O design de uma ferramenta para autoconhecimento.
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design
Departamento de Design
Oráculo Fractal
O design de uma ferramenta para autoconhecimento.
Trabalho de Conclusão de Curso | Bacharelado em Design Gráfico
Criado por
Alanis Mika Yuda
Orientado por
Prof.ª Dr.ª Ana Beatriz Pereira de Andrade
Prof.ª Dr.ª Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar
RESUMO
“Fractal” é um um oráculo de cartas alternativo criado por Alanis Mika Yuda sob a supervisão de dupla-orientação das docentes
Ana Beatriz Pereira de Andrade (Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design) e Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar
(Faculdade de Ciências) desenhado para fins de introspecção, desenvolvimento pessoal e autoconhecimento. Tomando por
inspiração os estudos do tarô e os conhecimentos de psicologia junguiana, em especial sobre os conceitos de arquétipo,
inconsciente, Self e individuação, o oráculo se desenvolve a partir desses conceitos interdisciplinares esotéricos e da psicologia
junguiana com a finalidade de proporcionar não só uma experiência estética e criativa sob a prática da leitura de cartas, como
também uma ferramenta simples e organizada para auxiliar pessoas em seus processos de autognose, cura e transformação.
Palavras-chave: Autoconhecimento; Baralho; Cabala; Cartas; Embalagem; Experimentação em Design; Ilustração; Individuação; Jornada do
Herói; Jung; Manual; Monomito; Oráculos; Produção Gráfica; Psicologia Analítica; Semiótica; Tarô; Teoria dos Fractais.
ABSTRACT
“Fractal” is an alternative oracle of cards created by Alanis Mika Yuda, a Graphic Design graduate student at UNESP - Bauru
Campus, designed under the dual supervision of professors Ana Beatriz Pereira de Andrade (Faculty of Architecture, Arts,
Communication and Design) and Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (Faculty of Sciences) for introspection, personal
development and self-knowledge purposes. Drawing inspiration from the studies of tarot and knowledge of Jungian psychology, in
particular on the concepts of archetype, unconscious, [the] Self and individuation, the oracle evolves from interdisciplinary
analytical psychology and esoteric concepts with the aim of providing not only a creative aesthetic under the practice of card
reading, but as well a simple and organized tool to help people in their processes of self-gnosis, healing and transformation.
Keywords: Analytical Psychology; Cards; Deck; Experimentation in Design; Fractal Theory; Hero’s Journey; Illustration; Individuation; Kabbalah;
Graphic Production; Jung; Manual; Monomyth; Oracles; Package; Semiotic; Tarot.
AGRADECIMENTOS
À minha família, que esteve ao meu aguardo mesmo em meu curto tempo,
À minha mãe, a coisa mais linda que conheço,
Ao meu pai, que me herdou e orgulhou este talento,
Ao meu irmão, por compartilhar deste talento,
Às minhas orientadoras, por terem me conduzido na realização deste projeto,
À minha mente, pela corajosa persistência,
Às minhas pernas, que me sustentaram (e sobrevivem),
Às minhas mãos, que criaram e fizeram (e sobrevivem),
Aos meus olhos, que ainda tentam ver, (e sobrevivem)
À natureza, que me amadureceu, (e me mantém viva),
E à própria vida, que construiu os caminhos que me trouxeram até aqui.
Sumário
1 INTRODUÇÃO ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 8
2 ORÁCULOS ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 10
✲ 2.1 História dos oráculos ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 13
✲ 2.2 Oráculo como objeto e na contemporaneidade ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 19
3 TARÔ ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 29
✲ 3.1 Origem do tarô ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 34
✲ 3.2 Tarô na contemporaneidade ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 38
4 CABALA ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 46
✲ 4.1 Origem da cabala ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 49
✲ 4.2 Cabala na contemporaneidade ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 52
✲ 4.3 Sincretismo entre cabala e tarô ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 55
5 JOSEPH CAMPBELL ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 60
✲ 5.1 O herói e a jornada do monomito ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 61
6 CARL JUNG ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 69
✲ 6.2 O Self e o caminho da individuação ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 72
Sumário
7 TEORIA DOS FRACTAIS ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 81
✲ 7.1 Oráculo Fractal ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 90
8 PRÉ-PROJETO ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 103
9 IDENTIDADE VISUAL ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 110
✲ 9.1 Logotipo ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 114
✲ 9.2 Tipografia, cores e formas ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 118
✲ 9.3 Personagens e cenários ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 123
10 CRIAÇÃO ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 137
✲ 10.1 Cartas ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 138
✲ 10.2 Manual-livro ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 148
✲ 10.2 Embalagem ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 165
11 RESULTADO FINAL ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 181
12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘﹘ 185
8
1 INTRODUÇÃO
Os temas abordados a seguir vêm para justificar as teorias que foram aderidas às estruturas gráfica, teórica e pragmática
da ferramenta oracular. Cada conceito estudado é como um fractal deste oráculo; uma fração ínfima e íntima de uma diegese
criada pessoalmente, em contato comigo mesma, acerca do que poderia vir a ser um fractal nos termos de consciência, de como
ele se relaciona com a elementaridade dos grafismos escolhidos para a identidade e como ele dialoga, ou, ao menos, concatena,
aos temas do tarô, da cabala, do monomito, da individuação e da teoria dos fractais. Esses foram todos os fundamentos que
arremataram o seu desenvolvimento tanto como obra-prima quanto como cura.
Como todo oráculo apresenta, este projeto fará uso de muita simbologia e, inegavelmente, de conteúdos que se encerram
no mesmo alvo de perquirição: a consciência e seus mistérios. Os principais autores que guiaram a proposta desta experimentação
foram Carl Jung e Joseph Campbell.
Na parte conceitual, será apresentado um pouco sobre as origens por trás de cada argumento que deu luz a este oráculo.
Depois, na parte de design, é feito um relatório envolvendo os processos de forma escrita e cada etapa de ideação do projeto. Com
isso visa-se desenvolver uma ferramenta de design que seja tão inspirada em propriedades espirituais quanto possa servir de
alicerce para a simples o autoquestionamento, o olhar voltado para o mundo interior; e que assim possa ajudar as pessoas.
9
Entre os principais objetivos estão:
● Criar uma identidade visual isonômica do Oráculo Fractal;
● Experimentar técnicas mistas de criação através dos conhecimentos de Design;
● Disseminar a compreensão sobre oráculos como uma ferramenta útil e enriquecedora de introspecção, quebrando com os
preconceitos sobre seu uso;
● Configurar uma linguagem especial de ilustração para o conjunto de 33 cartas e que estejam dentro do meu próprio estilo;
● Desenhar as cartas com uma simbologia equivalente aos seus arquétipos, mas com simbologia atualizada ao mundo real e
ajustada à identidade;
● Produzir um manual-livro com uma breve introdução às teorias estudadas, mapas conceituais, técnicas de tiragem mais o
significados das cartas;
● Produzir uma embalagem final;
● Empregar métodos de produção que sejam mais adequados para a estética e fabricação dos produtos (cartas, manual e
embalagem)
10
2 ORÁCULOS
De acordo com o dicionário Aurélio, um oráculo pode ser definido como “uma divindade que respondia a consultas e
orientava o crente” ou “pessoa cuja palavra ou conselho inspira muita confiança”1. No entanto, muito diferente da disseminação
usual, a origem do termo é religiosamente neutra; foi certamente o seu uso na linguagem profética que o associou ao âmbito divino
(ALMENDRA, 2010, p.1). Na língua grega a etimologia se expande através do verbo “ōrāre” ("falar", “dizer”, “recitar”, “discursar”),
mas com a extensão popular o vocábulo passou a ser categorizado para outros significados, incluindo a manifestação ou
pronunciamento de uma divindade, o local ou santuário feito para consultas oraculares, ou mesmo o próprio enigma a ser
decifrado. No primeiro caso, por exemplo, um sacerdote ou uma sacerdotisa que eram usados como consulta atuavam como
médiuns encarregados de transmitir previsões (em menor grau) ou profecias (de maior grau) àqueles que os buscavam. O oráculo
pode, por esse ponto de vista, adquirir a qualidade de divinação ou percepção.
Independente da forma de consulta, um omen sentenciado por um oráculo pode chegar como um enredo ambíguo e
obscuro. É assim que o oráculo “protege a sua identidade” ao situar-se como condutor e intermediário entre a captação e recepção
de mensagens2, pois sua linguagem simbólica ou criptografada serve, para além da fecundidade imaginária, para que as verdades
2 “Fazer-nos trabalhar com a pareidolia [fenômeno psicológico de associação de significado através de um estímulo externo ou imagem] nos força a usar
nossa imaginação e ativar nossa intuição. Ela nos força a olhar para as questões de novas perspectivas ou pontos de vista.” (HATCHER, 2020, p. 15).
1 FERREIRA, B.Míni Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 7. ed. Curitiba: Positivo, 2008.
11
reveladas não sejam profanadas aos olhos e aos ouvidos de quem as recebe. Assim e frequentemente as palavras, sensações e
imagens não evidentes podem ser impressas na mente do leitor com uma assimilação parcial ou mesmo aparentemente nula até
que em hora apropriada a mesma palavra, sensação ou imagem retorne à superfície mental do indivíduo para se significar por si
mesma. Tal noção é bem abordada na filosofia platônica com o conceito de “noese” ou noesis3. Diferente dos outros 3 tipos de
conhecimento (eikasia, pistis e dianoia4), formatados segundo o próprio filósofo, o noético transpassa a razão humana e as
deduções pré-enviesadas do ego para se deparar diretamente com o terreno do saber inato, espaço do qual se é possível retirar a
verdade, sempre intuída, mediante a lógica antecipada, isto é, previamente à lógica cognitiva, que é o que dá origem à noesis.
William James em seu artigo Psychedelic Epistemology: William James and the “Noetic Quality” of Mystical Experience, descreve essa
qualidade como “[...] estados de insight vindos de profundezas de verdade insondáveis pelo intelecto discursivo”, e na mesma linha
o define como “iluminações, revelações, cheios de significado e importância, embora permaneçam todos inarticulados; e que, por
via de regra, carregam consigo um curioso senso de autoridade para além do tempo” (JAMES, 2004, p. 210, tradução nossa). Por
“senso de autoridade”, William James quer dizer que as epifanias atingidas pelo estado noético de saber são inquestionáveis e
4 Eikasia: “imaginação” (εἰκασία); conhecimento subalterno à experiência sensível, sendo volátil à ilusão das aparências. Pistis: “crença” (πίστις); conhecimento
convicto e sem margem de contradição. Dianoia: “pensamento” (διάνοια); conhecimento pelo pensamento calculativo, hipotético, que força à investigação.
3 Palavra derivada do termo grego “nous” (νόησις), significando “a mente”, “a alma racional”, “a inteligência”; noema, o objeto ou foco de nous. “Noesis”
indica, em termos para Platão e Aristóteles, uma faculdade de compreensão espontânea sobre qualquer natureza sem haver necessidade da articulação pela
linguagem, isto é, da presença de discursividade intelectual, sendo muito semelhante ao conceito moderno de “insight” ou “intuição”. É portanto uma ação de
conceber um conhecimento pelo espírito. Para Platão, noesis seria considerado o nível mais superior de conhecimento, pois se é possível apreender os
saberes em sua forma mais pura, inteligível e incondicionada. No ramo científico, a noética estuda os fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do
espírito e da vida a partir do ponto de vista da ciência.
12
guardam um secreto senso de “lei universal” a que é impossível contestar, mesmo que não se tenha usado uma metodologia para
chegar à sua conclusão ou ao seu diagnóstico de veracidade. Isso significaria que, para o contexto de educação da alma, a dianoia
[conhecimento, abstraído da razão] é um estado refletido, mas ainda não plenamente inteligente (PINHEIRO, 2010, p.70). Quando
uma verdade se cristaliza imediatamente a partir de princípios fundamentais, qualquer que seja a declaração baseada nela, seu
axioma naturalmente não pode ser alterado, nem mesmo destruído, convenha a melhor função dialética que venha a questioná-lo.
É esse tipo de inteligência puramente congênita que possibilita o acesso ao que se denomina o mundo absoluto, perfeito,
transcendente ao raciocínio humano, muito defendido pelas ideias de Platão como um nível superior de compreensão alma, visto
que o reconhecimento de uma verdade como certeza se dá em causa da própria intervenção do “divino” — “divino” aqui posto,
como “mundo substancial” — no processo de busca pelo conhecimento, ou, autoconhecimento.
As mensagens oraculares se dão de maneira muito semelhante; elas também tratam da conferência de uma verdade. Não
imaginamos uma pessoa que vá a um oráculo a pedido de uma falsidade, mas, sim, a pedido ou testemunha de um fato. E por
serem tão próximas do potencial das ideias, a clara sonoridade com que se é internalizada qualquer ingressão de uma visão
recém-concebida por um oráculo pode assustar, pois é muitas vezes involuntária e excede o próprio campo familiar do consulente,
cativando camadas ainda mais ocultas de si ṕróprio ou chegando à planície da transpessoalidade, a depender do estado de
consciência com que a ideia foi apanhada. Essa peculiaridade distingue a leitura oracular de outros métodos de interpretação cuja
análise costuma se basear unicamente em processos de cognição e comunicação racional. É por essa razão que os oráculos
despertam (e despertaram) a atenção, o respeito e a curiosidade de legiões de massas ao longo das eras, dando aos xamãs a
13
responsabilidade sobre a sina de um povo inteiro e àqueles que porventura obtinham os “poderes” de adivinhação e percepção, o
título de líderes, videntes e profetas. Quanto mais próxima é a experiência com uma concepção, mais o indivíduo é capaz de
unificar o objeto de conhecimento com o meio deste conhecimento, e ambos os aspectos com o próprio conhecedor.
Por fim, sempre que vamos à consulta de um oráculo, precisamos primeiramente desvelar a mensagem que foi transmitida.
Ao se capturar uma visão sobre um assunto de interesse, a mensagem provavelmente necessitará de condições adequadas de
interiorização para ser entendida com clareza e, em última instância, ser interpretada ante sua legitimidade, isto é: como ela
realmente é. Esse trabalho exercita assim a consciência do buscador em matérias de autoconhecimento e o ajuda a encontrar a
chave que precisa para continuar percorrendo o seu caminho.
✲ 2.1 História dos oráculos
A origem dos oráculos datam séculos e milênios de história. Embora não haja uma data pré-definida para o seu ofício, são
relatados estarem presentes desde os primórdios arcaicos das civilizações em quase todo tipo mecanismo de perscrutação
sobrenatural adaptável ao seu período, como objetos sagrados, sistemas de escrita, observação de elementos e seres vivos da
natureza, sacrifícios, rituais performativos religiosos e edificação de espaços físicos. Apesar de sua atemporalidade, a prática
oracular só parece se tornar mais atuante em períodos em que o cerne das civilizações e comunidades giram em torno de crenças
14
ético-morais teocêntricas5 e misticismo6. Tais superstições surgiram de pressupostos mágicos e, uma vez evoluídos para uma
metodologia de vida, eram dirigidos para a procura de um valor sagrado para, em geral, despertar qualidades carismáticas ou para
impedir sortilégios malignos (WEBER, 1963, p.375). A forte presença dos oráculos na Antiguidade, por exemplo, pode ser bem
observado em relação ao seu vínculo direto com a prática de adoração de deuses, comum na época em que sociedades politeístas
eram soberanas, o que gerava a emancipação do elemento extraordinário na vida comunitária através das muitas cerimônias
ritualísticas em que se integrava a atividade de divinação. De forma congênere, os oráculos também eram referidos como lugares
onde as pessoas buscavam respostas de ordem superior sobre suas perguntas dentre as quais interessavam: revelações sobre o
passado, o presente ou o futuro; superstições; contato com os mortos; advertências de bom ou mau-agouro; consulta da sorte;
julgamentos de remissões e castigos; direcionamento espiritual ou do cotidiano; e resolução de prosas, parábolas, versículos ou
aforismos que eram ditados pelo próprio Oráculo; todos viabilizados por sacerdotes e sacerdotisas treinados e dedicados para tal
fim. A procura por orientação ou pela simples premonição era uma prática bastante comum aos hábitos dos gregos no tributo aos
deuses do Olimpo durante a Antiguidade Clássica. A exemplo, um dos oráculos mais famosos detalhados na história foi o Oráculo
de Delfos, um importante centro religioso da Grécia Antiga, com seu auge entre 700 e 450 a.C, localizado nas encostas do monte
6 Os primeiros rastros de misticismo pré-religioso remontam ao paganismo (designação cristã) germinados na aurora da humanidade, na Pré-História,
quando os rituais se baseavam na beneficiação da caça e da coleta e o culto às forças naturais começaram a evoluir para a ideia de deuses.
5 “[...] Mas uma coisa são as vantagens que a associação das inteligências carrega, outra é a transformação radical da humanidade, a efetivação do horizonte
ético de uma moral absoluta. Será preciso, para tanto, muito mais do que permite os quadros da inteligência. [...] Caberá ao místico constituir a obra que não
apenas subverterá a estrutura estacionária da moral, mas que, ao fazê-lo, pretenderá fazer da humanidade ‘uma espécie nova, ou, antes, livrá-la da
necessidade de ser uma espécie’ (Bergson, 1932, p. 332)” (TEIXEIRA, 2014, p. 355, v. 21, n. 35)
15
Parnaso e dedicado ao deus do sol Apolo; seu deslumbramento era não só procurado por cidadãos comuns, como também por
líderes políticos que utilizavam as prosas proferidas pelas profecias para orientar os seus governos.
O oráculo [no contexto da Grécia Antiga] continha três elementos essenciais: um deus inspirador, um sacerdote para
transmitir o pensamento divino e um lugar determinado. (SMOLKA, 1972, p.177). Na tradição tibetana, por exemplo, pessoas com
uma mediunidade ostensiva tornavam-se pontífices entre o mundo carnal e os reinos sutis, entrando em estados temporários de
transe para canalizarem o ensinamento de espíritos e deidades. Essas entidades eram igualmente pensadas como existentes e
funcionais no nível das múltiplas aparências dentro da experiência empírica, e, portanto, como tendo uma existência nem menos
real e nem menos ilusória do que a daquela de seus auditores humanos7. Em fato, na doutrina budista, as incorporações
compunham uma variedade extensa de formas de vida, o que, por sua vez, denota que seus espíritos contatados também podiam
fazer parte de dimensões de realidade superiores ou inferiores em comparação com o nosso mundo encarnado. No que concerne a
condição dos portadores como “canais” (compreendendo aqui clarividentes, transportadores, clariaudientes e outros paranormais
sui generis), estes eram, muitas vezes, habitantes comuns que ainda desfrutavam de uma vida normal e se valiam dos mesmos
deveres e responsabilidades que os seus companheiros de comunidade, sendo suas habilidades especiais empregues independen-
7 “These oracles manifested through the trances of human mediuns when possessed by the spirit of consciousness of various deities belonging to the
phenomenal order of existence. These deities are thought of as existing and functioning on the level of multiple appearances which constitutes the world of
empirical experience and, therefore, as having a relative existence which is no less real or less illusory than that of their human auditors.” (LOEWE, 1981, p.
25)
16
te de sexo ou gênero — mesmo que, no Tibet, a parte majoritária acabasse sendo composta por homens. Todavia, em muitos outros
locais sacralizados de consulta oracular, a responsabilidade como intérprete (o que inclui aqui o título de sacerdócio) só era
passada para alguém sob a incumbência integral de certos requisitos, como o padrão de uma vida casta e pura, pré-atos de jejum e
também a posição de uma figura de um certo sexo. Era o caso da pitonisa ou pítia (Πυθία), sacerdotisa do Templo de Apolo (o
Oráculo de Delfos citado anteriormente), cujo cargo era ocupado por uma autoridade feminina, qualificação esta muito estimada
para os atenienses no decorrer da era helênica. Há poucos detalhes, no entanto, sobre como eram o formato e os procedimentos de
execução e divinação da pitonisa, principalmente no que tange o colóquio de suas falas8. Convém-se que sua articulação poderia
ser quase irreconhecível ou normalmente recitada em prosa, porém invariavelmente incitada pela possessão de um estado de
êxtase ou frenesi, que, segundo suspeitas e pesquisas geológicas, poderia ser ocasionada pela subida da emissão de um gás como
o metano ou etileno do solo (sob o qual era construído o tempo). É como Fontenelle, autor francês do século XVII, disserta em
História dos Oráculos (1687): “ela senta-se numa trípode, sobre uma fenda de onde sobem vapores — de ácido carbônico, mas de
odor agradável — no fundo de um antro escuro ”, e de onde também teria surgido a derivação de seu nome9.
9 O nome “pítia” procede de “pythein” (πύθειν), referindo-se linguísticamente ao ato de “deterioriar”, “apodrecer”. Na mitologia, faz alusão ao mito onde
Apolo luta contra a serpente Píton, monstro que dominava Delfos antes da chegada de Apolo, e cujo corpo em decomposição teria exalado um lânguido
cheiro doce após ter sido assassinada pela mira de seu arco e flecha.
8 SCOTT, M. Delphi: A History of the Center of the Ancient World. Princeton University Press, 2014.
17
Figura 1 - A Sacerdotisa de Delfos, óleo sobre tela. (1.6 m x 0.8 m)
Fonte: John Collier, 1891.
18
Vemos por essa ótica que a valorização dos oráculos se deu principalmente em função de sua utilidade na tomada de
decisões sobre a pólis, no comprometimento de guerras e na regência de impérios, profecia qual que nunca era duvidada, e fato
que Heródoto (484-425 a.C.), um grande historiador grego durante o século V a.C, relata explicitamente em seus escritos em
relação as profecias nas Guerras Médicas. Fenômenos sincronísticos, movimentos da natureza, dados, números, palavras, ruídos,
sonhos, astros, todos eram passíveis de revelar um sinal que ressonasse com algo que o consulente vivenciava ou estava para
vivenciar.
Já em outras partes do globo os oráculos se apresentaram com uma roupa instrumental, com funções ordenadas por
símbolos, desenhos, caracteres e ideogramas. Para citar alguns: o I Ching, oráculo originário da China há mais de três mil anos e
fundamentado na filosofia taoísta, também consagrado como o “Livro das Mutações”, também podendo ser estudado como um
texto erudito; o Oráculo de Ossos, provindo também da China Antiga, cuja predição envolvia o desenho das perguntas sobre uma
peça de osso, que, após aquecida, era examinada conforme suas rachas; as runas, sistema de alfabeto presente entre os povos do
norte da Europa desde o século II e também usado para práticas oraculares cujas letras eram taxadas geralmente em pedras ou
peças de madeira e dispostas para se obter respostas; búzios, jogo divinatório de matriz africana nativo da cultura Iorubá, adaptado
dentro do Brasil para a utilização na consulta de orixás, em que um número de conchas são arremessadas por uma mesa e lidas de
acordo com a posição e fisionomia em que se encontram; e, por fim, o mais conhecido e talvez o mais recente entre os oráculos, o
tarô, que não começa como um objeto reflexivo ou premonitório, mas passa a sê-lo após passar por uma série de modificações
culturais até se tornar uma técnica de adivinhação tradicional.
19
É assim que um oráculo pode subsistir: tanto como um agente vivente, como uma pessoa, ou um agente inanimado, tal qual
um objeto, que possa receber as verdades de um absoluto inteligível para a corporeidade. Isto é para informar das discrepâncias
que se fazem das medidas usadas por cada oráculo. Independente de como o oráculo é entregue, ele mantém-se sempre imparcial
e autoconsciente.
✲ 2.2 Oráculo como objeto e na contemporaneidade
É cada vez observado um aumento na culturalidade dos objetos, em especial, no sentido de como eles intercederam os
nossos espaços circundantes e ganharam peso na construção de significado para os sujeitos-indivíduos. Como aponta Barroso
(2009, p. 106-107), ao remeter a uma terminação suposta da racionalidade do filósofo Henri Bergson, todo objeto existente só
pode ser concebido em uma experiência10; e a partir do momento em que a humanidade começa a entender a si mesma, ou, pelo
menos, a preconizar quem ela é ou quem ela quer que seja, ela começa a projetar o seu mundo real em conformidade com sua
percepção, e a intransponível evolução social que a acompanha dá à sua mente uma supremacia exponencial em criar artefatos.
Essa dinâmica pode ser constatada com a progressão da complexidade da confecção de objetos, e, subsequentemente, da incisão
10 Observação importante: o enunciado acima tenta satisfazer unicamente o exame antropológico, voltado para a plausibilidade dos objetos culturais.
Entende-se que o mesmo pode ser enxergado como paradoxo nestes propósitos por conseguir interrogar o absolutismo deixado pela percepção sem
comprovação por regras científicas, que é a teológico-religiosa, geralmente. Portanto, não se pretende com ele contradizer a intuição mística, e, logo, a
vivência dos oráculos, rastreada pelas experiências inabituais (como a extrafísica, a sobrenatural ou a metafísica).
20
emotiva instalada neles. De materiais básicos ofertados pela própria natureza como a pedra e a madeira, dando lugar a recursos
cada vez mais aprimorados como a cerâmica, o metal ou o papel, foi-se possibilitando o nascimento de sistemas complexos de
sociedades agrícolas até se chegar à vida civil e urbana. É uma qualidade, portanto, natural ao nosso gênio. No cenário vigente, o
advento da tecnologia também forçou, ainda que arbitrariamente, o papel do oráculo como formador de identidade, ainda mais
vendo as consequências da materialidade que vêm como fruto da globalização e da aceleração do consumismo. Mas mesmo assim,
vemos como os oráculos objetificados já são hoje subgênero de certos grupos sociais e qualificam-se não só mais como uma
“indumentária operante”, mas como mais uma daquelas finas linhas que costuram a personificação de um grupo e atribuem valor
aos estereótipos de um certo perfil. O antropólogo Daniel Miller, em seu ensaio Trecos, Troços e Coisas, aborda essa questão com
claridade:
Cada estágio cria uma coisa nova fora de nós mesmos, e progredimos à medida que somos capazes de nos ver nessa
extensão de nós mesmos, que é, afinal, nosso próprio produto. Fazemos coisas porque elas nos ampliam potencialmente
como pessoas. [...] Além disso, ao nos vermos nesse mundo que criamos, ganhamos em complexidade, sofisticação e
conhecimento” (MILLER, 2013, p. 90).
Isso dá ao “ser material” dos oráculos um novo encargo, um novo potencial e um novo rumo para a história das civilizações.
Cada uma das transições ocorridas desde a economia à arquitetura, da arte ao design, mudou juntamente com a consciência
humana, seja por causa ou por efeito, permitindo-nos substituir sentidos para uma mesma coisa, ou, como o próprio autor
21
supracitado costuma denominar, “treco”. Isso prova em segunda mão como os objetos têm sido gerados e reinventados desde
tempos imemoriais pelo homem como evidências emblemáticas de sua individualidade e de seu mundo subjetivo. Isso torna o
objeto de cultura um grande escopo para explorações, pois é sintomático que todo instrumento produzido por e em uma certa
esfera coletiva sempre trará consigo a impressão de uma subjetividade (em referência ao inventor, quando parte ativa daquele
universo) ou um reflexo do ambiente (se estivermos falando do fator externo).
É através desses itens, sobretudo enigmáticos, que podemos realizar um prognóstico das crenças e dos padrões
inconscientes que se ocultam dentro de cada vão de expressividade; afinal, não há quase outro produto (literalmente) fabricado
que respeite tão bem os limites da etnografia e da particularização do sujeito senão a arte. A própria cultura é vista como binária,
ou fundada na troca ou no parentesco, ou em oposição à natureza (MILLER, 2013). Sua distinção é o que registra os fatos de uma
era, mentalidade, nação, geografia, época, forma de viver, e outros exaustivos exemplos de caracterização do sujeito social. Assim
como toda a expressão de um povo se transforma, seus objetos também serão transformados juntos, continuando a ser
transliterados, experimentados, aniquilados, salientados ou desvalorizados em congruência com o ritmo de evolução ou
degradação moral, social e psicológica do ser humano. Não por acaso os oráculos-objetos foram assumindo diversos semblantes,
ora reivindicando sua ancestralidade, ora lutando contra a obsolescência deixada pelo conservadorismo, a fim de acompanhar a
progressiva inovação em meio o avanço da ciência. Do ponto de vista técnico do design, esses objetos não pecam de uma semiótica
caudalosa para o estímulo do submundo psicológico. Sua morfologia não só funciona para exibir talhes encantadores de beleza,
mas também para catalisar alguma transformação no nível psicossomático. Por isso, um artigo oracular hoje também pode ser
22
aceito como uma ferramenta alternativa que atenda às necessidades elevadas dos usuários, indo além dos objetivos básicos de
consumo, como agradabilidade atrativa e ergonomia, para alcançar níveis mais complexos do ser, como a espiritualidade, e de
modo conjunto indo além da acusação de futilidade que aporta quase todo objeto atualmente elaborado — pois temos aqui em vista
não só que as relações produtivas e mercadológicas contribuem em certo grau para o seu considerado “mau uso” ou “má
procedência”, quesito este contribuído pela mudança desenfreada das relações de produção com o avanço da industrialização, mas
também que as vagas indefinições de significado intrínseco acarretadas pelo hibridismo, pela imprecisão e pela polissemia cultural
inclinaram-nos à perda de coerência consciencial no panorama pós-moderno. Em outros termos, os oráculos podem assumir um
controle na participação do resgate da conscientização integrada (e o que mais tarde será explorado no conceito de individuação),
pois o simbolismo de que elas gozam também dá a elas o potencial de atingir a cura pessoal restaurando a saúde a partir da
resolução os conflitos de escala maior de um coletivo. Dessa forma, eles trabalhariam como um contrassenso aos objetos criados
por fins meramente estéticos, evidenciando produtos com outros valores agregados e idealizados para funções pedagógicas, como
educação e autoajuda.
A Teoria da Hierarquia de Necessidades11 desenvolvida pelo psicólogo estadunidense Abraham Maslow ajuda a compreender
as razões que motivam o ser humano a consumir um certo produto ou serviço. Sua tese já muito fora aplicada no comércio, em
estratégias de marketing. Nessa divisão pode ser delineada por um esquema piramidal (criado por Charles McDermid, em 1960),
11 Ver o artigo publicado pelo próprio autor "A teoria da motivação humana", da revista Psychological Review (1943).
23
onde cada um dos cinco estratos, de baixo pra cima, correspondem a uma das cinco necessidades psicológicas em ascensão do ser
humano, que são inegociáveis para a manutenção de qualidade de vida de qualquer indivíduo: a) necessidades fisiológicas; b)
necessidades de segurança; c) necessidades relacionais ou de afeto; d) necessidade de estima; e) necessidade de auto-realização.
Figura 2 - Pirâmide de Maslow.
Fonte: . Acesso em: 29 dez 2022.
https://ppunipar.wordpress.com/2016/07/07/a-importancia-da-teoria-de-maslow-para-futuros-publicitarios/
24
Seu sistema nos ajuda a entender a postura dos consumidores frente aos diferentes gêneros de mercadoria, o que explicaria
como se deu a popularidade dos oráculos-objetos e de outros sistemas místicos incorporados em nichos específicos. Isso também
nos ajuda a reformular como eles podem ter sido trazidos por uma consequência natural do sincretismo, que vemos igualmente
acontecendo na recuperação de traços antigos na artística modernidade, como a ressuscitação do neoclassicismo e da bauhaus, o
reaparecimento de elementos do art nouveau, ou mesmo o resgate da anosidade da vanguarda, e a flutuação ou relevância a eles
concedidas muito parte do pressuposto de que boa parte do que antes já estava determinado como tabu sobre objetos místicos ou
étnicos por certas normas de convenção social hoje já carrega uma menor carga pejorativa.
Outra análise interessante também se faz à sociologia da modernidade tardia: o oráculo como mídia. Nádia Moreira (2015),
em sua tese, encontra a analogia entre o caráter oracular e a mídia, devido ao fato de que o futuro hoje é delineado quase que
apenas em razão de projeções de imagens hipotéticas. Presume-se que a mídia afirma um destino mas que, contudo, não precisa
fazê-lo mais pela via tátil (como na antiguidade), mas sim, pelo contato puramente virtual, invisível, que vigora o marco dessa
geração. Desse ponto de vista, a multimídia parece seguir a mesma lógica dos oráculos. Assim como o passado introduz-nos ao
rumo de várias escolhas que não teriam sido tomadas na História não fosse pela mediação de profecias, psíquicos ou adivinhos, o
presente não se distingue, pois os psíquicos agora são as máquinas, os números binários. Por mais que os oráculos não sejam mais
visíveis tradicionalmente o seu desempenho ainda permanece vivo, entre parênteses, em saídas subliminares de predição, ainda
impactando pouco a pouco no destino da humanidade. “Uma simples aposta num resultado de jogo, ou num momento econômico
aparentemente favorável do mercado imobiliário, dado como certo pelo midiático, pode levar um indivíduo à falência.” (MOREIRA,
25
2015, p. 82). Comportamentalmente o ser humano se difere dos animais irracionais por ser actio per distans12. Ele é capaz de mover
o seu ato e seu pensar, imprimi-lo na realidade objetiva e com isso instigar modificações significativas na sociedade de forma
indireta e passiva, do mesmo jeito que a sociedade o modificará por retroalimentação, algo que os próprios meios de comunicação
estão mostrando pela sua capacidade de sugestionar um grande número de pessoas a um certo padrão de conduta.
Tirando o cerne crítico, também houveram atualizações feitas à linguagem dos oráculos. Se excluirmos a posição em que
condições parapsíquicas canalizam as mensagens por suas próprias vias, a leitura, hoje, se daria majoritariamente pelo uso da
imagem, da oralidade e/ou da escrita. Como Oliveira (2007, p.41) exemplifica: “o consultante tem a escolha de solicitar ao
consultado dois modelos de respostas: a) por escrito: o consultante imagina o que deseja da resposta, aqui, ele faz as aproximações
com o Sagrado do Outro em seu CAVI13; b) por voz (falado): o consultante faz os ajustes com o Sagrado do Outro em seu CAV14.” É o
que reforça o autor quando diz que “quando o consultante busca um oráculo, ele sente/pensa para perguntar” (OLIVEIRA, 2007,
p.40). Esse ato de sentir e pensar, ou seja, o ato de entrar em contato consigo mesmo, podem contribuir para irrigar as áreas
psicomotoras, emocionais e cognitivas de um adulto promovendo, a depender da linguagem utilizada, a inteligência pictórica,
espacial, emocional, cinestésica, linguística [...] entre outros sucessivos critérios de inteligência (GARDNER, 1994).
14 Ciclo de Aprendizagem Vivencial do Imaginário.
13 Ciclo de Aprendizagem Vivencial.
12 “Ação à distância”. Interação não-local entre objetos separados pelo espaço; agir em vista da distância espacial e temporal.
26
Essa pluralidade é o que compõe a diversificação linguística de um oráculo e facilita que processos de autoconhecimento
continuem sendo bem-sucedidos em seu empenho de lapidar a mente independente da preferência de código escolhida por ele.
Isso também nos leva ao plano da semiótica15 como pesquisa de campo. Na teoria peirceana, Peirce concebe três elementos
e três categorias que sucedem a identificação de um símbolo, o qual pode ocorrer de forma cíclica. Três elementos, compostos pelo
representamen (aquilo percebido como signo), o objeto (aquilo que é referido pelo signo) e o interpretante (o efeito do signo naquele
que o interpreta), são irrompidos no: gesto de primeiridade, que sugere a captação sensível e imediata de algo; o gesto de
secundidade, que é a percepção factual deste “algo” pelo interpretante; e a terceiridade, que já é o fenômeno sendo estabelecido
como um signo convencionado.
Quando há a concatenação de um signo de um oráculo criado na contemporaneidade, conseguimos realizar simbologias
equivalentes de épocas anteriores. Esse emaranhado de filosofias que vão se amontoando nas consciências individuais e que
infecta o coletivo é o que passa a inaugurar definições cada vez mais inusitadas em cima de uma mesma tradução, de um mesmo
símbolo. “Seja através das histórias narradas, das estátuas, festejos, fotos, situações presenciadas ou não, a pessoa vai coletando e
rememorando fatos de sua experiência grupal que afetará sua organização e desejos de vida” (LÓPEZ, 2022, p. 3).
15 Teoria pensada por Charles Sanders Peirce. O ramo da semiótica estuda os processos sistêmicos de definição de signos, em qualquer âmbito ou fenômeno
em que se indique, se relacione ou se comunique um significado.
27
Figura 3 - Tríade Semiótica.
Fonte: . Acesso em: 30 dez 2022.
Quando denominados algo como “icônico”, queremos dizer que o indício (índice)16 dele é efetivo; ele induz a uma lógica con-
16 “Índice”, aqui, como denominação de Peirce. “Um signo ou representação, que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia
qualquer com ele [...] mas sim por estar numa conexão dinâmica (espacial inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado, com
os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo. [...] (PEIRCE, 2005, p.74)
https://www.webicone.com.br/post/semi%C3%B3tica-desvendando-a-ci%C3%AAncia-dos-signos-na-produ%C3%A7%C3%A3o-de-conte%C3%BAd
28
sentida por aqueles que o visualizam. Esse é o truque existente por trás das grandes marcas17. Algo muito parecido ocorre dentro
dos processos de detecção simbólica. Ainda, valemos do reconhecimento de que estes sejam um exercício puro de semiótica, pois
sua maestria com leitura dependerá inteiramente se um agente saberá responder e deduzir com a mais próxima exatidão a
acepção de um paradigma. Logo, seus conteúdos perseguem o mesmo transcurso de apuração dos signos, apenas calcado por um
caminho um pouco mais sinuoso que o normal (como, por exemplo, na associação de uma sirene com uma ambulância), já que
podem variar de redarguição última quando lido em conjunto com outros sinais ou através de uma enfoque incomum. Algo
devidamente curioso, pois sua interpretação pode conflitar tanto com as lentes do idealizador do oráculo, como com as do
designer e ilustrador, como com as do praticante póstumo, e ainda com as do leitor que irá recorrer a esse praticante para iluminar
as suas dúvidas, o qual pode levar toda a elucidação finalizada em cima como inverdade. Por isso os oráculos invocam a
necessidade de um desfibramento semiótico ainda maior, visto que, com frequência, o interpretador precisa extrapolar o âmbito de
seu viés condicionado para sair da zona habitual de reconhecimento dos signos — por mais que quase todos signos encontrados
nos oráculos se valham de uma conformidade genérica, que é deferida por uma arquetipia notória (explorado no capítulo 2.1).
Nesse sentido, o oráculo é igual à fotografia, à televisão, à música e ao cinema: provêm um profundo silogismo, intencional ou não,
por intermédio das imagens, dos gestos, dos ícones e dos símbolos.
17 PEREZ, C. Semiótica da marca e a indexação do consumo a partir do meta-discurso publicitário. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, 2014. Disponível em: Acesso em: 31 dez. 2022.
https://www.eca.usp.br/acervo/producao-academica/002657299.pdf
29
3 TARÔ
O tarô é um jogo completo de 78 cartas originalmente criado para fins recreativos, logo convertido em um instrumento de
arte e magia e no pendente momento muito disseminado como um aparato espiritual utilizado por tarólogos e cartomantes para
aconselhamento de vida. O seu baralho tradicional é agrupado por 56 lâminas (ou cartas) que são distribuídas por uma cúpula de 4
naipes, a que se acrescem mais 22 lâminas especiais intituladas como “arcanos maiores” ou “triunfos maiores”, que representam os
conteúdos complementares de natureza mística, e que mais tarde viriam a segregá-lo de um baralho comum.
Cada um dos 22 arcanos maiores encarnam em si uma semântica; essa “semântica” diz respeito a um arquétipo, definição
cunhada por Jung, que é específico a cada um de seus agregados. Todo arquétipo busca retratar algum mote de fundo espiritual da
experiência humana. Assim, e em sua totalidade, o tarô vem para criar uma narrativa ecumênica, acrônica e universal à história de
vida e evolução do homem, compilando as dores, os caprichos, os dilemas, as complexidades, os anseios, os lutos, as lutas, as
guerras, os sentimentos, os aprendizados e as bagagens de toda a humanidade e história da nossa vida interna. Como apontado
por Bradford Hatcher (2020, p. 7, tradução nossa): “o tarô simplesmente usa de heurísticas nativas como a pareidolia para nos
aproximar do subliminar, de lugares da mente onde a consciência não consegue ir.”18
18 “Tarot simply uses native heuristics like pareidolia to get us closer to the subliminal, to places in the mind where consciousness can’t go.”
30
Para conceber o que se quer tomar por “heurísticas nativas” é preciso também entender um pouco sobre sua sinonímia, que
pode ser substituída pelo conceito de arquétipos. A palavra vem da conjunção grega de ἀρχή (arkhḗ, “primeiro”) com τύπος
(túpos, “tipo”), que em resumo significariam algo parecido como “primeiro molde” (expressão já pactuada pelos neoplatônicos
para se referir às ideias primordiais). Para Jung (1976), este sentido não se difere tanto: os arquétipos seriam por ele definidos
como ideias anímicas, consideradas como elementares e necessárias, habitados no poço dos substratos mais profundos da psique.
São como assinaturas viscerais e universais, infalíveis e de impacto substancial para a alma, e que, por algum motivo, mantêm-se
incognitamente impregnadas em seu inconsciente, ressurgindo e imergindo da luz e das sombras. Estas podem ser eternizadas por
imagens, mas às quais não conseguimos ver, somente observar pela intervenção da manifestação ou dos nossos padrões
repetitivos de comportamento ou por efeito da expressividade de um numen; um fenômeno numinoso. (O numen é a tonalidade
emocional que faz com que o indivíduo aja como se estivesse possuído por “um instinto ou demônio desenfreado” (GRINBERG,
1997, p. 138). Em sua famigerada obra “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, na tradução brasileira de Dora Mariana R. F. da
Silva e Maria L. Appy, temos que “as figuras do inconsciente sempre foram expressas através de imagens protetoras e curativas, e
assim expelidas da psique para o espaço cósmico” (JUNG, 2011, p. 23). Sempre que imagens descem ou permanecem intactas no
inconsciente elas são fadadas à miopia consciencial. Se não equilibradas pela homeostase natural da psique, podem virar a causa
da patologia do indivíduo (inclusive das psicoses coletivas19). E sobre o inconsciente ser o pleroma de todo arquivo do passado
remoto, como os medos e desejos instintivos que nós descendemos, ele sempre será inerentemente irracional, cometimento qual
19 STEIN, M. Jung e o Caminho da Individuação. São Paulo: Cultrix, 2015.
31
que não podemos fugir. Sua dimensão tem o poder de nos tornarmos tão desacordados e tão sonhadores quanto o homem
primitivo. Escreve-se: “mal o inconsciente nos toca e já o somos, na medida em que nos tornamos inconscientes de nós mesmos”
(JUNG, 2011, p. 32). A título de curiosidade, podemos averiguar as minúcias de uma carta do baralho do Tarô Egípcio, arcano 9, do
Eremita:
Figura 4 - Arcano do Eremita, Tarô Egípcio.
Fonte: . Acesso em: 31 dez 2022.
https://gnosticstudies.org/index.php/gnostic-kabalah/gnostic-tarot-and-kabalah/arcanum-9/
32
A lâmina descreve o curso de viagem de um ermitão. O ermitão é, por definição, um indivíduo que se isola por muito tempo
da sociedade em prol de algum intuito contemplativo. Ele por si só nos recobra a imagem da solidão, da meditação e da busca
interna do indivíduo (autorreflexão). Além disso, é um homem velho (velhice pode mostrar expertise e a aproximação da morte, do
final de um ciclo). O personagem é coberto por um manto: o manto de Apolônio (prudência). Enquanto sua mão direita segura um
bastão, o bastão dos Patriarcas (auxílio das forças da natureza20), sua mão esquerda carrega a lâmpada de Hermes (a luz da
sabedoria). A palmeira simboliza a vitória. O sol simboliza a iluminação da consciência; a lua, a subconsciência ou o inconsciente.
Os três raios irradiados acima da cabeça do ermitão são nada mais que as três forças primárias que regem a física da natureza
(positiva, negativa e neutra) e, com elas, o eremita deve fazer descer ao encontro da esfera lunar. Ou seja, há a integração sobre os
3 aspectos da vida iluminando a sua mente. Se trocarmos os objetos pelos seus representantes, um sol que desce na direção da lua
representaria a iluminação que desce em direção à escuridão: é a chegada de lucidez, de entendimento, sobre um aspecto sombrio.
No sentido inverso, uma lua que sobe em direção a sol representaria o alcance do conhecimento desse aspecto-sombra sob a clara
luz da consciência. Já na parte inferior encontram-se outros símbolos de interpretação, como o símbolo planetário de marte, o
signo astrológico de áries, o número 9 e a letra semita ט (teth). Marte para o consenso majoritário dos esoteristas é igual a Áries,
prescrevendo a força masculina de força, iniciativa e independência. 9, como a iconografia do velho ancião, fala sobre a finalização
de algo mediante o alcance da perfeição; a maestria. O 9 também é o único algarismo racional que, multiplicado por qualquer
dígito, sua redução da soma a um dígito resultará nele mesmo. É o mistério do autoconhecimento e do ser perfeito. O
20 LÉVI, E. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Editora Pensamento, 2017.
33
9 também está presente como a nona sefira da árvore da vida, que é a consciência de Yesod (Fundação). Sobre isso, o gnóstico
Samael Aun Weor (1978, p. 45) coloca: “a descida à Nona Esfera era, nos antigos tempos, a maior prova para a suprema dignidade
do Hierofante.” Por fim temos ט (teth). Sua menção cabalística tem a ver com a serpente, a sabedoria.
Não apenas podemos fazer uma tradução hermética, como também em termos de design. O tarô funciona de tal maneira
que ele pode ser considerado uma idiossincrasia, redundante não só aos aspectos de personalidade, mas ao seu porte de
expressão. No design, ainda baseando-se em Peirce, podemos classificar os elementos que compõem o tarô correlacionando-os às
três subseções linguísticas: a semântica, sintática e pragmática, onde: a carta (objeto) se equivale semanticamente; o seu nome ou
título se equivalem sintaticamente; e o leitor da carta é equivalente pragmaticamente.21
Em resumo, a linha temporal dos 22 arcanos maiores pode ser vista como uma captura de “flashes” dos momentos mais
cruciais de uma vida. Desencadeando-se um nos outros, vemos o primeiro aprendizado de uma criança se dando pelas cartas do
Louco, do Mago, da Sacerdotisa, da Imperatriz, do Imperador e do Hierofante, durante a fase da tenra infância. Eles mostram a sua
primeira conexão de direito com o mundo externo e com a dualidade da vida, compactuada pelo contato embrionário com a figura
dos pais e da instituição. Passada a primeira etapa, surgem os primeiros conflitos e paixões adolescentes, notados pelas cartas dos
Enamorados e do Carro; o estágio da juventude o leva para os primeiros testes morais debatidos nas cartas da Justiça, da
21 Analogia autoral.
34
Temperança, da Força e do Eremita22. As crises e as perdas decorrentes do destino (A Roda da Fortuna) levam-no justamente à
necessidade de se transformar, para ser eleito finalmente adulto (O Enforcado e A Morte). Temos então os últimos testes da vida,
as grandes provas, o real amadurecimento. É a confrontação consigo mesmo. Dessa confrontação é que vem a ressurreição do
verdadeiro eu, radicada nas cartas da Estrela, da Lua, do Sol e do Julgamento, e que, se bem-sucedida, conduz o ato à vitória, à
reconciliação com a vida, portadas pelas cartas do Julgamento e do Mundo. Apesar deles perfazerem uma narrativa em sequência,
os arcanos podem ser lidos como um circuito fluido e orbicular, porque não são “resultados finais ou lugares estáticos” (BURKE &
GREENE, 2020). No todo, ele dá um certo sentido de direção da consciência sobre a vida. Não cabe aqui explanar sobre quais
forças superiores, acreditadas ou não, podem estar agindo em suas mecânicas, mas, sim, sobre o efeito dos conselhos consumado
na melhora do indivíduo.
✲ 3.1 Origem do tarô
Especulações históricas remontam a sua origem ao Oriente, na região entre China e Arábia. A alta acessibilidade de
permutação de rotas mercantis entre os povos europeus e mediterrânicos entre os séculos XV a XVIII resultou em uma troca cultu-
22 Algumas posições são trocadas dependendo do deck utilizado. Por exemplo, o tarô Rider-Waite confere numeração 11 para A Justiça, enquanto o baralho
de Marselha confere à Justiça o número 8, trocando de lugar com a carta da Força. Essa mudança se dá de acordo com as interpretações particulares a cada
autor.
35
ral que foi abundante e próspera. Nessa troca, foram trazidas para a Europa as primeiras referências de baralhos, ainda fortemente
marcadas pelo estilo oriental dos naipes, e que mais tarde viriam a criar as primeiras práticas dos jogos de cartas. A produção
personalizada de baralhos começou a crescer com o auge do mecenato durante a Alta Renascença. Baralhos mais famosos e
antigos como o baralho de Carlos VI e Visconti-Sforza, pioneiros na construção de imagens personificadas, eram cuidadosamente
customizados e comissionados por famílias italianas que eram socialmente e financeiramente abastadas.
Para conhecermos a origem das imagens do tarô tradicional, tomamos como exemplo um de seus precursores, o deck
Visconti-Sforza: seu legado artístico foi composto de aproximadamente de 15 decks, pintados à mão, hoje já incompletos e
dispersos pela localidade de vários museus, livrarias e coleções privadas ao redor do mundo, como o museu de Accademia Carrara,
em Bérgamo, na Itália, estando sob guarda de um conjunto de 26 cartas, e a Livraria & Museu Morgan, em Nova York, conversando
35 cartas do set. Apesar de boa parte de seu patrimônio ter sido resgatado, alguns de seus jogos permanecem com uma só carta,
tendo a maioria delas perdido o seu frescor original (com muitas tentativas de cópia e restauração posterior das lâminas perdidas e
envelhecidas).23 O deck que foi solicitado pelo famoso Filippo Maria Visconti, Duque de Milão, e transferido para a mão de seu
herdeiro-genro Francesco Sforza, retrata os próprios membros da família como os personagens dos naipes da corte. Visualmente
as cartas chamam interesse por seu rico design em composição, providenciando-se de materiais requintados e finos detalhes de
desenho. Os trunfos e as cartas da corte têm o seu fundo forrado em ouro, enquanto os trunfos menores se despendem em cor cre-
23 WIKIPEDIA. Visconti-Sforza Tarot. Available from: . Access in: 1 Jan. 2023.
https://en.wikipedia.org/wiki/Visconti-Sforza_Tarot
36
me e são ornados por finas ilustrações de flores e videiras. Os cartões são trabalhados em papelão e tinta opaca.24
Figura 6 - Reprodução de 3 cartas do deck Pierpont Morgan Bergamo, do set de Visconti-Sforza (18.9 cm x 9 cm).
Fonte: Originais de Bonifacio Bembo, XVI.
24 TAROT MYSTERIUM. Pierpont-Morgan Bergamo (Visconti-Sforza). Available from:
. Access in: 1 Jan. 2023.
https://tarotmysterium.com/deck_info.php?section=Pierpont-Morgan%20Bergamo
37
Surpreendentemente ou não, a moda ganhou votos de uma grande porção da Europa, sendo apenas a exceção países como
a Irlanda, a Grã-Bretanha, a Península Ibérica e os Balcãs Otomanos. Esse ponto fortuito sobre o nascimento do tarô foi uma das
razões pelo qual o objeto teria passado por reformas consideráveis tanto em sua visão, como em sua aplicabilidade, e como em seu
visual. Neste último, com a adição das figuras da corte aos naipes, houve a aderência de representações de cenas do dia-a-dia e o
acréscimo de 22 cartas, que seriam os arcanos maiores, dando origem, mais tarde, ao tarô clássico de 78 cartas como
conhecemos. Outros tipos de jogos orientais como dominó, o mahjong e o mameluco teriam sido predecessores (LOUIS, 2015) e
também dado ao tarô uma parte de sua similaridade de organização dos naipes.
Em “O livro Completo do Tarô”, Anthony Louis faz certificações adicionais à história do tarô: “a palavra tarô pode ter origem
no nome italiano desse conjunto de cartas, tarocchi. Os artistas renascentistas buscaram inspiração para as imagens alegóricas dos
trunfos na Bíblia e em antigos manuscritos gregos e romanos, que eram o assunto do momento na Itália renascentista.” Foi assim
que nasceu, na Itália, as “carte da tronfi” (“cartas de triunfo” ou “trunfos”), as cartas numeradas de I a XXI iniciadas pelo Louco.
Contrário ao senso popular, o autor tenta desmentir alguns mitos, como o da sua origem estando no “Livro de Thoth” que
supostamente seria instruído pelo próprio sábio Hermes Trismegistus, e comenta como boa parte do imaginário dos primeiros
tarôs seria crédito da interposição cultural da Igreja Católica, que detinha o centro de monopólio de saber àquela época, em
consonância com os legados deixados pela cultura helênica, vide a mitologia greco-romana, ainda quando o cotidiano da
população girava em torno de festas religiosas de origem pagã e homenagem a santos católicos (LOUIS, 2015, p. 28-29). Outros
38
autores como Aleister Crowley (1944) também apontam como essas cartas se tornaram bastante empregadas pelos ciganos na
prática de cartomancia, de modo que se tornou normal referir-se ao tarô dos boêmios ou egípcios.25
✲ 3.1 Tarô na contemporaneidade
A noção do tarô como método divinatório só passou a ser difundida a partir do final do século XVIII, quando autores como o
francês Jean-Baptiste Alliette (ou Etteilla, seu pseudônimo), publicaram os primeiros guias definitivos de jogo de cartas. Foi o
primeiro ato em que foram firmadas as epistemologias mais profundas, principalmente em relação aos arcanos maiores, além das
indescritíveis atribuições mágicas ao seu corpo de leitura. Enquanto reaparição como artigo, ela só foi possível graças à invenção
da imprensa no século XVIII. As produções em larga escala como as de livros e impressos e a difusão da mídia e da propaganda
foram grandes linhas divisórias de uma produção artesanal para um empreendimento em massa, permitindo que uma maior
abertura para liberdade criativa também fosse cavada. Suas imagens concomitantes como as do famoso tarô Rider-Waite, criadas
por Pamela C. Smith, por exemplo, tornaram-se intensamente gravadas pelo público através de sua veiculação na mídia, estando
muitos de seus ícones até hoje consolidados no repertório coletivo como marcas do misticismo, da espiritualidademainstream e do
ocultismo pós-moderno. É por meio dessa capitalização que se deu vazão à reprodução do tarô em abundantes objetos de
consumo.
25 A despeito de mais descrições sobre o tarô e suas formulações, conferir O Livro de Toth: um curto ensaio sobre o tarot dos egípcios (2002), por Aleister
Crowley.
39
E, apesar de seus desenhos habitualmente reportarem a atmosfera típica de uma vida europeia mediante uma classe
específica (a corte, a realeza ou a aristocracia) durante a idade medieval, o que também por instinto incorporou a predominância
de símbolos católicos, sua interpretação conseguiu de alguma forma ultrapassar o dualismo conflitante, tingido pelos fortes
resquícios do cristianismo e do componente religioso. Esse ingrediente poderia determiná-lo, por assim dizer, como um material
heterodoxo. Afinal de contas, o tarô cresceu em um ambiente onde cresciam os movimentos iluministas que colocavam em risco o
poder da Igreja, o qual se fixou rigidamente em velhos credos medievais, como a troca do autoconhecimento pelo conhecimento
que só poderia ser dado por intermédio da Bíblia, premissa essa implícita pelo fato de que isso só seria possível com a intromissão
de uma autoridade do clero, já que a maioria da população não sabia ler nem escrever. Se não fosse por essa diferença, talvez o
tarô não passasse por todos os desprendimentos criativos por quais este passou, talvez se tornado pouco explorado, pois sempre
limitaria os praticantes (e leitores) a uma única crença. De qualquer maneira, mesmo confirmando qualquer documentação
histórica acerca de suas primeiras versões de baralhos e suas origens deliberadas, ainda não temos uma explicação básica e
concisa sobre como os baralhos de tarô, quando já deixados para trás as visões renascentistas, carregam uma iconografia que
possui em si uma forte sensação de profundidade. Essas lâminas parecem invocar memórias sutis e alguma associação com o mito,
a lenda e o folclore e, apesar da objeção racional, alguma história ou segredo, que não podem ser totalmente formulados, nos
escapam quando tentamos defini-las de maneira rígida demais (BURKE; GREENE, 2020, p. 14).
Por mais que seja considerado (para os iniciantes dessa arte) uma ciência hermética relativamente nova, o tarô foi tema de
apoio muito suscitado por numerosas correntes do ocidente, estando, no presente, intimamente ligado ao patrimônio ocidental e
40
sendo até mesmo incorporados em temas e situações ocasionais de psicoterapia e terapia holística26. É inegável que os princípios
que rondam o seu emprego influenciaram copiosamente a espiritualidade atual, e já é por garantia um dos estudos
contemporâneos esotéricos mais travados sobre a consciência, o conhecimento e o “eu”.
Os baralhos também acabaram em inúmeras variantes e imitações dos primeiros decks. Sobre a reverberação propriamente
subjetiva nos baralhos assim como em qualquer outro objeto passível de cultura, onde há o reflexo de um indivíduo e a sua
propagação, acontece o que se chama ‘gêneros simbólicos em sociedades de larga escala” (TURNER, 1982, p. 24 apud
CAVALCANTI, 2013, p. 413), que é quando há uma tendência à mutação e à versatilidade do simbolismo utilizado (questão
examinada no capítulo 2.2). Quanto às suas versões, vemos o tarô sendo adaptado para o gosto e a preferência da audiência,
inclusive com uma procura de detalhamento, como variedade de laminações, dimensões e acabamentos cada vez maior e sendo
compatibilizado com múltiplos gêneros populares de comunicação, desde filmes a séries a estilos que estão em voga — nem
sempre iguais ao seu significado convencional, e nem sempre desenvolvidos para o seu objetivo cardinal. Em fato, a alta resolução
simbólica de detalhes [das cartas atuais] podem nos dizer mais facilmente sobre as idiossincrasias do artista do que sobre os
significados das cartas elas mesmas (HATCHER, 2020, p. 11, tradução nossa).
26 HOFER, G. M. Tarot cards: an investigation of their benefit as a tool for self reflection. University of Victoria, [S. l.], 2004. Available from:
. Access in: 1 Jan. 2023.HOFER, G. M.
http://dspace.library.uvic.ca/handle/1828/1553
41
No que diz respeito o seu manuseio para fins de desenvolvimento pessoal, o tarô vem sendo usado para aquisição de
atributos qualitativos, não só estéticos, idem. Podemos dizer que cada baralho novo possui um biótipo próprio. Sua criação
atualmente envolve não só o produto final em si, o que seria o principal, mas também o esboço condizente de um logotipo, de suas
embalagens, dos conteúdos físicos e abstratos que vêm com dele, de técnicas de produção, sua divulgação, entre outros critérios
mais, valendo-se de todo mecanismo passível de compleição criativa sobre a singularidade daquele baralho. Em contrapartida, não
é possível confirmar o quanto esses pormenores são levados em conta conscientemente; somente se sabe que afeta quem o
desfruta, e isso pode ser auferido não necessariamente pela apreensão de um designer, mas puramente por uma questão lógica de
mercado de consumo e modismo, mesmo porque, agora, a imagem assume dupla significação: o que ela representa para seus
consumidores, e como os consumidores a representam, os quais se tornam simbioticamente persuadidos pela avaliação de seus
hábitos, crenças, valores e experiências, e por esse motivo nem sempre essa dupla significação é coincidente (PEREZ, 2014). Desde
então, o tarô vem se adaptando aos intentos do público consumidor, o qual se discrimina por suas ideologias ou nichos de consulta.
É o caso semelhante das adaptações feitas com a Kabbalah; mesmo com sua eventual informalidade, essas propostas são
testemunhas da hegemonia da liberdade poética, da liberdade de expressão e da “apropriação livre” acima da retratação fiel de
uma ideia. Sobre a prática em si, o levantamento (autoral) abaixo feito no ano de 2019 em uma comunidade online de wicca27 e
bruxaria conduz um número de 80 a 150 praticantes de tarô a uma série de opiniões sobre o seu uso, domínio e funcionalidade.
27 Wicca é uma vertente de bruxaria neopagã sintetizada por tradições pré-cristãs, geralmente de origem europeia (como os celtas) ou resgatadas pela
“Religião Antiga”, baseados especialmente no culto à Deusa (princípio feminino de criação do Universo). Os adeptos podem se organizar em covens ou
fazerem a própria auto-iniciação (muito disseminado hoje como “bruxo solitário”).
42
Gráfico 1 - Idade e gênero dos usuários de tarô. (150 votos)
Fonte: autorial.
43
Gráfico 3 - Principais motivações da prática de tarô. (108 votos)
Fonte: autoral.
Analisando os gráficos 1 e 2, foi observado um significativo aumento do interesse dos jovens sobre a usabilidade do tarô em
comparação com os usuários mais velhos, em especial, na busca por cura e autoconhecimento (73,1%). Esse número é
comparativamente alto se considerado outros pretextos para tiragem de cartas, como o intuito mero para educação e estudos
(15,7%), o que incluiria, nesse caso, tanto estudos orientados para o meio escolar ou acadêmico quanto para satisfação de
curiosidade, crença ou religião (5,6%), que seria o exercício da própria espiritualidade, diversão e lazer (4,6%), para motivos
44
descontraídos, e, por último, e em menor porcentagem, por profissão (0,9%), o que abarca tarólogos, cartomantes e outros tipos de
autônomos. Os gráficos 4 e 5 são de natureza mais pessoal e objetivam medir as repercussões íntimas do tarô nos usuários
pesquisados, sublinhando quais sejam os maiores benefícios do tarô como jogo divinatório e auto-aconselhamento.
Gráfico 4 - Benefícios internos e externos do jogo de tarô. Gráfico 5 - Média de comparação sobre o auxílio do tarô
(83 votos) na resolução de conflitos internos. (95 votos)
Fonte: autoral. Fonte: autoral.
45
Gráfico 6 - Perguntas mais frequentes feitas em tiragens. Gráfico 7 - Média de importância dada aos 4 aspectos diferentes
(108 votos). das cartas. (100 votos)
Fonte: autoral. Fonte: autoral.
Por último, os gráficos 6 e 7 vêm para complementar e encerrar a pesquisa mostrando um assentimento geral sobre as
perspectivas do tarô sobre os usuários e do que o tarô é ou pode oferecer. O resultado não contrasta muito com os diagnósticos,
como o da perpetuidade de sua visão espirituosa e esotérica, e do encaminhamento claro mas gradual do seu uso para elucidação
do mundo objetivo para a elucidação do mundo subjetivo.
46
4 CABALA
A Kabbalah ou cabala judaica — ”קַבָּלָה“ em hebraico, traduzido como “Recebimento” — é um antigo sistema místico
filosófico-religioso derivado do Judaísmo. Argumenta-se possuir em sua doutrina as chaves dos mistérios sobre a origem e o fim do
universo, a relação entre a existência e não-existência, a matemática matricial e a organização mais sublime dos micro aos
macrocorpos. Uma de suas interpretações também está ligada ao desenvolvimento espiritual, no qual se fala muito de sua
realização íntima ou iluminação divina. O sistema cabalístico, recontado na Árvore da Vida, pode ser lido de inúmeras formas e
convenções (como sentidos de leitura ascendentes e descendentes) que enfim revelam provas sobre a cosmologia do homem, a
gênese do mundo, a natureza do bem e do mal e da descida da consciência à encarnação.
De acordo com Dion Fortune (1988), o misterioso diagrama da árvore da vida guarda as senhas basilares para desvendar a
criptografia do Tanakh, uma coleção canônica de textos originais do Antigo Testamento, dentre outras escrituras bíblicas,
perfazendo um sistema apropriado para o modo de vida no Ocidente. Ele é fendido geometricamente em 10 “sefiroth”, “sefirot” ou
“sefiras” (no plural, em hebraico: ,(סְפִירוֹת as quais são reproduzíveis bidimensional, tridimensional e mesmo
quadridimensionalmente atingindo todas e quaisquer dimensões conseguintes do espaço matemático. As sefirot, por sua vez,
podem ser paráfrases de “forças” ou “agentes” claramente desconhecidos pela mente inferior e providas de uma inteligência única
47
e singular do Todo, cada uma delas reproduzindo uma dimensão, uma virtude ou um aspecto do Absoluto. A Árvore da Vida
também faz ligação à anatomia, representando cada um dos membros ou dos organismos do corpo, na visão microcósmica.
Outras cadeias também a organizam em nortes tropológicos: a ideia das tríades (Triângulo Mágico, Triângulo Ético e
Triângulo Logóico), os três pilares (do Rigor, da Misericórdia e do Equilíbrio), a ideia dos mundos (Assiah, Yetzirah, Briah e Atziluth,
respectivamente: Mundo da Ação, Mundo Formação, Mundo da Criação e Mundo da Emanação) e a ideia dos véus que os separam
(o véu de Paroketh, situado à metade da Árvore da Vida acima do coração de Tipheret, e o Abismo, situado na intercedência de
Daat, a única esfera oculta que aparta os 3 logos ou a divina trindade das sefirot restantes). Igualmente se conta a encoberta zona
do “Nada” ou do “Infinito sem limites”, circundado pelo espaço de Ain, Ain Soph e Ain Soph Aur, que se desdobram
consecutivamente no primeiro, no segundo e no terceiro aspectos do Absoluto e dão vida à primeira ordem de mundos, o
protocosmos28, seguido da segunda, o ayocosmos29, e assim por diante, até irmos perdendo de vista as percepções mais sutis. É
importante ressaltar que muitos estudiosos escolhem não atribuir pessoalidade a esses conceitos figurados, isto é, atributos
humanóides, como virtudes e defeitos, pois isso implicaria uma limitação. O mesmo se aplica à configuração de uma personalidade
à coroa de Kether, que costuma ser associada à figura do Deus-Pai. Se contarmos o espaço imanifesto e Daat, teriam-se na
realidade 12 sefirot ao total, como retifica Weor, em Tarot e Kabala (2020, p. 240). Esses átrios costumam ser replicados através de
29 Cosmos onde já habitam os planetas, os sóis, o firmamento, feitos em base das 3 forças primárias: positiva, negativa e neutra.
28 Cosmos formado por inúmeros sóis espirituais não visíveis ao ser humano, onde ainda não há nenhum tipo princípio mecânico, e só rege a primeira e
única lei, a lei do Amor.
48
linhas que ficam logo acima de Kether. Neles reside a não-matéria, antes do espaço e do tempo percebidos pelos mortais.30
Figura 7 - Uma adaptação do diagrama da Árvore da Vida com correspondências planetárias.
Fonte: . Acesso em: 1 jan 2023.
30 Todos os julgamentos e nomenclaturas descritos neste parágrafo são de incoação exclusivamente espiritual.
https://i.pinimg.com/originals/dc/21/22/dc21226f4528952ce6b5b5a1b0d3270c.jpg
49
Não obstante o esquema da cabala permite, através de sua complexa doutrina teúrgica e cosmogônica, retirar os extensos
véus que cobrem os mundos com os cinco sentidos, propondo atalhos capazes de desatar os nós e as raízes de toda causa
enlaçada na natureza. Apesar de ser declarada inatingível pelos magistas31, com sua compreensão promulgada somente a alguns
eleitos, todos são considerados passíveis de receberem a ação dessas questões ontológicas em seu interior, visto que é ele, o
conhecimento hermenêutico, que é capaz de elevar a nossa mundana consciência de uma condição meramente superficial para
uma mais espiritual e transcendente.
✲ 4.1 Origem da cabala
É professado que o sagrado conhecimento da Kabbalah foi revelado por anjos aos patriarcas hebreus como meio de
preservar e transmitir as senhas das verdades espirituais. O conhecimento hebreu foi secretamente passado de geração para
geração oral e de forma secreta, alcançando o selo da tradição mística judia. Seu entendimento deveria ser velado por ser exclusivo
ao estudo dos rabinos, tendo sido também um recurso usufruído na decifração de textos bíblicos e não-canônicos.
31 Termo utilizado entre a comunidade ocultista para se referir aos “magos” ou “bruxos”. O termo pode indicar o mestre ou professor que já atingiu um grau
maior de magistério, ou o estudante que está seguindo um esquema íntimo de preceitos dentro da magia. Algumas referências dessa definição podem ser
vistas na literatura como no livro “O Diário de um Mago”, de Paulo Coelho.
50
[...] Pois nelas se revela o segredo da vida mais elevada; todo trabalho racional, todo labor sistemático, todas as leis e
julgamentos, preceitos e vereditos religiosos, concepções profundas e máximas de lógica recebem o espírito de suas
vidas das sombras da radiância destes grandes lampejos. (GUINSBURG, 1968, p. 663 apud BARROSO, 2009, p. 106)
Porém, ocorre uma divergência entre a “Cabala” e a “Kabbalah”. Um breve estudo comparado mostra que a Cabala (com C)
nasce da diferenciação da Kabbalah, não como uma ramificação propriamente hebraica, mas sim, do cristianismo que começava a
entrar em ascensão durante o fim da Idade Média, tendo sido também chamada de Cabala do Renascimento ou Cabala Filosófica.
Nessa era em que se estourava o renascentismo e o iluminismo entre os séculos XIV a XVIII, o pensamento humanista tomou conta
dos estudos religiosos, e sua influência neoplatônica, vinda do domínio de Constantinopla sobre os impérios, realça a sua
semelhança ou reta comparação com discursos da escolástica cristã. Devido a isso refere-se à cabala pela sua assimilação mais
recente e menos fechada, e não necessariamente canônica, que é mobilizada para o cunho cristão e com inputs do Novo
Testamento.
A grosso modo, a cabala estaria para o judaísmo assim como o gnosticismo está para o cristianismo e o sufismo para o islã.
Com o hermetismo tomando conta de sua propagação, ainda há controvérsias sobre a motriz de seu nascimento; não por acaso
algumas vertentes judaicas preferem não incluir o conhecimento da cabala, apesar de não só ou pela igual razão supracitada. Por
exemplo, devido ao caráter pseudopigráfico do Zohar (Livro do Esplendor), um de seus maiores manuscritos, boa parte dos
estudiosos modernos aplicaram o nome “cabala” somente aos sistemas especulativos que apareceram a partir do século XIII sob
51
títulos pretensiosos com alegações fictícias, e não à coletânea mística dos tempos geônicos e talmúdicos (KOHLER; GINZBERG,
tradução nossa)32. Portanto, a cabala como conceituamos hoje seria muito mais próxima de especulações do que da verdade.
Juntamente ao fato, o Zohar (Livro do Esplendor) e o Sêfer Yetzirah (Livro da Criação) formam juntos a coletânea de principais
obras cabalísticas, ambos sem uma autoria verificada. Na obra do Zohar em específico, a exegese sinaica é imbuída de alto
significado pelos olhos do midrash, um recurso de leitura que teria sido criado pelos líderes sábios para registrar os ensinamentos
da Torá sob um disfarce que predispusesse de ínfimas chances de torná-la vítima da má conduta dos iletrados e incultos, seja
ficando à mercê do esquecimento ou da profanação de alunos não preparados. Então, em vez de deixar o acesso aberto a qualquer
um que pudesse ler, os sábios assim decidiram que velariam as escrituras por um código-mestre, que se inculcou depois nos
chamados midrashim: versículos, histórias, enigmas, parábolas, ditados, (...) inextricáveis, que, mesmo atinados com dificuldade
pela mente, permaneceram ainda profusamente enigmáticos. Como um prolóquio universal bem disseminado, “um mistério jamais
pode ser apresentado sem as coberturas da metáfora e da parábola”33.
Em termos de texto e mito, alega-se que a literatura apocalíptica dos primeiros séculos anteriores ao cristianismo já
continha elementos da cabala, e que tais escritos estiveram por muito tempo sob a posse dos essênios, os quais poderiam ter sido
os originários deste conhecimento, segundo autores como Hilgenfeld, Eichhorn e Gaster34 argumentam. Contendo uma
34 KOHLER, K; GINZBERG, L. — Antiquity of the Cabala. Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2023.
33 FREEMAN, T. O Que É Cabalá?. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2022.
32 KOHLER, K; GINZBERG, L. — Name and Origin (Hebrew form Ḳabbalah [, from = "to receive"; literally, "the received or traditional lore"]).
Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2023.
https://jewishencyclopedia.com/articles/3878-cabala
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/1745252/jewish/O-Que-Cabal.htm
https://jewishencyclopedia.com/articles/3878-cabala
52
cosmogonia quase completa de assuntos sobre a alma e o espírito, a luz e as trevas, a transcendência humana e um pequeno
vislumbre de Deus, mesmo integrado a outras visões de mundo, a literatura cabalística preservou a sua secularidade e sua semítica.
Suas noções reminiscentes de “alta espiritualidade” deram a ela também um caráter contemplativo, não só informacional.
✲ 4.2 Cabala na contemporaneidade
Há uma razão do por que a sua doutrina possa ter vindo a ter tamanha magnitude de influência no globo. Segundo alguns
eruditas, com a Torá ou Torah (uma das principais bases de instrução moral e ética de seus seguidores), temos posse de um
conhecimento considerado simultaneamente específico e universal. Isso porque seus apanhados foram responsáveis por compor,
junto com o berço da capital de Atenas, os aspectos medulares da civilização do ocidente. Sua globalidade de entendimento sobre
a vida cotidiana conta pelo fato de que a Torah não somente envolve os preceitos característicos da vida judaica, mas promove
aqueles que são indispensáveis à vida ética de qualquer sociedade: dignidade do ser humano, convivência pacífica, solidariedade
[....]. (GUINSBURG, 2008). A Torah escapa à degradação do tempo e, por isso, é eternamente contemporânea (ibidem, p. 146).
Enquanto isso, o Zohar, também considerado pseudopigrafia, introduz-nos à cabala com uma sacralidade elaborada em algumas
páginas, com comentários misteriosos sobre os livros toráticos originais. O Zohar aparece pela primeira vez no século XIII, na
Europa, publicado pelo rabi espanhol Moses de Léon (Moshe ben Shem-Tov).
53
Para tanto, não podemos falar da contemporaneidade da cabala sem a intervenção do contexto de sua religião emergente.
Com a elevação do misticismo no âmbito do religare, a alma da cabala foi sendo polida até chegar aos dias hodiernos com bastante
intercruzamento panteísta. Macedo elabora que “a mística, por sua diversidade de manifestações, foi artificialmente dividida em
subgrupos que compartilhavam de uma mesma tradição ou conjunto de especificidades” (MACEDO, 2006, p. 56 apud BARROSO,
2009, p. 105). Não foi só o ocorrido com as tradições similares às religiões abraâmicas primogênitas, mas também com as próprias
de origem. Mesmo o judaísmo em si foi posteriormente subdivido em 3 correntes: o ortodoxo, o reformista e o conservador35. Foi
fragmentado dessas correntes, por exemplo, que nasceu o judaísmo humanístico36, centrado mais na valorização das raízes judias,
em seus costumes e cultura histórica do que no cumprimento restrito das 613 leis ou mandamentos judaicos37 como prioridade. Em
uma entrevista de Lyslei Nascimento ao professor Jacó Guinsburg (2022) da Revista digital Maaravi, UFMG, o autor fala sobre a
posição que as crenças religiosas ocupam na atualidade:
Muitos procuraram uma resposta mais satisfatória no plano da religião: tem havido um revival religioso, vemos certos
grupos "fundamentalistas" conquistarem adeptos numa escala que não era previsível há quarenta ou cinqüenta anos.
Nada disso, todavia, passa por uma resposta cultural especificamente judaica.
37 Disponível em: . Acesso em: 02 jan. 2023.
36 A vertente humanística foi fundada por Sherwin Wine, no ano de 1963.
35 PINTO, T. S. Correntes do judaísmo moderno. Brasil Escola. Disponível em:
Acesso em: 02 jan. 2023.
https://www.cjb.org.br/tiferet/culto/tradicoes/31_HALACHA%20E%20MITZVOT.pdf
https://brasilescola.uol.com.br/religiao/correntes-judaismo-moderno.htm.
54
Com o passar do tempo, hieróglifos foram se revelando sutilmente ao público, principalmente após rascunhos criados por
movimentos ocultistas em meados da Era Moderna. A Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawn), uma famosa linhagem
de uma sociedade secreta surgida na Inglaterra em 1888, fez pontes e parentesco entre a cabala e outras grades do ensino
esotérico. Até hoje são segregadas opiniões em relação à sua legitimidade e justificativas de uso, visto que o seu arcabouço, assim
como o tarô, foi convertido à mistificação, à banalização, à ligação com teorias conspiratórias e mesmo à publicidade de produtos
de valores ideológicos, dando a ele um teor de fanatismo, por vezes charlatanismo, apropriação religiosa e superstição. Todavia,
seu fim como moda foi inevitável, e o livro “A Cabala Mística” (FORTUNE, 1935) cuja autora era membro da Golden Dawn ganhou
muita notoriedade, unindo aspirantes e curiosos sobre o assunto. A Kabbalah também foi magnetizada para o esoterismo de forma
a engendrar na sintética mística da “Qabalah” (ou também conhecida como “Cabala Hermética”), que era harmonizada a outras
cúpulas do conhecimento como a astrologia e a alquimia. Sua tradição diz conservar o significado primário e tradicional da cabala
judaica. A Cabala Hermética, por sua vez, forneceria uma interpretação eclética e mais substancial, inspirada nos saberes místicos,
artísticos e científicos das antigas escolas de mistérios.
Além disso, uma constatação notável sobre sua abordagem espiritual é a conjugação contextualizada de ambos os lados
físico e não-físico, sem a anulação ou subjugação de um sobre outro, algo que seu mote reitera com o desfrute moderado e
consciente das coisas mundanas e agir nas coisas mundanas para se melhorar interiormente. Diferente das demais religiões
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abraâmicas, “os judeus desenvolveram o misticismo, mas quase nenhum ascetismo38 do tipo ocidental (WEBER, 1982, p. 373). Em
vista de dois universos tão distantes trabalharem juntos em benefício do crescimento espiritual do indivíduo, temos um encontro
que dificilmente se encontra nas raízes religiosas anciãs, que é a uniforme inclusão da “carnalidade” nos processos de
desenvolvimento interior em vez de sua deserção total, e o personagem e os cenários das cartas serão criados a partir da mesma
diretriz. A cabala hoje é bastante vista sendo difundida em fins pragmáticos como em palestras, cursos, livros e autores que
prometem, por uma via mais concreta e menos abstrata, a realização física e autônoma do indivíduo.
✲ 4.3 Sincretismo entre cabala e tarô
Dessa mistura surgiu uma farta composição filiada a representações simbólicas, incensos, ervas, elementos, planetas,
signos, horóscopos, entre outros adictícios. Como o escritor e jornalista Inácio Vacchianno diz, “o ocultista prático que trabalha
com a Árvore se aproveita deste estoque de associações, vivificando os símbolos no Astral por meio de suas operações, sejam
mágicas ou meditativas, de suas chaves e das infinidades em sua adaptabilidade”39. Um dos sincretismos mais famosos foi com o
39 VACCHIANO, I. VII. OS 22 SENDEIROS OU CAMINHOS. Disponível em:
. Acesso em 03 jan. 2023.
38 O ascetismo ou prática ascética é calcado na “renúncia ao mundo”, por meio da autopurificação, restrição ou privação permanente de prazeres, como
alguns monges e iogues orientais fazem. O ascetismo espiritual costuma contrariar o fundamento da religião judaico-cabalista, em que Deus dá tanta
atenção ao corpo material quanto o corpo espiritual e ambos são necessários para a evolução — embora tenham prevalecido alguns padrões de abstenção
(apenas com menor dominância que outras religiões).
https://inaciovacchiano.com/a-cabala-de-hakash-ba-hakash/a-cabala-de-hakash-ba-hakash-filosofia-metafisica-quantica-cabalistica-tomo-i/vii-os-22-sendeiros-ou-caminhos/
https://inaciovacchiano.com/a-cabala-de-hakash-ba-hakash/a-cabala-de-hakash-ba-hakash-filosofia-metafisica-quantica-cabalistica-tomo-i/vii-os-22-sendeiros-ou-caminhos/
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tarô, bem florescido para as consciências teosóficas, gnósticas modernas e da Nova Era. Nessa forma de conjugação, os 22 arcanos
maiores seriam justapostos de maneira equitativa às ramificações simétricas da árvore da vida (das conexões de uma sefira a
outra), pavimentando o que se chamariam de “os 22 caminhos da vida”. Esses túneis ou “sendeiros”, navegam pelo ser
completando as diferentes variações de circulação energética existentes dentro do corpo e todos os trabalhos internos que devem
ser realizados pelo iniciado para que este se ilumine. De cada trilha, portanto, sai um equilíbrio resultante do encontro dos sumos
de duas sefirot.
A saber, o primeiro capítulo do Sêfer Yetzirah ou “Livro da Formação” (em hebraico, יצירהספר ) descreve, anonimamente, de
forma poética:
É com trinta e duas vias de sabedoria, vias admiráveis e ocultas que IOAH, Deus de Israel, Deus Vivo e Rei dos séculos,
Deus de Misericórdia e de Graça, Deus Sublime e tão Exaltado, Deus vivendo na Eternidade, Deus santo, grava seu
nome. Ele criou este universo pelos três sepharim: número, escrita e fala. (WESCOTT, 1887, tradução nossa).
Figura 8 - Conexão dos arcanos maiores com a Árvore da Vida.
57
Fonte: . Acesso em: 4 jan 2023.
O manuscrito perfaz cada um dos 32 caminhos através de descrições curtas e concisas: “O primeiro caminho é chamado
Inteligência Admirável pela coroa suprema. É a luz que faz compreender o princípio sem princípio e esta é a glória primeira;
https://dkesoterismosite.wordpress.com/2017/01/23/a-cabala-esoterica-e-o-tarot/
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nenhuma criatura pode atingir sua essência. [...] O trigésimo segundo é chamado Inteligência Auxiliar, porque dirige todas as
operações dos sete planetas e suas divisões e concorre para elas”. Esses caminhos serão, depois, usados como base de tiragem
das cartas e da totalidade de número de cartas para o Oráculo Fractal.
Buscamos também o Tarô de Thoth de Aleister Crowley para apresentar outros ancoramentos entre os dois que não pelos
32 sendeiros da sabedoria. Não coincidentemente, cada um dos trunfos pode ser ligado a cada uma das 22 letras hebraicas. No
caso da carta do Sol, arcano 19, a carta é assinalada com a vigésima letra hebraica dos abjads: ר (“resh”), que significa “início” ou
“cabeça”. A definição combina com a insinuação do sol como a imagem da cabeça humana. Em relação aos caminhos, a carta se
localiza na vigésima conexão que vai do círculo de Tipheret (Beleza) à Yesod (Fundação), que é o caminho do coração às emoções,
o caminho mais elevado do sentimento, a descrita “Inteligência Coletiva” nos textos do Sêfer Yetzirah.
No livro instrutivo “Os 32 Caminhos da Sabedoria”, de Paul Coster, “se tem explicação suficiente para se poder empunhar a
ideia de que o trigésimo caminho tem a ver com a compleição da Grande Obra, a produção da nova criatura, desenvolvida do
homem natural por sua força de vida, trabalhando pelas atividades: mental, emocional e física” (CASE, 1950, p. 290, tradução
nossa). O sol convoca todos os fragmentos do eu de volta ao seu âmago, infundindo-os com luz e calor. Dessa forma, a carta
mostra o astro central exercendo controle sobre os 12 tipos de experiência iluminadas pelos seus 12 raios solares.Objetivamente
falando, as crianças desenhadas representariam o homem e a mulher, eternamente jovens, desavergonhados e inocentes. [....] Eles
representam o próximo estágio a ser alcançado pela humanidade, no qual a liberdade completa é igualmente a causa e o resultado
59
do novo aeon de energia solar sobre a terra.40 (CROWLEY, 1944, p. 114, tradução nossa).
Figura 9 - Arcano do Sol, Tarô de Thoth.
Fonte: . Acesso em: 4 jan 2023.
5 JOSEPH CAMPBELL
40 "They represent the male and female, eternally young, shameless and innocent. [...] They represent the next stage which is to be attained by mankind, in
which complete freedom is alike the cause and the result of the new aeon of solar energy upon the earth."
https://www.elitarotstrickingly.com/blog/the-tarot-of-eli-llc-major-arcana-thoth-atu-19-the-sun-haindl-tarot-key
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Joseph Campbell foi um importante professor, historiador e literário estadunidense que se tornou famoso por sua
especialidade singular em mitologia e religião comparada. Ele é quem elabora a famosa teoria narrativa do Monomito ou da
Jornada Cíclica do Herói, identificando-o como um padrão presente na vida de todos os seres humanos arquetipicamente, podendo
ser notada subjacente em contos, mitos, lendas e fabulações épicas prescindidas por inúmeras civilizações, muitos deles se
responsabilizando pelo senso de integração cultural ou base moral de um povo.
Profundo conhecedor e aspirante de mitologias, tanto os de sua terra (como as dos indígenas norte-americanos que
culminaram o início de seu interesse) quanto as do ocidente ao extremo-oriente (desde a lenda do Rei Arthur aos Upanixades), ao
lado da inspiração íntima de autores como Thomas Mann e James Joyce, Joseph publica um de seus trabalhos mais primorosos ao
longo de sua carreira, “O Herói de Mil Faces” (1949), onde explora a fundo o conceito do monomito. Campbell considerava a psique
humana como composta por elementos e concepções básicas, comuns a todos os homens, que seriam responsáveis por formar a
essência de todo o inconsciente que se exprimia intuitivamente nas características ritualísticas das sociedades. O autor também
traz a sua visão sobre “seguir sua bem-aventurança”41, sendo ela a estrela-guia que nos conduziria a retificar o nosso próprio mito,
e também a vitória do herói, que é, na realidade, a nossa própria auto-libertação.
✲ 5.1 O herói e a jornada do monomito
41 CAMPBELL, J. A Jornada do Herói: Joseph Campbell: vida e obra. 2004.
61
A Jornada do Herói ou Monomito é nada mais do que uma fórmula narrativa onde o “eu”, o personagem ou o protagonista,
deve embarcar em uma aventura única marcada por testes, lutas, provas, tentações, milagres e revelações ao longo de seu
pavimento. O seu objetivo último é atender o chamado à mudança, que é atingir, de alguma forma, a eternidade. Tal eternidade
costuma ser simbolizada por algum “tesouro escondido” (CAMPBELL, 2004). Retornando à comunidade com essa conquista, ele
ora se restabelece à vida regular como um novo homem, ou é destinado a uma outra realidade, melhor e suprema, já distinguido
dos demais por um papel que agora servirá de modelo e exemplo para aquela comunidade. Psicologicamente, as marcações da
caminhada épica podem remeter ao curso de individuação42 e à subsequente realização definitiva da consciência (a apreensão do
verdadeiro eu, ou de uma parte integral de sua identidade) levando a um impacto positivo e significativo na consciência da
humanidade.
Tanto na movimentação psíquica quanto na fantasia nota-se essa criatura, ainda vulgar, sendo cativada por um apelo
inexplicável e que lhe parece impossível de escapar, um apelo que continuará perseguindo-a para vivificar o seu mito. Caso siga,
ela entrará na roda das experiências heróicas, enquanto é assombrada pelas ameaças e obscuridades que se apresentam no
mundo de fora como projeções de suas próprias sombras. Caso não, rejeitando o desafio, o assombro será a infringência de sua
própria amargura, devido ao recalque43 causado pelo desejo latente nunca realizado de se construir. De qualquer modo, a
43 O mesmo que “repressão”; solicita-se licença para emprestar o desígnio próprio de Sigmund Freud empregado na psicanálise.
42 Conceito apresentado no capítulo 6.1.
62
afirmação do impulso será a solução para que o personagem finalmente ingresse no “mundo real” ou no “mundo desconhecido” a
fim de se desenvolver, de se buscar, de se encontrar, e, enfim, de se libertar.
O monomito é dividido em três arcos, que são referidos pelo autor como os “estágios da aventura do herói”: a Partida, a
Iniciação e o Retorno. Desses três arcos decompõem-se os cortes decisivos que repartirão a história nas seguintes guarnições do
seu retorno:
a) Primeiro arco: A Partida
- Chamado à Aventura
- Recusa do Chamado
- Ajuda Sobrenatural
- Travessia do Primeiro Limiar
- Barriga da Baleia
b) Segundo arco: A Iniciação
63
- Estrada de Provas
- Encontro com a Deusa (Magna Mater)
- A Mulher como Tentação
- Sintonia com o Pai
- Apoteose
- A Grande Conquista
c) Terceiro arco: O Retorno
- Recusa do Retorno
- Vôo Mágico
- Resgate Interior
- Travessia do Limiar de Retorno
- Senhor de Dois Mundos
- Liberdade para Viver
Figura 10 - Estágios do Monomito.
64
Fonte: . Acesso em: 13 jan 2023.
O gráfico acima demonstra a trajetória principal percorrida em um círculo, a “unidade nuclear do monomito” (CAMPBELL,
2004, p. 28, tradução nossa). Na mesma edição comemorativa de seu clássico, a psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés
homenageia a prosa apontando como “o eu heróico busca um exigente semblante espiritual, isto é, uma maneira mais elevada de
https://interprete.me/a-jornada-do-heroi-e-o-entretenimento/
65
se apoiar e de se conduzir”, e que isto “oferece uma profundidade de percepção e significado” (ibid, p. 24). A cinemática do herói é
um típico roteiro de ficção, mas também pode ser performativa na vida ordinária e ainda lhe confere um direito irrevogável de
aplicação no cenário moderno, pós-primitivo ou pós-antiguidade. É assim que, seja em um mundo arcaico ou em um mundo
moderno, o herói sente-se impelido a ir em direção à sua peregrinação e atravessar os desafios da vida para incorporar suas
vocações. No primeiro arco, o herói sai de sua casa, que simboliza o rompimento com a extensão do espaço que já lhe é familiar,
para atravessar o primeiro portal rumo à liberdade e enfrentar o que coloca em risco os seus limites. No segundo arco, visto como
estrangeiro pelos novos personagens, o herói embarca em suas primeiras provas e aprende a lidar com as novas condições, e esse
marca o início de seu processo de desconstrução e da denúncia de seu real poder. No último e terceiro arco, o herói é magnetizado
para um ardente autoquestionamento ou senso de redenção, então pulverizado por uma violenta mudança de caráter onde sua
consciência é invadida por uma vontade ou necessidade avassaladora de conhecer mais sobre sua história, que fica muitas vezes
dissimulada por algum desejo de saber mais sobre seu passado, sobre sua descendência ou sobre seu impacto no futuro daquele
mundo; em maiores casos, até mesmo sobre o real propósito daquela jornada ou sobre quem ele verdadeiramente nasceu para ser.
Contudo, algo interessante sobre o desenrolar da narrativa é que o herói se torna o transeunte, e, ao mesmo tempo, o seu
próprio mestre. Ele acaba se vendo como sua única companhia, e, ao mesmo tempo, como o seu maior inimigo. De dentro dele
nasce a coragem sobrelevada pelo próprio medo. E ele, que procura tão incessantemente o elixir da longa vida, o remédio da pedra
filosofal, já é, na verdade, o próprio. Essa dicotomia entrelaçada em dois mundos seria uma das formas de visualizar a odisseia, já
que todos os personagens que aparecem como seus aliados, amigos, professores ou rivais seriam emanações de sua própria
66
identidade, tentando instigar o seu crescimento, somente. Como descrito nos parágrafos de capítulos acima, a sequência de
arcanos maiores mostra uma grande verossimilhança com o conceito, onde temos os (...) testes da vida, as grandes provas, o real
amadurecimento e a confrontação consigo mesmo, de onde vem a ressurreição do verdadeiro eu (p.33). No tarô, essa sucessão de
eventos determinada nas cartas ficou popularmente conhecida como a “Jornada do Louco”44. Com isso, é possível afirmar que tudo
aquilo a que o herói aspira retornar é, na realidade, o epíteto de uma chispa que já habitava dentro dele, que o impulsionava o
tempo todo à morte do ego45 para se consumar em um gesto ilativo final de catarse, normalmente perpetrado por um ato de
auto-sacrifício (que, em geral, é efetivado pelo clímax da história), onde não importa quantas novas escolhas o indivíduo faça para
se alinhar com a sua real face, ele sempre sofrerá uma metamorfose crônica. Na vida real, não só a morte pessoal parece ser
relevante para essa passagem como toda a problemática da cura ou da busca em melhorar a qualidade de vida global parece estar
fortemente conectada com o desprazer de experienciar a morte do ego (HILDEN; MERRICK; VENTEGODT, 2003). Seria, nesse caso,
uma necessidade profunda de transformação não só individual, mas também coletiva.
É uma jornada baseada sobretudo no arquétipo da morte e do renascimento, em que o “falso eu” é entregue e o “verdadeiro
45 Relativo à segunda fase de transição na Jornada do Herói. A morte do ego se deve à uma separação brusca ou total perda de uma identidade que estava
pré-estabelecida por certas experiências, crenças e emoções do sujeito; também, em algumas culturas, diz respeito ao desaparecimento do senso de “eu”
(egóico) como uma entidade separada dos outros ou do meio, acarretando uma mudança radical dde volta ao mais próximo possível de “eu natural”, do eu
original. Foi também chamada de “morte psíquica” por Jung.
44 O termo foi cunhado pela primeira vez por Eden Gray, em seu livro “A Complete Guide to the Tarot” (1970). Essa associação entre a Jornada do Herói e a
Jornada do Louco já foi utilizada por diversos autores e aspirantes do tarô ao longo do tempo.
67
eu” emergido (ROSEN, 1998, p. 228, tradução nossa). Por esse motivo, o tarô traz uma conotação parecida, que é a metáfora de
quase toda história de vida que se recria para continuar a evoluir. Também não é hiperbólico dizer que seu encaixe é
cirurgicamente coincidente aos achados psicanalíticos, pois a jornada do herói foi de fato articulada pela infusão teórica dos
arquétipos de Jung com as pulsões inconscientes de Freud, e sua aplicação na realidade se dá, por exemplo, pela sua fidelidade
com a estruturação dos rituais de passagem que Arnold van Gennep efetua em Les rites de passage (1909), portanto influenciando
fortemente o raciocínio de Joseph. Assim, a linearidade heróica é aplicável a inúmeras histórias que conhecemos no mundo antigo
e no mundo vigente, no universo fictício e no mundo real, provando como a psique humana sempre encontra meios para poder
externalizar o seu potencial, a sua essência, atemporal e comum a todos os homens. Apenas para citar algumas histórias comuns:
a iluminação de Buda; a ressurreição de Jesus; a missão de Luke Skywalker em Guerra nas Estrelas; a jornada de Simba em Rei
Leão; as aventuras sarcásticas de Dom Quixote; os 12 trabalhos de Hércules; o mito de Perseu; o mito de Prometeu. A narrativa
sempre estará ali presente, direta ou indireta, na diversidade de linguagens de nossa vida, especialmente dentro da arte, da música
e do entretenimento, relatando algo crítico com que pessoas se identifiquem.
Como o próprio autor conclui em “O Herói de Mil Faces”, "o intelectual moderno não encontra dificuldades em admitir que o
simbolismo da mitologia se reveste de um significado psicológico” (CAMPBELL, 1949, p. 251). Isso significa que, independente do
quanto as sociedades avancem, a psicologia do homem parece se manter permanentemente intacta e atada a esses elementos ou
figuras básicas que compõem a sua individualidade. Sem esses elementos a vida interior seria cessada e consequentemente a vida
exterior também, uma vez que a mente inconsciente do homem, conservando em si a necessidade de fazer símbolos e criar
68
associações, delega a essa faculdade uma importância vital na vida psíquica humana (JUNG, 1964). Os símbolos dão o mapa para
condução da vida manifestada, mesmo se elas não estão plenamente estipuladas por e devido a um mito de misticismo óbvio, e
ainda assim, no entanto, o que ocorre e o que se encontra facilmente com a perda recorrente desse mito é a perda de sentido de
vida, como Iain McGilchrist em The Matter with Things (123, p. 4, tradução nossa) já mencionou: “se o seu mundo se desintegra [por
uma ausência de narrativa], você para de ver qualquer coisa em contexto, e isso se torna um embaraço, até mesmo aterrorizante.
Sua pura facticidade é então realçada, já que ela não pode mais ocupar um lugar em qualquer esquema das coisas e pessoas que
lhe dariam sentido.46
Vemos então