que ao mesmo tempo apresentava pequenas brechas que possibilitavam o surgimento de forças contra-hegemônicas. A proposta era de se elaborar um conceito que fosse possível construir um pensamento de libertação ao estruturalismo, que segundo Williams aprisionava a cultura como um fenômeno separado das relações sociais. Williams defende que a cultura é de todos, que está no cotidiano dos sujeitos sociais e vê a necessidade de ter atenção na observação dos modos em que a cultura se desenvolve e se transforma. A cultura é algo comum a todos: este o fato primordial. Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra. A sociedade em desenvolvimento é um dado e, no entanto, ela se constrói e reconstrói em cada modo de pensar individual. A formação desse modo individual é, a princípio, o lento aprendizado das formas, dos propósitos e dos significados de modo a possibilitar o trabalho, a observação e a comunicação. Depois, em segundo lugar, mas de igual importância, está a comprovação destes na experiência, a construção de novas observações, comparações e significados. (WILLIAMS, 2015, p. 5). Podemos considerar que cultura, ao se tratar como algo comum em toda sociedade, se constitui em um processo de construção da organização dos sentimentos coletivos. Williams, em seus estudos sobre estrutura do sentimento, em que analisa a experiência do sentimento social, vai buscar, principalmente na arte e na literatura, os caminhos para compreender os sentimentos de uma determinada época. Observa ainda, que esta experiência não é baseada em características saudosistas, mas sim como bagagens vividas por grupos sociais em um determinado período histórico. Podemos considerar as experiências de luta como sendo reconhecidas e convertidas em sentimentos, que estão em constante transformação, de acordo com as novas vivências dos sentimentos cotidianos nas lutas sociais. 35 O autor também define que as experiências vividas em um determinado tempo histórico são significados de valores comuns, experimentados ativamente através das experiências históricas e as artes armazenam esta estrutura, pois elas formalizam através de suas linguagens, as experiências da vida social e que não servem somente como um elo entre gerações e épocas, mas também para compreender os fenômenos sociais que vão se renovando no caminhar da história. Segundo Williams (1979, p. 18): Muitas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são as conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam à vista. O que era então uma estrutura vivida é agora uma estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e até generalizada. [...] O que isso significa na prática é a criação de novas convenções e de novas formas. Assim, Williams reflete sobre dois aspectos importantes para compreender a produção de cultura; o primeiro sendo o conjunto das imagens, símbolos e seus significados nos sentimentos coletivos, sendo a sua reprodução e existência já garantida pela própria reprodução na vida cotidiana dos sujeitos sociais; e o segundo aspecto concerne à produção de novos significados e de como as novas ideias, imagens e significados produzidos e são apresentados a um determinado grupo social, isto é, o espaço continuidade de produção da ordem simbólica, o lugar que os grupos desenvolvem novas condições de produção, compreensão da cultura e da proposição de novas leituras. Cada cultura comporta, em sua dinâmica social, um conjunto de valores comuns àqueles que dela compartilham e que a tornam especifica em relação a outras culturas. É, assim, uma esfera que gera identidade entre seus membros e que define, portanto, não só categorias para a inclusão ou exclusão, mas também a afirmação dos sujeitos sociais enquanto produto e suporte das lutas sociais e políticas de grupos ou comunidades inteiras [...] enquanto elemento da construção social destes setores no interior de suas diversas relações sociais. (BEZERRA, 2006, p. 51). Uma cultura tem dois aspectos; os significados e direções conhecidos, em que seus membros são treinados; e as novas observações e significados, que são apresentados e testados. Estes são os processos ordinários das sociedades humanas e das mentes humanas, e observamos através deles a natureza de uma cultura: que é sempre tanto tradicional quanto criativa, que tem tanto os mais ordinários significados comuns quanto os mais refinados significados individuais. Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos “[...] para designar todo um modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo”. (WILLIAMS, 2015, p. 5). Através desta análise, podemos observar a construção histórica do conceito de cultura construído na Europa, que de fato se configura em disputa pela hegemonia, que está 36 entrelaçada às questões históricas, políticas e culturais. Para analisarmos a questão cultural no Brasil, não poderia ser de outra forma, vamos nos debruçar às disputas que se constituíram na formação cultural brasileira. 37 3 FORMAÇÃO CULTURAL NO BRASIL – HISTÓRIA E DISPUTA “Para nós que descendemos dos sobreviventes aos banhos de sangue e à esfola da implantação da cultura europeia em nossos trópicos, cabe um acréscimo esclarecedor: nossa experiência histórica demonstra que essa ideia de uma cultura europeia superior é também uma violência assassina contra nós e contra o legado dos nossos antepassados”. Iná Camargo Costa Para entendermos a lógica da formação cultural do Brasil, vamos nos ater em alguns períodos históricos e aos processos de disputa pela hegemonia, que se dão desde o período colonial, pela atuação e características conformadas em seu desenvolvimento social. Segundo Coutinho (2011), o Brasil emerge como colônia na época em que o capital mercantil mundial estava em pleno florescimento, devendo ser compreendido como “pré- nação”, pois não possuía as características essenciais no que se refere ao modo de produção capitalista, visto que ainda estava alicerçado na produção através da exploração de mão de obra escrava, característica que circunscreve a formação social e econômica do país. O país já “nasce” dependente e submetido ao processo de acumulação do capital, tendo como núcleo a Europa, em uma esfera de dependência cultural, buscando uma adaptação das formas europeias para a realidade brasileira. Otília Arantes, organizadora do livro Acadêmicos e Modernos, da coleção de textos de Mario Pedrosa, diz que, segundo o autor, estávamos “condenados ao moderno” (PEDROSA, 1959, apud, ARANTES, 2004, p. 22), dentro de um cenário de produção cultural, porque estávamos a reproduzir em nosso presente e futuro o passado dos mais adiantados, acarretando um profundo conservadorismo e alienação da intelectualidade, fronte às verdadeiras contradições sociais numa corrida que poderia não ser a nossa nem da humanidade (ARANTES, 2004, p. 15). O Brasil era interpretado como “civilização oásis” (PEDROSA, 2004) na concepção de um processo cultural de um país dependente, primeiramente como colônia e a seguir submisso aos interesses internacionais, uma vez que a cultura europeia já estava se despontando como uma possível cultura universal, não encontrou obstáculos para sua entrada no país. Segundo Lúcia M. B. Oliveira, podemos salientar mesmo que Américo Vespúcio tenha chegado ao Brasil em 1501 e batizado como Bahia de Todos os Santos como o primeiro porto natural, somente em 1549 foi criada a primeira divisão administrativa do Brasil, fundada 38 pelo fidalgo Tomé de Souza, a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Até o século XVIII as questões relativas ao debate e à produção cultural brasileira inexistiam, a formação cultural se dava pela assimilação da cultura europeia, travestida de universal e com a ideologia colonial: A colônia foi marcada por um controle rígido da cultura, com a proibição de instalação da imprensa, a censura a livros e jornais estrangeiros, a falta de incentivo à educação e a ausência de universidades (90% da população brasileira era analfabeta em meados do século XIX). Mesmo com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão com a consequente instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro e o traslado de acervos reais que deram origem a instituições como a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes, não houve ações sistemáticas que configurassem uma política cultural, quadro inalterado com a independência e a proclamação da República. (OLIVEIRA, 2012, p. 1). Podemos afirmar que até meados do século XVIII, na perspectiva da erudição, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil pelos portugueses, por questões de ordem política, o Colégio dos Jesuítas era então considerado o principal espaço para a transferência da cultura letrada para a colônia. O colégio oferecia um curso primário para meninos brancos, filhos de colonos, e para catecúmenos, e um curso de Artes, Letras e Teologia, que graduou seus primeiros bacharéis, os Mestres em Artes, em 1575. O Colégio, que propiciava a convivência entre o clero e leigos letrados, estimulava as primeiras produções literárias da colônia. Dele saíram, por exemplo, o poeta Gregório de Matos e o orador sacro Antônio Vieira (CUNHA, 2008, p. 18). O Brasil, na sua conformação de país dependente, não idealizou um projeto de nação que houvesse uma concepção e aspiração popular. Vale a pena destacar o episódio, ainda no período colonial, da disputa entre Missão Francesa chegada ao Brasil na segunda década do século XIX, que defendia uma ação estética que objetivava trazer de volta os padrões da arte neoclássica, e entre os artistas brasileiros e mestres lusos, que sustentavam que o curso da nossa verdadeira tradição artística era o barroco (PEDROSA, 1955, p. 17, apud, ARANTES, 2004). Pedrosa reflete que apesar de tudo ser “postiço” na colônia, ocorreu um fato interessante em relação aos artistas brasileiros e lusos: Já começavam a beber na Inglaterra as fontes de uma inspiração que, ia, pouco depois, ganhar, contra o neoclassicismo e contra David-Ingres, a batalha do romantismo em Paris. Dessas mesmas fontes ia, mais tarde, dentro do coração da grande metrópole, jorrar uma nova revolução estética: a revolução impressionista. (PEDROSA, 1955, p. 17). Os intelectuais que viviam no Brasil, ou os nascidos no país naquele período, não 39 buscavam conhecer e nem reconheciam a realidade em que viviam e vão à busca de referências européias, e consequentemente a classe dominante se nutria das suas produções, identidade e valores. Há uma grande separação entre os intelectuais da elite e as classes populares, decorrente do contraste entre as ideias produzidas a partir do pensamento europeu e a realidade brasileira existente. Mesmo assim, com este contraste, a elite persistia em realizar as discussões estéticas, em teorias e ideias estritamente vinculadas ao outro lado do oceano. As construções teóricas dos discursos na questão da formação do povo brasileiro, eram uma tentativa de moldar ou inventar esta identidade, mesmo que muitas vezes, principalmente na fase do Romantismo, foi criada uma forma idealizada - uma “ficção” luso-tropical tentando criar uma identidade nacional, em uma tentativa de se “descolar” do pensamento europeu, que continuou a reproduzir o pensamento colonial e construindo o imaginário da suposta harmonia de uma herança cultural indígena, africana e europeia. Segundo Schwarz (2001), este pensamento ilusório funcionou até o século XIX, em que a proposta de uma nova cultura foi baseada na diversificação dos modelos europeus em detrimento do modelo português. De outro lado a disputa se dava por uma proposta romântica liberal da sociedade brasileira, que nem de longe conseguia chegar à visão de uma perspectiva nacional mais autêntica. Com a restauração da “ordem” colonial, os padrões franceses e ingleses saem de cena e é retomada a proposta de uma “criação” portuguesa. O esquema básico seria o seguinte: uma pequena elite dedica-se a copiar a cultura do Velho Mundo, destacando-se assim do grosso do povo, que permanece inculto. Em consequência, literatura e política têm posição exótica e seremos incapazes de criar coisa nossa, que saia do fundo de nossa vida e história. Implícita na reclamação está a norma da cultura nacional orgânica, passavelmente homogênea e com fundo popular, norma aliás que não pode ser reduzida a uma ilusão da historiografia literária ou do Romantismo, pois em certa medida expressa as condições da cidadania moderna. É por oposição a ela que o quadro brasileiro minoria europeizada, maioria ignorante configura um disparate. Por outro lado, para situá-la realisticamente, note-se que a exigência de organicidade coincidia no tempo com a expansão de Imperialismo e ciência organizada, duas tendências que tornavam obsoleta a hipótese de uma cultura nacional autocentrada e harmônica. O pecado original, causa da desconexão, foi a cópia. (SCHWARZ, 2001, p. 10). Reforçando esta temática, Alambert (2012) analisa que no final do século XIX as questões centrais do debate brasileiro sobre cultura e política poderiam ser resumidas a estas: [...] devemos ou não abolir a escravidão?; Como fazer parte do “concerto” das nações e da lógica do trabalho livre, moderno e industrial? A monarquia ou a república são as formas políticas necessárias para um país livre e moderno? Culturalmente éramos meros copistas das ideias e das formas estrangeiras. (ALAMBERT, 2012, p. 109). 40 O início do século XX pode ser considerado como marco no panorama político, cultural e econômico, principalmente na cidade de São Paulo, através do crescimento econômico de alta escala em torno da produção cafeeira, surgindo um entrechoque de uma nova geração de artistas e intelectuais dispostos a transformar radicalmente o panorama cultural da República, se contraponto a uma cultura mais ou menos europeizada: erudita, pedante e conservadora, em conjunto com tradições provincianas, que vai culminar na Semana de Arte Moderna de 1922. A Semana de Arte Moderna pode ser entendida como uma performance em forma de um ato de guerrilha aristocrática de jovens burgueses “antiburgueses” (ALAMBERT, 2012, p. 109), sendo que estes modernistas brasileiros estavam ligados desde o princípio ao que se processava de modernidade na Europa. Alambert (2012) salienta ainda que o movimento modernista fosse contemporâneo ao tenentismo, da fundação do Partido Comunista do Brasil e dos debates que levariam ao projeto da “Escola Nova”. Naquele momento, as transformações nas artes, na educação, na política e na vida urbana caminhavam próximas e davam a impressão otimista de um progresso contínuo. Mario Pedrosa nos conta que Mario de Andrade em uma conferência em 1942 afirma que: O modernismo não era uma estética nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário, que, se a nós nos atualizou, sistematizando como constância da inteligência nacional o direito antiacadêmico de pesquisa estética, e preparou o estado revolucionário das outras manifestações do país, também fez isto com o resto do mundo [...], mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa. (ANDRADE, 1942 apud PEDROSA, 2004, p. 135). Citamos estas questões históricas para melhor ilustrar que até 1930 o que se havia de produção e debate sobre cultura eram importadas da Europa. Segundo Oliveira (2012) ocorreram no período do Estado Novo do governo Getúlio Vargas, o marco histórico das primeiras ações de política de Estado no Brasil em questões relacionadas à cultura brasileira. São incorporados novos sujeitos sociais; uma burguesia emergente e o proletariado dentro de um processo de industrialização e urbanização com um Estado nacional centralizado, convivendo com as antigas oligarquias que ainda se mantinham no poder. Estes eram os elementos que mudavam a cara do Brasil. Foi neste período que pela primeira vez o Estado de fato realizaria uma série de ações 41 na área da cultura, criando instituições e legislações específicas. Não podemos deixar de citar que neste período houve a influência dos modernistas brasileiros como Mario de Andrade no Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, onde elevou as políticas culturais a um novo patamar. Porém, as ações culturais levadas a cabo pelo Estado intencionavam criar mecanismos de controle para a produção cultural, no que se refere à produção da indústria cultural e meios de comunicação de massa, com seu conteúdo devidamente controlado pelo Estado Novo, principalmente aqueles veiculados nos rádios e jornais, além de incentivar a produção de conteúdo que fortalecesse o sentimento pelo “Nacional”. (OLIVEIRA, 2012, p. 1). No mesmo período, o samba começa a se despontar como música nacional, mais como expressão de uma cultura marginal, de natureza afro-brasileira, tendo sido hostilizado pelos setores conservadores. Aceitar o samba como música nacional significava se “misturar com o povo”. Um samba que retrata bem este momento é “Prá que discutir com madame”, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, gravado em 1945: “Madame diz que a raça não melhora. Que a vida piora por causa do samba, Madame diz o que samba tem pecado Que o samba é coitado e devia acabar, Madame diz que o samba tem cachaça, Mistura de raça mistura de cor, Madame diz que o samba democrata, é música barata sem nenhum valor, Vamos acabar com o samba, Madame não gosta que ninguém sambe Vive dizendo que samba é vexame Prá que discutir com madame. No carnaval que vem também concorro Meu bloco de morro vai cantar ópera E na avenida entre mil apertos Vocês vão ver gente cantando concerto Madame tem um parafuso a menos Só fala veneno meu Deus que horror O samba brasileiro democrata Brasileiro na batata é que tem valor.” Neste samba, que foi composto em meados do Século XX, vê-se ainda a grande influência das teorias europeias, oriundas do positivismo e pelo “higienismo”, em que acreditavam que o progresso só seria possível com o embranquecimento da raça e da cultura. Podemos ver como exemplo, as intervenções violentas realizadas na parte central da cidade do Rio de Janeiro, a fim de mudar a paisagem urbanística, através das derrubadas dos morros 42 do Castelo e Santo Antônio e consequentemente das favelas criadas nestes territórios, a remoção de cortiços, promovendo uma elitização do centro da cidade (ARIAS, 2011, p. 24). Mesmo que a intervenção nos morros e a remoção dos cortiços tenham acontecido no começo do século XX, o processo de “limpeza” continuou a ser realizado, mostrando a grande fantasia sobre a harmonia entre as classes sociais e étnicas. Portanto, o Estado Novo decidiu implementar uma política cultural, a fim de valorizar a brasilidade e o nacionalismo, em uma estratégia de propagandear a harmonia entre classes sociais. Esta política demonstrava uma roupagem moderna, porém politicamente conservadora (RUBIM, 2007, p. 16), ou seja, a produção cultural realizada pelas elites retratava o povo, entretanto o próprio povo não era considerado produtor de cultura. Mesmo assim, foi a primeira vez que o Estado Brasileiro realmente criou leis, organizações e instituições culturais. As intervenções realizadas pelo Estado tinham também o objetivo de contribuir para a “boa imagem” do governo e do regime. As relações entre cultura e propaganda se intensificaram neste período. Foi criado, em 1934, o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, vinculado inicialmente ao Ministério da Justiça e, posteriormente em 1937 ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), cria o Serviço de Radiodifusão Educativa e o Instituto Nacional de Cinema com o intuito de “instruir e orientar” as massas populares, e, portanto, a não permitir “informações errôneas” ou sem apelo patriótico. Segundo Rubim, no que se configura às intervenções realizadas a fim de garantir o controle do Estado na produção cultural, podemos destacar as seguintes ações: - Criação de legislações para: cinema, radiodifusão, artes, profissões culturais; - Constituição de inúmeros organismos culturais; - Superintendência de Educação Musical e Artística; - Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE, 1936); - Serviço de Radiodifusão Educativa (SRE, 1936); - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, 1937); - Serviço Nacional de Teatro (SNT, 1937); - Instituto Nacional do Livro (INL, 1937); - Conselho Nacional de Cultura (CNC, 1938). Segundo Oliveira (2012) é importante destacar que foi no período democrático de 1945 a 1964 que, principalmente com Juscelino Kubitschek e João Goulart, diversos 43 processos culturais emergiram na sociedade brasileira e passaram a abordar e intervir diretamente nas questões políticas e sociais, obtendo maior visibilidade. A partir dos anos 1950, com uma radicalização política, que acontecia, não só no Brasil, mas mundialmente, houve uma efervescência cultural intensa em diversos países, em que as manifestações estéticas se associavam diretamente com uma consciência política voltada para a contestação à ordem estabelecida e a busca por transformação social. Segundo Estevam (2015) na segunda metade dos anos 1950 e início da década de 1960, foram marcadas fortes mobilizações sociais relacionadas às lutas camponesas. No Nordeste, principalmente em Pernambuco, foram as Ligas Camponesas que desenvolveram um processo intenso de lutas contra o latifúndio. No Rio Grande do Sul, o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) realizava sua primeira ocupação, já nas cidades, os sindicatos e setores rebelados das forças armadas atuavam articuladamente, tanto na organização quanto em manifestações (ESTEVAM, 2015, p. 87). Essas ações políticas contribuíram para esta amálgama entre arte e política, realizando uma forte intervenção na produção artística do país, podemos considerar que houve de fato uma renovação de linguagem estética. Principalmente o teatro, a música e o cinema, através do Cinema Novo, foram as artes que mais emergiam no debate e produção nova cultural. Vale ressaltar que em 1961, com a presença de João Goulart na presidência da República, se emergia uma efervescência político-cultural, a partir de certa proximidade de setores da esquerda com e no poder, através de uma política de um projeto nacional-popular que buscava se afirmar. Tal projeto incluía uma série de reformas que buscavam superar os problemas estruturais do país, as chamadas reformas de base, cujo objetivo era promover medidas econômicas e sociais de caráter nacional-desenvolvimentista e trabalhista, que previam uma maior intervenção do Estado na economia. Além desta intervenção na economia, as reformas de base incluíam também a Reforma Agrária, Educacional, Eleitoral, Urbana, Bancária e Fiscal. A Reforma Educacional proposta atravessou a década de 1960, criou uma efervescência política-cultural, em que setores da esquerda tiveram participação ativa, como, por exemplo, a União Nacional dos Estudantes (UNE) que alavancou um grande processo cultural a partir de um programa pedagógico, pautado na conscientização política e na mobilização social. Os Centros Populares de Cultura (CPC), criados em 1961, tinham a proposta de levar teatro, cinema, artes plásticas, literatura e outros bens culturais ao povo, a 44 fim de realizar processos formativos através das linguagens artísticas. Desencadeou-se através desta ação uma ebulição na produção cultural brasileira. Vários artistas, como Augusto Boal, Guarnieri, Vianinha e Chico de Assis, perceberam que o teatro, apesar de ter sido tornado um espaço para reflexão política, era limitado para apenas uma pequena plateia formada pela classe média, principalmente por estudantes. Com esta reflexão, vários artistas se organizaram junto a UNE e se somaram no projeto de construção do CPC. O projeto denominado UNE-Volante objetivava democratizar a forma organizativa dos Centros Populares de Cultura pelo Brasil, para que pudessem ser coordenados não somente pelos estudantes, mas pelos trabalhadores e trabalhadoras. Segundo Estevam, este projeto foi inspirado pela experiência que estava sendo realizado em Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular (MCP). "O Movimento de Cultura Popular nasceu no Recife. Na cidade proletária. Nos mocambos dos morros, mangues e alagados. No Recife da insurreição pernambucana. Do nativismo. Da abolição. Das revoluções [...] O Movimento de Cultura Popular nasceu da miséria do povo do Recife. De suas paisagens mutiladas. De seus mangues cobertos de mocambos. Da lama dos morros e alagados, onde crescem o analfabetismo, o desemprego, a doença e a fome. Suas raízes mergulham nas feridas da cidade degradada. Fincam-se nas terras áridas. Refletem o seu drama como “síntese dramatizada da estrutura social inteira”. Drama também de outras áreas subdesenvolvidas. Do Recife com 80.000 crianças de 7 a 14 anos de idade sem escola. Do Brasil, com 6 milhões. Do Recife, com milhares e milhares de adultos analfabetos. Do Brasil, com milhões. Do mundo em que vivemos, em pleno século XX, com mais de um bilhão de homens e mulheres e crianças incapazes sequer de ler, escrever e contar. O Movimento de Cultura Popular representa, assim, uma resposta. A resposta do prefeito Miguel Arraes, dos vereadores, dos intelectuais, dos estudantes e do povo do Recife ao desafio da miséria. Resposta que se dinamiza sob a forma de um Movimento que inicia, no Nordeste, uma experiência nova de Universidade Popular3. (GASPAR, 2009, p. 1). No primeiro ano da gestão de Miguel Arraes como prefeito de Recife, o MCP foi criado a partir de uma articulação entre Arraes e um grupo de artistas e intelectuais “progressistas”, contando com a participação de Paulo Freire, juntamente com Abelardo da Hora, Germano Coelho, Ariano Suassuna, Hermílio Borba, Cesar Leal, Francisco Brennand, entre outros. O MCP tinha como um dos principais objetivos realizar mudanças radicais na estrutura educacional, atuando através de uma proposta calcada no conceito de cultura popular, realizando trabalhos com a população pobre, nas escolas, na alfabetização de jovens e adultos e na constituição de núcleos de cultura. O MCP criou formas de trabalho em um 3 Texto de Germano Coelho, um dos fundadores do MCP, escrito em 1962. 45 processo educativo pautado no fazer artístico e na valorização da vida dos sujeitos sociais. Atuaram em diversos campos da cultura como o teatro, o cinema e a valorização das festas da cultura popular. As ações do MCP contagiaram vários trabalhadores das mais diversas áreas de conhecimento, que foram se agregando ao movimento ao longo de sua existência. Segundo Alves, os integrantes do MCP eram formados em sua maioria pela classe média urbana e por estudantes universitários, que atuavam prioritariamente em ações formativas, voltadas principalmente para a educação de jovens e adultos que iam além dos limites da escolarização, através de um “projeto político de superação das desigualdades e da exploração do trabalho por meio da cultura, capaz de promover a conscientização e, consequentemente, a ação política com a organização das classes populares. Tal consciência para a vida política seria gestada em um processo revolucionário no qual a cultura exercesse um papel determinante, formando, juntamente com as condições materiais objetivas, um conjunto teórico-prático capaz de levar as massas à conquista de poder. A cultura popular estava comprometida com a promoção de atividades voltadas para a formação da consciência ativa das massas, levando-a à percepção de que o movimento real da história se confunde com seu próprio destino. Em 1963, no governo João Goulart, é incorporada a metodologia e ações do MCP e de outros movimentos culturais com as ações do Movimento de Educação de Base (MEB), criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que já estava realizando ações através de escolas radiofônicas nas rádios católicas. Com apoio do Governo Federal, MCP e MEB passam a atuar conjuntamente em dimensão