Sou grata à vida, que tanto me deu e me dá – o ar que respiro, o chão que piso, a oportunidade de cursar uma universidade pública e de qualidade. Sou grata à minha família por sempre caminhar comigo e ser apoio nos momentos de necessidade. Sou grata à professora Lalada pelo nosso encontro, pelo compartilhamento de sua pesquisa comigo e por sua força feminina. Sou grata às pessoas que tornaram estas diversas investigações possíveis: Mestre Leonardo, Rosane e os participantes da Oficina de Cerâmica Saramenha em Ouro Branco-MG; Yaneth Ordoñez e Javier Castañeda por me levarem a Ráquira; Pawanã Kariri-Xocó e Valdete Silva pelo contato com a cultura Kariri-Xocó; Dedê Maurício, Junior, Leonor, Cida, Tamires, Nery, Márcia, Marcos, Laura e os ceramistas de Barra-BA. Sou grata à força da terra, por ter me atraído e por me ensinar cada dia mais um pouquinho sobre os seus segredos. AGRADECIMENTOSDESIGN E DIAGRAMAÇÃO Marina de Araujo TIPOGRAFIA DO TEXTO Crimson Text Silva, Mariana de Araujo Alves da, 1992- O tempo é um só : procedimentos de investigação na cerâmica e na arte popular / Mariana de Araujo Alves da Silva. – São Paulo, 2017. 107 f. Orientadora: Profª. Drª. Geralda M. F. S. Dalglish Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte popular. 2. Ceramica brasileira. 3. Cerâmica - Colômbia. 4. Trabalhos em cerâmica. 5. Cultura popular. I. Geralda M. F. S. Dalglish. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 738 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) S586t Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP 7SUMÁRIO INTRODUÇÃO ALMA Cerâmica Saramenha - Ouro Branco/MG SER Ráquira - Colômbia TERRA Louceiras Kariri-Xocó de Alagoas - Campinas/SP MEIO Associação de Cerâmica - Barra/BA CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ENTREVISTAS 9 13 31 51 63 85 89 93 9 A cerâmica é um saber ancestral. Através de sua materialidade, a humanidade vem contando suas histórias desde tempos muito antigos. Seja por meio de deusas da fertilidade, objetos ritualísticos, louça utilitária ou trabalhos de arte contemporânea, aprimoramos os saberes do barro, levando sua materialidade até os limites da expressão, construindo objetos que falem sobre a nossa passagem pela existência. Dessa maneira, os objetos cerâmicos se inserem na cultura dos povos, contando sobre seus rituais e sua arte. A América Latina compartilha um passado muito rico culturalmente, mas também de muito sofrimento. A partir do século XVI, o continente sofreu diversas invasões e colonizações impostas pelos povos europeus, e mais tarde, pelos Estados Unidos da América, com suas políticas de colonialismo e imperialismo. Muitos aspectos culturais dos povos que aqui viviam foram apagados ou esquecidos no decorrer deste processo. No entanto, os tempos mudam e o passado vem se descortinando; aspectos culturais há muito subjugados vem surgindo novamente, mostrando que a pulsação dos povos originários deste continente ainda está viva. A cultura popular tem sido a grande guardiã destes legados, e observando-a, nos colocamos em contato com aspectos materiais e imateriais constitutivos das culturas dos povos antigos. A história do Brasil também possui muitas narrativas sobre o apagamento da cultura dos povos que viviam neste território antes da chegada portuguesa. Esses apagamentos constituíram uma estratégia planejada e eficaz para cativar os povos que aqui já estavam estabelecidos, e trata-se de um método comumente utilizado em estudos culturais, no qual propõe-se a leitura de uma cultura desconhecida a partir da visão de mundo do pesquisador, isto é, uma recriação. Quando símbolos, práticas e costumes de um povo são interpretados como inferiores ao do ator que os observa, fica mais fácil impor sua própria forma de ver e viver no mundo. A arte popular brasileira tem raízes pluriculturais e se apresenta como objeto de investigação tanto para campo das artes, bem como para outras áreas. Para Mathias (2014), pensar a nossa brasilidade significa traçar uma análise sobre “uma cultura híbrida marcada pelas contribuições dos africanos, dos ameríndios e dos portugueses” (p.56). Ele situa a cultura brasileira como uma multicultura sincrética, por seu caráter mestiço. O próprio autor questiona a utilização do termo “multiculturalidade”, embora não aponte um outro que considere abarcar melhor nossa condição. Comentando as questões relativas aos INTRODUÇÃO 10 11índios no Brasil, Ailton Krenak traz elucidações que parecem colaborar não só com o entendimento da dita cultura indígena, mas também com a nossa organização e manifestação cultural tal como povo brasileiro. Krenak, ao referir-se aos povos indígenas, usa o termo no plural: “nossas culturas”. Ele aponta a possibilidade de pensar o Estado brasileiro como um “Estado plurinacional”, e explica: “(...) significaria aceitar que não existe uma nação apenas no Brasil, que todas aquelas tribos são nações e os nativos têm o direito de ter um número reservado de cadeiras no parlamento, para poder indicar que vai os representar” (2015, p.227). A partir desse pensamento de pluralidade dos povos de Krenak, para me referir à cultura brasileira prefiro a utilização do termo pluricultural ao multicultural. Embora com abordagens diferentes, as análises das diversas áreas demonstram que a arte popular brasileira conflui e entrelaça uma grande diversidade de questões decorrentes do encontro de culturas no qual estamos inseridos. A arte contemporânea brasileira reverbera para o mundo todo e é conhecida e respeitada em diversos países. Contudo, ainda existem muitos artistas e comunidades mais isolados pelo país afora, sobre os quais o sistema da arte aplica outros tratamentos e nomes. Comumente, estes artistas e comunidades-espaços são ditos artesanato ou arte popular. Não haveria nenhum problema em assim denomina-los, se tais nomes não propusessem a significação de que estes praticam uma arte menor. A cultura brasileira é plural, mas a construção de valores dentro e a partir dela é bastante hierárquica, subjugando uns e exaltam outros. É como se a arte que aprendemos a partir da Europa – e mais tarde, com os Estados Unidos da América – pontue o que é melhor; e o que é melhor não é popular, mas erudito. A arte popular brasileira possui muitos aspectos indígenas, negros, além da influencia dos diversos povos que aqui chegaram. É uma valiosa para o Brasil, e nos ajuda a compreender o que é esta pluriculturalidade na qual estamos inseridos; faz pensar onde se dão os encontros e os afastamentos entre as culturas dos povos. Nesse sentido, utilizo “as culturas” no plural, pensando que, segundo Wagner (2015, p.89) o termo cultura não possui um referente único. Se a arte é uma forma de conhecer o mundo, é preciso olhar com atenção para o que as diversas comunidades dizem com suas estéticas. As diversas culturas são marcadas por muitos símbolos, rituais, práticas, significados de um Brasil que talvez seja pouco conhecido para muitos de nós – mas, muitas vezes, bastante internalizado –, familiarizados pela educação formal com uma certa arte bem estabelecida, oriunda da academia ou da prática contemporânea. É importante ressaltar que não estamos tratando aqui de um conhecimento crescente: como se existisse a etapa de conhecer um tipo de arte, e depois outro, para por fim, chegarmos aos complexos códigos da arte realizada na atualidade. O contexto popular se apresenta como um mundo “dentro e fundo”, como as Minas Gerais pensadas por Carlos Drummond de Andrade no poema A palavra Minas, que compõe a obra As impurezas do branco, de 1973. A cerâmica como material plástico é considerado pela arte ocidental um meio – por exemplo, faz-se uma escultura em barro para depois fundir em metal. Quando não é vista como meio, é entendida como funcional, pois fabrica santos devocionais e utilitários ritualísticos ou cotidianos. A cerâmica indígena, por exemplo, tem sua existência datada de muito antes de o Brasil ser o Brasil (BARRETO; BETANCOURT, LIMA, 2016). Neste território viveram muitos povos antes da chegada dos europeus, e estes povos trocavam informações, plantas, sementes, objetos, e como consequência do encontro, suas culturas. Cada povo possuía práticas específicas, sendo a cerâmica, uma destas que permeou a existência de diversos povos. Por isso, a cerâmica constitui-se como um objeto importante para as pesquisas arqueológicas e etnográficas, permitindo a identificação do período no qual determinados grupos humanos viveram nesta terra. O barro, após ser cozido, torna-se um material de características como as da pedra, e em razão de sua dureza e integridade, atravessa séculos. Assim, os corpos cerâmicos são verdadeiros objetos de registro das passagens humanas, das culturas e de seus símbolos pelo planeta. Este trabalho busca sintetizar algumas experiências que tive com a arte dita popular durante o período da minha graduação em Artes Visuais. Pensando que o campo das artes é muito vasto, faz-se necessária a aproximação com a linguagem, a expressão e a poética que mais se parecem com o que nos encontra como indivíduos. Para mim, a cerâmica simboliza encontro. Encontro com a minha matéria, com a minha potência geradora como mulher e com a minha ancestralidade. O barro é elemento de construção, terra fecunda e registro cultural. Suas possibilidades são diretamente proporcionais à sua antiguidade. O barro conta a história da humanidade e continua a contar. Ainda nos relacionamos com essa matéria e para muitas comunidades, o barro ainda é sustento, expressão e vida. Nos capítulos seguintes, pretendo abordar brevemente a história e a minha relação com as seguintes comunidades-espaços: Ouro Branco-MG; Ráquira-Colômbia; Campinas-SP, em uma referência à arte indígena de Alagoas; Barra-BA. Nestes espaços, marcaram-se relações entre o meu corpo, minha prática artística e os corpos cerâmicos desenvolvidas pelas pessoas inseridas nestes lugares. A partir destes contatos, proponho séries fotográficas como formas 12 13de registrar os saberes cerâmicos para além do objeto em si, matéria existente no tempo-espaço. As séries fotográficas são registros, como registros de performances – não são a performance em si. Assim, proponho também uma reflexão: em tempos multimidiáticos, como o corpo cerâmico se comporta, permanece e se propõe a habitar o futuro? O surgimento do sistema fabril, por volta de 1800, provoca uma séria crise social do artesanato. Os produtos padronizados pela indústria perdem qualidade artística e se tornam inferiores àqueles confeccionados artesanalmente. Os artesãos se tornam proletários, perdem sua independência, deixam de possuir os instrumentos de trabalho e passam a produzir nos edifícios de propriedade dos empregadores. (MATTAR, 2010, p.100) A cerâmica não está finalizada quando sai do forno. O barro é um material vivo, e mesmo após a etapa da queima, entendida como a última etapa para a sua transformação em pedra, ele ainda continua recebendo as transformações propostas pelo tempo, pelo clima, pelos locais por onde passa e pelo contato com as pessoas. A Cerâmica Saramenha comprova essa possibilidade de transformação. Atualmente é desenvolvida na cidade de Ouro Branco, na porção central do estado de Minas Gerais, a cerca de 100km de distância da capital Belo Horizonte, mas sua origem remonta ao início do século XIX. Desenvolvida, em um primeiro momento, na cidade de Ouro Preto-MG no fim do período colonial, foi trazida como técnica cerâmica de Portugal para o Brasil através do Padre José Joaquim Viega de Menezes. Seu vidrado constitui uma de suas características estéticas identitárias – amarelado, por vezes com pontos esverdeados, amarronzados, negros, cores que se constituem a partir de chumbo e óxidos metálicos, como o cobre, o ferro e o manganês. Sua queima é realizada em baixa temperatura, atingindo no máximo 1000ºC. Segundo Lage (2010, p.25) e Sena (2007, p.47-48), a Fábrica de Cerâmica Saramenha instalou se na região de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto, no início dos anos 1800, especificamente na localidade da chácara também denominada Saramenha, pertencente ao cirurgião mor Antônio José Vieira de Carvalho. Esta manufatura teria existido até o final do século XIX. Nesse período, a produção da fábrica consistia em pratos, sopeiras, bilhas para água, vasos, potes, canecas, bules, entre outros tipos de utensílios. Viajantes estrangeiros como Auguste de Saint-Hilaire e John Mawe tiveram contato com a produção e registraram suas impressões sobre a louça mineira. Em seu Guia de Ouro Preto (1963), Manuel Bandeira relata as impressões desses viajantes: Tanto êle [Saint-Hilaire] como Mawe falam com interesse da ALMA CERÂMICA SARAMENHA - OURO BRANCO/MG 14 15manufatura local de faiança. O francês elogia a forma dos vasos e aponta como defeito o verniz demasiado espesso. Para êle a fábrica de Vila Rica acabaria rivalizando com as da Europa, se os habitantes do país, “escutando a honra e o interesse, quisessem fazer esforços para sustentar aquela manufatura”. Parece que os habitantes não escutaram nem honra nem interesse... A manufatura desapareceu. No entanto os mineiros dispõem de uma terra de porcelana que a Mawe se afigurou superior à empregada em Sèvres. Ela provinha do morro de Santo Antônio, perto de Congonhas do Campo. Saint-Hilaire notou com espanto que os mineiros, apesar de orgulhosos de sua pátria, não falavam senão com desprezo da única manufatura que possuíam e cujos defeitos exageravam. (BANDEIRA, 1963, p.23) John Mawe, viajante inglês que esteve no Brasil no período de 1807 a 1811, relatou o processo de fabricação da louça: Oito dias depois de minha chegada, fui ver uma olaria à distância de três milhas. (...) Chegamos logo à olaria, instalada pouco além. Aí empregam o barro em estado nativo, sem nenhuma mistura, elavam-no para retirar as partículas impuras. Depois que a água se esgotou e se evaporou bastante, para deixar a massa com consistência suficiente, põem-na sobre uma roda e depois fazem pratos, potes, jarras pesadas e maciças, mas pouco sólidas. Tornam-nas menos frágeis, cobrindo-as com verniz espesso, que é excelente. O forno não tem chaminé e consistem apenas em uma abobada baixa, na qual há vários respiradores. O forno de verniz é reverberatório, mas tão mal construído que consome muito combustível, sem produzir grande calor. Em todo o distrito encontra-se argilas grosseiras, boas para a fabricação de tijolos, telhas, etc. (MAWE, 1978) A fábrica de Cerâmica Saramenha teria existido, à duras penas, até o fim do século XIX. A concorrência com a louça inglesa, que entrava com facilidade no mercado brasileiro, e a marcante preferência da população pelo uso desta, foram enfraquecendo a produção da Saramenha mineira (LAGE, 2010, p.41). Assim, a fábrica encerrou suas atividades. No entanto, o ofício aprendido ali não se perdeu. O tempo passou e quase um século depois, pode-se ouvir falar novamente da louça de vidrado espesso e amarelado. Na década de 1960, o marchand paulista Paulo Vasconcellos escreveu sobre peças de Cerâmica Saramenha que havia encontrado em um antiquário carioca. Vasconcellos tinha conhecimento dos registros de Saint-Hilaire e Mawe, e sua busca o levou até Silvestre Guardiano Salgueiro, o Mestre Bitinho. Mestre Bitinho nasceu em 1918 e fazia a Cerâmica Saramenha tal como havia aprendido com seu pai, Antônio Guardiano Salgueiro. Pouco se sabe sobre a vida dele, mas é provável que algum de seus antecessores estivesse na Fábrica de Cerâmica naquele período colonial. Sua prática e poética traziam algo novo para a louça, com o adorno de frutas modeladas, como os figos e folhagens que ele colocava sobre os vasos e potes. Em 1995, Bitinho foi convidado a expor suas peças em uma mostra juntamente às Saramenhas do acervo da colecionadora Ângela Gutierrez. A mostra aconteceu em setembro de 1995, em Belo Horizonte, na Galeria de Arte do BDMG Cultural, com curadoria de Luís Augusto de Lima. Mestre Bitinho morreu em 1998, mas seus últimos anos de vida tiveram uma companhia bastante presente: Leonardo Ricart dos Santos. Leonardo participou de uma oficina com Bitinho no início da década de 1980 e desde então não deixou mais seu mestre. Esteve atento, aprendeu a técnica da louça e tornou-se o último mestre da Cerâmica Saramenha, além de uma espécie de filho para Bitinho. Seu aprendizado se deu em um contexto íntimo, de amizade e reconhecimento de que aquela técnica que ele aprendia a cada dia, era mais do que um simples procedimento, era um saber. Hoje, Mestre Leonardo desenvolve o projeto Oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho em Ouro Branco com o apoio da Gerdau Açominas, onde ministra oficinas para a comunidade local. A oficina artesanal proposta por ele constitui se em um importante espaço de compartilhamento de saberes tradicionais, de ensino e aprendizagem não formal de artes na cidade de Ouro Branco e na região. Em março de 2015 pude realizar a primeira visita ao projeto de Mestre Leonardo, em Ouro Branco, e ao espaço Cerâmica Saramenha, proposto por Paulo Rogério Ayres Lage, em Ouro Preto. Neste segundo espaço, o empresário belorizontino montou oficina, forno e loja, e lá produz sua “Saramenha provençal”, a partir da influência de seu gosto pela arte cerâmica francesa na técnica da louça colonial mineira. Também pude visitar Janaína Evangelista, em Ouro Preto, filha do professor Petrosa da Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP e antigo presidente da Associação Mineira de Artesãos. Petrus foi artista e professor, e além disso, um grande pesquisador da história da Cerâmica Saramenha, desde a vinda da técnica de Portugal para o Brasil. Em razão das pesquisas de Petrus, houve uma redescoberta da 16 arte da Cerâmica Saramenha realizada pelas mãos de Mestre Bitinho. Hoje, em Ouro Branco, a Oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho constitui um ambiente propício ao vínculo. Qualquer pessoa pode se inscrever para o curso oferecido gratuitamente por Mestre Leonardo. A partir do ingresso, os participantes terão contato com todas as etapas do trabalho com a cerâmica – desde a retirada do barro ao pé da Serra de Ouro Branco, a preparação da massa, a modelagem no torno “de pé”, a pintura com óxidos, até a queima à lenha. Realizei uma segunda visita a Oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho em setembro de 2015. As relações entre as pessoas tinham se fortalecido e o trato com o barro já era mais íntimo. Frequentemente via Mestre Leonardo colocar suas mãos sobre as mãos dos alunos: cerâmica se ensina assim, com as mãos. Àquela altura, um dos participantes da Oficina já demonstrava o interesse em prosseguir com a técnica, e até já havia vendido algumas peças. Para compreender os saberes que compõe a Cerâmica Saramenha aprendida por Mestre Leonardo a partir do contato com Mestre Bitinho, que por sua vez, aprendeu com seu pai Antônio, que aprendera com o avô de Bitinho, e que “para trás não se sabe mais”, deve-se perceber que esta é uma corrente de saberes entre gerações, e que mais do que transmitidos, são compartilhados. 18 19 acima Saramenhas de Mestre Leonardo Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à direita, em cima Saramenha de espera Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à direita, embaixo O peso do tempo Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 20 21 acima Adenilson Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à direita Mestre Leonardo ensina a pintura Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 22 23à esquerda Saramenha de cena Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à esquerda, embaixo Geraldo Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 abaixo Tríade Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 24 25 à direita Luiz e Matilde Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 abaixo Tríade n.2 Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 26 27 acima Saramenha de casa Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à direita, em cima Placa Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à direita, embaixo Saramenha provençal Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 28 29à esquerda Oficina de Paulo Rogério Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 à esquerda, embaixo Tabatinga Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 abaixo Prato de parede Fotografia digital Mariana de Araujo, 2015 31 São as pessoas, e as experiências e significados a elas associados, que não se quer perder, mais do que as ideias e as coisas. (WAGNER, 2015, p.88) Ráquira localiza-se no departamento de Boyacá, Colômbia, a cerca de 180km de Bogotá D.C., capital do país. O território de Ráquira possui uma ocupação muito antiga, de cerca de mais de 8 mil anos a.C. e a etimologia de sua denominação remete à ruaquira, que na língua chibcha significa “cidade de panelas” (RÁQUIRA, DE LA OLLA A LA CASA, 2014). No momento da chegada dos colonizadores espanhóis, esta região era amplamente habitada pelo povo muísca, que desenvolvia uma boa variedade de produtos a partir do trabalho com o barro, inclusive realizando trocas de produtos com outros povos. Nos tempos de outrora, os procedimentos com o barro sintetizavam o pensamento, a visão e os princípios da vida da comunidade. Os anos se passaram e com o avanço de outros modelos e paradigmas sociais, os potes e panelas foram perdendo seu significado sagrado para tornar-se apenas mercadoria. Sua forma e estética foram transformadas, perdendo o sentido do compartilhamento do saber oral, em favor a uma visão mercadológica de produção em larga escala. Atualmente, existem esforços de muitas frentes para resgatar o sentido sagrado dos potes de Ráquira. O conceito de olla- hogar – olla-casa, em tradução livre, pote-lugar ou pote-casa, pretende gerar na população que os fabricam e que os consomem uma melhor reflexão e valorização de sua técnica e herança. A composição da argila de Ráquira possui areia do rio que banha a cidade, e por essa razão, é chamada pelos locais de “louça de areia”. As ferramentas utilizadas mais comumente hoje para a modelagem das peças são os tornos e moldes de gesso. No passado, essas ferramentas não faziam parte dos procedimentos dos artesãos locais, mas hoje, em razão da grande demanda comercial, é necessário que a produção seja mais rápida. As peças de modelado são mais comuns quando se tratam de figuras, santos, esculturas. As queimas são realizadas em grandes fornos alimentados a carvão vegetal, outro elemento importante na economia do município. Quando os fornos estão acesos em sua maioria, a cidade é imersa em uma fumaça bastante prejudicial à saúde. Ainda assim, Ráquira é considerada o mais importante centro de manutenção do trabalho cerâmico da Colômbia. SER RÁQUIRA - COLÔMBIA 32 33Pude visitar Ráquira em setembro de 2016, em companhia de artistas colombianos. Uma dessas artistas me contou sobre uma residência que teve a oportunidade de realizar na cidade, alguns meses antes. Ela me falou que quase todo o artesanato em barro vermelho vendido na grande Bogotá saía de Ráquira. Entretanto, os artesãos da cidade pouco usufruem dessa [grande] venda de seu trabalho. Poderosos intermediários terminam por lucrar com a revenda destas peças, nas quais aplicam um valor muito mais caro do que pagam por elas quando as compram dos artesãos. Além disso, o cotidiano é difícil na cidade. São poucas as opções de trabalho além da pesada e mal paga lida com o barro. Em Ráquira, o barro estabelece uma condição difícil. A beleza da ancestralidade termina engolida pela fumaça preta e tóxica do carvão. A visita que fizemos à Ráquira naquela ocasião tinha por razão participar da missa de morte de um artesão importante para a cidade, o senhor Lorenzo, que teve complicações em decorrência da contaminação do ar. Na cidade, tudo é cerâmica, e as fotos propõe uma imersão neste ambiente. Os painéis cerâmicos da praça central da cidade contam o cotidiano dos artesãos; o ambiente da oficina de dona Nora traz símbolos da cultura de Ráquira e de como é ser um cidadão-artesão neste espaço. A visita à casa do senhor Lorenzo tem ares de silêncio – como se quem morasse lá tivesse feito uma pausa no tempo. Ráquira é uma destas cidades com uma forte herança cultural dos povos originários do continente latinoamericano. Hoje, seus artesãos produzem um tipo de cerâmica considerada tradicional da Colômbia, especialmente por seu procedimento, mas também por suas formas. A bagagem cultural dos povos tradicionais/populares, nesse contexto, possui muitas aproximações com as matrizes culturais ameríndias, e muitas vezes isso é desconhecido. A cultura resulta das práticas sociais, aprende-se por meio da comunicação e determina o comportamento do indivíduo. Permeia-se por práticas e símbolos, e apesar de ter uma característica bastante orgânica, a qual lhe permite difundir-se, surge a partir de uma decisão dentro da prática social. Mathias comenta: Para Lévi-Strauss, antropólogo francês, a cultura surgiu exatamente no momento em que o ser humano convencionou, arbitrariamente, a primeira regra, ou seja, quando instituiu uma interdição, um tabu, organizando a vida coletiva. Além disso, essa criação simbólica nunca é isolada ou independente, ou seja, nunca se constitui fora do grupo de que o indivíduo faz parte. É a partir das trocas partilhadas dentro do grupo, num processo de comunicação organizado pelo diálogo entre seus membros, que a cultura vai se instituindo e se difundindo para além das fronteiras onde os costumes, os valores e as práticas surgiram.” (MATHIAS, 2014, p.29) Sobre o processo de construção da ideia de cultura a partir da observação do outro, Wagner aponta: Esses constructos são pontes aproximativas para significados, são parte de nosso entendimento, não são objetos, e nós os tratamos como “reais” sob o risco de transformar a antropologia em um museu de cera de curiosidades, de fósseis reconstruídos, de grandes momentos de histórias imaginárias. (WAGNER, 2015, p.91) A construção da cultura é arbitrária e, em certa medida, diz muito mais sobre a cultura do observador do que a do observado. Isso acontece porque para compreender o outro, construo uma série de elementos a partir do meu próprio conhecimento de mundo. Assim, a construção arbitrária da história e da sociedade é um paradigma, e embora isso esteja indubitavelmente estabelecido, é importante refletir sobre as possibilidades de quebra de padrões. Em Contra o método, Paul Feyerabend propõe analisar os problemas metodológicos da ciência a partir de duas possíveis hipóteses: o sentido de ordem e de anarquismo. Para Feyerabend, há uma busca obsessiva pela ordem, quando na verdade, os sistemas estão sempre se reorganizando e mostrando que esta tal ordem é, de fato, impossível. Só o que existe nessa organização é o anarquismo – o qual se desorganiza e se reorganiza constantemente, exigindo um enorme sentido de ordem não forçada. Assim, ele nos ajuda a desvendar a estrutura estabelecida para a construção do pensamento científico. Os processos de ensino tanto moldam a “aparência”, ou “fenômeno”, quanto estabelecem uma firme conexão com palavras, de modo que, no final, os fenômenos parecem falar por si mesmos, sem auxílio externo ou outros conhecimentos. Eles são o que os enunciados associados asseveram que sejam. A linguagem que “falam”, é claro, é influenciada pelas crenças de gerações anteriores, crenças mantidas há tanto tempo que não mais aparecem como princípios separados, mas penetram nos termos do discurso cotidiano e, após o treinamento prescrito, parecem emergir das próprias coisas.” (FEYERABEND, 2007, p.93) 34 O modelo de construção do pensamento científico que adotamos nos induz a naturalizar conceitos, mesmo que por um período definido no tempo. Pensar sobre os termos e conceitos que utilizamos é fundamental para o sentido de ordem anarquista proposta por Feyerabend. A subjetividade, por vezes, é uma questão complicada para a ciência, sendo cada vez mais debatida, mas também cada vez mais aceita. A ideia de que não se pode admitir a subjetividade no trabalho científico é comprovadamente equivocada – o homem habita um lugar, um tempo, um espaço e pensa; isso lhe confere subjetividade. No entanto, nas artes, um constante esforço dos pesquisadores ainda é encaixar-se nos métodos já propostos pela ciência. Todavia, muitas pesquisas nascem desse embate: momentos de catarse, de profunda reflexão, de encontros com questões essenciais à vida social, e neste sentido, consideram-se estados mentais, metafísica, religião, influência de grupos familiares, linguagem e cultura. Feyerabend (2007) aponta ainda que a criação e a compreensão plena de algo no mundo são, em geral, partes do mesmo processo, indivisível e importante para o estado de completude desta própria coisa. A pesquisa científica nas artes permeia-se pelo embate com a subjetividade, seja no nível do indivíduo ou de um coletivo. O pesquisador desta área deve considerar todo o trabalho que a ciência produziu até o seu tempo, compreendendo quais os caminhos da razão traçados até o presente momento. No entanto, cabe ao pesquisador como indivíduo social e político, analisar os modelos, filosofias e teorias já propostos com algum afastamento; sua intenção deve ser identificar os pontos de reorganização da trama anárquica em processo. 36 37 à esquerda Las manos Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 acima El amarillo Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 à direita La calabaza Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 38 39 à esquerda La puerta Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 acima El rechazo Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 à direita Las colas Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 40 41 El horno Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 La falta Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016Las hierbas Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 La transparencia Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 42 43El silencio Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 Las otilias Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 La inmaculada Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 44 45 El taller de doña Nora Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 Las tejitas Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 à direita En la Todo Ráquira Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 46 47 à esquerda En la Todo Ráquira n.2 Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 acima En la Todo Ráquira n.3 Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 48 49 Los platos Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 Los Naranjos Fotografia digital Mariana de Araujo, 2016 51 Só somos índios para os outros. Para nenhuma de nossas famílias nós somos índios. (...) nós nos reconhecemos como seres humanos; e, talvez, a crise de civilização que vivemos seja um grande liquidificador que vai permitir que todas estas alcunhas generalistas – os amarelos, os índios, os brancos, os pretos – se dissolvam neste caldeirão para que aprendamos, de novo, a ser a velha e ótima humanidade. (KRENAK, 2015, p.230) Os índios são os povos originários das três Américas, e no território brasileiro, sua ocupação remonta há milhares de anos. Estudos arqueológicos realizados na região da Amazônia brasileira apontam para uma ocupação de mais de 11 mil anos (BARRETO; LIMA; BETANCOURT, 2016). Desde a colonização europeia nestes territórios, os povos indígenas sofrem com ações de domínio e extermínio, somadas às políticas de aculturamento que pretendem fazer com que o índio se torne civilizado, de acordo com o que supõe a sociedade. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro comenta que existe um desejo na sociedade de que o índio abandone seu “estado indígena”, pensado pelo não-indígena como sendo este um traço de primitivismo, para então tornar-se um “pleno cidadão brasileiro”. Contudo, segundo o antropólogo, no contexto social brasileiro, isso significaria oficializar a marginalização do índio (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p.135-137). Esses povos originários do território das Américas têm uma concepção não ocidental de ver o mundo e possuem cada qual sua cultura material e imaterial compartilhada através de muitas gerações, constituída por intensas trocas culturais entre povos. A cerâmica é uma prática comum a diversos destes. O corpo cerâmico não é inanimado: tem história e agência¹. Lévi- Strauss (1986) investigou os mitos formadores do pensamento de diversos povos ameríndios e aponta que para os povos das florestas e savanas da América tropical, a cerâmica marca um combate entre um povo do céu e um povo da água, ou do mundo subterrâneo. Os humanos, povo intermédio entre estes, assistem passivamente à luta e, por acaso, se beneficiam dela. Assim, prática da cerâmica é uma dádiva, mas também é arriscada e deve TERRA LOUCEIRAS KARIKI-XOCÓ DE ALAGOAS – CAMPINAS/SP ¹ No campo da antropologia, agência é um termo que atribui às ações particulares a capacidade de processar a experiência social e, assim, conceber ideias ou agir sobre o mundo. 52 53obedecer algumas condições junto a estes dois mundos para que possa acontecer. No modelo indígena de compartilhamento de conhecimento, o contexto familiar é o ponto de partida. O conhecimento das técnicas e saberes cerâmicos, por exemplo, é compartilhado de uma geração a outra, entre mães e filhas, avós e netas. Todavia, o modo ocidental de observar o mundo e agir sobre ele, travou um embate com o modo dos povos originários deste continente. No Brasil, os portugueses trouxeram ideias de quantificação e monetização muito diferentes dos modelos de trocas vivenciados pelos povos que aqui habitavam. O contato mostrou aos índios que sua cultura e seus objetos podiam custar um preço, como custavam os diferentes objetos trazidos naqueles grandes navios. Contudo, muitas vezes, este preço não assumia o real valor-qualidade do objeto por eles produzido. Em maio de 2017 pude acompanhar uma vivência proposta pelos índios Kariri-Xocó de Alagoas no Centro Cultural Casarão, em Barão Geraldo, Campinas-SP. O grupo Sabuká é constituído por um grupo desta comunidade e sua proposta é difundir a cultura Kariri-Xocó dentro e fora do Brasil. Nesta ocasião, em Campinas, um grupo das mulheres louceiras da comunidade também veio acompanhar as vivências do Sabuká e propor uma oficina de cerâmica. Antes de nos atentarmos à oficina, é preciso abordar um pouco mais sobre quem são os Kariri-Xocó e como vivem atualmente. O povo Kariri-Xocó de Alagoas vive em Porto Real do Colégio, cidade localizada a cerca de 190km de Maceió, capital do estado. Assentam-se nas margens do Rio São Francisco, na porção baixa, onde o rio já quase encontra o mar. A história dos Kariri-Xocó é marcada por muitos conflitos. Sua denominação é bastante recente, decorrente dos casamentos interétnicos que predominaram entre os Kariri e os Xocó no último século, na área de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Segundo Nhenety Kariri-Xocó (FULKAXÓ: SER E VIVER KARIRI-XOCÓ, 2013, pag.21), o povo Kariri, originário desta terra, mantinha relações com diversos outros grupos do baixo São Francisco, como os povos Karapotó, os Pacatuba, os Carnijó, os Pankararu, e finalmente, os Xocó da Ilha de São Pedro - Sergipe. As políticas públicas trouxeram constantes impasses ao povo indígena no território brasileiro e assim, estes povos vêm travando constantes lutas e retomadas de suas terras a fim de constituir um espaço próprio e propício ao seu modo de vida. O contato com o colonizador entre as etnias que compõe a comunidade Kariri-Xocó é bastante antigo, e remonta aos primeiros anos da colonização portuguesa. Tanto a etnia Kariri, que ocupou boa parte do nordeste brasileiro, quanto os Xocó, em ocupações mais isoladas no mesmo território, tiveram um amplo contato e absorção da cultura cristã por meio das missões jesuítas (SIQUEIRA, 1978). O contato com o homem branco motiva uma série de mudanças, até mesmo linguísticas. Reflexo dessas transformações, o objeto utilitário cerâmico desenvolvido pelas mulheres indígenas passa a ser chamado de “louça”, um nome de origem portuguesa. Consolida-se, assim, a tradição das mulheres louceiras Kariri-Xocó. A produção de cerâmica no contexto da comunidade marca a relação deste povo com o sagrado – fazer cerâmica é trabalho, mas sobretudo, é uma atividade cercada de segredos, mitos e rituais. Segundo o professor Luiz Sávio de Almeida, a cerâmica: “É (...) um dos pontos da base da identidade do grupo, de sua permanência e mesmo persistência, apesar dos grandes impactos provocados pelos brancos.” (ALMEIDA, 2003, p.259), identificando, assim, a importância da cerâmica como ponto fundamental de constituição da arte e da cultura Kariri-Xocó. A proposta da oficina de cerâmica das mulheres louceiras Kariri-Xocó era de que os visitantes do Casarão pudessem experimentar como era a modelagem de um pequeno pote ou panela. A organização do evento foi realizada pelo Coletivo Casarão, que também organiza as atividades no Centro Cultural Casarão, em Barão Geraldo, Campinas-SP. Um grupo de quatro mulheres Kariri-Xocó, na faixa de cinquenta anos, se dispôs dentro da grande roda de pessoas que já estava formada desde as primeiras horas daquela tarde de domingo. Havia muita gente interessada em aprender a fazer a modelagem; os olhares eram atentos. As louceiras chegaram tranquilas, fumando seus cachimbos² e não disseram nenhuma palavra, apenas observaram as pessoas se ajustando na grande roda em torno delas. Cada uma falou um pouco de si e todas enfatizaram que “nasceram e se criaram no barro”. A partir dali a oficina se desenrolou de um modo atípico do que estamos acostumados como público desse tipo de vivência na grande cidade, por exemplo, no contexto das instituições culturais. Não houve passo a passo, parte teórica, indicação bibliográfica. Elas sentaram-se e começaram a fazer a modelagem, e assim nos encorajaram a fazer também. O sistema de ensino e aprendizagem ali utilizado eram os sentidos – era necessário observar com os olhos, com as mãos, com o olfato, com a audição. Os ouvidos ouviam os rojões³ entoados. As mãos sentiam a frieza do barro úmido, sentiam o ponto daquela massa, que ia secando à medida que tomava contato com o calor das mãos. Os olhos ² Os povos indígenas estabelecem uma importante relação espiritual com a fumaça. Através dela, se conectam com o plano imaterial. ³ Rojões são cantigas geralmente entoadas em trabalhos comunitários, como os mutirões para construção de casas, de capina, entre outros. As louceiras também costumam cantar rojões enquanto trabalham com o barro. 54 acompanhavam o que as louceiras faziam e, em uma experiência de completa integração do corpo, comandavam o cérebro para que este informasse às mãos como fazer a modelagem. O olfato sentia cheiro de terra, de gente, de comida, de natureza. A oficina durou cerca de pouco mais de duas horas e ao final, o grupo Sabuká realizou uma vivência de toré4 com as pessoas que ali estavam. Todas essas ações refletem o projeto dos indígenas Kariri-Xocó de resgate de sua cultura. Sua comunidade possui famílias de diversas etnias que por vontade e necessidade, decidiram viver sobre a mesma terra. Muitas práticas se perderam ao longo de tantos anos de aculturamento e eles têm buscado reafirmar o que sabem, reavivando diversas outras destas. Um exemplo deste movimento que ocorre em meio à comunidade, é o projeto “A resistência do povo Kariri- Xocó”5 realizado na Escola Estadual Indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra, localizada em Porto Real do Colégio – Alagoas. O projeto busca a valorização da história, cultura e tradição indígena deste povo, trabalhando com diversos aspectos observados na comunidade. A escola atende crianças da educação infantil e do primeiro ciclo do ensino fundamental. Um dos focos do projeto é integrar a comunidade indígena aos não indígenas, de maneira a promover a valorização da cultura dos povos originários. O projeto surgiu da própria necessidade da comunidade e é desenvolvido por ela própria. Desse modo, as crianças e os adultos envolvidos nesta iniciativa têm a oportunidade de rever elementos de sua comunidade de maneira crítica, pensando caminhos possíveis de preservação de sua memória. É importante lembrar que a escola nem sempre foi algo positivo para o indígena. Na realidade, esta é uma relação problemática que deve ser observada. A escolarização, muitas vezes, pretende uma transmutação da cultura em “cultura”, em uma ideia bastante forçada e encerrada em um molde. A cultura não se compõe apenas por conteúdo, mas sim com procedimentos e modos de compartilhamento (CUNHA; CESARINO, 2014). A transmissão em várias sociedades indígenas envolve um laço entre pessoas, seja pacífico de mestre e discípulo, de pai para filho, de espírito a pajé, mas também pelo roubo, pelo saque, pela sedução, pela guerra, de vencedor a vencido... (CUNHA; CESARINO, 2014, p.15) 4 Cerimônia de cantos e danças. 5 Matéria publicada em: http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/ noticias/4218-kariri-xoco-desenvolvem-projeto-educacional-para-preservar- historia-e-cultura com acesso em 20 de maio de 2017. 56 57 acima Louceiras Kariri-Xocó Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, em cima Louceiras Kariri-Xocó Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, embaixo Barro e caco Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 58 59 60 61PÁGINA ANTERIOR à esquerda Valdete Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 PÁGINA ANTERIOR à direita Barro e pele Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 acima Toré Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 acima Comunidade Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 63 (...) a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa. (RILKE, 2011, p.23-24) A cidade de Barra está localizada no oeste baiano, a 650km da capital Salvador, onde se encontram o Rio São Francisco e o Rio Grande. Por lá existe uma comunidade que produz cerâmica há muito tempo. A fundação da cidade data de 1753 e seu território possui uma forte herança indígena, que pode ser chave do entendimento de sua cultura em relação ao barro (FERNANDES NETO, 2013). Em julho de 2017, estive por uma semana imersa no cotidiano e nos costumes dos ceramistas da Associação Comunitária de Cerâmica Nossa Senhora de Fátima, em Barra. Cheguei à Barra por volta das 19h30 de uma quinta-feira; noite escura de lua crescente. Às 19h, a estrada asfaltada que o ônibus percorria foi dar em um uma cruz, e atrás da cruz, uma imensa escuridão. Ali era o Rio São Francisco e a travessia para a outra margem deveria ser feita de balsa. No dia seguinte, Dedê Maurício, ator e ativista cultural barrense, nos levou até a Associação Comunitária de Cerâmica Nossa Senhora de Fátima, e então fomos apresentadas às ceramistas. A Associação é um salão, com uma área fechada e outra aberta, e uma espécie de garagem grande, que está junto à Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Barra. Na área fechada do salão, homens, mulheres e crianças partilham a produção das mais diversas peças de barro. Na parte aberta estão os fornos – são três e queimam à lenha – e também ficam por lá algumas peças maiores para secar. Na “garagem”, há um grande depósito de barro e de madeira. A princípio, quando chegamos, optei por caminhar pelo local e fazer fotos. Entendi que chegar abordando os artesãos seria precipitado, pois era necessário gerar empatia. Leonor, uma das artesãs, me perguntou sobre o que eu queria saber, e então expliquei a ela que eu pesquisava as maneiras de transmissão das antigas técnicas cerâmicas, observando o trabalho de pessoas que ainda hoje reproduziam os procedimentos assim como eram realizados no passado. Ela me disse que estava pronta para responder as minhas perguntas, mas percebi que a hora não era propícia, pois estavam MEIO ASSOCIAÇÃO DE CERÂMICA – BARRA/BA 64 65todos bastante envolvidos com algum trabalho urgente. Ao fim do primeiro dia, houve mais espaço para que eu pudesse entrevistar duas das artesãs: Leonor e Cida. Chamo de artesãs e não de ceramistas, pois é a maneira como elas se autorreferem. Neste dia, eram 5 mulheres e 2 homens trabalhando, além de uma criança pequena, filha de dois dos artesãos. Ali, tudo acontecia ao mesmo tempo: chegava um artesão e saía outro, chegava um cliente e saía outro. Enquanto alguém atendia um cliente, outro já estava tratando de ajudar a embalar peças com muito jornal para que o transporte fosse seguro e a cerâmica não quebrasse até o destino. No mesmo instante, havia pessoas modelando, outras dando acabamento, outras colocando peças para secar ao sol. Tudo acontecia muito naturalmente. Nos dias que se seguiram, tivemos a oportunidade de passar a maior parte do tempo na Associação de Cerâmica. A cada dia, uma nova dinâmica, mais um novo artesão ou artesã que se podia conhecer. Hoje trabalham cerca de 10 pessoas na Associação, ou no “salão”, como as artesãs chamam. Em um dos dias da minha vivência com eles, dois grupos escolares de Barra visitaram o espaço e algumas meninas pediram para realizar uma entrevista com as artesãs, também para a escola. Percebi que existe uma valorização do trabalho do artesão local pelos próprios moradores da cidade e da região. No entanto, nas conversas com Leonor, a todo momento ela enfatizava o quanto o trabalho com barro é cansativo e sem reconhecimento. Pude acompanhar todas as etapas da elaboração de uma peça. O barro, que hoje é levado à Associação com a ajuda dos maridos das artesãs, por muito tempo foi levado pelo próprio padre da igreja de Fátima. Esse barro é retirado na margem do Rio Grande e fica estocado na Associação, sendo aos poucos transferido para tanques de cimento nos quais vão adicionando água até que a massa de argila fique no ponto para modelar. Após a modelagem, vem o acabamento. A técnica é empregada com tamanho cuidado, gerando um resultado primoroso, uma “louça de perfeição” (LIMA, 1996). Na finalização das peças, os artesãos e artesãs utilizam ferramentas de corte, como pequenas facas, e raspadores, para assim deixarem a peça o mais lisa possível. Após o acabamento, vem a etapa de pintura. São utilizados apenas dois tipos de tintas naturais: o tauá e a tabatinga. O tauá é uma terra amarela retirada das margens do Rio Grande, enquanto a tabatinga é uma terra branca retirada das margens do Rio São Francisco. Assim, as peças ficam ao sol ou dentro do salão coberto para que sequem bem até a etapa da queima. Em um dos dias, pude acompanhar uma queima da artesã Laura. A queima começou por volta das 17h. As madeiras utilizadas na queima já estavam estocadas na Associação. As artesãs contaram que muitas pessoas levam madeira para elas. Às vezes, alguém desfazia uma casa antiga, pegava toda a madeira da casa e levava para a cerâmica. Naquele dia, a maior parte da “lenha” utilizada era de uma dessas casas que há pouco havia sido desmanchada. O fogo subia lentamente e para saber se a temperatura estava boa, elas jogavam com as mãos um pouco de água sobre os cacos de cerâmica que cobriam o forno. Se a água evaporasse imediatamente a temperatura estava boa. Por volta das 22h, a água que Leonor e Laura jogaram sobre os cacos evaporou. A partir desse momento, pararam de alimentar o fogo com lenha e a brasa finalizou a queima. No último dia na Associação, fiz as fotos e vídeos que ainda eram necessários. Leonor, uma das artesãs da Associação, havia estado muito envolvida por toda a semana com uma encomenda de copos para o padre barrense que ia se ordenar: ele pediu a ela que fizesse 400 copos para o dia da ordenação. As peças eram pequenas, mas davam muito trabalho no acabamento. A princípio, ela queria cobrar R$1,75 por copo, mas o padre disse que não poderia pagar, então ela abaixou o valor para R$1,50, mas ainda assim estava além do que ele podia pagar. Provavelmente, ficaria por menos disso. O acabamento primoroso dava bastante trabalho e assim, envolvia além de Leonor, seu marido Marcos, sua filha Tamires, seu genro Nery, por vezes sua irmã Laura, e ainda, por vezes alguns outros artesãos. A cultura popular preserva muitos rituais, práticas e objetos que marcam sua relação com a tradição e a ancestralidade. É rica e repleta de encontros e desencontros permeados pelo entrelaçamento das diversas culturas. Dessa maneira, olho a cerâmica de Barra. De modo geral, podemos pensar em uma prática coletiva, de um grupo que frequenta o mesmo espaço e trabalha junto, e dessa maneira, compartilha muitas formas e cores. Contudo, em cada um há sua própria subjetividade, isto é, uma maneira de encarar as situações que lhe cercam. Então, se há a decisão em cada artesão sobre seu trabalho, a escolha de suas formas, de suas ferramentas, de suas cores, a fim de expressar o que se passa em seu íntimo, este artesão não pode ser considerado menos artista do que um artista que vende trabalhos em galerias de arte. Assim, pretendo levantar o questionamento sobre conceitos e nomenclaturas que parecem desencontrados na contemporaneidade. Como afirmou Leo Steinberg: “O processo de cortejar a não-arte é contínuo.” (STEINBERG, 2008, p.90). Steinberg discute nesse texto da década de 1960, a formação do artista que abandonou a tradição para pintar o que o confrontava, e como esse processo levou a arte a outros campos, tornando-se indústria, empresa, happening, ação social, experimento, tudo – mas não mais experiência estética. Ou melhor, a arte é a experiência presente construída em meio à experiência que 66 67já se desenrolava antes e naturalmente. Hoje, vivemos épocas de inacreditáveis avanços tecnológicos, de pesquisa de materiais inovadores a partir de matérias primas já conhecidas, de comunicação elevada a um patamar da ininterrupta conexão. A arte nunca foi tão vida quanto agora. Símbolos, tradições e novas ideias se misturam e nos questionamos: o que é Arte? Leonor Pereira dos Santos Neta é uma mulher de 40 anos, pele escura e avermelhada, queimada pelo sol que brilha no sertão. Ela tem quatro filhos e atualmente é casada com um pescador que não tem podido exercer sua profissão por possuir problemas de saúde. Ela possui intimidade com o barro desde criança, pois brincava na Associação enquanto sua tia trabalhava. Mais tarde, decidiu seguir o ofício de artesã e de suas mãos nascem narrativas do cotidiano dos ribeirinhos e dos trabalhadores rurais. Leonor aponta diversas questões sociais em seu discurso e demonstra ser uma mulher bastante atenta ao que acontece ao seu redor. Compreende que a internet é uma boa ideia quando se trata de divulgar o seu trabalho ou encontrar lugares para realizar o escoamento das peças. Ela tem consciência de sua história, dos entraves que muitas vezes a fazem querer uma vida melhor para além do barro. Contudo, ela persiste; tem prazer em criar suas figuras, contando o cotidiano da sua região e assim, sua própria história. Leonor é uma contadora de histórias através do barro. O peixe que ela faz não é qualquer peixe – é o surubim, que um dia engoliu um bebê e depois o pescador abriu-o e achou a criança lá dentro, bem tranquila e comendo bananas. Sua arte é repleta de lendas, contos, “causos” e ela gosta do desafio de construir na argila esses personagens. Reflete sobre a Associação, o que passou e como as coisas se dão hoje. Sabe que poderia ir mais longe com sua arte, mas também sabe das limitações do material com o qual trabalha e da quantia que dispõe para investir nisso. A cerâmica é sobretudo trabalho. A expressão vem, porque ao modelar a massa mexe-se com o íntimo, mas ela sabe que é um trabalho, ou “ganha pão”, como gosta de dizer. Leonor é uma mulher que trabalha pela arte, que não quer deixar as técnicas e procedimentos aprendidos no contexto da família e na Associação se perderem. Ela compreende que a cerâmica permeou sua família por muito tempo, e que agora este legado está em suas mãos. Leonor é uma grande artista no oeste da Bahia, em Barra, região do médio curso do Rio São Francisco, ponto onde este imponente rio se encontra com o Rio Grande, e quem sabe, onde a arte ocidental e a arte popular também convergem e nos fazem pensar sobre nomenclaturas que devem ser revisadas. A arte popular insere-se em uma relação comercial distinta da relação comercial da Grande Arte ocidental. Isso porque aquela movimenta quantias bem modestas, enquanto esta movimenta quantias exorbitantes. A arte popular permeia o nosso cotidiano com objetos utilitários, enfeites; mas sabemos pouco sobre ela e sobre quem a produz. Olhar para as comunidades produtoras de arte popular é olhar para dentro do Brasil em todos os sentidos: geográfico, estrutural, inconsciente. 68 69à direita, em cima Beijo de sol Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, embaixo A certeza e a espera Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 abaixo Perspectiva sertaneja Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 70 71 acima Potes ao sol Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, em cima Bordados Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, embaixo Sagrada família Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 72 73 acima Leonor e Tamires Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 acima Venda Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 74 75 acima Exposição Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à esquerda, em cima Venda Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à esquerda, embaixo Para embrulhar peças Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 PRÓXIMA PÁGINA Montagem de forno Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 76 77 78 79 acima Laura e Marcos Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, em cima Cida “bordando” Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à direita, embaixo Escultura de espera Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 80 81à esquerda, em cima Pá, pote e lenha Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 à esquerda, embaixo Emborcados Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 abaixo Igreja de Nossa Senhora de Fátima Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 PRÓXIMA PÁGINA Encontro Fotografia digital Mariana de Araujo, 2017 82 83 85 O estudo da cultura é na verdade nossa cultura: opera por meio das nossas formas, cria em nossos termos, toma emprestados nossas palavras e conceitos para elaborar significados e nos recria mediante nossos esforços. (WAGNER, 2015, p.68) A escrita deste trabalho me leva a buscar relações entre os saberes populares da arte cerâmica e o meu trabalho como artista. Encontrar a cerâmica em meio à procura por linguagem e poética foi como se deparar com um mundo paralelo à tal “arte” que eu estudava no curso de Artes Visuais. O volume de saberes, a princípio, me deixou assustada: conhecimentos técnicos, relativos à formulação de massas, esmaltes, engobes; conhecimentos ancestrais, como aquilo que as gerações carregam como saberes compartilhados de uma para a outra; artistas que já haviam trabalhado com a matéria barro/cerâmica na história da arte, institucionalizada ou não; artistas contemporâneos que utilizam o barro/cerâmica como linguagem. Se observarmos a quantidade de conhecimentos que a cerâmica contém em sua prática, sentiremos a necessidade de criar espaço para realizar estudos somente com sua materialidade. Assim, o artista que a utiliza é, antes de tudo, um sério pesquisador. Em relação com estas possibilidades de investigação na arte cerâmica, meu caminho foi sendo traçado no sentido de conhecer cada vez mais as comunidades e artistas que desenvolvem a cerâmica em um contexto dito como arte popular. Me refiro a arte popular como “dita” pois esta alcunha foi imposta por comparação ou mesmo por exclusão pela Grande Arte ocidental. Estas relações são herança de uma construção de conhecimento baseada em um etnocentrismo europeu, que exclui ou exotiza as expressões diferentes do que faz a Arte com A maiúsculo, muito bem estabelecida. Esta arte – ocidental – é pautada por três ideias centrais: mímese da realidade, expressão individual do artista e “arte pela arte”. São ideias que envolvem forma e conteúdo. A ideia de Grande Arte se estabelece como aquela que ultrapassou o tempo e que assim pode demonstrar o seu valor. Os códigos são lidos por poucos; somente por aqueles que foram letrados na linguagem artística podem compreender uma obra. Dessa forma, por muitas vezes a arte popular termina subjulgada, por ser muito “fácil” compreendê-la. A arte ocidental traz alguns problemas à arte popular – bem como à arte primitiva, à ameríndia e à afro-brasileira, os quais pode-se citar: CONSIDERAÇÕES FINAIS 86 87a) Há uma crença na incapacidade dos povos “primitivos” em apreciar e julgar esteticamente uma obra, assumindo que o juízo estético não habita a opinião e a prática dos populares. Mathias aponta que não há distinção nos mecanismos da criação do gosto entre um familiarizado com a linguagem artística e um artesão popular, dizendo que: O juízo estético (...) surge também de nossas experiências com o mundo quando relacionamos as formas plásticas que criamos, ou tomamos contato com os símbolos produzidos pela cultura. Ou seja, não é inato, mas construído culturalmente.” (MATHIAS, 2014, p.61) Roy Wagner (2015) nos recorda de que a cultura é uma invenção do homem e que assim permeia os diversos níveis de sua existência em sociedade. Cultura não se quantifica ou se qualifica, ela apenas é, como produto dos seres sociais que somos. b) O fator utilidade das obras anula seu componente artístico. Muitos trabalhos de povos antigos ou populares foram e são realizados para prestar devoção religiosa, ou são objetos que permeiam seu cotidiano. A arte ocidental encara a questão da utilidade como um problema. No entanto, a ideia de trabalho vem, frequentemente, aliada à arte no contexto popular. Assim, trabalho artístico é trabalho produtivo (COIMBRA, 2010, p.19). Muitas ideias a respeito disso tem mudado com as questões levantadas pelas práticas da arte contemporânea, além da crescente conversa travada entre arte e design. Observar as produções, seus autores e atores, indica ser uma chave importante para a compreensão deste tema, buscando o desapego de velhos padrões. Na introdução de O Reinado da Lua, Coimbra comenta: A peça produzida é funcional. Serve, por exemplo, como brinquedo de meninos. Ainda não precisa ser preservada: é o objeto encontrado nas feiras e facilmente substituível, voltado para a comunidade local que o absorve. Descoberta e legitimada como “arte popular”, essa produção passa a ter curso em amplo mercado, atingindo potencialmente toda a sociedade e excluindo, paradoxalmente, a comunidade local. A expressão arte popular tem servido para designar aos produtores um lugar na produção artística em geral. Lugar do “autêntico”, “espontâneo”, “originário”, embora, ao mesmo tempo, secundário com relação à arte erudita. (COIMBRA, 2010, p.19) c) Questiona-se a autenticidade de trabalhos de arte produzidos em um contexto de um grupo popular. Há uma ideia envolvendo a arte ocidental de que a fruição estética não necessita de informações prévias sobre o contexto cultural da obra, ou seja, de que a obra de arte fala por si mesma. Em muitos casos, de fato as obras nos tocam sem que tenhamos qualquer conhecimento sobre o seu contexto. No entanto, em alguns casos, quando esta trama finalmente aparece, frequentemente reforçando uma condição de inferioridade ou superioridade de um indivíduo-artista em relação ao seu grupo, ou de um grupo em relação a outros. Assim, se estabelece uma relação de dominação, quando na realidade, o contexto deveria ser mais um elemento positivo de contribuição à experiência estética. A este fenômeno que ocorre na arte ocidental, chamamos de conceito de autenticidade. Este conceito parece servir mais à economia do que à fruição da obra, já que este discurso embala os povos e suas respectivas subjetividades em pacotes isolados e rotulados. Mathias oferece um exemplo, comentando a visão comumente difundida sobre a arte africana: Sendo a arte uma forma de conhecer a realidade, inúmeros povos apresentam respostas distintas sobre o que se conhece como arte em linguagens e formas próprias. (...) O autêntico, contudo não é um critério próprio ou inerente à obra, mas construído socialmente. O anonimato do artista africano tem sido referido como condição indispensável à autenticidade, prevalecendo a ideia de que o artista está amarrado à tradição e condicionado por ela. Nesse raciocínio, a ausência de uma assinatura em uma máscara africana garante a ela o status de obra una, original e economicamente pronta para se inserir no mercado de arte. (MATHIAS, 2014, p.100-101) d) A expressão do trabalho de arte é diluído em uma forma única, de acordo com o seu contexto. Como exemplo, pode-se pensar sobre a já bastante conhecida e difundida produção de cerâmica no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais6. Observando superficialmente esta produção, encontraremos formas e cores 6 O livro Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, de Dalglish (2008) aborda a questão da prática e da tradição cerâmica nesta porção do estado de Minas Gerais, a partir de uma pesquisa baseada no cotidiano de mulheres artesãs, buscando traçar retratos de quem são esses atores, como é construída sua visão de mundo e suas questões estéticas relativas ao trabalho com o barro. 88 89confluentes e, por simplificação, classificaremos esta produção como arte popular. De fato, em geral as peças produzidas no Vale do Jequitinhonha conversam entre si e inclusive, se assemelham. Contudo, a urgência em classificar toda a produção realizada neste contexto como uma coisa só, muitas vezes descarta a subjetividade de seus atores-realizadores. Como a cultura do outro é sempre complexa para mim, coletivizo tudo o que está em jogo, já que assim também é uma forma de compreendê-la (WAGNER, 2015). Por essa razão, as análises acerca da cultura popular devem ser atentas, buscando evitar interpretações que levem a meras generalizações. E sendo o caso de usar termos mais generalizados, devemos dar especial atenção ao contexto e história prévia desse termo, para que de fato, ele denote o que pretendemos expor. Mais uma vez, nos deparamos com as ideias de Feyerabend (2007) sobre a construção do discurso histórico em voga. É fundamental para uma definição do homem que ele continuamente invista em suas ideias, buscando equivalentes externos que não apenas as articulem, mas também as transformem sutilmente no processo, até que esses significados adquiram vida própria e possuam seus autores. O homem é o xamã de seus significados. A ambiguidade da cultura, e também da carga, coincide com o poder que tal conceito tem nas mãos de seus intérpretes, os quais empregam os pontos de analogia para manejar e controlar os aspectos paradoxais. (WAGNER, 2015, p.106) Não se está propondo acabar com um ou outro segmento de arte, mas sim compreender a origem e o uso dos termos, entendendo que o valor artístico da Monalisa pode ser o mesmo que o as experiências sensoriais de Lygia Clark, ou que o da cerâmica de Dona Isabel do Vale do Jequitinhonha. A arte dita Grande Arte e a arte dita popular se encontram muito mais vezes no desenrolar da história do que podemos supor. Portanto, as diferenças impostas entre uma e outra parecem ser necessidade de “um mercado sofisticado e agressivo” (COIMBRA, 2010, p.13), muito mais do que da estruturação da experiência estética. Enquanto artistas e pesquisadores na contemporaneidade, possuímos o desafio de repensar conceitos, rever limites, entendendo que nomear fenômenos estéticos adequadamente é, sobretudo, uma responsabilidade política e social. ALMEIDA, Luiz Sávio de. As ceramistas indígenas do São Francisco. Es- tudos Avançados, São Paulo, v.17, n. 49, p.255-270, dez. 2003. 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São Paulo: Cosac Naify, 2015. 93 Entrevista 1 - Mestre Leonardo Entrevista concedida por Leonardo Ricart dos Santos (Mestre Leonardo) a Mariana de Araujo Alves da Silva em 23 de março de 2015, na Oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho, em Ouro Branco-MG. Me conte sobre o projeto da Oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho. Como o projeto foi aprovado pela Gerdau e como as pessoas que vem participar tomam contato com ele? Agora em 2013, eu e a Rosane, mais a Rosane né, que é essa parte de projeto é ela que faz, fez o projeto, apresentou pra Gerdau, como eu trabalho lá já tem uma facilidade. Então, aprovou, e desde essa data eles vem apoiando, e é uma tentativa da gente resgatar [a Cerâmica Saramenha]. Hoje algumas pessoas já estão começando a fabricar, mas eu ainda não tenho um discípulo, uma pessoa para me ajudar. Quem procura é o público em geral. Muitas pessoas procuram por hobby, distração, terapia, mas eu ainda não tenho alguém para me ajudar. E assim, é uma cerâmica... não é uma cerâmica comum. Como o Mestre Bitinho aprendeu a técnica da Cerâmica Saramenha? O Bitinho aprendeu com o pai dele. Ele passou essa técnica para ele, o tio dele também passou. Aí é o seguinte, ele aprendeu essa técnica com o pai, e os tios faziam também, e aí ele começou a decorar essas peças. Elas eram assim, lisas. Para facilitar a limpeza mesmo, eram usadas na cozinha, todo dia. Então, na época dele já era decoração. Então ele começou a decorar as peças com cacho de uva, com figo, flores, rosas, ele enfeitou essas peças. Começou uma nova era da Cerâmica Saramenha. Me conte sobre a relação entre o professor Petrus e a Saramenha. Por volta dos anos 2000 o Petrus, que era historiador, já estava fazendo uma pesquisa grande da Cerâmica Saramenha aqui no Brasil, ele procurou as origens dela, foi a Portugal, foi lá e tentou descobrir algum vestígio dela lá ainda, alguém que fabricasse ela lá e não conseguiu achar nenhum artesão. E esse nome “Saramenha” vem por causa da cidade? Ela tem esse nome porque a primeira fábrica dela no Brasil foi na chácara do Barão de Saramenha, essa localidade próxima a Ouro Preto. Ela ficou com ENTREVISTAS 94 95esse nome. “A cerâmica lá do Saramenha…” as pessoas diziam, por isso que ela tem esse nome. Então esse Petrus descobriu essa raridade que não tinha mais ninguém fazendo, e veio para o Brasil, e pesquisando na região toda, um dia chegou a Ouro Branco, querendo saber se alguém fazia isso aqui ainda. Ele chegou, conheceu, descobriu o Mestre Bitinho aqui em Ouro Branco. Então ele estava com toda a documentação, tudo documentado. Ele foi nas autoridades aqui da cidade, foi até o prefeito, e mostrou para o prefeito: “Olha aqui, ó, vocês têm nas mãos um patrimônio vivo. O Mestre Bitinho é o último artesão da técnica Saramenha no Brasil e talvez no mundo”. Ninguém nem sabia. Nem ele mesmo o Petrus não sabia que não tinha mais ninguém [além de Mestre Bitinho] fazendo. Nessa época… eu te falei 2000, mas foi em 1995 que o Petrus teve aqui. Aí eles fizeram um curso, um projeto de resgate cultural, em parceria com a Gerdau na época, que era SulMinas ainda, com a prefeitura e com o BDMG Cultural. Aí o que aconteceu. O meu pai trabalhava na prefeitura, nessa época, na divisão de cultura. Então ele foi o organizador do curso. Ele conheceu esse Petrus e chegou lá em casa entusiasmado e falou comigo: “Léo, você vai fazer um curso de Cerâmica Saramenha que eu tô organizando.” Eu falei: “Cerâmica Saramenha, o que é isso? ” Ele nem me deu opção. “Seu nome já tá lá. ” Aí me levou lá, porque ele ia organizar a oficina e tudo direitinho para acontecer o curso. Material, tudo ele correu atrás. Aí ele me levou na oficina, lá no centro de Ouro Branco, próximo ao cemitério. Ele [Mestre Bitinho] já tinha esse lugarzinho onde ele fabricava [cerâmica]. Então chegou lá, ele me apresentou o Mestre: “Esse é o Mestre Bitinho, ele que vai ensinar a você a cerâmica”. Aí o Bitinho já pegou um barro lá, com aquele jeitinho dele desconfiado. E você não fazia nada de cerâmica ainda? Nada, nada. Sempre fui muito habilidoso com as mãos, sempre gostei de desenhar, de fazer essas coisas, sabe? Sempre tive muita facilidade com coisas manuais. E como era o Mestre Bitinho? Ele era muito tranquilo, muito engraçado. Tinha muita presença de espírito. No dia da oficina ele jogou um barro na roda, o torno, e ali ele já modelou uma peça. Não sei se você trabalha com torno… Trabalho. Ainda estou aprendendo. O torno o pessoal tem uma dificuldade… Mas voltando ao Bitinho, ele jogou aquele barro na roda e começou a girar aquele negócio ali. Parece que era mágica. Magia. E ali ele foi modelando ali, eu fiquei olhando aquilo e assim, eu me identifiquei com o negócio e fiquei doido para já começar o curso. Ajudei na oficina, a montar instalação elétrica, tudo para ficar no jeito. Então eu comecei a fazer o curso. Eram umas 14 pessoas, e acontece até hoje esses cursos. O pessoal vem as vezes muito entusiasmado, cheio de planos e vêm as dificuldades do torno, o pessoal desiste. O pessoal começa: “Ai esse trem é muito complicado, esse trem é muito difícil”. Só sei que no final do curso só ficou eu e ele. Assim, quando a pessoa tem habilidade, ela já começa a ter facilidade para fazer as coisas. Então já peguei, já comecei a fazer umas coisinhas. Só ficou eu e ele, só. E a prefeitura continuou mantendo o curso de um aluno, mas com esse objetivo: resgatar a técnica. Porque a família dele, os filhos, ele tinha vários filhos, ninguém quis, ninguém interessou. O jovem hoje realmente não se interessa muito por essas coisas, não. E eu, assim, gostei, tal, e queria mesmo fazer. Ficou só eu e ele, e ele foi me passando. Muito segredo, muita técnica, e ele tinha dificuldade para passar porque isso não era passado assim, isso era passado de família. Então eu tive que conquistar a confiança dele. Teve que virar um pouco filho, né? Exatamente. A palavra é essa. Ele me tinha como filho. Tudo era comigo. Causei um ciúme na família dele! E tudo eu era exemplo. Eu estudava na época, trabalhava, e ele me citava lá na família dele. Os filhos dele... preguiçosos, sabe? “O Leonardo trabalha, estuda, tá aprendendo cerâmica comigo, me ajuda em tudo, me leva no médico…” Até no médico eu levava, ele tinha problema de varizes, sabe? Eu pensei quando eu vim para cá em procurar a família do Bitinho. Mas aí eu pensei que eles não iam poder me falar muito porque parecia que eles não tinham se interessado... Eu tenho muito pouco contato com eles, sabe? E eles me tem tipo assim, “roubou o segredo”, sabe? Mas eu nunca roubei nada de ninguém, não. Eles tiveram a mesma oportunidade que eu tive, até muito mais. Eles me veem assim: “Ah, ele tá ganhando muito dinheiro! Ele tá é rico” E não tem nada disso. É você gostar da coisa, e realmente querer aprender, eles não quiseram, então… eu comecei a fazer junto com ele. Depois acabou o curso, né, acabou o patrocínio, mas eu continuei com ele. Me fale um sobre o processo de queima da Cerâmica Saramenha. 96 97Então, é cheio de detalhe. É tudo no olho, no olhômetro. Não tem pirômetro, não tem nada. É na cor. Eu observo a cor da peça dentro do forno, né, aquele vermelho cereja, e sei que ela está pronta. É muito “mão na massa”. Quando você sente que o forno já esquentou, aí você vai começar a alimentar o forno, jogar lenha para dentro. Aí, vão mais umas 5 horas, 6 horas, fogo bravo, forte. Até chegar em cima. A chama passa para cima das peças. A chama passa por cima delas e circula o forno todo. Você tem que observar se está tudo direitinho, se tem alguma parte que não pegou. Você abre uma gretinha ali por cima mesmo, tira com cuidado para ver como elas estão lá dentro. Aí você olha e vê. Lá dentro tem que estar vermelhinho, vermelho cereja mesmo. Aí está bom, pode parar de pôr fogo. Deixa ele apagar sozinho. O ideal é tirar as peças no outro dia. Eu às vezes tiro no mesmo dia por pressa. Vou tirando os cacos todos, deixo sair a caloria. E aí vai saindo aquele vapor quente. Com um tenaz a gente vai tirando uma por uma, devagarzinho. Mas o ideal é deixar esfriar naturalmente mesmo, e no outro dia você tira mais tranquilo. Não pega muita caloria. Eu desenvolvi essa técnica de tirar no mesmo dia porque eu queimava lá na praça de eventos. Lá é aberto. Eu ia embora, não tinha ninguém para olhar. Eu já cheguei lá uma vez e estava tudo quebrado. Então eu tirava no mesmo dia, guardava, porque não podia deixar não. Como foi o começo do seu trabalho com a Saramenha? Eu tinha uns 15 anos nessa época do curso. Aí, depois de um tempo eu fiquei meio sem tempo para mexer com a cerâmica, trabalhando e tal, dei uma parada com a cerâmica. Fui trabalhar no Espírito Santo, fiquei um tempo lá, e ele faleceu nessa época. Eu estava lá no Espírito Santo quando ele faleceu. Então eu voltei. E depois que eu voltei do Espírito Santo eu fiquei um bom tempo parado ainda, fiquei meio baqueado. Fiquei desmotivado pra caramba. Ele enfartou. Tinha 79 anos quando faleceu. Então em 2001, o Petrus esteve aí de novo me procurando, com mesma coisa: trabalho de resgate. Ele queria que eu desse continuidade, que estivesse ensinando para mais pessoas. Era um projeto do SEBRAE, aí eu voltei a mexer com a cerâmica de novo. Comecei a dar curso de novo e produzir. Mas sempre assim, trabalhando num emprego fixo e com a cerâmica nas horas de folga, até hoje. Aí desde essa época eu não parei mais. Sempre mexendo com a cerâmica, produzindo… Nunca produzi em alta escala porque, né, trabalhando fora e mexendo com cerâmica, não dá pra produzir muito não. Sozinho, tudo sozinho. Então a gente está aí hoje com esse projeto da Gerdau. Você já tem alunos que considera que podem ou querem dar continuidade? Já tem uns três aí... pelo menos três, assim, que eu tenho certeza, que se eles quiserem dar continuidade, desenvolvendo a cerâmica, eles vão. Mas aí depende deles, né. É aquele negócio, viver de artesanato é muito difícil. É muito raro uma pessoa conseguir viver só disso. Depois de muito tempo, de muita batalha, é que a pessoa consegue. Então agora tô tendo essa oportunidade, essa oficina montadinha… daqui pra frente, pode ser que as coisas mudem, que eu comece, né, a ter mais segurança nisso. Mas hoje em dia continuo trabalhando na Gerdau e nas horas de folga eu tô trabalhando com a cerâmica. A técnica que você ensina é igual à técnica que você aprendeu do Bitinho? Exatamente. Mesma coisa, do jeito que eu aprendi, passo da mesma forma. A Gerdau te deu patrocínio porque você também era funcionário deles, ou teve outro motivo? Vocês entraram por um edital, né? Exatamente, mas o fato de você trabalhar conta com certeza, né. É uma cerâmica rara, uma coisa de uma importância muito grande para a região. A emprese segue as leis de incentivo e apoiar esses projetos abate imposto. E o trabalho social que é feito na cidade né, a responsabilidade social da empresa... isso aí a Gerdau tem preocupação. E esse barro que vocês usam aqui? Ela é encontrada dessa cor [bem preta] mesmo, não misturo nada. Quer dizer, eu misturo, dependendo da liga do barro. Eu não vou saber falar nomes técnicos com você porque o meu negócio é meio na prática mesmo. Às vezes o barro tem muita liga, é muito elástico, é muito forte. Aí a gente mistura nele uma areia branca, uma areia de tabatinga, não sei se você já ouviu falar… a gente peneira ela, deixa ela bem fininha e mistura na massa. É uma espécie de um caulim, né. Uma coisa que é característica da Saramenha é esse barro. Mas quando ele queima, fica clarinho. Esse barro tem uma plasticidade fora do comum. Isso você também aprendeu com o Bitinho? Com o Bitinho. Geralmente, onde a gente encontra esse barro tem a tabatinga. Na nossa região aqui, né. Então esse barro, aqui no pé da serra [de 98 99Ouro Branco] a gente encontra demais. Na cidade grande tudo é comprado, né. Uma vez eu fui dar um curso lá em Uberaba, eles me deram um barro lá de São Paulo. A qualidade do barro era muito boa. Mas esse barro aqui… não é porque eu trabalho não, mas não dá nem pra comparar com o de São Paulo. Esse é bom demais. Eu vou até preparar um barrinho aqui para você ver. Como é a dinâmica do curso que você oferece? Eu gosto de fazer, de mostrar. A minha paciência né… os alunos sempre falam. Eu gosto mesmo. Falo dez mil vezes, não tem problema nenhum. O torno de madeira às vezes traz alguma dificuldade para quem chega. Eu nem sinto pesar, nem nada, mas eles reclamam às vezes das pernas, que doem. Você não se esforça tanto quando aprende a técnica, o jeito de manusear o pé. Você já não cansa tanto, é tranquilo. Mestre Leonardo mostra como sovar e como centralizar o barro. Esse é o método que o Bitinho usava para ensinar, a “pedagogia do ó”. Como que é a “pedagogia do ó”? Ele pegava o barro, jogava aqui no torno e falava assim: “Ó!” Aí, aqui, ó, a gente dá uma repassada nele assim, porque às vezes tem uma pedrinha… a gente tira essas pedrinhas. Depois a gente bate ele para tirar o ar, as bolhas. Não precisa ter dó não, viu. Tem umas alunas aí viu, que usam essa parte como terapia. Falam “ah, Geraldo, toma!”. Eu preparo uma quantidade [de argila], mas quando eles chegam, repassam ele todo de novo na maromba. Eu gosto que eles tenham bastante contato mesmo porque é muito o toque mesmo, sentir mesmo. É uma coisa que para você passar assim de boca né… A pessoa tem que sentir. É literalmente “mão na massa”. O negócio aqui é a centralização do barro. Isso é o que o pessoal tem mais dificuldade. Esse torno se você observar, ele não é simétrico, ele não está girando simetricamente. Madeira, né, empena. É feito a mão, é um torno rústico. Ele não tem a precisão de uma máquina. Igual você vê um torno daquele ali [aponta o torno elétrico], ele roda centralizadinho, não joga para lugar nenhum. Então o que acontece, esse torno aqui você tem que tirar essa diferença na mão. Você vai observar aqui… eu tô falando, você não entendeu ainda, mas a hora que eu fizer aqui, você vai ver… Uma coisa que o pessoal encontra dificuldade é trabalhar com o barro centralizado, trabalhar com o barro no centro. É saber que você está girando e ele não está jogando para lado nenhum. Você tem que sentir, é sentimento puro. Me fale sobre as cores que você usa para pintar as peças. Esse vermelho é oca. É uma terrinha vermelha. E o amarelo é chumbo. Aquele preto é manganês. O manganês é extraído de um minério, uma pedra. A gente tritura e dá essa cor. Quando junta com o chumbo ele vai mais para o lado do roxo. Dependendo, fica até vinho. Então são esses óxidos que eu uso. A oca, o manganês, o chumbo e o cobre. São características dessa cerâmica também, das cores dela. Essa oca deve ser uma terra específica daqui da região. É. Não sei se ela tem outro nome, né. Mas o Bitinho me apresentou ela como oca. E é pintura que índio usa também. E é tudo daqui mesmo da região. Onde tem esse barro tem a tabatinga e tem a oca. E essa oca tem de várias cores. Tem essa vermelha, e tem uma oca mais amarelinha. Mas o tom é tudo avermelhado, quando ela queima fica vermelha. Como é o processo com o chumbo? Eu que ficava moendo o chumbo. A garganta ficava doce. Parecia que estava comendo açúcar. Falam que o chumbo deixa o cara doido né. Eles falam que eu sou meio doido… Falam que os romanos ficaram meio doidos por isso, bebiam em taça de chumbo… até hoje o chumbo que eu uso a maioria é tubulação. Quando eu encontro eu fico feliz demais, porque é o melhor que tem, derrete tudo. Agora estou achando lingotes em loja de sucata. Esse aqui já está em pó… eu misturo ele com a tabatinga também e com água. Eu jogo esse chumbo na panela, ele fica líquido, e depois vai virando pó. Mas assim, eu não tenho contato com isso todo dia né. Eu preparo e isso demora muito tempo para eu fazer de novo. 100 101Entrevista 2 – Valdete da Silva Entrevista concedida por Valdete da Silva a Mariana de Araujo Alves da Silva em 07 de maio de 2017, no Centro Cultural Casarão, em Barão Geraldo, Campinas-SP. Fale um pouco sobre como foi aprender a arte da cerâmica. Você quis aprender ou foi sua avó que insistiu para que você aprendesse? Não, eu quis aprender. Eu e muitas outras mulheres aprendemos. E como é hoje em dia? Os jovens têm se interessado? É isso que me dói. Eu tô com sessenta anos e isso dói dentro de mim. O jovem de lá não quer aprender. Lá para cima da minha casa tem quatro louceiras, comigo, cá embaixo, cinco. Naquele tempo da minha mãe, era muita louceira, porque nós sobrevivíamos só do barro. A gente tinha aqueles cambistas para vender, que iam lá e compravam de muito. Esses cambistas todos morreram. E aí os velhos foram se aposentando, foi aparecendo uma “bolsa família”, e aí as velhas [louceiras] também foram descansando, e muitas morreram. Morreram quase todas, hoje só tem a segunda remessa de louceira: tudo filha, neta, mas muitas não sabem. Hoje elas só querem estudar, só querem estar no celular, então não tem muita. Eu não vejo o interesse delas. Muitos já estão saindo para trabalhar fora da aldeia. Elas não estão se interessando. Agora, eu mesma, minha filha, eu fico doente de ter a idade que eu já tenho e não ter gente para fazer. Eu tenho uma neta e uma filha. Uma neta que convive comigo, filha de Paruanã, que é meu filho. Ela estuda. Mas eu digo para ela: “Mulher, venha fazer pote! Quando eu morrer vocês ficam fazendo!”, e ela me responde “Não sei, não, Dé.” Aí eu não chamo mais. Mas eu e minhas irmãs tudinho aprendemos. Você acha que existe um problema com a divulgação da cerâmica da aldeia Kariri-Xocó para as pessoas de fora? Você acha que se tivesse mais divulgação do trabalho de vocês as mais novas estariam fazendo? Acho que sim. Mas vai muita gente comprar panela, pote... antes dessa retomada, eu já estava fazendo assim: vou fazendo panela e pote; quando é meio do ano vou queimando e deixo lá. Aí o povo vai e compra. Eu não deixo por fazer. E são só as mulheres que fazem cerâmica? Lá tinha dois homens. Um morreu, mas tem um que faz panela. Então suas queimas são no meio do ano. Você faz as peças e quando chega o meio do ano faz as queimas? Antes eu ia para a plantação, então tinha a época de fazer, mas agora já não vou mais. É assim: quando chega o mês de abril eu faço. Não é um tempo muito chuvoso. Os que eu faço no mês de abril, eu queimo. Eles ficam lá e até julho, o povo vai comprando. O povo vai lá na aldeia e compra. Vendo dez, quinze de uma vez. Até que eles terminam. E aí quando chega o mês de outubro para novembro, eu recomeço a fazer. Aí vai gente de São Paulo, de muitos cantos, comprar os potes. Um pote grande custa quanto? Lá a gente vende muito barato. Já faz uns cinco anos que eu vim para São Paulo. Veio um carro na frente trazendo os potes para o SESC [ocasião da exposição do catálogo Fulkaxó - Ser e viver Kariri-Xocó], na época do lançamento desse livro. Nós viemos e trouxemos: cinco potes e dez panelas. Vendi os potes a setenta reais. Lá, quantos potes eu não vendo com setenta? O máximo que nós vendemos os potes lá é a vinte [reais]. No tempo da sua avó, as louceiras faziam desenhos nos potes? Sim. Nós pintávamos com uma tinta branca. E foram deixando de fazer os desenhos? Nós ainda fazemos pintura. Não é sempre. Às vezes dá preguiça na gente. Mas de vez em quando tem alguma encomenda para fora então a gente “vamo pintar! vamo pintar!”, e aí pinta dez, quinze; não todos, só uma parte. Nós fazemos aqueles desenhos que também é feito no corpo. Essa tinta branca é feita de que? É um barro branco. Por que você acha que o barro é importante para o seu povo Kariri- Xocó? O barro foi onde eu nasci e me criei, e vi minha mãe dando assistência a nós, tudo do barro. Sua mãe e sua avó contavam lendas e histórias sobre o barro, sobre a cerâmica? 102 103Ainda me lembro. A minha avó contava, a minha mãe também... A gente, quando chegava no barreiro... “olha lá a cobra! Valei-me! olha a cobra dentro do barreiro!” Aí às vezes ia um dos filhos, um dos homens na frente, iam com a gente e aí matavam a cobra e tiravam ela de lá. E aí nós ficávamos tirando o barro, mas só de sentir alguma coisa “ui! Meu deus, será que é a cobra?!”. Até de noite nós ia tirar barro para fazer pote. Levava o candeeiro para o barreiro. A cobra é guardiã do barro. E a relação de vocês com o rio São Francisco? Como era e como é agora? E no caso da cerâmica, como fica para retirar barro? A situação está muito triste. Antigamente o rio era fundo, agora tem até casa no meio do rio. Dá dó, tristeza. Como é que pode secar um rio? Mas para tirar o barro, nosso barreiro fica em outro lugar, não é perto do rio. O barreiro é perto de uma lagoa. E ainda tem barro, um barro bom, muito bom. Entrevista 3 - Leonor Entrevista concedida por Leonor Pereira dos Santos Neta a Mariana de Araujo Alves da Silva em 05 de julho de 2017, na Associação de Cerâmica Nossa Senhora de Fátima, em Barra-BA. Desde quando existe a Associação? Eu cheguei aqui já há vinte anos. Nessa época a Associação tinha sido fundada há pouco tempo. Mas as mulheres trabalham aqui há bem mais tempo… esse espaço aqui, segundo o pessoal do passado que nos contam, foi uma irmã que chegou aqui no bairro e via as mulheres fazendo cerâmica nos quintais de casa. Aqui, a maioria das pessoas eram pescador e oleiro. Nos intervalos da olaria, as mulheres faziam prato, panela, para o uso no dia a dia. Isso foi aumentando e elas passaram a fazer em casa: cada casa, no fundo do quintal, tinha seu forno. Então elas iam cuidando das crianças e fazendo os potes. Depois a irmã veio e viu a dificuldade delas fazendo, sentadas no chão, guardando os potes dentro da cozinha - porque o espaço era pequeno, né, e quando a chuva vinha, já era. Então tinha que dividir o espaço da casa com as peças. Colocavam em cima da mesa, das cadeiras… esse espaço aqui era vago, era o fundo da igreja. A irmã falou com o padre para ceder esse espaço para elas e ele aceitou; eles mesmos fizeram um barracão. Só o barracão. Na época, os padres ajudavam pegando o barro com o carro da igreja. Os maridos iam e cavavam e o padre trazia o barro, dando muitas viagens. Isso aqui começou a funcionar no fundo - por isso que aqui não se chama “Cerâmica”, se chama “Salão”, porque foi feito um salão longo para as mulheres se acomodarem. Aí elas vinham para cá e faziam suas coisas, depois foram recebendo “os benefícios” e os recursos foram aumentando e aí ficou como você está vendo agora. Isso foi em 1931, que vieram para o espaço. Mas já se fazia nas casas há muito tempo, até porque era uma necessidade que o povo tinha de fazer as peças. Quantas pessoas trabalham aqui hoje? Hoje são umas 10. Mas vem filho ajudar, criança. De vez em quando vem mais… O trabalho ainda é de certa forma muito parecido como era antigamente: vem as mulheres, os maridos, os filhos… Na época que começaram a fazer os potes, o rio era bastante usado pelos canoeiros, e aí eles começaram a comprar os potes das mulheres que faziam aqui na época - aquelas primeiras faziam cerca de 30 a 50 dúzias de potes por 104 105semana. Potes grandes. Era barato. Embora muita gente fizesse, sobreviviam disso, então o preço era barato. Uma ajudava a outra e assim ia. Como é a organização deste espaço? Olha, se eu tiver em casa ocupada com alguma coisa, eu não venho. Mas se eu venho trabalhar e é o dia de eu atender, eu vou atender. E tem uma contribuição de cinco reais para a despesa da água. A igreja paga a luz e nós pagamos a água. Então esses cinco reais são para a despesa da água e algum imprevisto que aparecer, por exemplo, alguma vassoura que precise comprar, sacolas, corda, se tiver algum serviço extra também usa esse dinheiro. Então o material usado para embalar vem desse dinheiro? Isso, dessa contribuição. É uma mensalidade. Se não tiver dinheiro em caixa, por exemplo, eu pago, e depois desconta da minha mensalidade. Mas nem todos dão. Os maridos que vem há pouco tempo não dão... são mais os mais velhos quem dá. Como vocês se organizam como para realizar as tarefas do espaço? Por exemplo, se hoje é o meu dia de atender, e começam a chegar mais pessoas para comprar, outra pessoa [entre os artesãos] vem ajudar. Mas se você chegar e for meu dia de atender, e eu não estiver aqui, outra pessoa que estiver também atende. Como é a questão dos tipos de peça? Todos podem fazer de tudo ou existem divisões? Todo mundo pode fazer de tudo. Se um não faz o que o outro faz é por opção mesmo, porque todo mundo pode fazer o que quiser. Mas existem preferências? Tem gente que tem mais especialidade nos potes; outros, já tem mais na miniatura, e aí vai. Você gosta de fazer o que? Eu gosto mais de fazer peças como barquinho, canoinha, boneca, moringa- mulher. Eu vim dá para fazer mais isso quando deu uma “folgada” de menino lá em casa. Porque antes eu tinha que fazer o pote mesmo, porque era o que mais vendia. As figuras demoram mais para fazer e eu não tinha muito suporte financeiro para poder ficar alimentando tudo o que vinha na “cachola”, né? Nas horas extras era que eu fazia uma boneca, alguma coisa assim. Agora já deu mais uma folgada então eu faço mais. Como você começou a mexer com o barro? Eu fui morar com uma tia minha quando eu tinha 9 anos, ela era artesã, uma das antigas daqui. Eu ajudava a amassar o barro, a dar ponto. Depois veio um curso, eu já era casada, e eu entrei no curso como aluna. Mas eu já sabia para onde ia a coisa… criada aqui dentro, né? Que curso era esse? Era o curso do Instituto Mauá. E aí eu aqui fiquei. Nessa época já tinha esse espaço. Teve uma época que o Instituto Mauá dava esses cursos e comprava as peças, revendia, e repassava o dinheiro para as mulheres. E as mulheres foram se levantando, construíram suas casas, porque quando pegavam encomenda era de 10, 20 peças. Mas aí eles pararam de pegar. Mudou a regulamentação, o governo... agora exigem um registro. Aqui, apesar do nome de “associação” e de lá no fórum ainda ter o registro, não é mais regulamentado como uma associação de artesãos. A gente sabe que tem o registro lá porque quando a gente vai viajar e precisa de alguma nota fiscal a gente vai lá e tira. Mas como a associação foi desativada, a gente não tem mais contato com o Instituto [Mauá]. A gente teria que tirar a carteira como artesão para eles poderem liberar. Só que a maioria aqui são mulheres de pescador, e como mulher de pescador, também pescadora, então recebem um benefício anual. Não é o meu caso. E aí, não querem tirar a carteira de artesã porque atrapalha o benefício que elas já recebem. A mais velha que aposentou aqui como assistente social. As outras foram como mulher de pescador, ou então como lavradora. A gente foi uma vez na prefeitura tentar se registrar como artesã, o custo era alto. Isso já faz um tempo. Eu to pensando em contribuir como “da roça”, mesmo sendo artesã. Na hora que aparece um evento aí e pedem o registro de artesã fica difícil. Ano passado mesmo eu fui para um evento como acompanhante de um artesão que trabalha lá perto de Gerar [um artesão importante em Barra]. Eu fui levando peça daqui, como acompanhante dele, mas quem se cadastrou no evento foi ele. Atualmente seu único trabalho é como artesã? Eu já trabalhei em outras coisas, em casa de família… aqui tem as fases ruins do negócio, mas depois passa. Como é feita a venda dos produtos? 106 Quando tem encomenda a gente pega encomenda, quando tem feira a gente leva para feira, se vem alguém para comprar a gente divide a venda… No caso das feiras, como vocês ficam sabendo do acontecimento delas? Tem uns grupos na internet de artesãos, eles sempre divulgam os eventos lá. Quando os organizadores do evento mandam o convite direto para nós, a gente vai na prefeitura correr atrás de patrocínio para hospedagem e passagem. Às vezes as pessoas de fora querem que a gente fique mandando peças, mas a despesa não compensa. Ano passado levaram umas peças nossas, não foi nem três mil reais de peça… mas para a gente muitas vezes não compensa, por causa de frete e tudo. Quando a gente tem um convite para mandar muita peça, a gente vai na prefeitura e vê se tem como eles arcarem com essa despesa. Mesmo assim, mandar por transportadora é complicado. É muito caro e não tem segurança, você não sabe se vai chegar inteiro. O que você mais gosta no trabalho com o barro? Por que você faz esse tipo de trabalho e não outro? Uma coisa muito boa é que a gente vem a hora que quer. Se bem que… tem horas que isso é difícil também. Tem horas que você pega uma empreitada dessa como eu peguei... aqui chega muita encomenda assim: o pessoal chega e não tem noção da coisa, chega querendo uma peça assim, assim, e falam “amanhã eu venho buscar que horas? ” E não é assim. Sempre que eu posso eu pego uma encomenda. Tem vezes que tem muita, tem vezes que tem pouca. E tem horas que é bom não ter horário fixo para nada. E a gente se acostuma assim. Tem horas que você faz uma peça e vai vender, nem compensa o dinheiro pelo qual você vai vender, só vende porque precisa. Não vai ficar com ela dentro de casa, olhando para ela… trabalhar com barro é duro. E para fazer as peças que eu gosto de fazer eu tenho que ter um suporte financeiro para eu me alimentar, e essas peças mais difíceis [como as figuras] não sai assim tão fácil, não. Tem épocas que o cliente chega e não tem.