Universidade Estadual Paulista Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Doutorado LORENA D’ARC MENEZES DE OLIVEIRA ENTRE AS BORDAS DA CERÂMICA: liames entre o barro e o leite São Paulo – SP 2018 Universidade Estadual Paulista Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Doutorado LORENA D’ARC MENEZES DE OLIVEIRA ENTRE AS BORDAS DA CERÂMICA: liames entre o barro e o leite Trabalho submetido à Banca de Doutorado em Artes, como requisito exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, sob a orientação da Profa. Dra. Geralda Mendes F. S. Dalglish (Lalada), para obtenção do título de Doutora em Artes. São Paulo – SP 2018 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP O48e Oliveira, Lorena D`Arc Menezes de, 1964- Entre as bordas da cerâmica: Liames entre o barro e o leite / Lorena D`Arc Menezes de Oliveira. - São Paulo, 2018. 248 f.: il. color. Orientadora: Profª. Drª. Geralda Mendes Ferreira da Silva Dalglish (Lalada Dalglish). Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Argila. 2. Leite. 3. Cerâmica. 4. Arte contemporânea. I. Dalglish, Geralda Mendes Ferreira da Silva (Lalada Dalglish). II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 738 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) OLIVEIRA, Lorena D’Arc M. de ENTRE AS BORDAS DA CERÂMICA: liames entre o barro e o leite Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Artes. Área de concentração: Artes Visuais Trabalho defendido e aprovado em: Banca: ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Orientadora Profa. Dra. Geralda Mendes Ferreira Silva Dalglish - IA-UNESP ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Prof. Dr. Agnus Germano Valente - IA-UNESP ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Prof. Dr. Hugo Fernando Salinas Fortes Junior - ECA-USP ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Profa. Dra. Cláudia Fazzolari - ECA-USP ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Profa. Dra. Marta Luiza Strambi - IA-UNICAMP Dedico este trabalho à grande mãe natureza, às minhas ancestrais, à minha mãe Terezinha Menezes, à minha filha Jade Liz. À minha querida orientadora, Profa. Dra. Lalada Dalglish, pela sua sabedoria, atenção, experiência e orientação especiais. À minha Banca de qualificação, Profa. Dra. Norma Grinberg e Prof. Dr. Agnus Valente, pela contribuição para esta pesquisa. Ao Mestre Carlos Fajardo que apontou o meu caminho do leite. Aos professores do Instituto de Artes com os quais pude obter uma valiosa formação. Aos atenciosos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação e ao apoio alegre e sorridente da Vera. Aos meus amigos, que de alguma forma, me incentivaram e me deram apoio em vários sentidos, em especial Maurício Monteiro, Giovani Fantauzzi, Wagner Priante, Fernando Vilhegas, Alexandre Vilas Boas, Hélio Ribeiro e Marcos Guilherme. À querida Lourdes Molina, que pos em meu caminho o presente das cápsulas de vidro. Às minhas queridas amigas Flávia Leme e Elan Santos, por me acolherem em suas vidas com afeto e confiança. Às prestimosas amigas e companheiras Kátia Bastani, Mônica de Souza e Argentina Santos. Aos meus amigos e colegas da Escola Guignard-UEMG, em especial ao Diretor, Professor Dr. Adriano Gomide, pelo companheirismo, incentivo e apoio constantes. Ao Professor Dr. Alexandre Costa, pelas indicações de leitura. À Iago Gouvêa, que além de incentivador, foi grande companheiro nas viagens e produções. Ao meu grande amigo e confidente Tarcísio Siqueira que sempre segurou minhas ondas. Às minhas grandes incentivadoras e companheiras, que dão sentido à minha vida, minha mãe Terezinha e minha preciosa filha Jade Liz. Minha Gratidão Entre as bordas da cerâmica: liames entre o barro e o leite é uma pesquisa tanto prática e quanto teórica, que abrange o barro, o leite e a cerâmica como elementos de desdobramentos plásticos, que incluem, ocasionalmente, outras mídias. Nesta Tese, discorro sobre aspectos do leite enquanto material nutritivo, cultural, histórico e simbólico, em suas representações e materialidades, fazendo uma leitura de sua manifestação na arte, apontando artistas do passado e contemporâneos. Considerando leite, argila crua e queimada como elementos norteadores de minha produção artística, disserto sobre o meu processo, traçando comparações e análises com obras de artistas que comungam, de algum modo, com a minha poética, além de englobar diálogos do campo da arte, bem como de outros campos do saber. Palavras-chave: Cerâmica Contemporânea. Argila. Leite. Arte Contemporânea. Materialidade. Resumo Between the ceramic borders - bonds between the clay and the milk is a practical and theoretical research embracing ceramic and milk as elements in plastics deployments which, occasionally, also include other medias. In this thesis, I discourse about aspects of the milk as a nutritive, cultural, historical and symbolical material in its representations and materialities, interpreting its manifestation in art, pointing artists in the past and at the contemporaneity. Considering milk, raw and fired clay as guiding elements of my artistic practice, I descant about my process tracing comparisons and analyses of works of artists whose somehow share with my poetics, besides encompassing dialogs in the art field as well as to other fields of knowledge. Keywords: Contemporary Art. Contemporary Ceramic. Clay. Milk. Materiality. Abstract Figura 1. Mulher de Willendorf. Fonte: 30.000 Years of Art. The Stoty of Human Creativity Across Time and Space. London; New York, NY: Phaidon Press, 2007. P. 54. Figura 2. Mulher de Hohle Fels. Fonte: disponível em: https://www.urmu.de/de/Museum%2BSteinzeithöhlen. Acesso em: 22 jan. 2017.P. 54 Figura 3. Vaso Trípode em terracota. Coleção Avery Brundage. Fonte: disponível em: https://quizlet.com/13262800/asian-art-mu- seum-quiz-7-flash-cards/. Acesso em: 24jan. 2017. P. 57. Figura 4. Moringa Trípode. Minas Gerais, séc. XIX. Fonte: Noivas da Sêca, pg. 77. Foto: Márcia Alves. P. 58. Figura 5. Pablo Picasso.Visage de femme. Fonte: Catalogue exposition Picasso, Céramiste à Vallauris, 2004. P. 59. Figura 6. Simone Leigh. Pitch. Collection of Sherry B. Bronfman, courtesy of the artist. http://www.simoneleigh.com/files/nkajournal. pdf. Acesso em: 18 out. 2017. P. 59. Figura 7. Fragmento de seio com pontos pintados. Fonte: O livro dos símbolos – reflexões sobre imagens arquetípicas. (Arnold, 23). MARTIN, 2012, p. 389. P. 61. Figura 8. Pierre Verger. Da série deuses africanos Brasil. Fotografia. 1981. Fundação Pierre Verger. P. 61. Figura 9. Desenho de uma mama lactante dissecada de um corpo feminino. Datada de antes de 1858. Fonte: GRAY, LEWIS, 1918, p. 1268. P. 62. Figura10. Ártemis de Éfeso. Escultura em tamanho natural. Fonte: Museu Nacional de Arqueologia de Nápoles. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2016. P. 64. Figuras 11, 12. Benvenuto Cellini. Perseu e a cabeça de Medusa. Foto: Carlos Lorenzo. P. 65. Figura 13. William Hogarth. Boys Peeping. Gravura em metal. 14,7 x 12,3 cm. Fonte: British Museum. Disponível em: http://www. britishmuseum.org > Acesso em: 30 jan. 2016. P. 66. Lista de Figuras Figura 14. Mihail Chemiakin. Cybele. Fonte: disponível em: http://visualizingbirth.org/cybele>. Acesso em: 14 jun.2017. P. 67. Figura 15. Louise Bourgeois. Fonte: The Easton Foundation / VEGAP, Madrid. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2016. P. 67. Figura 16. Louise Bourgeois. Estudo da natureza. Sèvres, Fonte: disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2016. P. 68. Figura 17. Louise Bourgeois. Fillette. Fonte: disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2016. P. 68. Figuras 18, 19. Ronit Baranga. My Artemis. Fonte: Elad Baranga. Disponível em: www.ronitbaranga.com>. Acesso em 15 dez. 2016. P. 70. Figura 20. Peter Paul Rubens. Nascimento da Via Láctea. Fonte: Museu do Prado. Disponível em: https://www.museodelprado.es>. Acesso em: 22 nov. 2015. P. 72. Figura 21. Isis em forma de árvore alimentando o deus egípcio na tumba de Tutmés III. O livro dos símbolos. MARTIN, 2012, p. 129. P. 73. Figura 22. Manuscrito islandês do século XVIII. Fonte: disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Búri#/media/File:Manuscript_Audhumla.jpg. Acesso em: 01 nov. 2016. P. 75. Figuras 23, 24. Desenhos do pajé Tukano Gabriel Gentil. Fonte: GENTIL, 2007, p. 243-245. P. 79. Figura 25. Bronze da Lupa Capitolina. Fonte: BALLARINI, 1994, pg 24. P. 80. Figura 26. Andy Warhol. Dick Tracy. 1960. Fonte: HONNEF, 2004, p. 15. P. 88. Figura 27. Vaso em terracota. Fonte: Museu do Louvre. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Egypte_lou- vre_180_pot.jpg. P. 89. Figura 28. Vaso Rhyton. Fonte: Metropolitan Museum. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/247366>. Acesso em: 13 abr. 2018. P. 90. Figura 29. Mastos. Fonte: Metropolitan Museum. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/255543>. Acesso em: 13 abr. 2018. P. 92 Figura 30. Mastos. Fonte: British Museum. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_ob- ject_details.aspx?assetId=275707001&objectId=398802&partId=1 >. Acesso em: 13 abr. 2018. P. 92. Figura 31. Jatte-téton ou bol sein. Fonte: disponível em: https://www.eclecticprod.com/fr/module/83/331/le-bol-sein- >. Acesso em: 13 abr. 2018. P. 94. Figura 32. Jean Jacques Lagrenée. Jatte-téton ou bol sein. Fonte: Musée National de la Ceramique, Sèvres. Disponível em: http:// www.sevresciteceramique.fr/site.php?type=P&id=630 >. Acesso em: 25 mar. 2017. P. 94. Figura 33. Karl Lagerfeld. Taça de seio de Cláudia Schiffer. Foto: Martine Beck-Coppola. Fonte: Disponível em: https://www.photo.rmn.fr/archive/10-514205-2C6NU0QXYFKD.html >. Acesso em: 07 mar. 2017. P. 95. Figura 34, 35. Hubert Barrère. A Virgem de Sèvres. Fotos: Estelle Hanania. Disponível em: http://www.hubertbarrere.com/en/hubert -barrere>. Acesso em: 07 mar. 2017. P. 96. Figura 36. Jean Fouquet. Virgem e a criança. Fonte: Musée Royal des Beaux-Arts. Disponível em: Musée Royal des Beaux-Arts/www. kmska.be>. Acesso em: 10 dez. 2016. P. 97. Figura 37. Cindy Sherman. # 216. Fotografia. Fonte: disponível em: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysher- man/gallery/7/>. Acesso em: 10 dez. 2016. P. 97. Figura 38. Catacumbas de Priscila, em Salária, Roma, Século II. Fonte: Disponível em: . Acesso em: 22 nov.2016. P. 98. Figura 39. Frida Kahlo. Minha ama e eu. Coleção Museu Dolores Olmedo Patiño, México. Kahlo, TASCHEN, 2006, pg. 47. P. 100. Figura 40. Rosana Paulino. Ama-de-Leite. Fonte: PAULINO, 2011, p. 56.P. 101. Figuras 41, 42, 43, 44. Alison Saar. Mar de Néctar. Fonte: L A Louver Gallery. Disponível em: www.lalouver.com/exhibition.cfm?- tExhibition_id=503>. Acesso em: 08 mai. 2018. P. 102. Figura 45. Alison Saar. Equinócio. Fonte: Disponível em: https://www.artsy.net/artwork/alison-saar-equinox-1>. Acesso em: 08 mai. 2018. P. 103. Figura 46. Marguerite Gérard. A refeição do gato. Villa Musée Fragonard. Fonte: BALLARINI,1994, pg. 124. P. 104. Figura 47. Johannes Vermeer. A Leiteira. Rijksmuseum, Amsterdam. Fonte: BALLARINI,1994, pg. 125. P. 105. Figura 48. Jeff Wall. Milk. Fonte: Disponível em: https://www.moma.org>. Acesso em: 11 jan. 2017. P. 107. Figuras 49, 50. Maria Laet. Milk on Pavement. Fotos: Tom Colebrook. PP. 108 e 109. Figura 51. Andres Serrano. Milk/Blood. Fonte: Disponível em: http://www.artnet.com >. Acesso em: 12 jan. 2017. P. 110. Figuras 52, 53, 54, 55, 56, 57. Sarki. No início, a aparência. Fonte: disponível em: http://www.sarkis.fr>. Acesso em: 06 jun. 2017. PP. 111, 112, 113. Figuras 58. Takashi Murakimi. My Lonesome Cowboy. Foto: Joshua White. Fonte: Art Now, TASCHEN, 2005, pg. 206. P. 114. Figura 59. Takashi Murakimi. Hiropon. Foto: Joshua White. Fonte: Art Now, TASCHEN, 2005, pg. 206. P. 114. Figuras 60 e 61. Takashi Murakimi. Mik. Peach Milk. Fonte Disponível em: https://www.blumandpoe.com/exhibitions/takashi-murakami-0>. Acesso em:19 dez. 2016. P. 115. Figuras 62, 63. Marina Abramovic´. Balkan, Erotic, Epic. Fonte Disponível em: http://www.li-ma.nl/site/catalogue/art/marina-abra- movic/balkan-erotic-epic/9603>. Acesso em: 21mai. 2015. P. 116. Figuras 64, 65. Marina Abramovic´. Holding de milk. Courtesy Galleria Lia Rumma, Milano-Napoli. On loan to Madre • museo d’arte con- temporanea Donnaregina, Napoli. Photo © Amedeo Benestante. Direitos autorais: todos os direitos reservados (c) LIMA. PP.118 e 119. Figuras 66, 67, 68. Wolfgang Laib. Fonte: OTTMANN, 2000, pgs. 168, 46, 47. PP. 122, 123, 124. Figuras 69, 70, 71, 72, 73. Ai Weiwei. Fonte: COSTA, 2010, pgs. 25, 26, 27. PP. 125, 126, 127. Figuras 74, 75, 76. Sônia Labouriau. Bala Toffee. Fotos: Bruno Vilela. PP. 128, 129. Figura 77, 78. Lorena D’Arc. Na trilha. Instalação e detalhe. Fotos: Tibério França. P. 135. Figuras 79, 80 e 81. Lorena D’Arc. Cadê a água? Fotos: Tibério França. PP. 137, 138. Figuras 82, 83, 84, 85. Lorena D’Arc. Vídeo-pintura. Fotos/Frames: Flander de Souza. P. 140. Figura 86. Lorena D’Arc. Vazio entre nós. Foto: Miguel Aun. P. 142. Figura 87. Cristaleira na sala de jantar. Foto: Jade Liz. P. 146. Figura 88. Detalhe da pequena coleção de leiteiras. Foto: Jade Liz. P. 147. Figuras 89 à 102. Lorena D’Arc. Leite derramado. Fotos: Jade Liz. PP. 148, 149, 150, 151. Figura 103. Louise Bourgeois. Série Insônia. Sem título. Fonte: Centro Cultural Light, 1997, p. 3. P. 155. Figura 104. Lorena D’Arc. Desenho. Foto: Jade Liz. P. 156. Figura 105. Lorena D’Arc. Empregando o calor do ferro sobre desenho. Foto: Jade Liz. P. 157. Figura 106. Lorena D’Arc. Revelando o desenho. Foto: Jade Liz. P. 157. Figuras 107, 108. Lorena D’Arc. Caminho do leite. Foto: Jade Liz. PP. 158, 159. Figura 109. Caixa de papelão com capsulas de vidro. Foto: Jade Liz. P. 161. Figura 110. Preenchendo capsulas de vidro com fluido leitoso. Foto: Jade Liz. P. 163. Figura 111. Giovani Fantauzzi lacrando capsulas de vidro com fluido leitoso. Foto: Jade Liz. P. 163. Figura 112. Lorena D’Arc. Derrame. Foto: Jade Liz. P. 165. Figuras 113 à 117. Lorena D’Arc. Derrame. Foto/Performance. Fotos: Jade Liz. PP. 166, 167, 168, 169. Figura 118. Lorena D’Arc. Hidratando a argila com leite. Foto: Jade Liz. P. 170. Figuras 119 e 120. Lorena D’Arc. Audumla. Foto: Jade Liz. PP. 171, 173. Figura 121. Lorena D’Arc. Árvore Láctea I. Fotografia digital. Foto: Jade Liz. P. 176. Figura 122. Lorena D’Arc. Detalhe de Árvore Láctea rompido no chão. Foto: Jade Liz. P. 177. Figura 123. Lorena D’Arc. Árvore Láctea II. Fotografia digital. Foto: Jade Liz. P. 179. Figura 124. Lorena D’Arc. Árvore Láctea III. Fotografia digital. Foto: Jade Liz. P. 181. Figura 125. Lorena D’Arc. Liame I. Foto: Jade Liz. P. 183. Figura 126. Lorena D’Arc. Liame II. Foto: Jade Liz. P. 184. Figura 127 e 128. Lorena D’Arc. Liame III. Foto: Jade Liz. P. 185. Figuras 129 e 130. Lorena D’Arc. Liame IV. Foto: Jade Liz. PP. 186, 187. Figura 131. Lorena D’Arc. Liame V. Foto: Jade Liz. PP. 188, 189. Figuras 132 e 133. Lorena D’Arc. Liame VI. Foto: Jade Liz. PP. 190, 191. Figuras 134 e 135. Lorena D’Arc. Chaleirisse. Porcelana e tricô de tripa de porco. Foto: Samuca Martins. P. 192. Figura 136. Lorena D’Arc. Projeto inicial para objeto cerâmico e tricô de tripa de porco. Foto: Lorena D’Arc. P. 193. Figura 137. Fios de couro natural em repouso no ateliê. Foto: Jade Liz. P. 194. Figura 138. Ártemis dentro da terceira câmera do forno de Bisen. Foto: Sonia Imanishi. P. 195. Figura 139. Recebendo Ártemis das mãos de Erli Fantini. Foto: Jade Liz. P. 196. Figura 140. Lorena D’Arc. Ártemis. Cerâmica. Foto: Jade Liz. P. 197. Figuras 141 e 142. Lorena D’Arc. Ártemis. Fotos: Jade Liz. PP. 199, 200 Figura 143. Lorena D’Arc. Resultado do brainstorming. Foto: Jade Liz. P. 202. Figura 144. Lorena D’Arc. Manga com Leite. Foto: Jade Liz. P. 204. Figura 145. Foto de meu corpo pós-operatório, processo de resguardo. Foto: Jade Liz. P. 206. Figura 146. Lorena D’Arc. Bicos de biscoito de porcelana com base modelada. Foto: Lorena D’Arc. P. 207. Figura 147. Lorena D’Arc. Bicos de porcelana secando aguardando a queima. Foto: Lorena D’Arc. P. 207. Figura 148. Lorena D’Arc. Mamífera. Porcelana e pele de carneiro. Foto: Jade Liz. P. 208. Figura 149. Lorena D’Arc. Oca e Láctea I. Foto: Jade Liz. P. 210. Figura 150. Lorena D’Arc. Oca e Láctea II. Foto: Jade Liz. P. 211. Figuras 151 à 161. Lorena D’Arc. Leite para Gaia. Fotos: Jade Liz. PP. 218, 219, 220, 221, 222, 223. Apresentação Introdução - Das bordas da cerâmica ao líquido primário Capítulo I - Um mergulho na matéria-prima: o leite 1.1 O colostro: a seiva que precede o leite 1.2 O leite: matéria-prima e símbolo 1.3 O seio como fonte: cosmogonias e produções artísticas 1.4 Místicas e lendas sobre o leite Capítulo II - O leite na prática artística 2.1 O leite em procedimentos históricos, artísticos e sua aplicação 2.2 Representações simbólicas do leite na obra de arte 2.3 A materialidade do leite como elemento plástico Sumário 31 35 45 50 51 53 72 85 87 89 120 Capítulo III - Entre as bordas da cerâmica – uma poética pessoal 3.1 Sonho do leite derramado 3.2 Leite derramado 3.3 Caminho do leite 3.4 Administrando acasos: quebras e derrames 3.4.1 Derrame 3.5 Audumla 3.6 Árvore Láctea 3.6.1 Liames 3.7 Ártemis 3.8 Manga com leite 3.9 Mamífera 3.10 Ocas e lácteas Considerações finais Referências bibliográficas Anexo: Entre o Barro e o Leite - registros da exposição 131 143 144 152 160 164 170 174 182 192 201 206 209 213 225 235 O mundo contemporâneo, em sua pluralidade, constrói-se em rápidas e profundas mudanças. As dissoluções e distorções dos limites geográficos e culturais fazem surgir novos lugares e espaços cujas fronteiras não se definem, propiciando um alargamento da experiência estética, dos conceitos de arte, que, na atualidade, não se fixam mais pelos antigos critérios canônicos. Assim como nas demais categorias classificadas no âmbito da arte, a produção cerâmica contemporânea apresenta suas bordas borradas entre os limites fronteiriços do que entendemos ser utilitário: escultura, desenho, gravura, pintura e tantas outras formas e modos de expressão ou linguagem plástica. Deste modo, constamos, em grande parte da produção cerâmica artística contemporânea, com novos conceitos estéticos e formas de expressão específicas, que, em trânsito por outros campos do saber e outros territórios culturais, resultam em alquimias interdisciplinares, multidisciplinares e transdisciplinares. Devido às influências do vasto campo de expressões, vejo a importância de traçar diálogos a partir da produção artística cerâmica, indo além da complexidade de sua prática. Como um arquivo, a cerâmica nos permite acesso às memórias em sua superfície, seu corpo e sua forma; seus territórios, da pré- história à atualidade, se expandem nos mais diversos domínios do saber, delineando sua presença marcante ao longo da cultura humana, nas evoluções culturais, sociais, científicas e tecnológicas. Ao apresentar uma potencialidade da cerâmica que vai além de suas características físico-químicas, vejo nela um berço de aplicabilidades e significações, que fazem desse material um meio potente à linguagem, à memória e, consequentemente, à tradição e à contemporaneidade. Procuro, por meio da cerâmica, estabelecer relações entre a tradição (implicada em sua própria materialidade e tecnologia) e outros materiais e mídias, com a finalidade de tecer novas leituras e significações que articulem lugares entre o arcaico e o contemporâneo, a materialidade e a temporalidade, a permanência e o perecível, a tradição, a memória e a linguagem popular, o cru e o cozido, a terra e o leite. Apresentação O leite, como elemento plástico abordado nesta pesquisa, surgiu a partir de um sonho que tive em 2009, em que derramava leite sobre a terra. Desta memória, mobilizei-me a buscar sentidos e significações até chegar aqui nesta Tese enquanto pesquisadora e artista. De certo, não será possível abarcar todo o conhecimento sobre o leite - o líquido da vida -, como também acredito não ser possível saciar a minha inquietude e a minha busca artística. A imagem do leite sendo absorvido pelo chão de terra ainda persiste em minha memória e dela faço a interpretação do ato de libar o leite no chão, como um ato iniciático em busca de um caminho de sabedoria. Em decorrência dessa imagem, tratei de reunir, neste trabalho, liames entre o leite, o barro, a cerâmica e suas bordas. O leite, assim como o barro, apresenta-se nesta Tese como elementos culturais, materiais e simbólicos. De minhas leituras e interpretações sobre eles, procedo decifrando signos, produzindo sentidos e criando mundos possíveis, fazendo de minha prática artística um lugar de problematização. 37 Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. (WITTGENSTEIN,1968). Durante o Mestrado intitulado A Poética do Pote (OLIVEIRA, 2011), desenvolvi uma pesquisa em torno do pote cerâmico relacionado à prática artística, tanto em meu processo de criação como na produção da cerâmica artística contemporânea. A partir da forma da tigela, desenvolvi múltiplos utilizando recursos tipográficos e serigráficos, fazendo interferências, com o tricô de tripa de porco ou a pele de carneiro, com o propósito de agregar novas leituras e sinapses entre a superfície inorgânica e refratária da cerâmica a corpos orgânicos, maleáveis, perecíveis, que cercam suas bordas. Dos trabalhos apresentados como conclusão do Mestrado na exposição A Poética do Pote, desenvolvi uma série relacionada ao chá. Ao final da pesquisa, percebi o quanto a cultura do chá estava longe de minhas origens e meu cotidiano. Notara que os bicos das chaleiras modelados por mim mais tinham a ver com o universo das leiteiras do que dos bules de chá. Por ser mineira e neta de fazendeiro de origem portuguesa, conscientizei-me de minha falta de identificação ao universo do chá, devido a minha raiz cultural. Vi que minhas tigelas brancas de porcelana eram mais coloniais, e, com isso, despertei-me para o líquido que poderia estar contido nelas: o leite. E naquilo que contém e no que está contido, vi: o leite, primeiro alimento ofertado pela mãe, líquido naturalmente relacionado aos símbolos da abundância, da fertilidade, do conhecimento e, principalmente, da imortalidade; a terra, matéria densa, sólida e maleável ao mesmo tempo, substância universalmente reconhecida como matriz, matéria primordial, que coagula e da qual se faz a cerâmica. O leite e a terra, ambos os elementos naturais de força primeva, estão diretamente relacionados à nutrição, à fartura, ao conhecimento, como também aos princípios da vida e à morte. Essas analogias, dentre outras, são abordadas nesta Tese, com o intuito de discutir Introdução - Das bordas da cerâmica ao líquido primário 39 a presença do leite na arte, as relações que esse material suscita, além das experimentações de sua materialidade, que ora se apresenta diretamente ligada ao universo da cerâmica e suas bordas. Procuro, a partir de tais referências, de teor poético-teórico, desenvolver trabalhos plásticos que articulem questões relacionadas à materialidade, à temporalidade, à memória, à linguagem popular, à tradição e à contemporaneidade. Esta pesquisa, de caráter empírico em alguns momentos, concentra-se numa pratica laboratorial a partir do momento em que sagro o leite como matéria-prima para a feitura de desenhos, para hidratar a argila e modelá-la, desenvolver trabalhos em registos fotográficos e videográficos ou por meio de instalações performáticas. Os materiais leite e argila agem conforme suas características específicas; desses comportamentos e reações que lhe são próprios, exploro seus recursos em minha poética. Vejo esta pesquisa afinada ao pensamento de Júlio Plaza, quando pressupõe a teoria da formatividade (1993) de Luigi Payreson, ao abordar que: Os artistas querem entender como se processa o fazer, este é seu significado. Este querer-saber-do-fazer é ir ao encontro da metalinguagem própria do artista, ou seja, aquela que diz respeito à Poética como processo formativo e operativo da obra de arte. De tal forma que, enquanto a obra se faz, se inventa o modo de fazer (PLAZA, 2003, p. 46). Acredito que, no decorrer da produção plástica, a obra vai ganhando corpo, autonomia, e, concomitantemente, descortinam-se novos olhares e reflexões sobre os modos operacionais e metodológicos da produção. Nessa conformidade, os fazeres práticos e teóricos, artísticos e reflexivos, tornam-se experiências indissociáveis. Neste sentido, vejo uma aproximação ao pensamento de René Passeron (1997), para o qual a Poïética, apresenta-se como um campo de estudo da conduta criadora, da ação e obra em execução, diferentemente da Estética, que faz uma análise depois que a obra está concluída. No campo da Poïética, há uma postura fenomenológica do fazer, e o artista observa, criticamente, os espaços 41 possíveis para exercitar a conduta criativa em si mesma e se lança no fazer artístico, atento às significações de seu processo, indo ao encontro da sua metalinguagem. Neste querer-saber-do-fazer, as possibilidades de criação ampliam-se para além do fazer cerâmico, abrindo-se espaços para conexões com outras mídias e materiais. Ao abordar as matérias leite e argila como elementos fundamentais para a construção de minha Poïética, lanço-me nesta pesquisa do querer-saber-do-fazer. Inicio esta pesquisa com Um mergulho na matéria prima: o leite. Considerando a matéria-prima como substância principal utilizada na fabricação de alguma coisa, matéria a ser trabalhada, lapidada, por estar na qualidade de ser algo que está em estado bruto (HOUAISS; VILLAR, 2001), recorro à classificação das matérias-primas proposta por André Leroi-Gourhan, que as agrupa de acordo com os aspectos técnicos segundo as propriedades físicas dos corpos no momento de seu tratamento, distinguindo suas categorias entre sólidas e fluidas. Neste sentido, emprego a importância de compreender as matérias, considerando a classificação proposta por Leroi-Gourhan, a argila como matéria-prima sólida semiplástica e o leite como elemento fluido. Também aludo o artista-plástico Cildo Meireles, quando trata da ambiguidade de um material, ou seja, de um material ter ao mesmo tempo a característica de ser matéria–prima e símbolo. Este entendimento norteia minha poética artística e também teórica ao reconhecer no leite suas características enquanto matéria-prima e de natureza simbólica, assim como vivo a experiência com o barro e a cerâmica. Abordo a composição da matéria do leite e suas propriedades nutricionais, além de, sucintamente, discorrer sobre considerações históricas, cosmogônicas e mitológicas. Também aponto algumas produções artísticas relacionadas aos arquétipos da Grande Deusa Mãe e dos mitos de criação, como a pintura Nascimento da Via Láctea do pintor flamenco Rubens e as ilustrações do pagé amazonense Gabriel Gentil nas cenas do mito do lago do leite. Justifico este capítulo por ter o entendimento de que quanto mais abrangentes forem as informações a respeito de um material maior será a compreensão e o domínio sobre este material. 43 No segundo capítulo abordo sobre O leite na prática artística. Apresento a pesquisa da arqueóloga Lyn Wadley, que constatou o uso do leite como veículo aglutinante para aplicação de pigmento em procedimentos datados cerca de 49.000 anos atrás. Esta significativa descoberta aponta o uso dos leites animal e humano antecedendo a domesticação do gado. Também cito o uso da caseína como uma forma de pintura derivada do leite, que vem sendo utilizada desde a antiguidade até os dias atuais. Discorro sobre a utilização do leite em práticas pictóricas pré-históricas e faço um recorte sobre alguns artistas da antiguidade e contemporâneos que exibem em suas práticas artísticas as representações simbólicas do leite, compreendendo a representação neste sentido, como a de “conter a semelhança da coisa”, como dizia o escolástico São Tomás de Aquino. Tomo como exemplo imagens de algumas obras, como a bucólica cena de A leiteira, do pintor Johannes Wermeer; as enérgicas pinturas de Takashi Murakami; as fotografias contemporâneas de Andrés Serrano, Jeff Wall e Maria Laet; os vídeos de fluidos lácteos de Sarkis e Marina Abramovic e a instalação Amas de leite da artista Rosana Paulino. Percebo que a representação do leite na contemporaneidade vem ampliando suas leituras cotidianas e, consequentemente, vem trazendo outras significações para o campo da arte, como a globalização e a heterogeneidade artística, apontadas pela curadora e crítica de arte canadense Chantal Poutbriand. Para contribuir nesta visão, apresento artistas que exploram em suas práticas artísticas a materialidade láctea, que aqui, neste caso, não é representada, é um material bruto, amorfo, passivo e receptivo, que deixa rastros, impressões e contaminações de sua presença nos processos e obras. Nessa vertente, apresento os Milkstones de Wolfgang Laib, as instalações de Ai Weiwei, e a arte relacional de Sonia Labouriau. Finalizo na terceira parte desta Tese, com um capítulo dedicado aos processos e procedimentos artísticos experenciados por mim: Entre as bordas da cerâmica – uma poética pessoal, no qual explano, inicialmente, sobre o meu olhar no processo da cerâmica e o meu interesse na utilização de argilominerais em minha produção artística. Descrevo sobre o sonho que tive em 2009, em que o leite, ao derramar-se sobre a terra, despertou-me para um mergulho sobre o lácteo enquanto matéria-prima e símbolo. Em decorrência deste sonho, narro sobre o desenvolvimento de meu processo e minha prática artística antes de ingressar-me no Doutorado, porém com o propósito de trazer o leite como elemento plástico em minha poética. 45 Nesta pesquisa, inicio a minha prática artística por meio do desenho e dele lanço-me na produção dentro e fora do ateliê, acolhendo acasos, percebendo o entorno, bem como os desdobramentos do trabalho em si. Sobre os acasos no processo artístico, trago para o texto a fala de Fayga Ostrower sobre o sujeito e a percepção do acaso. Sobre os materiais barro e leite, apoio-me em Gaston Bachelar quando afirma que a realidade do material nos instrui. Também cito Katsuko Nakano na abordagem de que todas as matérias possuem um certo destino, uma certa vocação formal. Em minha produção, disserto sobre trabalhos em que as matérias leite e argila se apresentam crus ou queimados, e, sobre estes estágios da matéria, faço uma conexão ao texto O cru e o cozido de Levi-Strauss, onde o cru seria um entendimento de primeira ordem, proveniente do mundo sensível e o cozido como uma ciência de segunda ordem, uma experiência do campo do inteligível. Descrevo sobre o desenvolvimento de alguns trabalhos e seus processos e procedimentos de criação e execução, bem como minhas correlações aos referenciais míticos, simbólicos e artísticos apresentados por mim nos capítulos anteriores. Além disso, aponto elementos recorrentes em minha produção, como materiais líquidos, crus e insólitos em contraste à resistência e à solidez da cerâmica. Por fim, tomo alguns exemplos de minha produção poética a fim de pontuar, em meu percurso, minha relação com o universo da cerâmica e outros materiais e mídias que o cercam, além de tecer ligações entre a ancestralidade e a contemporaneidade. Ao caminhar nesse sentido, sem almejar em ser conclusiva, vejo que o trabalho flui em constante processo de construção e reconstrução, consolidando-se em seu devir. Capítulo I Um mergulho na matéria-prima: o leite 49 Assim, o artista é o explorador do campo da arte do qual ele possui apenas um mapa sem fronteiras territoriais, e onde a aventura traça e retraça perspectivas em perpétua mutação. (TAMISIER, 2007). Desde o início, a partir da minha pesquisa em cerâmica, na década de 1980, como aluna da Escola Guignard, venho percorrendo a trilha do barro, fascinada pelo caráter da argila e pelos caminhos que a cerâmica pode conduzir. Nesse percurso, de aluna à professora, sempre procurei trazer para a esfera do atelier novos olhares para a cerâmica, procurando ampliar conexões e saberes. A pesquisa de agregar outros materiais, como fibras orgânicas, peles, pétalas à argila crua e cozida me acompanha desde os anos 90, pois me interessa explorar a essência dos materiais e suas naturezas quando utilizados conjuntamente, em paridades ou em contrastes. Nessa perspectiva, o amplo e o complexo universo da cerâmica me interessa, como também a sua periferia. A partir das bordas de meus desutensílios1, tratados em meu Mestrado, despertei-me para um possível líquido contido em minha tigela: o leite, matéria- prima que acato juntamente com a argila para serem trabalhados por mim nesta Tese. Compreender o material, suas substâncias, suas propriedades, seus comportamentos, suas simbologias e suas histórias sempre me instigou no sentido de apreender raízes, chegar às origens, não no sentido de descobrir “verdades”, mas no sentido de construir novas proposições, novos desafios e alcançar um melhor domínio do material. Por considerar a matéria-prima como substância principal utilizada na fabricação de alguma coisa, matéria a ser trabalhada, lapidada, 1 Os “desutensílios” e “desobjetos” são termos explorados pelo poeta Manuel de Barros (1916/2014) como licença poética na desconstrução do sentido original da palavra, num jogo de sensações em que a inversão das características dos objetos nos leva a um lugar de imagens inesperadas, mudando assim seus sentidos e funções, ganhando novos referenciais. “Desinventar objetos, o pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. “ (BARROS, 2009, p. 11). Também emprego a palavra “desutensílios” em alguns trabalhos, especificamente entre 2006 e 2011, para designar alguns objetos cerâmicos que trazem características do utilitário, mas que não cumprem esta função. 50 por estar na qualidade de ser algo que está em estado bruto (HOUAISS; VILLAR, 2001), destaco a importância de compreendê-la em sua essência. No livro Evolução e Técnicas – O Homem e a Matéria, André Leroi-Gourhan2 classifica as matérias-primas e propõe agrupar aspectos técnicos segundo as propriedades físicas dos corpos no momento de seu tratamento, distinguindo suas categorias ente sólidas e fluidas: “1.Sólidos estáveis, definem-se como matéria-prima cuja constituição e propriedades físicas não variam antes, durante e após o tratamento” (LEROI-GOURHAN, 1971, p. 121). Temos como exemplo de sólidos estáveis a pedra, a madeira, o osso e a concha. “2.Sólidos semiplásticos, sob esta denominação figuram os corpos aos quais se pode aplicar um tratamento de deformação” (idem, p.142). Neste caso, temos o vidro e o metal. “3.Sólidos plásticos, têm propriedades menos características que os estáveis ou semiplásticos. O seu caráter comum é poder passar de um estado quase fluido a um estado sólido ou consolidado” (idem, p. 152). Assim, temos a argila, os corantes e as tintas, as colas e as gomas, os rebocos, os esmaltes e as soldas. “4.Sólidos flexíveis, têm como propriedade essencial uma flexibilidade permanente que permite juntá-los por entrelaçamento mútuo. Utilizam-se em placas: casca de árvore, couro, tecidos. Ou em elementos alongados: fibras e fios” (idem, p.171). Leroi-Gourhan (1971) encontra nos fluidos um exemplo paradoxal para ilustrar seu espírito de classificação ao considerar a água, o trigo e a maçã como massas móveis e fluidas. E faz desse paradoxo constituir-se em um estudo dos objetos através dos quais se pode confinar, transportar e libertar. A partir da classificação técnica de Leroi-Gourhan a respeito das matérias-primas, como ceramista, constato a argila como uma matéria-prima sólida plástica. E ratifico seus estágios de semiplástica à sólida em decorrência do fluxo de água implicado na argila in natura, no processo de secagem e a sua volatização durante a queima no processo da transformação em cerâmica. Quando hidratada, a argila é fluida, maleável, moldável e, ao passo em que perde sua água física na secagem, vai atingindo o ponto 2 André Leroi-Gourhan (1911-1986), antropólogo francês que dedicou seu trabalho à antropologia das técnicas e suas etnias, desenvolveu quadros metodológicos sobre a tecnologia da pré-história, introduzindo o conceito de cadeia operatória e uma classificação geral da ação técnica. 50 51 de osso, termo denominado para seu estado de dureza aparente, mas que se rompe com facilidade. Neste estado de ponto de osso, caso a argila seja hidratada, ela tornar-se-á plástica novamente. Já no processo da queima, ao perder a água orgânica decorrente da evaporação de materiais orgânicos, vestígios de folhas, raízes, etc., até aproximadamente 300ºc, ainda há a possibilidade de reverter o estado aparentemente sólido da argila desidratada ao estado semiplástico por meio da hidratação. Da dureza do ponto de osso à reversão ao estado maleável e plástico novamente faz com que a argila seja o único material da crosta terrestre a ter esta característica (CHITI, 1984). O estado sólido irreversível acontece mais precisamente a 560ºC, quando a água química do grupo OH sai da estrutura molecular, provocando um rearranjo na estrutura do corpo da massa. A partir desse estágio, fica impossível reverter o processo que confere dureza ao material cerâmico, tornando-se uma matéria-prima sólida. Encanta-me ver nos processos de transformação da argila a passagem de seus estados, de mineral fluido à rocha, em função das mutações dos estados de suas águas. Desta conversão de estado fluido à estado solidificado, vejo que a cerâmica, matéria-prima solidificada depois da queima, acolhe a água em seu corpo, porém em outra condição, na de ser recipiente, que guarda e conduz o fluido. No caso, um jarro d`água ou uma tigela de leite. Observo que outras qualidades podem ser apreendidas e experienciadas além da condição física da matéria-prima. Por meio de suas propriedades, como a aparência, o cheiro, ou outro aspecto sensorial, compreendo que a matéria-prima pode despertar vivências das mais diversas naturezas sensoriais. Assim, encontro ressonância na fala do artista plástico Cildo Meireles quando diz: “Tenho interesse por materiais que apresentem uma certa ambiguidade: que sejam ao mesmo tempo matéria-prima e símbolo. A natureza simbólica do material é como uma impregnação que promove um paradigma” (MEIRELES, 1948 apud AMARAL, 2001, p. 68). Reconheço a natureza simbólica do barro e do leite, como na fala do artista plástico carioca Cildo Meireles, quando diz que o material que apresenta certa ambiguidade é ao mesmo tempo matéria-prima e símbolo. Na minha experiência vivida com o barro por mais de 30 anos, reconheço sua força primeva, suas propriedades e suas tecnologias afins, e, em função desse conhecimento 51 52 adquirido, mas que nunca se encerra, foi considerado o leite nesta primeira parte da pesquisa como uma matéria-prima a ser explorada com maior acuidade. 1.1 O colostro: a seiva que precede o leite No caldo do colostro compreendo a fonte de vida que antecede o caminho do leite… Colostrum3 é um fluido líquido, amarelado e quase transparente, secretado pelas glândulas mamárias pela maioria dos mamíferos após o parto. Trata-se de um composto muito rico em água, proteínas, leucócitos e gorduras essenciais, nutricionalmente adaptado às necessidades do recém-nascido, que vai se transformando gradativamente em leite maduro nos primeiros 15 dias após o parto. Por ser rico em células imunologicamente ativas, anticorpos e proteínas protetoras, funciona como uma primeira vacina, protegendo o bebê contra várias infecções. Essas características na composição do colostro e do leite estão fortemente presentes na associação simbólica com a vitalidade, a força do crescimento e a longevidade (THAPA, 2005). Por sustentar o organismo humano em seus múltiplos fatores imunológicos e antibióticos naturais, e em seus diversos fatores de crescimento, tanto o colostro quanto o leite sempre estiveram ligados a tratamentos para as mais diversas doenças, fazendo com que sua composição nutricional favoreça a utilização como alimento nutracêutico4. Historicamente, o colostro vem sendo utilizado como alimento e remédio por milhares de anos na Índia, tanto para fins medicinais quanto espirituais, inclusive aplicado na medicina Ayurvédica. Hipócrates (460-370 a.C.) já afirmava: “Deixe o alimento ser o seu remédio e o remédio seu alimento”. Desta afirmação de Hipócrates, faço uma aproximação do conceito das pesquisadoras em 3 Palavra derivada do latim. 4 Zeisel (1999) definiu nutracêutico como: suplemento alimentar que contém a forma concentrada de um composto bioativo de alimento, apresentado separadamente da matriz alimentar e utilizado com a finalidade de melhorar a saúde, em doses que excedem aquelas que poderiam ser obtidas de alimentos. 52 53 nutrição da Universidade Feminina da Índia, de o colostro ser considerado “uma das fontes naturais de crescimento vital e fator de cura” (GODHIA; PATEL, 2013, p. 37) à minha relação com a arte e a terra, que gera e nutre e que me propicia, por meio do barro, tecer minha rede de arte e de vida. Parafraseando Hipócrates, vejo em meu processo de criação e da arte o alimento e o remédio para minha alma. 1.2 O leite: matéria-prima e símbolo Acredito que o artista, que tem maior conhecimento do material escolhido para sua produção artística, independentemente qual material seja, com certeza terá melhores domínio e aplicação dele se buscar a compreensão e o entendimento do material como um todo. Partindo dessa premissa, busco referências sobre o leite, desde suas propriedades físicas, químicas, históricas, de modo a conseguir construir um repertório artístico mais assertivo. O leite é uma emulsão fisiológica originária dos animais mamíferos, esbranquiçada, opaca, levemente açucarada, de densidade superior à da água, sendo secretada pelas glândulas mamárias (HOUAISS; VILLAR, 2001). E assegura a subsistência na primeira fase da vida, graças à sua riqueza em gorduras, proteínas, lactose, vitaminas e sais minerais, obtendo variações em sua composição com mais de 100 mil substâncias, conforme a espécie do mamífero. Também denominamos de leite a seiva branca encontrada em alguns frutos, como o figo e o mamão verde, e certas plantas, como a seringueira, coroa-de-cristo, dentre outras, além de algumas leguminosas. O leite vegetal ou leite da terra é uma bebida similar ao leite de vaca, porém ausente de lactose e colesterol por ser um suco produzido de extratos vegetais provenientes de castanhas, grãos ou sementes. Compreendendo o leite como um fluido orgânico referente às glândulas mamárias das fêmeas, com a finalidade de alimentar e nutrir, pertencente ao universo feminino; vejo no esperma ou sêmen o leite do universo masculino. No entanto, este fluido orgânico 53 54 produzido pelos machos de várias espécies animais tem como finalidade a reprodução. Nesta visão, vejo no leite masculino a possibilidade da criação e no leite feminino a manutenção da vida. Dentre as diversas denominações populares do esperma, uma delas é gala, que apresenta o mesmo vocábulo de derivação grega que significa leite. Ao ter na origem da palavra galáxia o significado “leite da mãe” (WALKER, 1988, p. 346), observo que a denominação de gala para o esperma alude ao “leite do pai”. A etimologia derivada do termo grego gala: “leite”, deve-se à aparência leitosa da Via Láctea, que os gregos denominavam de galaxias kuklos, ou “círculo branco como leite”, do mesmo modo, os romanos concebiam como um imenso caminho luminoso, a Via Láctea, que em latim Lac, significa leite, que dá origem aos termos leite e laticínio. Essa ligação dos vocábulos galactos e lácteo é presente em diversos mitos da criação da Via Láctea em diferentes épocas e regiões. Por muitos séculos, os termos galáxia e Via Láctea foram palavras sinônimas; contudo, à medida que os conhecimentos sobre o Universo se ampliaram, a palavra galáxia perdeu a sua significação original. Muito mais do que definições etimológicas ou técnicas, vejo na materialidade do leite o seu valor simbólico. Como um universo fluido e líquido, o leite abarca representações simbólicas vinculadas a sua riqueza nutricional e curativa, como é explanado no dicionário de símbolos: Primeira bebida e primeiro alimento, no qual todos os outros existem em estado potencial, o leite é naturalmente o símbolo da abundância, da fertilidade e também do conhecimento, compreendida essa palavra num sentido esotérico: e enfim como caminho de iniciação, símbolo da imortalidade. Nenhuma literatura sagrada o celebrou mais que a da Índia. [...] o leite é não apenas a bebida, mas o lugar da imortalidade. [...] A Vida primordial, e, portanto, eterna, e o conhecimento supremo, e, portanto, potencial, são sempre aspectos simbólicos associados, ainda que não misturados. [...] A amamentação feita pela Mãe divina é sinal da adoção e, em consequência, do conhecimento supremo. [...] a Pedra filosofal é às vezes chamada de leite da Virgem: o leite é aqui um alimento de imortalidade. 54 55 [...]. Acrescentemos enfim que, como os vetores simbólicos da vida e do conhecimento considerados como valores absolutos, o leite é um símbolo lunar, feminino por excelência, e ligado à renovação da primavera (CHEVALLIER; GHEERBRANT, 2002, p. 542-543). São abundantes os registros históricos e literários sobre o uso do leite e seus derivados na antiguidade. Observa-se a presença do lácteo na vida cotidiana e sua importância tanto na alimentação, em rituais de cura, quanto na linguagem, por suas qualidades nutricionais, sensoriais e simbólicas, fortalecendo, desse modo, a ideia de o leite ser um grande “comunicador social” (BALLARINI, 1994, p. 09). 1.3 O seio como fonte: entre cosmogonias e produções artísticas Desde os primórdios da humanidade, são encontradas diversas associações relacionadas ao seio e ao leite: a criação do mundo, a nutrição primordial, a abundância, o feminino, o celeste, o sagrado, como também o reino vegetal e a agricultura. Nota-se nas pequenas estatuetas de figuras femininas (Fig. 1 e 2) reproduzidas desde o período paleolítico, a representação da essência da mulher de uma forma muito poderosa. O fato é que desde quando descobertas, essas estatuetas foram submetidas a uma série de cenários e estruturas interpretativas a respeito da origem, do método de criação e do significado cultural, no entanto, das diversas conjecturas a elas atribuídas, não podemos desconsiderar a forte ligação à sua condição mágico-religiosa e divina. 55 56 Figura 1. Mulher de Willendorf. Estatueta de calcário. 11,1 cm de altura. Datada entre 22.000 a 24.000 anos de idade. Museu de História Natural, Viena. Figura 2. Mulher de Hohle Fels. Estatueta de marfim de mamute, 6 cm altura. Datada entre 35 a 40.000 anos de idade. Museu Pré-histórico Blaubeuren. 56 57 Encontradas em uma extensa escala de tempo, em diferentes regiões do planeta, com variabilidade considerável em forma, estilo, decoração e contextos, essas figuras votivas, popularmente conhecidas como “Vênus”, apresentam-se de forma intimamente associada aos rituais de fertilidade, como explana Lalada Dalglish: Os vários povos primitivos que deixaram de ser nômades e passaram a praticar a agricultura desenvolveram técnicas artesanais com fins utilitários e ritualísticos. A terra, de onde brota a água e alimento, passou a ser associada à fertilidade da mulher, que, por sua vez, também podia gerar filhos; nasce aí o culto às “deusas da fertilidade”, associado ao ciclo das colheitas. Em todas as culturas por onde apareceram, estas deusas votivas adquiriram diferentes nomes, mas possuíam as mesmas intenções votivas associadas à fertilidade (DALGLISH, 2008, p. 22). Joseph Campbell (1904-1987), reconhecido pesquisador sobre mitologia comparada, aborda em seu livro Deusas, os Mistérios do divino Feminino que a invenção da escrita operou grande divisão entre as chamadas tradições orais folclóricas e as culturas e sociedades com domínio da escrita, sendo que a história escrita da Mãe criadora pertence, primariamente, às culturas agrárias que obtinham seu sustento principal no mundo vegetal e completa: Nelas a fêmea é associada à Deusa Terra, que oferece os frutos da terra e concede vida e nutrição ao mundo. Segundo essa linha de pensamento, as forças da mulher, no sentido biológico, conferem a ela um poder mágico que faz com que tenha especial capacidade de ativar e de se harmonizar com forças da natureza. Assim, onde quer que a agricultura tenha se tornado a principal fonte de alimento do povo, a Deusa e o feminino são dominantes (CAMPBELL, 2017, p. 53). Enquanto alguns estudiosos defendem a ideia de culto ligado a uma Deusa-Mãe, à Terra, outros consideram a possibilidade da representação de um ideal de estética feminina, ou simplesmente aludem ao poder gerador da mulher, que, por ser capaz de 58 conceber e manter novas vidas, detinha sobre os homens o mistério da procriação. Segundo Claudiney Prieto, pesquisador de religiões pagãs, em seu livro Wicca a Religião da Deusa, relata que arqueólogos localizaram evidências de adoração à Deusa antes das comunidades do período Neolítico, tendo sua existência comprovada repetidamente até os tempos romanos, e esclarece que: O culto à Deusa Mãe é muito anterior à Era de Touro (4000 AEC a 2000 AEC5),1 tempo em que os homens viviam da caça e pesca e as mulheres eram grandes Sacerdotisas, Xamãs e detentoras do poder religioso. [...] A adoração à Deusa foi a primeira religião estabelecida pelos seres humanos. Muitas evidências arqueológicas, incluindo estátuas, amuletos, cerâmicas, pinturas nas cavernas e outras imagens indicando a veneração da Deusa foram descobertas, comprovando a existência de um culto primordial, em que uma Divindade Criadora feminina era adorada (PRIETO, 2015, p. 18-32). Prieto aborda que nas práticas pagãs, a triplicidade da Deusa refere-se a três estados distintos da mesma divindade. Em suas faces e aspectos reverenciados desde os tempos imemoráveis manifestam-se: a Virgem ou Donzela relacionada aos impulsos, aos começos e à lua crescente; a Mãe Doadora da vida, a Grande nutridora que está associada à lua cheia; e a Anciã, que é a detentora da sabedoria, a Grande Conhecedora e Transformadora, associada à lua minguante. Faço a observação que há uma representativa produção de vasos utilitários cerâmicos entre os períodos Paleolítico e Neolítico, com três pés e em formatos de seios (Fig. 3). Esses vasos, utilizados nos primórdios das religiões pagãs, ilustram uma estreita relação com a trindade do sagrado feminino, representado e cultuado pelos ciclos da vida, por meio das faces de donzela, mãe e anciã, além dos ciclos lunares crescente, cheia e minguante. 5 Por se tratar de uma obra Pagã, o autor usa as modernas siglas AEC e DEC para representar, antes da era comum e depois da era comum, respecti- vamente, em substituição às ultrapassadas marcações aC e dC (antes e depois de Cristo). 59 Esses mesmos conceitos relacionados à trindade da Deusa foram mantidos na Idade do Metal, com a descoberta da fundição. Ao descrever sobre a tradição do caldeirão de ferro com três pés na cultura pagã, Prieto relata sobre a importância da representação dos três pés associados a Deuses e Deusas, como símbolo de abundância, fertilidade e detenção de todo o conhecimento, tendo nos tripés a representação do conceito de reencarnação e os ciclos de nascimento, morte e renascimento. Figura 3. Vaso Trípode em terracota. Noroeste da China; Província de Shaanxi. Cultura Longshan. Período neolítico, aproximadamente 2800-2000 a.C. Coleção Avery Brundage. 60 Vejo que as mesmas relações entre o vaso, o seio e o caldeirão estão intrinsicamente ligadas à mesma significação: abundância, fertilidade e detenção de todos os conhecimentos. Percebo que tais elementos conceituais vêm sendo reproduzidos até a atualidade na feitura de vasilhames que condicionam alimentos e moringas que guardam líquidos, no entanto, nem sempre, há uma compreensão de sua origem simbólica por meio de quem as reproduz. Em seu livro Noivas da Seca, Dalglish (2008, p. 24) aponta que “No Vale do Jequitinhonha é comum a produção de peças utilitárias e escultóricas com base trípode (Fig. 4), objetos com estas características são criados em Minas Gerais desde o século XVIII”. Figura 5. Pablo Picasso. Visage de femme. Cerâmica trípode. 1950. Figura 4. Moringa trípode. Minas Gerais, séc. XIX. 61 Em Face de mulher (Fig. 5), a cerâmica trípode Picassiana alude ao seio feminino nas questões formais e pictóricas. O volume do seio tem sua forma evidenciada pela pintura do mamilo feita inicialmente com engobe6,1recebendo, posteriormente, uma cobertura de vidrado7.2Pablo Picasso (1881-1973) produziu mais de duas mil peças em cerâmica, explorando em algumas delas a forma dos antigos vasos trípodes, salientando aspectos associados às formas femininas, principalmente com referência à arte primitiva africana. A produção artística da artista americana Simone Leigh (1967) também estabelece diálogos com as raízes africanas, ao explorar a forma dos seios em suas peças de cerâmica e instalações. Ao fazer alusões aos seios, ao útero e aos órgãos genitais externos, Leigh levanta questões psicológicas sobre olhar, dar, receber e ser. Percebo em Pitch (Fig. 6), na exuberância dos múltiplos seios explorados por Leigh, a estreita ligação com a cultura e tradição africana, uma enunciação da feminilidade negra, a abundância e a fertilidade ligadas às figuras primitivas de deusas votivas. No entanto, os seios volumosos lançam-se voluptuosos, sensuais, trazendo questões de gênero apontadas na contemporaneidade, sem desvincularem-se da simbologia ancestral relacionada ao vaso como útero e o sagrado feminino. Figura 6. Simone Leigh. Pitch. Terracota, grafite, lustre platina. 55 x 45 x 45 cm. 2007. 6 Engobe é uma emulsão de argila, água e óxidos (ou corantes minerais). Os engobes, geralmente, apresentam consistência cremosa e fina, são barbotinas coloridas que possibilitam colorir, cobrir ou texturizar a superfície cerâmica. Sua cobertura tem característica opaca e sem transparência, sendo aplicado na argila ainda úmida, porém firme (ponto de couro), antes da queima de biscoito (primeira queima). 7 O vidrado é uma suspensão aguada de materiais insolúveis misturados, muito finos, que se aplica nos corpos cerâmicos para formar uma cobertura vítrea. É formado, basicamente, de elementos fundentes, refratários e corantes combinados, tendo como componente principal a sílica. Quando esses materiais são levados a determinadas temperaturas fundem-se, formando uma composição líquida que, quando é resfriada, recobre o objeto cerâmico numa camada vitrificada. 62 Os seios, enquanto provedores de alimento e de vida, indicam forte associação à fertilidade e à fartura. Como se afirma no Dicionário dos símbolos: O seio é sobretudo símbolo de maternidade, de suavidade, de segurança, de recursos. Ligado à fecundidade e ao leite – o primeiro alimento –, é associado às imagens de intimidade, de oferenda, de dádiva e refúgio. Qual taça inclinada, dele, como do Céu, flui a vida. Mas ele é também receptáculo, como todo símbolo maternal, e promessa de regenerescência. A volta ao seio da terra marca, como toda morte, o prelúdio de um novo nascimento (CHEVALLIER; GHEERBRANT, 2002, p. 809). Como símbolo de proteção e de medida, observa-se que: O seio tem relação com o princípio feminino, isto é, com a medida no sentido de limitação; ele só é medida pelo próprio fato dessa limitação. E isso, em oposição ao principio masculino que ilimita – o sem-medida. (CHEVALLIER; GHEERBRANT, 2002, p. 809). 63 Figura 7. Fragmento de seio com pontos pintados. Terracota. Neolítico, entre 3.900 – 3.800 a. C. Figura 8. Pierre Verger. Da série deuses africanos Brasil. Fotografia. 1981. Fundação Pierre Verger. Percebo no fragmento de seio em terracota (Fig. 7) encontrado nas águas do Lago Constança8,1que mesmo desprovido de corpo, mantém sua identidade marcante. Vejo no seu matizado de pintas brancas ritmadas um índice da fonte da vida, ao mesmo tempo em que me remete às pinturas corporais da cultura Yorubá (Fig.8), tão bem registradas pelo fotógrafo francês radicado na Bahia Pierre Verger (1902-1996). 8 O Lago Constança situa-se na fronteira da Alemanha ao norte, tendo a Áustria ao leste e a Suíça ao sul. 64 Vejo no seio avulso de terracota e no seio da Yorubá, retratada por Verger, a capacidade de simbolização e expressão dos homens neolítico e contemporâneo por meio do seio não natural de cerâmica e da pintura corporal como aborda o livro dos símbolos- reflexões arquetípicos: É um seio e mais do que um seio. É natural e não-natural, uma criação da natureza e do homem (como arte), através da capacidade de formação de símbolo da alma e expressa, através de sua complexidade, as muitas facetas subjacentes da imagem do seio (MARTIN, 2012, p. 388). Observo que desde o período Neolítico o homem já elaborava de forma simbólica a essência da fonte láctea. Curiosamente, vejo uma aproximação formal das pontuações brancas com a representação das glândulas mamárias, como no desenho de uma mama lactante dissecada de um corpo feminino (Fig. 9). Figura 9. Hubert Von Luschka. Desenho de uma mama lactante dissecada de um corpo feminino. Datada de antes de 1858. (GRAY, 1918). 65 Esta formação morfológica e fisiológica do parênquima mamário fez com que Rudolf Steiner91em seus estudos antroposóficos10,2 aplicasse o termo “árvore láctea”. Steiner aplicou a fenomenologia de Goethe como um importante recurso metodológico. Da observação sensorial do fenômeno ao estudo morfofuncional das glândulas mamárias, por meio da observação de ilustrações anatômicas clássicas, “identificou-se a semelhança do parênquima mamário com formações vegetais, que lembram os ramos de árvores, arbustos floridos ou cachos de frutos” (BENEVIDES; VEIGA, 2004, p. 9). Também são como cachos de frutos os múltiplos seios da deusa Ártemis (Fig.10) ou Artemísia, a Grande Deusa-Mãe para os antigos gregos no período matriarcal, que depois foi associada pelos romanos à antiga deusa dos bosques Diana. Vista pelas mulheres gregas como padroeira dos partos felizes, a ela recorriam as grávidas, como também as que padeciam de esterilidade (PRIETO, 2017). Se numa época Ártemis era considerada mãe soberana, ligada à fertilidade, à abundância e à alimentação, em outro momento era vista como uma personagem completamente diferente: uma virgem guerreira amazona, contemplada como deusa protetora da caça, da natureza e dos bosques, como descreve Prieto no livro Todas as Deusas do Mundo: Ártemis se tornou uma Deusa complexa, assumindo atributos de Deusas anteriores. Como Ísis ou Ishtar, tornou-se representação das variáveis energias femininas. Era uma Deusa contraditória. Virgem que promovia a promiscuidade, a caçadora que protegia os animais, também considerada a árvore, a ursa, a Lua. Ártemis era a imagem de uma mulher se movendo por sua própria vida e assumindo diferentes aspectos em diferentes épocas. Considerada uma Deusa livre, movida pelos instintos, como os 9 Rudolf Steiner (1861-1925): cientista, filósofo, educador, artista e esoterista. Fundador da Antroposofia, da Pedagogia Waldorf, da agricultura biodinâmica, da medicina antroposófica e da Euritimia. 10 Antroposofia, termo formado por radicais gregos que significam “conhecimento do ser humano”, foi doutrina introduzida no início do século XX pelo austríaco Rudolf Steiner. Pode ser caracterizada como um método de conhecimento da natureza do ser humano e do universo, que amplia o conhecimento obtido pelo método científico convencional, bem como a sua aplicação em praticamente todas as áreas da vida humana. 66 animais, nessa forma, ela assume o aspecto de “Senhora das Feras”, a força que assegura a sobrevivência das espécies. Como Senhora dos Animais, perseguia com suas flechas todos os que caçavam fêmeas prenhas ou seus filhotes. Governava a reprodução, o sexo e o nascimento. Era a própria força da criação. (PRIETO, 2017, p. 69). São diversas as leituras da deusa que veio a ser iconografada ostentando múltiplos seios como símbolos de fecundidade, abundância e alimentação materna, trazendo suas mãos abertas num gesto de acolhimento ou de oferecimento. Em seu livro The Eternal Present: The Beginning of the Art [O eterno presente: os primórdios da arte], Siegfried Giedion relata sobre a imagem de Ártemis: O mais revelador de todos os seus traços são, talvez, os cascos de cervo sobre o pedestal, tudo o que restou dos dois cervos em tamanho natural que flanqueavam. Esses cascos sozinhos nos dão a pista sobre as origens dessa deidade, que sofreu tantas transformações [...]. As origens desse ídolo estão fincadas na pré-história. [...] Ártemis Efésia é resultado de um longo processo de antropomorfização que começou quando o domínio e a veneração do animal foram substituídos pelo poder das deidades em forma humana. (GIEDION, 1962, pp. 212- 220). Há também interpretações de que seus múltiplos seios nada mais eram do que ovos representando a fertilidade e a abundância da natureza, ou que poderiam ser um colar feito de testículos de touros sacrificados em homenagem à deusa. Tais especulações, feitas em 1979 por Gerard Seitele (GOLDBERG, 1994), apontam a ausência de mamilos nos seios, além de que, em Éfeso, havia um altar grande suficiente para sacrificar um boi. Figura 10. Ártemis de Éfeso. Escultura em tamanho natural. Datação: séc. II. Museu Nacional de Arqueologia de Nápoles. 67 Independentemente das diversas leituras, o fascínio por Ártemis e seus cultos são inegáveis, desde o mundo antigo até a atualidade. Em alguns momentos da história da arte, percebe-se alusões à deusa da fertilidade por diversos autores nos mais diferenciados suportes. Na Renascença, Benvenuto Cellini (1500- 1571), ao esculpir Perseu e a cabeça de Medusa (1545-1554), representou em mármore Ártemis Cariátide113 nas quatro faces de sua base, entre as esculturas de bronze dos deuses gregos: Zeus (Júpiter) e seus filhos Palas Athena (Minerva), Hermes (Mercúrio) e Afrodite (Vênus) (Fig. 11 e 12). 11 Figura feminina esculpida servindo como um suporte de arquitetura tomando o lugar de uma coluna ou um pilar. Cariátides em grego significa literalmente “moças de Karyai”, uma antiga cidade do Peloponeso. Karyai teve famoso templo dedicado à deusa Ártemis em sua manifestação de Ártemis Karyatis. Figura 11. Benvenuto Cellini. Perseu e a cabeça de Medusa. Escultura em bronze. Piazza della Signorina, Florença, 1545-1554. Figura 12. Detalhe do pedestal da obra de Cellini: ao centro, bronze de Zeus (Júpiter) tendo a deusa Ártemis em mármore nas quatro faces da base. 68 Da representativa produção escultórica referindo-se a Grande Mãe, Ártemis, ou Diana em seus respectivos contextos, destaco a gravura em metal (Fig. 13) Boys Peeping at Nature (1731/37), do ilustrador e gravador inglês William Hogarth (1697-1764). Na cena, três meninos nus, sendo que dois fazem esboços retratando Diana de Éfeso e o terceiro está espreitando, junto a um pequeno fauno, o que há debaixo do torso da modelo de múltiplos peitos. A narrativa da gravura despertou-me a atenção pelo modo como o artista construiu um cenário divertido e despojado, que foge ao consagrado em torno da deusa. Na contemporaneidade, nota-se a presença de arquétipos da deusa em referências marcantes na produção artística. Um bom exemplo disso é a escultura (Fig. 14) Cybele (1993), criada pelo artista multimídia russo Mihail Chemiakin (1943). A escultura pública instalada em Prince Street, Nova York, destaca-se por sua imponente altura e forma extravagante. Como personificação da fertilidade, apresenta-se com oito pares de seios, quatro pares de nádegas, três cabeças de animais e um rosto humano. Cybele surgiu na Frigia Antiga, atual Turquia, como a deusa Frígia, considerada como Mãe Terra, a Mãe dos Deuses nas culturas grega e romana.Figura13. William Hogarth. Boys Peeping. Gravura em metal. 14,7 x 12,3 cm. British Museum. 69 Do ponto de vista simbólico, segundo Jean Chevalier e A. Gheerbrant, Cybele configura a energia latente no seio da Terra. Sendo cultuada em várias culturas do mar Egeu, florescendo na Grécia Antiga do século V a.C. A origem do nome Kubileya (Cybele na língua da Frigia) traz o significado de “Mãe da Montanha”, que manifesta sua estreita ligação com a terra e o mundo natural. Vejo na consolidada e representativa produção artística da artista franco-americana Louise Bourgeois (1911-2010) a presença de referenciais mitológicos e arquetípicos (Fig. 15), dos quais ela baseou-se, utilizando uma linguagem visual altamente pessoal, voltada às questões feministas. Sua emblemática escultura Nature Study (Estudo da Natureza) (Fig. 16), criada entre 1984 e 1986, traz uma figura meio animal, meio humana, que alude à fertilidade e ao reino animal. Expressada na forma de um corpo sem cabeça com vários seios semelhantes aos de humanos, evidencia as ambiguidades presentes na obra de Bourgeois, bem como as contrastantes interpretações da deusa Ártemis. Figura 14. Mihail Chemiakin. Cybele. Escultura pública em bronze. 15 m altura, 2 toneladas. 1993. Soho, New York. Figura 15. Louise Bourgeois retratada, em 1975, vestindo sua escultura de látex Avenza (1968–69), que mais tarde faria parte do trabalho Confrontação, de 1978. 70 A maioria das fundições de Nature Study foi feita em bronze com pátina preta ou prateada, sendo também reproduzida em borracha, gesso, cera e esculpida em mármore rosa. Bourgeois, em parceria com a oficina da fábrica de Sèvres, cidade francesa da porcelana, iniciou em 2003 um projeto idêntico desenvolvido para o Estudo da Natureza, concluindo em 2005 uma tiragem da escultura em porcelana com acabamento em lustre ouro (Fig. 16). Bourgeois reforça a ambiguidade de gêneros nas distorções anatômicas masculina e feminina apresentadas na escultura Fillette (Fig. 17). A imagem biomórfica construída com camadas de látex sobre gesso, numa textura carnuda, tátil, desperta a dúvida entre a obviedade fálica e a leitura de um torso feminino. A escultura, pendurada em um gancho, faz ao mesmo tempo referência ao priapismo e à castração, à potência ereta e à frágil vulnerabilidade. Apesar da escultura ter o título de Fillette, que em francês significa menina, ela dá a possibilidade de diversas camadas de interpretações. O falo ereto pode ser Figura 16. Louise Bourgeois. Estudo da natureza. Porcelana e lustre ouro. 76 x 36 x 48 cm. Sèvres, 2005. Figura 17. Louise Bourgeois. Fillette. Látex sobre gesso. 59,7 x 28 x 19,1 cm. 1968. 71 compreendido como um longo pescoço e os testículos vistos como voluptuosos seios, como se o falo se metamorfoseasse em um torso de garota. Percebo que entre as obras escultóricas Fillette de Bourgeois e Ártemis de Éfeso há uma estreita relação de caráter andrógino. Esta androginia, segundo o mitólogo Junito Brandão (1924), apresenta-se como “símbolo de uma unidade primeva, que possui uma expressão sexual, apresentada como idade da inocência ou virtude primeira, vale dizer, a idade de ouro a ser reconquistada” (BRANDÃO,1987, p. 40). Já o filósofo romeno Mircea Eliade (1907-1986) enfatiza a androginia como uma das características da perfeição espiritual e escreve: Com efeito, tornar-se macho e fêmea ou não ser nem macho nem fêmea são expressões plásticas através das quais a linguagem se empenha em descrever a metanoia, a conversão, a inversão total dos valores. É igualmente tão paradoxal ser macho e fêmea quanto o tornar-se novamente criança, nascer de novo, passar pela porta estreita (ELIADE, 1962, p. 132). A partir da visão de Eliade, interpreto a androginia existente em Fillette e Ártemis, intuindo que se trata de uma ambiguidade de leituras e sentidos, no que tange às analogias subentendidas entre os testículos e os seios. Também observo em ambas a presença simbólica dos leites masculino e feminino, do leite do sexo e o leite da infância, nesse sentido, por ambas terem a presença dos leites masculino e feminino em si próprias, confiro-lhes a natureza andrógina do Criador, como explana Jung, “o homem, nos mitos, sempre exprimiu a ideia da coexistência do masculino e do feminino num só corpo. Tais intuições psicológicas se acham projetadas de modo geral na forma da sizígia divina, o par divino, ou na ideia da natureza andrógina do Criador” (JUNG,1980, p. 27). 72 Figura 18. Ronit Baranga. My Artemis. Instalação cerâmica. 160 x 170 cm ø. 2015.The Erez Israel Museum. Figura 19. Ronit Baranga. My Artemis (detalhe). 2015. Inspirada no mito da deusa amazona Ártemis, a ceramista israelense Ronit Baranga (1973) subverte o caráter espartano, apresentando sua cerâmica escultórica na Oitava Bienal de Cerâmica Israelense, em Tel- Aviv, em 2016. A figura descontraída de My Artemis (Fig. 18 e 19) trouxe- me, na primeira impressão, uma atmosfera entre o hilário, o alegre e o prazeroso. 73 A escultura recebeu uma pintura com o intuito de provocar no espectador a sensação efêmera de que a argila ainda está molhada, imprimindo um caráter ilusório de que a peça pode ser alterada ao toque. Tais ambiguidades são reforçadas e expressadas nos múltiplos seios, que provocam estranhamento pela inversão de possuírem bocas no lugar dos mamilos. Em My Artemis, de aproximadamente 160 cm de altura, prendem-se nas mãos da figura fios que se unem a dúzias de pequenos vasos sinuosos que, como pequenas ânforas, aludem a corpos de mulheres. Esses vasos, assim como os peitos, têm suas bocas abertas como bocas humanas. Segundo Bachelard, “nenhum dos valores que se ligam à boca é recalcado. A boca, os lábios - eis o terreno da primeira felicidade positiva e precisa, o terreno da sensualidade permitida” (BACHELARD, 2013, p.122). Ao explorar as bocas humanas em boa parte de sua produção cerâmica, a artista reporta à sedução, bem como à repulsa, uma marca expressiva de seu trabalho. Valendo-se dessas características, a artista diz que para ela a “expressão sedutora não é nem negativa nem positiva. O espectador é simultaneamente atraído ou repelido pela obra. Alguns acham engraçado” (BARANGA, em depoimento em seu site12, 2016). Os peitos de bocas abertas da escultura My Artemis (Fig.19) insinuam as simbólicas conexões de castração e proteção vinculadas à Ártemis. Contudo, Baranga deixa aberta a outras interpretações. A meu ver, é certo que os seios da obra não estão vinculados ao alimento; muito pelo contrário, eles induzem à falta deles. As bocas mostram línguas desejosas, sedentas por deleites e luxúria, ao mesmo tempo em que a face da Ártemis de Baranga expressa a volúpia, um misto de sorriso e êxtase. Assim como Jung aborda o mito como uma projeção na forma de uma sizígia132divina, vejo nos seios da Ártemis de Baranga a união de opostos compondo uma estética singular que cruza entre o sagrado e o profano. 12 http://www.ronitbaranga.com 13 Termo utilizado por Carl Jung para significar uma união de opostos. 74 1.4 Místicas e lendas sobre o leite Os mitos falam do destino humano sob seu aspecto especial; destino resultante do funcionamento sadio ou doentio (evolutivo ou involutivo) do psiquismo. (DIEL, 1991). Os mitos e lendas sobre o leite são expressos com riqueza de símbolos e significados, sendo ligação poética na versão mitológica grega da Criação da Via Láctea. O leite nesta trama era um vínculo entre a imortalidade dos deuses e os mortais. A versão conta que Zeus (Júpiter) tivera uma aventura amorosa com Alcmena, uma mulher mortal. Dessa união, nasceu Héracles (Hércules), um semideus, que, para alcançar a imortalidade dos deuses, teria de beber o leite da deusa Hera (Juno), esposa legítima de Zeus. Hermes Trismegisto (Mercúrio) teve a incumbência de levar Héracles ao Olimpo para mamar no peito de Hera, enquanto ela estivesse dormindo, a mando de Zeus. Hermes assim o fez. Enquanto Héracles mamava o leite divino de Hera, ela acordou atordoada com a força de sucção daquela criança no seu peito. Hera tentou retirá-lo, mas Héracles já havia bebido leite o suficiente para ter a força de um Deus, e tamanha foi Figura 20. Peter Paul Rubens. Nascimento da Via Láctea. Óleo sobre tela. 181 x 244 cm. 1836. Museu do Prado. 75 Figura 21. Ísis em forma de árvore alimentando o deus egípcio na tumba de Tutmés III. Túmulo de Tebas. Mural. 42 × 33 cm. Data aproximada entre 1500-1450 a.C. a força bruta de Hera no gesto de retirar a criança de sua mama, que o leite de seu peito jorrou até os céus como uma trilha, convertendo-se num caminho de estrelas e constelações, originando a Via Láctea (Fig. 20), e das gotas de leite que caíram sobre a terra, brotaram as flores-de- lis. (ASSIS, 1997). Ao desenhar no céu histórias de mitos, o leite divino, nutridor e imortal, é, em meu entendimento, mais do que uma ligação poética. Ele ilustra pelo caminho de leite o conhecimento obtido por todas as sociedades do passado, pela observação do céu, submetidas em desdobramentos cíclicos de fenômenos como as fases da lua, eclipses, estações do ano e outros eventos. Devido a sua forte associação simbólica com a força para o crescimento, a vitalidade e a longevidade, o leite se aproxima das mesmas características presentes nas plantas. A representação na tumba de Tutmés III da imagem de um rei egípcio sendo amamentado pela deusa Ísis em forma de árvore (Fig. 21) retrata a esfera das forças vitais, de crescimento, de reprodução e de regeneração, afinidades pertinentes entre o leite e o mundo vegetal. Faço aqui uma analogia ao termo “árvore láctea”, de Steiner (Fig. 9), no sentido de destacar a semelhança do parênquima mamário com as formações vegetais que “lembram os ramos de árvores, arbustos floridos ou cachos de frutos” à imagem de Ísis na forma literal de árvore que amamenta, ambas são “árvores lactantes”. 76 O leite aparece representado em distintas épocas e regiões, em várias lendas e mitologias relacionadas ao início da vida e do universo. Em imagens da natureza, o leite da vaca era visto como a Via Láctea, o luar branco ou a chuva vivificante. Como vaca celestial, Hator dobra- se protetoramente sobre a terra, com o estômago cheio de estrelas. Ela era a mãe do sol, que também era o vitelo dourado “da sua boca autêntica”. A grande coroa de cornos da vaca assemelha-se à lua crescente e é utilizada pelas três grandes deusas-vacas do Egito, Nut, Hator e Ísis, que cuidam da alma, do mesmo modo que cuidam do vitelo-sol, na sua viagem através da morte e do renascimento […] Ela estava lá “antes do início do mundo”. “Eu sou a tua mãe, a que formou os teus membros e criou as tuas belezas”, disse Hator, a deusa- vaca egípcia (ARAS 1:87). Na Escandinávia, Audumla, a vaca primitiva, lambeu os blocos salgados de gelo do abismo até dar origem a Búri, o antepassado dos deuses, enquanto das suas tetas corriam quatro rios de leite que alimentavam a gigante Imer, de cujo corpo se formou o mundo (MARTIN, 2012, p. 304). Há diversas passagens mitológicas sobre a origem da criação que fazem alusões à vaca. Na Escandinávia, a vaca criadora Audumla (Fig. 22), que no mito nórdico é vista como a “criadora da terra”, fez com que surgisse do salgado bloco de gelo o deus Búri. Diz o mito que Audumla lambeu gelo glacial e dele surgiu, no primeiro dia, os cabelos, no segundo, a cabeça de um homem e, no terceiro, todo corpo do homem. Enquanto isso, de suas quatro tetas jorraram leite formando os quatro rios que nutriram a raça primordial. A imagem dos quatro rios de leite que saem das quatro tetas de Audumla assemelha-se à imagem dos quatro rios do paraíso, que são brevemente apontados na Bíblia (Gênesis 2:10 – 14). Do mesmo modo, vejo uma aproximação na imagem das deusas egípcias Hathor ou Ísis em forma bovina, que tinham suas patas plantadas nos quatro cantos da terra. 77 Figura 22. Manuscrito islandês do século XVIII, onde se vê a vaca Audumla lambendo os blocos de gelo de onde surgiu o deus Búri, ao mesmo tempo em que de suas tetas derramam os quatro rios de leite. Datação: 1765-1766. Árni Magnússon Institute. A versão latina da Bíblia, a Vulgata, escrita por S. Jerónimo no século IV, apresenta essa referência aos quatro cantos da Terra no livro do Apocalipse: “Post haec vidi quattuor angelos stantes super quattuor angulos terrae tenentes quattuor ventos terrae ne flaret ventus super terram [...]” (Apocalipse, 7:1)14. Acredito que esta interpretação bíblica dos quatro ventos da Vulgata, por ser mais recente, aproxima-se mais da referência aos quatro pontos cardeais: os ventos latinos Bóreas (norte), Noto ou Austro (sul), Eurus ou Vulturnus (leste) e Zéfiro (oeste), sendo que os mitos de criação de Audumla ou Ísis, por serem manuscritos antigos, supostamente referem-se aos quatro continentes do mundo antigo: “Europa, África, Ásia e Ilhas afortunadas” (PEOPLES; BALLEY, 2008, p. 120). A grande deusa, a grande vaca, a mãe que pariu RA e todos os deuses, a que existiu quando nada existia, personificava o céu noturno com seu rastro de leite. Assim, os egípcios acreditavam que a galáxia era feita do fluxo que saía da mama da vaca celestial. Em vários mitos gregos, a vaca Lua era a deusa vaca branca que também era denominada de Io, Europa ou Hera. (WALKER, 1988). 14 «Depois disto vi quatro Anjos, um em cada canto da Terra. Eles seguravam os quatro ventos da Terra. Assim, o vento não podia soprar na Terra, nem no mar, nem nas árvores. » Tradução e revisão literária, Padre João Gomes Filipe. 78 Não se admira que a vaca tenha sido venerada como deusa-mãe que cuida, alimenta e cria toda a vida (MOON, 1991). Sua natureza pode ser considerada como sagrada, por ser suprema fornecedora de bens. Dela provêm o leite e seus derivados; e, além da aragem do campo, ela oferece o adubo como fertilizante e combustível. Essas qualidades e atributos da vaca eram considerados auspiciosos durante os tempos antigos, porque tinham um papel importante no cotidiano, tornando o gado e o leite símbolos de riqueza. A reverência pelas vacas vem mantendo-se aos dias de hoje na Índia, onde elas vagueiam livremente pelas ruas, misturadas no tráfego da cidade e sendo recebidas nos lugares como a deusa-mãe, cuidadora da humanidade. O auspicioso leite tem papel importante na maioria dos rituais hindus; além da estreita relação com abundância, também está ligado à purificação. Na história da criação do hinduísmo, o mundo consistia em um oceano de leite. Segundo a lenda, dizem que os Devas15, como deuses, e os Asuras16,2 como demônios, juntaram-se para conseguir o néctar divino da imortalidade, uma vez que eram mortais. Para tanto, teriam de bater o “Ksheera Sagara”, o Oceano de Leite. Junto a uma tartaruga, os Devas e Asuras pegaram uma montanha e fizeram um polo no meio do oceano. Junto à montanha, amarraram uma cobra e foram batendo-a como se fosse uma corda, agitando o Oceano de Leite. Uma grande quantidade de objetos celestiais divinos surgiu desse Oceano de Leite: o lótus, a vaca divina, a lua, o néctar da imortalidade e a deusa Apadma, nome dado à deusa Lakshmi, no momento de sua criação ou quando ela é representada sem a flor de lótus (DIMMITT; VAN BUITENEN, 1978). Ao termos a criação do universo no mito da Via Láctea vinculada ao céu, temos no mito do Oceano de Leite a criação relacionada ao oceano, um oceano cósmico de leite. Os hindus compreendem o Oceano de Leite como a representação da mente purificada, o que faz com que o nascimento de Lakshmi simbolize a riqueza de quem nasce dessa mente purificada. Assim como os povos do mundo antigo, os indígenas das Américas sempre valorizaram o papel da mitologia em sua cultura. No 15 Na mitologia hindu, os Devas são divindades regentes dos fenômenos da natureza. Derivado do sânscrito, significa resplandecente, aludindo à sua aparência luminosa. Os Devas podem ser manipulados pelos humanos para finalidades boas ou ruins. 16 Asuras são personagens da mitologia hindu, os antagonistas dos Suras ou Devas. Ambos os grupos são filhos de Kashyapa. Inicialmente eles são considerados seres poderosos regentes dos princípios morais e de fenômenos sociais. 79 mito de criação da humanidade dos povos Tukano, também há uma forte alusão ao leite na mitologia do Lago do Leite. Os povos Tukano vivem na região do alto Rio Negro, no estado do Amazonas, entre os rios Tiquié e Uaupés. A nação que modificou o nome por cinco vezes mudou a língua, o mito e trocou por mais de 20 vezes seus lugares sagrados, despertaram no pajé Gabriel Gentil173 o cuidado pela preservação da tradição e da memória imaterial de seu povo. Preocupado em manter vivas as narrativas, os mitos, os ritos de celebração e os encantamentos que estavam sendo esquecidos, Gabriel Gentil escreveu, desenhou e estudou a história de seu povo por mais de 35 anos. Na apresentação do livro Povo Tukano: Cultura, história e valores, a professora Valéria Weigel comenta sobre o pagé Gabriel Gentil dizendo que ele: “escreveu esta obra para que as novas gerações tivessem acesso e domínio sobre conhecimentos fundamentais da alma Tukano e que, assim, estariam assegurados para a continuidade da construção de sua identidade étnica” (WEIGEL, 2005, p. 01). Em uma de suas descrições a respeito dos mitos de origem, sobre os primeiros Tukanos, Gabriel Gentil descreve sobre o Lago de Leite: A tribo Tukano não emergiu ou surgiu na região do rio Negro. Eles emigraram, vieram com os corpos humanos para Amazônia de outro continente, chamado a Casa de Terra Yepáwii, o mesmo Lago de Leite. Foi a criadora Yepá que criou os Tukano. A criação aconteceu somente uma vez e fez surgir ou emergir nascimentos dos primeiros humanos da Terra. O Lago de Leite era um lugar montanhoso, frio. Observa como, com que materiais a criadora Yepá fez cerimônia e 17 O indígena Tukano Gabriel Gentil (1944-2006), que viveu principalmente no noroeste do estado do Amazonas, recebeu em 2005 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) o título de pesquisador emérito no campo do conhecimento tradicional. Trabalhou no Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, em Manaus. O reconhecimento da Fiocruz a uma das principais lideranças políticas dos indígenas do Amazonas constituiu uma medida inédita no país. Gabriel Gentil foi Kumu (curador) de sua tribo, sobre a qual publicou vários livros, como O resgate da mitologia tukana, Povos Tukanos e o livro publicado na Suíça (em português e em idioma tukano) O mito Tukano. 80 criou os Tukano: – No Lago de Leite existiam estes materiais para formar gente. Com estes materiais os Tukano foram criados. A Criadora Yepá fumou o tabaco, comeu ipadú, bebeu as bebidas imortais wayuko, cheirou as ervas medicinais paricá, assoprou em cima do banco onde ela sentava. Era o banco de leite, era o futuro para transformar a bacia ou bunda que ia ligar todos os ossos humanos. – A Criadora segurou a Pedra cristal, assoprou, era o futuro, cabeça ou cérebro. – Dentro do ventre dela puxou uma Corda de cipó kãradá. Era veia, origem de vida coração alma. – Existia a Cuia de pedra quartzo branco. Dentro da cuia tinha pedras cristais de várias cores, eram as futuras pernas. Estas pedras eram células que surgiram vidas e reprodução. Naquele tempo, no começo do Mundo, eram diferentes as etapas de vida e organismos. – Segurou a Lança ritual transformador, fazedor de gentes, era o futuro pênis. – Do lado dela estavam duas cuias de apito de pedras, que produziam as vozes e língua. Estas cuias tinham luz ou brilhos ouro, lá existiam as bebidas de imortais wayuko, onde estavam as forças e sabedorias vida da Criadora. – Depois no mesmo instante perto dela, muito rápido em forma de relâmpagos formavam de redemoinhos. – Todas estas coisas juntas tornaram-se o primeiro homem Tukano Doétiro. – Depois nasceram outros Tukano. [...] Depois que os Tukano foram criados no começo do Mundo, só moravam no mesmo lugar, falavam uma só língua, casavam-se com as mulheres da mesma tribo [...]. Depois de criados os Tukano nasceram nos buracos da Cachoeira, de um rio de Leite, que ficava perto da Montanha. [...] Os Tukano saíram do Lago de Leite na canoa da Cobra Grande, que é chamada Pãmëri piroYukësë. Assim espalharam-se em toda parte da Terra, migrando como humanos normais (GENTIL, 2007, p. 242-244). 81 Figura 23. Desenhos do pajé Tukano Gabriel Gentil, nos quais ilustra cenas do mito do Lago de Leite. Sem data. Figura 24. Desenhos do pajé Tukano Gabriel Gentil, nos quais ilustra cenas do mito do Lago de Leite. Sem data. 82 Nota-se a proximidade de elementos nas mitologias hinduístas e indígenas (Fig. 23 e 24), nas quais o leite aparece na condição de lago ou oceano, na presença de montanhas, cobras e néctares da imortalidade. Arquétipos da criação que se repetem em territórios distintos. Na Grécia e em Roma, havia a crença nas cerimônias de se ofertar aos deuses de cima o vinho e aos deuses subterrâneos libações de leite. Ao ser ofertado, o leite reforça o caráter de renascimento divino no homem iniciado que “nasce novamente”. Percebo que este ritual está intimamente ligado ao mito dos fundadores de Roma, que foram amamentados pela Loba do Capitólio (Fig. 25). Rômulo e Remo na versão mitológica têm no leite da loba o alimento nutridor e de renascimento. Desde sua concepção, os gêmeos míticos estavam fadados à morte, pois eram de linhagem divina e real e representavam uma ameaça ao trono usurpado pelo tio-avô Amúlio. Ao serem abandonados a mando de Amúlio às margens do rio Tibre, Rômulo e Remo sobreviveram a este infortúnio ao serem adotados por uma loba. Graças à alimentação do leite da canidae, as crianças passaram pela provação iniciática, da qual não tiveram nenhum receio, o que, para o poeta romano Ovídio (Fastos II, 267-452), confirma a ascendência divina dos meninos. Sendo um animal selvagem, a loba representa em si a ordem primordial, já que provém de um mundo sem leis ou normas. Simbolicamente visto como um animal ligado ao mundo dos mortos, ao tornar-se ama de leite dos gêmeos, deu a eles mais do que a sobrevivência, conferiu-lhes o contato com o mundo dos mortos e a imortalidade. Figura 25. Bronze da Lupa Capitolina. Estátua etrusca do século V a.C. Representação de Rômulo e Remo mamando na loba. Captoline Museums. 83 Como acontece na maioria das histórias míticas, há sempre versões diferenciadas de suas interpretações. A própria história dos irmãos Rômulo e Remo sofreram modificações através dos séculos até chegar a versão que hoje conhecemos, versão essa que começou a se consolidar no século I a.C, ou seja, sete séculos após a mítica fundação da cidade. Em outra explanação, há alusões de que a loba seria uma mulher, pois a palavra latina lupae era designada tanto para o feminino de lobo (lúpus) como para designar uma mulher prostituta. Logo, nesta linha de interpretação, alguns historiadores e mitólogos sugerem que a loba que acolheu os gêmeos poderia ser uma mulher. Acredito que uma questão a ser considerada, que vai além da própria veracidade do mito, é ver em sua narrativa simbólica uma forma do homem compreender melhor a sua natureza, o mundo e o universo como um todo. No livro da Bíblia, a simbologia do leite mantém-se como alimento ligado ao divino, sendo citado em mais de 50 referências entre o Antigo e o Novo testamento. “Uma terra onde jorrava o leite e o mel” aparece por mais de 20 vezes no Velho Testamento, sempre se referindo a Canaã ou Palestina, a Terra Prometida. A fertilidade do solo e a fartura em determinada região apresentam-se como uma licença poética para descrever a terra escolhida por Javé para a residência de seu povo. A título de exemplo, seguem algumas citações: - “Não comerás nenhum animal que tenha morrido por si […] Não cozerás o cabrito no leite” (Deuteronômio, 14,21). - “e por causa da abundância do leite que elas hão de dar, comerá manteiga; pois manteiga e mel comerá todo aquele que restar no meio da terra” (Isaías: 7,22). - “[… ] quando os meus passos eram banhados em leite, e da rocha fluíam torrentes de azeite puro sobre a minha cabeça” (Jó: 29,6). - “[…] desejai o puro leite espiritual, como crianças recém- nascidas, a fim de crescerdes, por intermédio desse alimento para a Salvação” (1 Pedro: 2,2). Assim como nas citações bíblicas, no livro VII das Confissões, Santo Tomás de Aquino utiliza-se da metáfora do leite em que o recém-nascido, ao amamentar-se, alimenta-se do Cristo presentificado no leite materno. Angelo Zanoni Ramos, em seu livro 84 Ciência e Sabedoria em Agostinho, aborda a concepção agostiniana de ciência e sabedoria a partir da trindade, na qual a ciência é concebida como conhecimento das coisas humanas, e a sabedoria como conhecimento das coisas divinas. A metáfora do leite das crianças, utilizada por Agostinho nas Confissões (VII, 18, 24), traduz bem a condição do homem que aceita romper com o orgulho original: ele se alimenta do Cristo, leite dos recém- nascidos, enquanto aguarda o momento em que seu estômago estará desenvolvido o suficiente para poder digerir o Cristo sabedoria, alimento sólido dos grandes (RAMOS, 2009, p.328). A simbologia dos alimentos sólido e líquido empregada por Santo Tomás de Aquino, na visão cristã, ilustra Cristo como mediador entre Deus e os homens, e, sobre isso, Ramos considera: Se Cristo é o alimento sólido que o homem ainda não está apto para digerir, ele mesmo é o alimento líquido, o leite dos recém-nascidos, facilmente digerido por todo homem que se propuser a se nutrir da sabedoria divina. No Capítulo I falamos do papel de Cristo como o mediador entre Deus e os homens, purificador da alma humana, e a única via para que o homem possa atingir a sabedoria. Nesse trecho das Confissões, a ideia de mediação é empregada para que seja estabelecida a ponte entre Deus e os homens a partir da mediação de Cristo, pela qual que este é o leite das crianças, ou o alimento temporal (Cristo ciência), e o alimento eterno (Cristo sabedoria) (RAMOS, 2009, p.203). Vejo na metáfora crística de Santo Tomás de Aquino o Cristo presentificado no leite materno, mediador de nutrição, ciência e sabedoria divina. Faço aqui um paralelo à água maternal proposta por Gaston Bachelard, no seu livro A Água e os Sonhos, em que dedica um capítulo à água maternal, à água feminina e faz alusões ao leite dizendo que “[...] toda água é um leite”. “[...] toda bebida feliz é um leite materno. “ (BACHELARD, 2013, p. 121). 85 A água materna no entendimento de Bachelard é o leite materno, primeiro alimento que o homem conhece, se alimenta, se nutre e nele está a base do amor maternal. “[...] na ordem da expressão das realidades líquidas, o primeiro substantivo, ou, mais precisamente, o primeiro substantivo bucal”. “[...] O leite é o primeiro dos calmantes. Portanto a paz do homem impregna de leite as águas contempladas”.126 “As águas calmas são de leite” (BACHELARD, 2013, p.122 e 126, respectivamente). Nesta primeira parte da pesquisa, aludo ao colostro como primeiro leite, à fonte nutridora, às primeiras águas propostas por Bachelard, que são fontes de amor materno e conexão divina como propõe Santo Tomás de Aquino. Percebo as águas femininas presentes nos rios, nos mares e nos oceanos de leite, na seiva das árvores lácteas apresentadas aqui neste capítulo, como também no céu, na trilha da vaca celestial. Capítulo II O leite na prática artística 89 [...], para a imaginação material todo líquido é uma água. É um princípio fundamental da imaginação material que obriga a por na raiz de todas as imagens substanciais um dos elementos primitivos. [...]. Poderíamos dizer que, para a imaginação material, a água, como o leite, é um alimento completo. (BACHELARD, 2013). Considerando a possibilidade de pontuar representações históricas e conotações sobre o leite na arte e na cultura, destaco o seu emprego enquanto matéria e as consequências fenomenológicas de seus processos de utilização no campo da expressão artística, como, por exemplo, os afrescos e o uso da caseína. Além disso, busco salientar alguns trabalhos representativos na produção artística ligados à temática desta pesquisa, sem me comprometer em seguir uma linearidade cronológica no contexto da História da Arte. 2.1 O leite em procedimentos históricos e artísticos e sua aplicação A história do leite e seus derivados acontece antes mesmo de o homem começar a domesticar e criar animais. Esta constatação pode ser aferida na pesquisa da arqueóloga Lyn Wadley e sua equipe pesquisadores do Instituto de Estudos Evolutivos da Universidade de Johanesburgo, que desenvolveram um estudo sobre a caverna de Sibudu, África do Sul, identificando e comprovando o uso do leite como veículo aglutinante a um pigmento em pó ocre, cerca de 49.000 anos atrás. De uma pequena lasca de pedra escavada da caverna contendo o resíduo de uma pintura com aspecto de lama rachada, foram realizadas análises químicas, constatando-se que o pigmento ocre fora misturado ao leite na forma líquida. Também ficou estabelecido que o leite era de uma espécie de búfalo ou antílope selvagem e que poderia ter sido aplicado a uma superfície ou à pele humana. Wadley (2012) afirma que o leite fora extraído provavelmente com o abate do animal selvagem, que deveria estar lactando. Essa descoberta é significativa, porque, em muito, antecede à introdução do gado domesticado. 90 Segundo a pesquisa, há, inclusive, indícios de uso de leite humano como liga de pigmento na feitura de pinturas rupestres no Período Neolítico. Contudo, a prática de utilização de leite junto a um pigmento estendeu-se por muitos anos, uma vez que se constata em afrescos na Grécia Antiga, em dinastias dos egípcios, chineses, persas, hindus, firmando-se principalmente na técnica de têmpera de caseína, que teve o seu ápice na Renascença. Sendo a principal proteína do leite, a caseína atua como agente emulsificante, com a função de manter unidas as moléculas de água e de gordura que a compõem. Essa característica é fundamental na fabricação de queijos e de outros derivados do leite, já que a caseína também é utilizada, principalmente, na produção de galalite (um tipo de plástico), colas, materiais adesivos, papel couchê, no processo de clarificação do vinho, na fabricação de alimentos e produtos farmacêuticos e na fixação de corantes brancos. A origem do termo caseína é latina - caseus -, que significa queijo. Sua têmpera é um tipo de mistura de caseína, cal virgem ou cal hidratada e pigmento. Esse tipo de pintura aquosa apresenta secagem rápida, sólida e é bastante durável. Nas caseínas comercializadas, podemos encontrar três tipos de processos: autoazedadas, ácidas e coalho, sendo as duas primeiras utilizadas, principalmente, para adesivos ou aglutinantes de tintas. Utilizada desde os tempos do Egito antigo como uma forma de pintura aos dias de hoje, porém com menos frequência, a têmpera de caseína é valorizada por ter a qualidade de secar numa consistência uniforme, tornando-a ideal para murais. Visualmente, pode assemelhar-se à pintura a óleo mais do que a maioria das outras tintas à base de água, além disso, com o Figura 26. Andy Warhol. Dick Tracy. Caseína, lápis de cera sobre tela. 122 x 86 cm. 1960. 91 Figura 27. Vaso em terracota. Mulher com criança. Egito. Museu do Louvre. tempo, vai perdendo a solubilidade e tornando-se resistente à água (MAYER, 2016). Sendo amplamente utilizada por ilustradores comerciais como o material de escolha até o final dos anos 1960, a têmpera de caseína acabou tornando-se menos popular e também obsoleta com o surgimento da tinta acrílica. Andy Warhol (1928-1987), no início de sua carreira artística, ainda como ilustrador comercial, formalizou a técnica da têmpera de caseína em “Dick Tracy” (Fig. 26), e inaugurou iconograficamente os laços entre os personagens de histórias em quadrinhos e a Pop Art (HONNEF, 2004). Há inúmeros outros exemplos na história da arte e na contemporaneidade de artistas que se utilizaram da caseína para desenhar suas obras, mas que não estão no escopo desta pesquisa neste momento. 2.2 Representações simbólicas do leite na obra de arte Sendo considerado pelas culturas antigas um fluido puro, o leite materno era ligado ao divino e às propriedades mágicas de cura, e, por estar diretamente unido à energia vital, esteve presente nos receituários como remédio, desde o mundo antigo até a Idade Média (BALLARINI,1994). No antigo Egito, eram produzidos pequenos potes de cerâmica para armazenar o leite humano e transportá-lo. Alguns desses exemplares eram manufaturados explorando a iconografia de uma mulher amamentando (Fig. 27) ou, por vezes, utilizando a própria imagem de Isis, por acreditarem que, ao vincular o leite da Mãe de Leite dos Reis e Deuses, estariam invocando o fluido vital, numa estreita relação com a cura e a imortalidade (TRAN, 1971). 92 O vaso de cerâmica sempre teve um papel importante na história humana, por sua qualidade de armazenar líquidos, como leite, mel, óleo, vinho ou água, e por guardar pequenos nutrientes, como grãos e frutos. Como recipiente para preservação da vida dos alimentos, ou como invólucro para guardar as cinzas de um falecido e sua memória, fez com que as relações de vida e morte ampliassem a natureza simbólica do vaso, por estarem relacionadas aos rituais das mais diversas naturezas. Essas características essenciais e de caráter feminino são ligadas ao vaso como símbolo da transformação, lugar da modelagem, associado à criação, ao útero, à dualidade, ao “sagrado recinto”. No livro Understanding Greek Vases: a guide to terms, styles, and techniques, o pesquisador Andrew Clark, juntamente com Maya Elston e Mary Louise Hart, aborda como o vaso era compreendido, a começar por sua forma, cuja estrutura pode ser comparada à anatomia humana: boca, pescoço, ombro, corpo e pé. A cerâmica era parte da vida cotidiana e todos sabiam sobre suas formas e funções e o que as imagens dos vasos significavam, fossem para fins utilitários no lar ou para rituais religiosos. A palavra vaso na terminologia dos estudos antigos da cerâmica grega pode referir-se a uma vasilha cerâmica de qualquer forma, incluindo as que são parcialmente escultóricas, como o caso dos Head-vase e Rhyton (Fig.28), que são vasos em formato de cabeças e, aparen