UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP ANA CLARA FIGUEIRA GUIMARÃES Responsabilidade ao Proteger (RwP): iniciativa empreendedora normativa como forma complementar de contribuição humanitária São Paulo 2020 ANA CLARA FIGUEIRA GUIMARÃES Responsabilidade ao Proteger (RwP): iniciativa empreendedora normativa como forma complementar de contribuição humanitária Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança”, na linha de pesquisa “Estudos da Paz, Resolução de Conflito e Gerenciamento de Crises”. Orientador: Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille. São Paulo 2020 ANA CLARA FIGUEIRA GUIMARÃES Responsabilidade ao Proteger (RwP): iniciativa empreendedora normativa como forma complementar de contribuição humanitária Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança”, na linha de pesquisa “Estudos da Paz, Resolução de Conflito e Gerenciamento de Crises”. Orientador: Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Prof. Dr. Kai Michael Kenkel (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) Prof. Dr. Samuel Alves Soares (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) São Paulo, 01 de setembro de 2020. Dedico este trabalho à memória de todos os mortos nas intervenções militares. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, entre junho e julho de 2018, e, posteriormente, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre novembro de 2018 e agosto de 2020 (processo nº 2018/02638-6). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES. Agradeço ao meu orientador, Alexandre Fuccille, pela extraordinária paciência, dedicação, amparo e disponibilidade pessoal e acadêmica, antes mesmo do início oficial do curso de mestrado. Considerando que todo trabalho é fruto do compartilhamento e convivência com outros, isto é, resultado de todos os encontros e oportunidades que tive ao longo da vida, gostaria de agradecer profundamente a todos que contribuíram para a concretização deste projeto e para a minha formação. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e a todos os membros do corpo docente, à direção e à administração, pela trajetória de emancipação intelectual crítica e, especialmente aos professores de quem tive a honra de ser aluna: Flavia de Campos Mello, Héctor Luis Saint-Pierre, Paulo José dos Reis Pereira, Reginaldo Mattar Nasser, Samuel Alves Soares, Sérgio Luiz Cruz Aguilar, Shiguenoli Miyamoto, Suzeley Kalil Mathias e Tullo Vigevani. Agradeço também à Giovana Vieira e à Isabela Silvestre por todo o suporte e apoio administrativo, prestativo e eficiente; e à Graziela, pelas instruções e assistência quanto às normativas técnicas. Agradeço aos integrantes da banca examinadora, Kai Michael Kenkel por todos os apontamentos, indicações de literatura e observações construtivas na qualificação do projeto, e a Samuel Soares, pelos esclarecimentos, acessibilidade e boa vontade durante todo o período do mestrado. Estes grandes mestres são marcadamente uma inspiração para mim. Agradeço aos meus pais, Abilene Figueira e Angelo Guimarães, e ao meu irmão, Alexandre Guimarães por todo o amor, apoio incondicional, paciência e ânimo durante toda a minha trajetória; assim como a todos os meus familiares. Destacadamente, agradeço à minha tia, Maria Queiroz, e ao meu avô, Albner Rezende, que sempre acreditam no meu potencial, e me auxiliam em todas as oportunidades. Agradeço a Deus por ter me dado saúde e força para superar as dificuldades e concretizar este trabalho. Agradeço a todos os meus amigos, particularmente, Camilla Peixoto e todos os integrantes do grupo “TOP”: Anna Lene Cremonez, Bernardo Berlandez, Brenda Fonseca, Filipe Cauê, Georgiana Lima, Keila Áurea, Lais Crahim e, sobretudo, Maiara Sá pelas visitas e conversas; assim como Bianca Prado e sua família, pelo acolhimento inicial em São Paulo; Beatriz Candiotto e Emerson Junqueira pela companhia e zelo durante a jornada nessa atraente cidade. Agradeço aos colegas do mestrado pelo cotidiano agradável e gentil: Amadeu de Carvalho, Artur Bertolucci, David Succi, Emerson Junqueira, Fábio Rocha, Gabriela Freitas, Jaqueline Trevisan, João Motta, Késsio Lemos, Laurindo Tchinhama, Leonardo Jordão, Leonardo Dias, Letícia Rizzotti, Letícia Ferreira, Lucas de Oliveira, Maria Carolina Parenti, Mariana Couto, Marcela Franzoni, Pedro Henrique, Renan Colnago, Thaiane Mendonça. Agradeço à Daniely Viveiros, Fatima Cristina Rangel, Míria Freitas, Jorge Braga, Chelen Fischer, Fatima Trotta, Sandra Pollo, Ana Gabriela Agostini, Silvana e Nara Blanco pelos palpites, observações, acolhimento e palavras de encorajamento. Agradeço aos professores, participantes e ouvintes dos eventos acadêmicos nos quais apresentei a pesquisa, pela paciência, leitura atenta, ponderações e comentários sobre o desenvolvimento desta, nominalmente: Alejandro Simonoff, Bárbara Motta, Camila Braga, Gustavo Macedo, Juliana Bigatão, Juliana Cesar, Luciano Anzelini, Martin Binder, Ramon Blanco, Rita Feodrippe, Selma Gonzales e Suzeley Mathias. Em importância ao fio condutor da minha trajetória acadêmica agradeço, em memória, à Heloísa Pacheco por ter me apresentado o curso de graduação em Defesa e Gestão Estratégia Internacional (DGEI), e aos professores: Fernando Brancoli, Gilberto Oliveira, Henrique Paiva, Leonardo Valente, Luiz Felipe Osorio, Manuel Pureza, Mariana Kalil, Rachel Coutinho, Sandra Becker e Teresa Cravo. Agradeço a todos os membros dos núcleos de pesquisa do programa, designadamente ao Observatório de Conflitos, projeto do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), com destaque ao professor Marco Aurélio Nogueira, pela oportunidade de produzir ponderações sobre assuntos recentes. RESUMO As normas de intervenção humanitária se estruturam num contexto normativo e político internacional. No cenário pós-Guerra Fria, seguido de acontecimentos históricos de atrocidades em massa contra civis, ocorridos na década de 1990, as normas, assim como o próprio debate em torno das intervenções humanitárias, adquiriram notoriedade. Nesta conjuntura surgiu, em 2001, o princípio da Responsabilidade de Proteger (R2P), por meio da elaboração da Comissão Internacional sobre a Intervenção e a Soberania Estatal (ICISS), e se consolidou como princípio do Direito Internacional em 2005, na Cúpula Mundial das Nações Unidas. Seu ponto de inflexão se deu por meio da Resolução nº1973 no ano de 2011 – emanada pelo Conselho de Segurança da ONU– que redundou na intervenção na Líbia. Em resposta aos excessos e falhas ocorridos durante a implementação da resolução, o Brasil, numa iniciativa como empreendedor normativo, propôs a Responsabilidade ao Proteger (RwP). Neste sentido, o presente trabalho visa identificar como se insere esta proposta normativa da RwP no vasto panorama da evolução das normas de intervenção humanitária, isto é, no meio político e normativo internacional. Assim, a RwP será abordada como exemplo de uma tentativa normativa imersa no escopo internacional das regras sobre o uso da força, ressaltando-se o caráter propositivo desta, decorrente da falta de esforço do Brasil em consolidar o conceito no âmbito das Nações Unidas. Palavras-chave: Normas Internacionais. Intervenção Humanitária. Responsabilidade ao Proteger (RwP). Responsabilidade de Proteger (R2P). Emprego da força. ABSTRACT The norms of humanitarian intervention are structured within an international normative and political context. In the post-Cold War scenario, followed by the historical events of mass atrocities against civilians in the 1990s, the standards and the debate on humanitarian interventions have gained notoriety. At that juncture, the principle of Responsibility to Protect (R2P) emerged in 2001, through the elaboration of the International Commission on State Intervention and Sovereignty (ICISS), and was consolidated as a principle of international law in 2005 at the UN World Summit. Its turning point came through Resolution 1973 in 2011 - issued by the Security Council - which resulted in the intervention in Libya, in response to the excesses and failures that occurred during the implementation of the resolution. Brazil in an initiative as a normative entrepreneur, proposed Responsibility while Protect (RwP). In this sense, the present work aims to identify how this RwP normative proposal fits into the vast panorama of the evolution of humanitarian intervention standards, that is, in the international political and normative environment. Therefore, the RwP shall be approached as an example of a normative attempt immersed in the international scope of the standards on the use of force, emphasizing its propositional character due to Brazil's lack of effort to consolidate the concept within the framework of the United Nations. Keywords: International Norms. Humanitarian Intervention. Responsibility while Protecting (RwP). Responsibility to Protect (R2P). Use of force. RESUMEN Las normas de intervención humanitaria fueron estructuradas en un contexto normativo y político internacional. En el escenario posterior a la Guerra Fría, seguido de eventos históricos de atrocidades masivas contra civiles en la década de 1990, las normas y el debate sobre las intervenciones humanitarias han adquirido notoriedad. En esta coyuntura, el principio de Responsabilidad de Proteger (R2P) surgió en 2001, a través de la elaboración de la Comisión Internacional sobre la Intervención y la Soberanía Estatal (ICISS), y se consolidó como un principio del Derecho Internacional, en 2005, en la Cumbre Mundial de las Naciones Unidas. Su punto de inflexión se dio por medio de la Resolución 1973 en 2011, emanada por el Consejo de Seguridad, que condujo a la intervención en Libia. En respuesta a los excesos y fallas que ocurrieron durante la implementación de la resolución, Brasil, en una iniciativa como emprendedor normativo, propuso la Responsabilidad al Proteger (RwP). En este sentido, el presente trabajo tiene por objeto identificar cómo esta propuesta normativa de RwP se inserta en el amplio panorama de la evolución de las normas de intervención humanitaria, es decir, en el entorno político y normativo internacional. Así, RwP se abordará como un ejemplo de un intento normativo inmerso en el ámbito internacional de las reglas sobre el uso de la fuerza, enfatizando el carácter propositivo de esta que surge de la falta de esfuerzo de Brasil en consolidar el concepto dentro del alcance de las Naciones Unidas. Palabras clave: Normas Internacionales. Intervención Humanitaria. Responsabilidad al Proteger. Responsabilidad de Proteger. Empleo de la fuerza. LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Ação Coletiva sob o Terceiro Pilar da R2P....….............................. 134 Tabela 2 – Comparação das Fontes e os Princípios Fundamentais da RwP.... 139 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas ASPA Cúpula América do Sul-Países Árabes BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul CEDIN Centro de Direito Internacional CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha CIVIC Campaign for Innocent Victims in Conflict CNN Cable News Network CNT Conselho Nacional de Transição CSNU Conselho de Segurança das Nações Unidas DFS Department of Field Support DH Direitos Humanos DI Direito Internacional DICA Direito Internacional dos Conflitos Armados DIDH Direito Internacional dos Direitos Humanos DIH Direito Internacional Humanitário DIP Direito Internacional Público DOMREP Força Interamericana de Paz na República Dominicana DPKO Departamento de Operações de Paz da ONU ENERI Encontro Nacional de Estudantes de Relações Internacionais GCR2P Global Centre for the Responsibility to Protect HRW Human Rights Watch IBAS Índia, Brasil, e África do Sul ICISS International Commission on Intervention and State Sovereignty ICRtoP Coalisão Internacional pela Responsabilidade de Proteger INTERFET Força Internacional para Timor Leste LEA Liga dos Estados Árabes LIA Libyan Investment Authority LNOC Libyan National Oil Corporation MERCOSUL Mercado Comum do Sul MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti MRE Ministério das Relações Exteriores NUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento OCI Organização da Conferência Islâmica OI Organizações Internacionais ONGs Organizações Não Governamentais ONU Organização das Nações Unidas ONUC Operação das Nações Unidas no Congo OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte P5 China, França, Rússia, Reino Unido e os Estados Unidos PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PKO Peacekeeping Operations PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PoC Proteção de Civis PRIO Peace Research Institute Oslo R2P Responsabilidade de Proteger RP Responsible Protection RwP Responsabilidade ao Proteger RZD Russian Railways TPI Tribunal Penal Internacional UA União Africana UNASUL União das Nações Sul-Americanas UNEF I United Nations Emergency Force I UNFICYP Força de Paz das Nações Unidas no Chipre UNHRC Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas UNIPOM Missão de Observação das Nações Unidas na Índia e Paquistão UNITAF Unified Task Force UNMIK Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo UNOSOM Operação das Nações Unidas na Somália UNSF Força de Segurança das Nações Unidas UNSMIL Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ZOPACAS Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 14 2 NORMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA................................ 21 2.1 Direito Internacional e o uso da força......................……................. 21 2.2 Dinâmica construtivista das ideias, interesses, normas e comportamento.................................................................................. 40 2.3 Difusão normativa e teoria da contestação........................…….…. 57 3 RESPONSABILIDADE DE PROTEGER (R2P): origem e implementação.................................................................................. 79 3.1 Contexto e fontes normativas da R2P.............................................. 79 3.2 Implementação da Norma: R2P na Líbia.......................................... 93 3.3 Posicionamento do BRICS em relação às resoluções do CSNU... 106 3.4 Debate pós-intervenção na Líbia no âmbito do CSNU................... 110 4 RESPONSABILIDADE AO PROTEGER (RWP): iniciativa normativa............................................................................................ 115 4.1 Atuação humanitária mediante operações de paz......................... 115 4.2 Contexto internacional e fontes normativas da RwP..................... 130 4.3 Reação internacional à RwP............................................................. 142 4.4 Iniciativa empreendedora e contestativa normativa do Brasil...... 158 4.5 Ausência de implementação da Norma........................................... 166 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 174 REFERÊNCIAS.................................................................................. 178 APÊNDICE A – LINHA DO TEMPO DOS MARCOS DA EVOLUÇÃO DA R2P (2001-2010) ........................................................................... 197 APÊNDICE B – LINHA DO TEMPO DA INTERVENÇÃO MILITAR NA LÍBIA.............................................................................................. 198 APÊNDICE C – LINHA DO TEMPO DA RWP.........................…........ 199 ANEXO – RESPONSIBILITY WHILE PROCTETING: ELEMENTS FOR THE DEVELOPMENT AND PROMOTION OF A CONCEPT………………………………………………………….... 200 14 1 INTRODUÇÃO A grande discussão sobre as intervenções humanitárias, fundamentada na teoria da guerra justa, foi concebida a partir do século XIX e envolve a matéria primordial do emprego da força. As intervenções humanitárias podem ser definidas como ações militares ou não, com o objetivo de prevenir ou acabar com violações dos Direitos Humanos (DH), mesmo na ausência do consentimento do Estado receptor (BIGATÃO, 2009, p. 88). O debate central se encontra no “quando a força é legítima e que tipos de objetivos ela pode alcançar” (FINNEMORE, 2003, tradução nossa). A discussão polariza-se entre os defensores da intervenção humanitária, baseada na noção de que os Estados teriam o direito de intervir militarmente em outros Estados, mesmo sem o consentimento destes, para a defesa dos indivíduos, e os apoiadores das prerrogativas tradicionais da soberania estatal, contrários à ingerência em assuntos internos de outros Estados (EVANS, 2008, p. 285). Esta polarização entre o direito de intervenção humanitária e a soberania é caracterizada pelo contraste entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento (BIERRENBACH, 2011, p. 14), visto que os novos Estados recém-criados, assim como os países do Sul Global, tendem a defender a soberania recentemente conquistada, e os países do Norte irão defender a flexibilização da soberania, isto é, a intervenção por motivos humanitários (EVANS, 2008, p. 285). As questões das intervenções humanitárias são polêmicas, e sua discussão foi aprofundada e influenciada devido a acontecimentos históricos de atrocidades em massa ocorridos na década de 1990, redundando em um aumento expressivo das operações de paz durante esse período (DIGOLIN, 2018, p. 96). Esses casos históricos de crises humanitárias tiveram impetuosas repercussões sobre o debate ao trazerem questionamentos sobre a seletividade da vontade internacional e a legitimidade das intervenções em Estados soberanos (ICISS, 2001, p. 1). Deste modo, podemos tomá-los como responsáveis pela pressão da sociedade civil quanto às reações às atrocidades em massa. No contexto pós-Guerra Fria, numa nova ordem internacional assente no sistema de segurança coletiva e na evolução do Direito Internacional (DI) e dos DH, resultando no nomeado Direito da Humanidade, criou-se uma dimensão no contexto 15 internacional em que há a oportunidade e a capacidade de ação comum em relação às questões de proteção humana, refletindo no crescente reconhecimento mundial de que a segurança humana, incluindo a dignidade humana, os DH e as liberdades individuais, devem representar juntos parte dos propósitos centrais das políticas estatais e das instituições internacionais (ICISS, 2001, p. 6). O debate sobre as intervenções humanitárias reúne, portanto, o conflito entre o princípio da não intervenção, a soberania e os DH, aspectos que serão explorados no segundo capítulo desta dissertação. De modo a conciliar essas questões, assim como as diferentes vertentes e entendimentos quanto ao uso da força para a proteção de civis em casos extremos, a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) elaborou o conceito da “Responsabilidade de Proteger” (R2P) em 2001, que envolve ação preventiva efetiva e tempestiva a quatro restritos crimes e violações ─ genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade (UN GENERAL ASSEMBLY, 2005, §138) cuja origem e implementação abordaremos no terceiro capítulo. Esse conceito se consolidou como princípio do DI, em 2005, na Cúpula Mundial das Nações Unidas, e teve seu ponto de inflexão na Resolução nº1973 no ano de 2011 - emanada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)1- que redundou na intervenção na guerra civil da Líbia. O CSNU, nessa resolução, utilizou o princípio da R2P para condenar o governo líbio por permitir graves violações do DH e ataques equivalentes a crimes contra a humanidade. A operação militar na Líbia, durante o que ocidentalmente se convencionou chamar “Primavera Árabe”, foi o principal exemplo da utilização do princípio da R2P porque marcou a primeira vez que o CSNU autorizou o uso da força militar para fins de proteção de pessoas sem o consentimento do país em que se estava intervindo (BELLAMY e WILLIAMS, 2011, p. 825). À vista da sua relevância, exporemos a intervenção militar na Líbia na segunda seção do terceiro capítulo. Não obstante, críticas e contestações seguiram-se após a aplicação da R2P em casos como o da Líbia e da Costa do Marfim. Apesar da R2P ter se consolidado como princípio do DI em 2005, há um imenso debate sobre sua implementação, ou seja, a aplicação do 1Órgão deliberativo e tomador de decisões da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a manutenção da paz e da segurança internacional. 16 princípio e as consequências morais e práticas da intervenção (ZIEGLER, 2016, p. 3). As opiniões sobre o caso da Líbia na comunidade internacional em geral divergem consideravelmente: ao passo que alguns o defendem na qualidade de melhor execução do princípio da R2P, outros o caracterizam como um desastre humanitário (ZIEGLER, 2016, p. 2; STUENKEL, 2013, p. 60). Na verdade, identifica- se que o Ocidente considerou um grande sucesso, enquanto o Sul Global viu como um retrocesso (STUENKEL, 2013, p. 60). As críticas dos países do BRICS2 em relação à implementação da R2P, no caso da Líbia por exemplo, marcam a relutância3 desses países quanto ao avanço da aplicação da norma4, uma vez que esta reflete a ordem ocidental liberal estabelecida pela hegemonia americana pós-Guerra Fria (ZIEGLER, 2016, p. 6). Desta forma, cabe ressaltar que a R2P representa uma disputa normativa entre o Norte e o Sul Global. Sendo assim, a intenção de criar o princípio, na tentativa de estabelecer uma “ponte” entre o Norte e o Sul, quanto às questões de intervenção humanitária, não se concretizou (IGNATIEFF, 2012). Em resposta aos excessos e falhas ocorridos durante a implementação da resolução, o Brasil teve uma posição ativa e construtiva como empreendedor normativo, ao propor a Responsabilidade ao Proteger (RwP). Este conceito foi citado pelo Brasil pela primeira vez em 21 de setembro de 2011, por ocasião da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU)5, oportunidade em que este evento anual, pela primeira vez na história foi aberto por uma mulher, a presidenta Dilma Rousseff, e propunha a adoção de um conjunto de princípios e parâmetros para a regulação das missões humanitárias, destacadamente para a implementação da R2P. Cabe “ressaltar que o Sul Global elabora poucas propostas de normas que sejam construtivas no âmbito global” (STUENKEL, 2013, p. 59, 2BRICS é um acrônimo usado para identificar o grupo de cinco países emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. 3O conceito de relutância de acordo com a definição da Sandra Destradi (2017) abrange duas dimensões: a hesitação e recalcitrância. “A hesitação captura a ambivalência e as contradições que podemos observar frequentemente na política externa. A segunda dimensão, recalcitrância, refere- se à falta de resposta aos desejos e expectativas dos atores [...] ao refletir um desconforto em se adaptar às expectativas dos outros” (KENKEL e DESTRADI, 2019, p. 5-6). 4 Aqui se refere a norma da RwP numa concepção formal e jurídica. 5 Principal órgão da ONU composto por todos os países membros que se reúnem para discutir questões que impactam a vida de todos os habitantes do planeta. 17 tradução nossa), o que faz com que a iniciativa brasileira seja considerada um elemento importante no processo da multipolarização e de evolução das normas globais. Diante disso, o presente trabalho, considerando o grande debate sobre normas novas ou modificadas pelos países da periferia mundial, visa identificar onde e como se insere essa proposta normativa da RwP no vasto panorama da evolução das normas de intervenção humanitária, isto é, no meio político e normativo internacional. Com o intuito de interpretarmos o processo de construção das normas internacionais, procuraremos evidenciar a dinâmica construtivista das ideias, interesses, normas e comportamento. Posteriormente, evidenciaremos também os diferentes modelos de análise sobre difusão das normas globais, já que apreciamos a RwP como um conceito com pretensão de norma global, para entender a dinâmica de evolução das normas de intervenção humanitária, processada pela ocorrência de contestação a consensos. Tendo em mente este embasamento teórico, iremos diferenciar os tipos de contestação usando a teoria da contestação, para finalmente localizar e atribuir o papel da RwP na estrutura dinâmica normativa internacional. Vale destacar que existe um questionamento quanto à categorização da RwP como norma, porém, para fins desta análise, consideraremos a RwP como uma proposta normativa não concretizada como norma, no entanto, impactada pela dinâmica das normas, ressaltando a necessidade de recorrer à teoria de difusão de normas na análise da iniciativa normativa. Em relação ao modo de inserção da RwP no quadro das normas de intervenção humanitária, foram elencadas algumas possibilidades com base na literatura estudada: inovação, adaptação, complementação e contestação. Considerando a Organização das Nações Unidas (ONU)6 como ambiente dos debates, e examinando o comportamento e o discurso sobre a RwP, procuraremos responder se a RwP foi um exemplo de contestação ou adaptação, se buscou complementar ou inovar o escopo das normas, e/ou ações de intervenção 6A ONU é um órgão internacional fundado em 24 de outubro de 1945 e formado por uma reunião de países, com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais. O objetivo imediato da criação da ONU, isto é, de um sistema de segurança coletiva internacional, era evitar uma nova guerra mundial, o que não foi possível ser efetivado em razão do conflito ideológico e nuclear caracterizado pelo cenário de bipolaridade entre o Leste e o Oeste durante a Guerra Fria (BRAGA, 2012, p. 52). 18 humanitária. No entanto, sem olvidar o aspecto do contexto regional e da particularização do ator como integrante do Sul Global. Segundo Antje Wiener (2007), "as intervenções discursivas são, portanto, consideradas o fator central para avaliar empiricamente o significado das normas", logo utilizaremos a análise de conteúdo como metodologia. Portanto, faremos uso de uma análise dos discursos envolvidos no contexto de criação do conceito para identificar se a RwP foi, ou não, uma forma de contestação no tocante ao escopo das normas de intervenção humanitária em geral, ou particularmente à R2P, ou seja, a norma elaborada pelos países ocidentais. Outra questão é levantada quando se atenta que na votação da Resolução nº1973, alguns países se abstiveram, como fez o Brasil, apesar de não terem se verificado votos contrários, sendo então a abstenção uma possível expressão de uma contestação à norma da R2P. Todavia, sob a observação do impacto da atuação humanitária brasileira na dinâmica global de intervenções humanitárias, a nossa hipótese é que a RwP foi uma forma contestativa aplicacional complementar à ação humanitária, quer dizer, buscou contestar e adicionar valor à dimensão prática, ou melhor, da aplicação da norma, e não ao vasto quadro formal das normas em si, isto é, quanto ao conteúdo substantivo da norma da R2P, utilizando assim a tipologia de contestação da Deitelhoff e Zimmermann (2018). Salientando assim a importância da diferenciação entre o conteúdo da norma e a implementação desta, divisão primeiramente enfatizada pelo Brasil de acordo com Kenkel e Rosa (2015). Esta separação também é feita pelo Amitav Acharya, quanto às práticas de localização e subsidiariedade, e é feita por Deitelhoff e Zimmermann (2018), quanto aos tipos de contestação: de validade e de aplicação, por isto usaremos estas duas perspectivas para a análise em questão. À vista disto, se a RwP foi uma proposta normativa que se encontra como uma contestação à norma existente da R2P, indaga-se em qual desses tipos de contestação a RwP se insere. Ademais, questiona-se também a categorização da RwP como norma subsidiária, assim como manifestação da circulação das normas, estruturação de análise da dinâmica de difusão de normas, desenvolvida por Amitav Acharya (2015). No discurso da abertura da 67ª Sessão da AGNU, em setembro de 2013, o Brasil não aproveitou a oportunidade para aprofundar esta iniciativa, configurando uma postura tímida, já que “não se lançou a qualquer esforço diplomático para 19 ampliar a coalisão RwP” (BENNER, 2013, p. 43; STUENKEL, 2013, p. 61; STUENKEL e TOURINHO, 2014, p. 394). Deste modo, a presente pesquisa buscará, também, identificar que fatores explicam a falta de esforço do Brasil em consolidar o conceito da RwP. Elencamos e exploramos cinco possíveis razões para a ausência da implementação da RwP, e conseguinte evolução da norma: alterações do contexto doméstico e institucional, a presença, e/ou retirada do empreendedor normativo, o alto custo diplomático do empreendimento, e a falta de articulação com outros atores no ambiente normativo. Assim, a RwP será abordada como exemplo de uma tentativa normativa imersa no escopo internacional das regras sobre o uso da força, ressaltando-se o caráter propositivo desta, decorrente da falta de disposição do Brasil em consolidar o conceito no âmbito da ONU. Resumidamente, o corrente trabalho se estrutura em três grandes blocos: primeiramente, abordaremos o quadro da evolução das normas de intervenção humanitária e a dinâmica construtivista das normas em geral; depois apresentaremos a R2P, e por último examinaremos a RwP. Especificadamente, primeiro trataremos da grande temática das intervenções humanitárias, na qual se encontra a norma da R2P, e consequentemente da RwP, destacando as regras para o uso da força com base no DI, e o conflito entre o princípio da não intervenção, a soberania e os DH. Posteriormente, exporemos como o construtivismo aborda a questão das ideias e normas, assim como o seu relacionamento com os interesses e ações estatais, apontando como as mudanças nos entendimentos e no contexto normativo impactam a configuração da política mundial. Finalmente, salientaremos as principais abordagens teóricas sobre a difusão das normas internacionais, bem como a teoria de contestação, configurando assim o segundo capítulo. Em seguida, apresentaremos a R2P, destacando o contexto e as fontes normativas estruturantes da norma, desde a sua concepção pelo ICISS até a sua consolidação em 2005, bem como as repercussões até 2011, quando esta foi implementada, a fim de solucionar o conflito na Líbia. Desta maneira, relataremos a intervenção militar no território líbio e o posicionamento dos países do BRICS em relação às Resoluções do CSNU nºs1970 e 1973, no ano de 2011, além dos principais aspectos enfatizados no debate pós-intervenção no âmbito do CSNU. É importante salientar que só abordaremos os países do BRICS em respeito ao 20 grande recorte da pesquisa, no qual, inclusive o Brasil se enquadra, de análise da interação dos países da periferia mundial na dinâmica normativa internacional. Por último, dissertaremos sobre a RwP, porém antes retrataremos a atuação histórica do Brasil em questões humanitárias, mediante operações de paz e sua correlação com a política externa. Depois, examinaremos o contexto internacional do surgimento da nota conceitual e as fontes normativas, com base no arcabouço normativo da R2P. Ademais, relataremos a reação internacional sobre a iniciativa normativa e os principais questionamentos em torno desta iniciativa, ressaltando a ausência de implementação e consolidação do conceito em regra. 21 2 NORMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA As normas de intervenção humanitária se estruturam num contexto internacional, político e jurídico. No cenário pós-Guerra Fria, seguido de acontecimentos históricos de atrocidades em massa contra civis na década de 1990, as normas, assim como o próprio debate em torno das intervenções humanitárias, ganharam renovado destaque. Em razão disto, pretendemos apresentar, em seguida, o quadro da evolução das normas de intervenção humanitária num passado recente, isto é, as regras para o uso da força, com base no DI, destacando a essência do debate em torno do conflito entre o princípio da não intervenção, a soberania e os DH. Posteriormente, com o intuito de interpretarmos o processo de construção das normas internacionais, procuraremos evidenciar a dinâmica construtivista das ideias e normas. Consideramos que o construtivismo seja uma boa opção para a análise, porque este propõe a perspectiva de “um mundo social, de práticas constitutivas, de normas e regras, de identidade, enfim, uma ontologia social do espaço internacional” (LAGE, 2007, p. 113). Outrossim, salientaremos as principais abordagens teóricas sobre a difusão das normas internacionais, bem como a teoria de contestação das normas. 2.1 Direito Internacional e o uso da força O debate sobre as intervenções humanitárias teve a sua origem na Roma antiga, porém, a doutrina da intervenção humanitária foi desenvolvida a partir do século XIX. As discussões sobre a temática das intervenções para fins humanitários são fundamentadas na teoria da guerra justa. A doutrina da guerra justa (bellum iustum)7 é anterior à formação dos Estados nacionais, e tem suas raízes na tradição greco-romana, na ética cristã e na filosofia ocidental (ACHARYA, 2015, p. 63; 7 “De acordo com essa doutrina, o recurso às armas só seria justificado quando fosse uma reação contra violação grave de um direito, não reparada por meios pacíficos. Ainda assim, a opção militar deve ser limitada no tempo e no espaço, para que a correção do erro não se transforme num massacre” (GARCIA, 2004, p. 53). 22 GARCIA, 2004, p. 53), sendo aperfeiçoada entre os séculos XVI e XVIII, procurando identificar as condições e ações que justificam o uso da guerra8 (GOLDIM, 2003). O DI, da mesma forma, já demandava a restrição do emprego do poder de guerra e a repressão de maiores estragos irrecuperáveis oriundos do combate (SOUZA, 2016, p. 16), uma vez que já havia consciência dos malefícios da guerra por parte da sociedade o que, por seu turno, desencadeou na procura em disciplinar as relações por meio de padrões jurídicos de conduta (GARCIA, 2004, p. 46). Durante um longo período histórico, os fatores religiosos, com base em valores, foram utilizados como justificação das intervenções (KENKEL, 2012, p. 20). Os primeiros teóricos desta perspectiva foram Santo Agostinho (354-430) e São Thomás de Aquino (1225-1275), que durante a Idade Média, a partir de fundamentos ético-religiosos sobre a moralidade e a justiça, tornaram a guerra santa em guerra justa (MIGUEL, 2010, p. 3; GARCIA, 2004, p. 53). São Tomás de Aquino estabeleceu três condições moralmente aceitáveis para o emprego da força: autoridade própria, causa justa e intenção certa do beligerante (BIERRENBACH, 2011, p. 88). Já Juan Ginés de Sepúlveda (1490- 1573) criou justificativas para o expansionismo espanhol na América, através da dominação dos indígenas, ao afirmar que a recusa indígena à obediência seria motivo justo para a guerra, uma vez considerada como agressão. Ao mesmo tempo, Bartolomé de las Casas (1474-1566) defendia a “humanidade” dos nativos nas Américas. Semelhantemente ao pensamento de Sepúlveda, Francisco de Victoria (1492-1546) advogava o “direito europeu à guerra contra os não-europeus na América” (MIGUEL, 2010, p. 3), o que demonstrou a criação de narrativas de modo a justificar os interesses nacionais. Entre as principais fontes desta doutrina incluem-se Aristóteles, Cícero, Suárez, Gentili, Hugo Grotius, Samuel von Pufendorf e Emmerich de Vattel. Hugo Grotius (1583-1645), patriarca do DI, ao fundamentar o Direito à Guerra no direito natural estipulou três circunstâncias nas quais a guerra seria “legal”: defesa contra um ataque; reparação ou restabelecimento de um direito, e punição contra um ato injusto (FERREIRA, 2012, p. 247; MIGUEL, 2010, p. 4). Estes critérios integrariam 8 Consideramos guerra como uma interação hostil entre dois ou mais Estados com o uso de suas forças armadas com o propósito de impor, pela força, sua vontade ao oponente (CLAUSEWITZ, 2010). 23 o jus ad bellum9, direito de deflagrar a guerra, embasado no entendimento de que esta era um modo permitido de conduta nas relações internacionais (GARCIA, 2004, p. 48). Nos séculos XVII e XVIII também merecem menção Samuel von Pufendorf (1632-1694), que defendia as vantagens da paz e o banimento de métodos “não civilizados” de guerra, e Emer de Vattel (1714-1767), que determinou normas e impedimentos morais para a condução da guerra (MIGUEL, 2010, p. 4). Posteriormente, os fundamentos da teoria da guerra justa são manifestados no Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), composto pelas Convenções de Haia e Genebra, que serão abordadas mais adiante. A concepção de intervenção neste período estava concentrada na ideia de “estrangeiros intervindo em um determinado território, com o objetivo de ajudar uma dada população civil a ter suas necessidades básicas supridas” (GIANNINI, 2008, p. 137), isto é, supostamente centrava-se na proteção dos civis. Percebe-se, assim, que precedentemente ao surgimento de um sistema internacional, constituído por instituições responsáveis pela manutenção da paz e da ordem internacionais, e pela proteção dos DH, como a ONU, criada em 1945, a noção de intervenção já tinha se delineado substancialmente (BIERRENBACH, 2011, p. 62). Anteriormente à contextualização do debate em torno da intervenção humanitária, é necessário enfatizar o conceito de “intervenção”, definição polêmica, por apresentar amplas opções de manifestação. Alguns consideram que qualquer método de pressão aplicado a um Estado seria considerado intervenção, como, por exemplo, pressões diplomáticas, ao passo que outros acreditam que seria qualquer ingerência não consensual em assuntos internos, havendo ainda quem considere qualquer tipo de ação coercitiva (ICISS, 2001, p. 8). Além do mais, “o termo intervenção tem uma conotação negativa, uma vez que pode aludir ao uso da força, no caso de uma operação militar, mas em todos os casos ela impacta diretamente na soberania do Estado que sofre a intervenção” (GIANNINI, 2008, p. 139). 9 O jus ad bellum integra uma apreciação bifronte do DI sobre a relação bélica internacional, na qual esta abarca “procedimentos à luz do direito sobre como entrar e sair da guerra” enquanto o jus in bello abrange o “comportamento dos envolvidos em relação às pessoas e bens por ela afetados” (GARCIA, 2004, p. 50). 24 Quanto à definição de intervenção humanitária, tema central de nosso trabalho, segundo Martha Finnemore (2003), O termo ‘intervenção humanitária’, por exemplo, evoluiu ao longo do tempo, concentrando-se primeiro na ação militar para resgatar os próprios cidadãos em outros estados, depois expandindo-se para incluir a proteção dos cidadãos de outros estados nesses estados por meios militares, e agora está sendo eclipsado completamente no discurso político por falar em ‘respostas a complexas emergências humanitárias’. (FINNEMORE, 2003, p. 10-11, tradução nossa). Desta forma, a autora destaca a expansão do escopo de indivíduos protegidos, assim como o requisito de ação militar na caracterização da intervenção humanitária. Analogamente, Juliana Bigatão (2009, p. 88) enfatiza a proteção dos DH ao definir este ato humanitário como ações, inclusive com a utilização de força coercitiva militar, cujo intuito é prevenir ou acabar com violações dos DH, mesmo na ausência do consentimento do Estado receptor da intervenção. Para fins de conceitualização, utilizaremos a seguinte definição de intervenção humanitária: [...] é a ameaça ou uso da força através das fronteiras de um Estado por outro Estado (ou grupo de Estados) destinado a impedir ou pôr fim a violações dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos que não sejam seus próprios cidadãos, sem a permissão do Estado cujo território é sujeito da intervenção. (HOLZGREFE, 2003, p. 18, tradução nossa)10. Vale destacar que no século XIX os Estados estipulavam, como fundamento das intervenções e da utilização da força, fatores humanitários e reflexões religiosas. Nesta direção, “noções sobre caridade cristã apoiaram impulsos humanitários gerais, mas identificações religiosas específicas tiveram o efeito de privilegiar certas pessoas sobre os outros. Neste caso, os cristãos eram privilegiados sobre muçulmanos” (FINNEMORE, 2003, p. 60, tradução nossa). Sendo assim, neste período, matar cristãos era considerado um desastre humanitário, enquanto matar muçulmanos não tinha relevância (FINNEMORE, 2003, p. 59). Adjacente a estes entendimentos, é possível identificar uma variedade 10 Ao utilizarmos essa definição, desconsidera-se as intervenções sem o uso da força, como por exemplo, sanções econômicas e diplomáticas impostas ao Estado e as intervenções destinadas à proteção dos nacionais do próprio país. Essas intervenções são igualmente importantes, porém, o debate central da análise em questão se concentra nos casos em que o uso da força é utilizado para proteger cidadãos em outros Estados mesmo sem o consentimento deste. 25 de justificativas possíveis para as intervenções humanitárias: aspectos religiosos, interesses políticos, valores morais, jurídicos e humanitários, os quais variam de acordo com o contexto. No livro intitulado The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force de Martha Finnemore (2003), a autora defende que o entendimento das intervenções humanitárias não é viável sem a consideração das mudanças verificadas no contexto normativo internacional, entre o século XIX e o final do século XX. Ela destaca três significativas transformações: 1) a concepção de quem é humano, e consequentemente é digno de proteção, sofreu uma expansão caracterizando um alargamento, ou melhor, a universalização da definição de “humanidade”, baseada na igualdade humana; 2) o modo de intervenção mudou e se tornou multilateral; e 3) os objetivos militares, e a definição de “sucesso” se alteraram também (FINNEMORE, 2003, p. 53-54). Estas alterações, não só afetaram o cenário normativo das intervenções, como também modificaram todas as relações da sociedade internacional. Ademais, segundo Kai Michael Kenkel (2012), paralelamente a universalização das populações que são abrangidas pelas intervenções humanitárias, desenvolveu-se a codificação das bases para a intervenção, com o alicerce nos regimes de direitos humanos e de ação humanitária, estipulados por organizações como a ONU e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)11 (KENKEL, 2012, p. 21). Desde o surgimento da teoria da guerra justa até a promulgação da Carta da ONU em 1945, documento de fundação da organização, o cenário mundial experimentou diversas ordens internacionais fragmentadas pelos reflexos dos grandes conflitos mundiais, mas sempre com o intuito de estruturar as condições do uso da força nas relações interestatais. Por conseguinte, no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), houve uma nova recomposição da ordem internacional, a qual, sob o temor de um retorno às atrocidades ocorridas durante a guerra, organizou-se de forma a reconsiderar o sistema de segurança e limitar o emprego da força pelo direito (SOUZA, 2016, p. 16 e 20). 11“O Comitê Internacional da Cruz Vermelha é uma organização imparcial, neutra e independente, cuja missão, exclusivamente humanitária, é proteger a vida e a dignidade das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência, e prestar assistência a elas”. Essa entidade foi fundada em 1863, e trabalha em todo o mundo buscando medidas em resposta a emergências. Seu mandato tem como base as Convenções de Genebra de 1949, e empenha-se no respeito ao DIH. (ICRC, [2020]). 26 Nessa conjuntura, foram criadas diversas instituições, organizações supranacionais e regimes, a fim de estabelecer um ambiente de paz e segurança através de meios e práticas coletivas. A principal expressão deste arranjo foi a criação da ONU, que no item 4, do Artigo 2º da sua Carta12, estabeleceu que os Estados-membros deveriam se abster quanto à utilização da força13 em suas relações internacionais, e permitir que esta instituição resolvesse as possíveis controvérsias entre eles, especificamente sob a autorização do CSNU, órgão deliberativo e tomador de decisões sobre a manutenção da paz e da segurança internacional (ONU, 1945, art. 24). Diante disto, no plano jurídico normativo, determinou-se a proibição do recurso à força aos Estados individualmente na comunidade internacional contemporânea (SWINARSKI, 1996, p. 17), tornando a guerra um ato ilegal (contrário ao direito) nas relações internacionais, e instituindo a solução pacífica das controvérsias internacionais como a principal diretriz de ação (GARCIA, 2004, p. 58- 59). A Carta de São Francisco ainda incluiu um destaque aos DH no item 3 do Artigo 1º, e acrescentou o princípio da não intervenção aos seus pilares no item 7 do Artigo 2º (ONU, 1945, art. 2), noções estas conflitantes no debate das intervenções humanitárias. Outro reflexo desse quadro foi a evolução dos DH na qualidade de valores universais, caracterizada pelo desenvolvimento de novas e mais fortes normas e mecanismos de proteção fundamentados em marcos, como a Declaração Universal dos DH14 (1948); as quatro Convenções de Genebra15 e os dois Protocolos Adicionais sobre o DICA; a Convenção para Prevenção e Sanção do Crime de Genocídio (1948); os dois Pactos Internacionais (1966) dos Direitos Civis e Políticos 12 “A Carta da Organização tem como propósito mais elevado substituir a paz, baseada em equilíbrio de forças individuais, por outra fundada na superioridade de uma força coletiva, expressão de um poder comum” (GARCIA, 2004, p. 58). 13 “Até então, era permitido a todo e qualquer país alternar, em relação a outros países, do estado de paz ao estado de guerra. Passou-se de uma forma de pensar à outra, da guerra à paz, conforme as prescrições do Direito Internacional” (GARCIA, 2004, p. 58). 14 A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma síntese jurídica dos direitos humanos que “define e fixa o elenco dos direitos e liberdades fundamentais a serem garantidos”, apesar de não apresentar força jurídica obrigatória e vinculante (PIOVESAN, 1996, p. 177). 15 As quatro Convenções de Genebra tratam respectivamente sobre: a condição de proteção dos feridos, doentes e avariados nas forças armadas durante a guerra terrestre; a condição de proteção dos feridos, doentes e avariados nas forças armadas durante a guerra marítima; o tratamento de prisioneiros de guerra, e a proteção de civis em tempos de guerra (CICV, 2010). 27 (PIDCP) e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); e o Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional (TPI)16em 1998, os quais, conjuntamente, estruturam o campo do Direito Internacional dos DH (DIDH). A universalização da aplicabilidade dos DH, vinculada à expansão da definição de “humanidade”, identificada por Martha Finnemore, adquiriu destaque nos debates sobre as justificativas das intervenções nessa época. Além disto, esses documentos integrantes do DIDH, por apresentarem caráter legal, tornaram-se diretrizes universais para ação estatal, acrescentando que [...] um dos mais importantes efeitos de longo prazo desses documentos, em termos normativos, é o seu foco na situação legal do indivíduo no Direito Internacional, que exerceu influência fundamental sobre o limite e a base para a intervenção, assim como serviu de alicerce para relevantes conceitos políticos subsequentes, como a responsibility to protect (R2P). (KENKEL, 2012, p. 25, tradução nossa). Segundo Finnemore (2003, p. 84), a amplificação da utilização destas “estruturas racionais de autoridade legal”, concomitantemente à multiplicação das organizações formais como diretivas para o comportamento estatal, não é um fenômeno que afeta somente o escopo das intervenções, mas sim um processo generalizado, salientando assim o papel elementar das Organizações Internacionais (OI) no desenvolvimento e na propagação de normas. No contexto pós-Guerra Fria17, estruturou-se uma nova ordem mundial constituída por inéditos episódios que, por sua vez, provocaram alterações nas questões relativas à segurança internacional, levando ao surgimento de um novo conceito de segurança, a fim de preencher um vazio normativo, no qual os discursos e práticas, baseados na concepção tradicional de segurança, não eram mais satisfatórios (MCDONALD, 2002, p. 277). Sendo assim, os estudos de segurança – tradicionalmente centrados no Estado, no território, na articulação do poder em termos de capacidades militares, e nas interações estratégicas impostas pelo “dilema de segurança” sob uma abordagem realista – tiveram o seu foco principal deslocado para os problemas que colocam em perigo a vida, a dignidade, a 16 O TPI é o primeiro tribunal criminal internacional permanente do mundo, e investiga e julga indivíduos acusados dos mais graves crimes como crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão (ICC, [2020]). 17A Guerra Fria é caracterizada pelo confronto entre os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética/URSS, socialista, formando, desta forma, um mundo dividido entre dois blocos, isto é, um cenário de bipolaridade. 28 liberdade e o bem-estar das pessoas em seu dia a dia (BUZAN e HANSEN, 2012). Deste modo, o indivíduo passa a ser o objeto de referência central dos estudos de segurança, o que define o conceito de segurança humana18desenvolvido paralelamente ao princípio da R2P (BIERRENBACH, 2011, p. 125) A expressão “Segurança Humana” surge, em 1994, no âmbito da agenda política de desenvolvimento, no texto do Relatório de Desenvolvimento Humano, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), tendo duas componentes na sua definição: primeiramente, a "segurança contra ameaças crônicas, tais como a fome, a doença e a repressão" e, segundamente a "proteção de perturbações súbitas e prejudiciais aos padrões de vida diária" (UNDP, 1994, p. 23, tradução nossa)19. Os promotores da segurança humana ainda não conseguiram chegar a uma definição oficial e consensual (SUHRKE, 1999, p. 269), o que, segundo McDonald (2002), se deve à elasticidade do conceito que possibilita a inclusão de diversas ameaças e vulnerabilidades impostas pelas mais diferentes formas de violência direta, estrutural e cultural (GALTUNG, 1969). A grande abrangência do conceito, reflexo da ausência de limites, é propositadamente cultivada a fim de permitir a instrumentalização do conceito pelos Estados e OI, de acordo com os seus respectivos interesses (PARIS, 2001). De acordo com a abordagem da segurança humana como discurso, apresentada por McDonald, percebe-se que os Estados utilizam este discurso como forma de justificar atitudes imperialistas, numa tentativa de interferir nos assuntos internos de países descolonizados e impor valores ocidentais (COLLINS, 2010), melhor dizendo, justificar o intervencionismo global. As causas dos conflitos que afetam a segurança internacional deixaram de ser baseadas em ameaças militares, e passaram a incluir questões que afetam a segurança do indivíduo. Este novo entendimento passou a servir de base para a 18 Esse conceito se baseia na noção de que as experiências diárias de insegurança dos indivíduos, além das questões estatais, também afetam a ordem internacional, o que chama a atenção para a necessidade de levar em consideração o risco das seguintes ameaças: a pobreza extrema, os deslocamentos internos, as migrações forçadas, a criminalidade organizada, as epidemias, a fome, os desastres ambientais, bem como a repressão e os abusos aos DH perpetrados, muitas vezes, pelos próprios Estados. Logo, as pessoas que são vítimas da violência política perpetuada pelas autoridades do Estado, podem sofrer insegurança, assim como aquelas ameaçadas pelos conflitos entre Estados (COLLINS, 2010). 19O relatório propõe um conceito abrangente de segurança humana que se desdobra em sete categorias: segurança econômica, segurança alimentar, segurança da saúde, segurança ambiental, segurança pessoal, segurança comunitária e segurança política. 29 ação internacional, refletindo no crescente reconhecimento mundial de que a segurança humana20, incluindo a dignidade humana, os DH e as liberdades individuais devem ser, juntos, um dos propósitos centrais das políticas estatais e das instituições internacionais (ICISS, 2001, p. 6). Como desdobramento, reforça- se a preocupação comum, tanto do Direito Internacional Humanitário (DIH), quanto dos DH com respeito à dignidade humana (SWINARSKI, 1996, p. 24). O DIH, também conhecido como Direito da Guerra ou Direito dos Conflitos Armados, conforme conceituado por Christophe Swinarski: [...] é o conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não- internacionais. E que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito. (SWINARSKI, 1996, p. 18). Esse ramo do Direito Internacional Público (DIP) a princípio abrangia o Direito da Guerra, isto é, o denominado jus in bello – que regulamenta o que é permitido e o que é proibido na guerra, sendo composto, por sua vez, pelo Direito de Genebra, Direito de Haia e Direito de Nova York21 –, e o Direito à Guerra, denominado jus ad bellum, que regulamentava as condições autorizadas aos Estados a empregar o uso da força (SWINARSKI, 2016, p. 36). Entretanto, o Direito à Guerra, jus ad bellum, desapareceu com a proibição do recurso à força pela Carta de São Francisco, restando somente o jus in bello o qual tinha como objetivo “humanizar” a 20 Segundo Collins (2010), os conceitos são criados para atender um propósito, ou seja, são ferramentas utilizadas para alcançar um objetivo, sendo o da segurança humana: a definição de padrões normativos; mas pode-se destacar ainda o enfoque a questões como: a violência política no interior dos Estados, os obstáculos ao desenvolvimento humano, a relação entre desenvolvimento e conflito, o crescente número de ameaças transnacionais, a agenda normativa humanitária e até mesmo os interesses da realpolitik. Logo, este conceito procura explorar os dividendos da paz trazidos pelo fim da competição bipolar da Guerra Fria, e tenta sensibilizar os decisores e formuladores de políticas públicas para a necessidade de redirecionar os recursos, anteriormente concentrados nos gastos militares, para a agenda de desenvolvimento. 21O Direito de Genebra zela pela proteção internacional das vítimas de conflitos armados, ao passo que o Direito de Haia pela limitação dos meios e dos métodos de combate (SWINARSKI, 1996). “Eles regem a conduta da guerra; determinam os espaços, os bens e as pessoas protegidas; estabelecem os meios de combate autorizados; prescrevem as sanções aplicáveis às eventuais violações de tais regras” (GARCIA, 2004, p. 50). Já o Direito de Nova York ou Direito Misto é o conjunto de normas originadas no âmbito da ONU que abarcam aspectos de Haia e Genebra em forma de complementaridade e especificação desses aspectos, constituindo-se em um sistema com legislação completa aplicável às situações de conflito armado (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2011, pp. 15-16). 30 guerra. Assim, após a I Conferência de Direitos Humanos22 convocada pela ONU em Teerã em 1968, o DIH23 ficou definido como "Direitos Humanos em período de conflito armado" caracterizando um regime geral do comportamento internacional em situação de guerra (SWINARSKI, 2016, p. 35-45). Quanto à estruturação da nova ordem internacional, na qual o Estado-nação deixou de ser a única unidade de referência, e os indivíduos se tornaram objeto central da segurança, é preciso destacar a evolução ocorrida no DI. O ordenamento tradicional do DI, marcado por quatro traços característicos fundamentais – a interestatalidade, a territorialidade, o bilateralismo e o relativismo – alterou-se para um DI “de regulação”, o qual delimita os comportamentos dos Estados em prol da satisfação de interesses comuns da comunidade internacional (PUREZA, 2002, p. 22-24). Esta mudança é reflexo da transformação da ordem internacional marcada pela pluralidade originária do sistema interestatal de Vestefália, e desta maneira, baseada na reciprocidade, neutralidade e na soberania territorial, para uma configuração definida pela cooperação promovida pelo sistema de segurança coletiva24 da ONU, e alicerçada na equidade, legitimidade e comunidade (PUREZA, 2002, p. 25). Portanto, o DI Tradicional converteu-se em DI Contemporâneo, ou Direito da Humanidade, uma vez que houve a institucionalização dos interesses comuns não só de Estados, mas também das pessoas como seres humanos reconhecidos como sujeitos do DIP (BIERRENBACH, 2011, p. 19), além do princípio da proteção internacional dos DH ter se tornado o princípio constitucional do DI, assim como era o princípio da soberania territorial dos Estados no DI Tradicional. Esta concepção do Direito da Humanidade modificou e acrescentou certos conceitos e entendimentos no cenário internacional, como, por exemplo, a noção 22Participaram desta conferência, países recém-descolonizados, os quais sustentaram “a ideia da universalidade dos direitos, mediante, sobretudo, a ênfase na individualidade destes” (PINTO, 2004, p. 286). 23 “A finalidade primordial do direito internacional humanitário é tentar fazer ouvir a voz da razão em situações em que as armas obscurecem a consciência dos homens, e lembrar-lhes de que um ser humano, inclusive inimigo, continua sendo uma pessoa digna de respeito e de compaixão” (SWINARSKI, 2016, p. 44). 24O sistema de segurança coletiva se refere ao princípio de que todos os países membros devem se unir em ação comum, para conter um agressor ou ameaça à segurança de qualquer um desses Estados, conforme previsto no Artigo 11 da Convenção da Liga das Nações, instituição multilateral de alcance universal precursora da ONU (PINTO, 2004, p. 291). 31 do regime da responsabilidade internacional e a ideia de ordem pública mundial. Concomitantemente, no mesmo contexto pós-Guerra Fria, também se verificou uma mudança da natureza e da percepção das ameaças, as quais provocaram um alargamento da agenda de segurança internacional ao incluir temas como o meio ambiente, as migrações internacionais, o terrorismo, o narcotráfico, os armamentos nucleares, a globalização, o subdesenvolvimento, a explosão demográfica, a saúde pública, as questões étnico-religiosas, a pobreza, os DH, entre outros (SOUZA, 2016, p. 14; GIANNINI, 2008, p. 118; PINTO, 2004, p. 288). De acordo com Clóvis Brigagão (1999), [...] temos hoje novos centros, novos atores, novas agendas e novos parâmetros que desafiam a velha concepção, suas estruturas e mecanismos da segurança internacional. Ainda que conflitos militares sejam parte da aventura humana, novos aspectos econômicos, tecnológicos, ambientais e sociais da segurança adquirem, cada vez mais, um maior peso e significado nos negócios do mundo. (BRIGAGÃO, 1999, p. 122 apud GARCIA, 2004, p. 77). Além do mais, como resultado do fim da Guerra Fria, houve, não só uma ênfase na democratização e nos DH, mas também um aumento dos conflitos internos, os quais ocasionaram uma maior vulnerabilidade dos civis opondo etnias, religiões e culturas, com reverberações políticas e humanitárias (ICISS, 2001, p. 4). De forma geral, os conflitos internacionais passaram a ser intraestatais, e o número de baixas de civis cresceu, já que se identificaram padrões de violência extrema direcionados aos indivíduos, evidenciando um momento assinalado por crises humanitárias25. Na década de 1990, acontecimentos históricos de atrocidades em massa, como a situação humanitária na Somália em 199326 e os genocídios de Ruanda em 25 De acordo com Mary Kaldor, esses novos conflitos são caracterizados como “novas guerras”, termo desenvolvido pela autora com o objetivo de distingui-los dos confrontos típicos da Guerra Fria (KALDOR, 2012). 26 Quanto à guerra civil na Somália, país falido da África, o CSNU, por meio da Resolução nº 794, de 03 de dezembro de 1992 (S/RES/794-1992), instaura a Operação das Nações Unidas na Somália (UNOSOM), com base no Capítulo VII, e composta por uma força multinacional de proteção às operações humanitárias denominada UNITAF (Força Tarefa Unificada). 32 199427, na Bósnia em 199528 e no Kosovo em 199929, levaram ao aprofundamento do debate sobre as intervenções humanitárias, bem como à multiplicação expressiva das operações de paz durante este período (DIGOLIN, 2018, p. 96). Segundo Simone Martins Rodrigues Pinto (2004, p. 295), “o contexto mundial que caracterizou a década de 1990 – e que provavelmente permanecerá inalterado no novo século – é marcado por crises em que as operações de manutenção da paz se mostram ineficientes”. Dentre esses casos, o conflito armado no Kosovo em 1999 merece destaque, pois o CSNU não aprovou uma intervenção militar que pudesse evitar a limpeza étnica dos albaneses kosovares por parte do governo da antiga Iugoslávia, devido ao veto da Rússia (EVANS, 2008, p. 285; PINTO, 2004, p. 297). Isto, por sua vez, levou à ação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)30, através de uma intervenção direta internacional, incluindo um bombardeio aéreo sem o amparo do CSNU. O caso do Kosovo, devido à inação do CSNU, à dificuldade em se chegar a um consenso quanto à intervenção, e ao receio de um transbordamento do conflito na Europa Central, impulsionou a tentativa de encontrar uma solução para o que muitos observadores apontavam como uma “falha” da comunidade internacional: responder a eventos de exacerbada violação aos DH e do DIH (EVANS, 2008, p. 285), que se realizam em contexto de conflitos armados (BIERRENBACH, 2011, p. 202). Essa suposta “falha” relaciona-se com a seletividade das ações e operações de paz autorizadas pelo CSNU, na perspectiva de que as intervenções são 27 O genocídio de Ruanda, caracterizado como um dos piores atos de violência organizada do século XX, teve, por meio da Resolução do CSNU nº 929, de 22 de junho de 1994 (S/RES/929-1994), autorizada a ação coercitiva temporária, com base no Capítulo VII, para proteger os deslocados, refugiados e civis em risco. Porém, a demora do CSNU, em autorizar uma intervenção robusta, ocasionou a morte de cerca de oitocentas mil pessoas (VIOTTI, 2004, p. 111). 28 Na guerra da Bósnia, a intervenção se deu mediante a Resolução do CSNU nº 819, de 16 de abril de 1993 (S/RES/819-1993), e nº824, de 06 de maio de 1993 (S/RES/824-1993). Esta operação foi marcada pelo Massacre de Srebenica (1995), resultado da inação dos capacetes azuis, os quais não detinham mandato para proteger civis no campo de refugiados, alvo de ataques armados CARVALHO, LIMA e OSHIMA, 2019, pp. 36-37). 29 No Kosovo, a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK) foi designada pela Resolução do CSNU nº1244, de 10 de junho de 1999 (S/RES/1244 -1999), e rotulada como “ilegal, porém legítima” uma vez que foi conduzida à margem da ONU sob o comando da OTAN (CARVALHO, LIMA e OSHIMA, 2019, pp. 36-37). 30 Vale destacar que os ataques militares aéreos da OTAN não foram autorizados pela ONU, caracterizando assim a primeira vez que esta organização utilizou a sua força militar sem a autorização do CSNU. 33 realizadas de acordo com os interesses dos seus Estados-membros, e não em prol dos indivíduos em países estrangeiros afastados. De tal maneira, as respostas e o envio de tropas demonstraram-se insuficientes e morosas31, nos casos da Somália e de Ruanda. Esses eventos foram responsáveis pela criação de um tipo de pressão da sociedade civil quanto às reações às atrocidades em massa. Simultaneamente, o impacto da globalização e da tecnologia possibilitou uma maior consciência e visibilidade das violações dos DH por parte da opinião pública, através dos meios de comunicação em massa (ICISS, 2001, p. 7), tal como o chamado “efeito CNN”, que também colaborou para a formação de uma pressão da opinião pública mundial quanto às respostas às transgressões (BIGATÃO, 2009, p. 85). Além disto, as organizações não governamentais (ONGs) foram relevantes quanto ao debate sobre os DH nos fóruns internacionais, assim como estiveram presentes nestes acontecimentos caracterizados pela desumanidade. Consequentemente, o fluxo de informações veiculadas pelas ONGs humanitárias, e sua luta pelo respeito aos direitos humanos, seja contra Estado ou contra qualquer outro agente violador, tem contribuído grandemente para a formação de um consenso em torno da necessidade de garantir a proteção aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos os indivíduos do planeta. (PINTO, 2004, p. 288). Elucidando isso, observa-se que as ONGs dos DH e a opinião pública mundial inclinam-se a defender o ‘direito de ingerência’, e invocam a indispensabilidade da participação da comunidade internacional em relação às catástrofes humanitárias em prol da diminuição do sofrimento humano resultante destas (GIANNINI, 2008, p. 112). A globalização e a grande interdependência econômica, reflexas da difusão da economia de mercado global entre os países, foram gerando uma tendência para a cooperação multilateral, inclusive em relação às resoluções de abusos dos DH. De acordo com o estudo de Finnemore já mencionado, o procedimento das intervenções humanitárias se alterou, uma vez que o modo unilateral praticamente se extinguiu na segunda metade do século XX, e a opção multilateral se tornou fator 31 Para mais informações, ver em VIOTTI, A. R. D. A. Ações Humanitárias pelo Conselho de Segurança: Entre a Cruz Vermelha e Clausewitz. Instituto Rio Branco Fundação Alexandre de Gusmão. Brasília, p. 166. 2004. 34 de legitimação destas, além de caracterizá-las como mais complexas e institucionalizadas (FINNEMORE, 2003, p. 65 e 73). Partindo disso, é possível perceber que o interesse unilateral dos Estados não se enquadra mais no quadro de valores estruturantes do cenário comunitário, comparando-se com outros períodos, porque presentemente as relações internacionais compreendem uma amplitude de atores exercendo importantes papéis, e obtendo reconhecimento protetivo universal (SOUZA, 2016, p. 82). Desse modo, a segurança humana foi se consolidando como algo indissolúvel, apoiada no discernimento de que os países se encontram conectados, e qualquer conflito interno afeta a comunidade internacional de uma forma mais abrangente (ICISS, 2001, p. 5). Assim, questões que anteriormente eram do âmbito exclusivo dos governos nacionais, se tornaram parte da agenda de segurança internacional (GIANNINI, 2008, p. 111). Neste sentido, surgiram novas circunstâncias, novos atores, novos Estados, novos assuntos, tal como novas expectativas e demandas quanto ao comportamento dos Estados e de outros atores sobre a matéria de proteção humana. Isto tornou possível um julgamento sob a jurisdição universal em relação às violações de direitos, quando os sistemas nacionais não forem capazes de exercer a justiça, além da demanda por novas instituições internacionais e ONGs, ou ainda uma reforma na estrutura e composição da ONU, principalmente no CSNU, tão advogada por países do Sul Global, a fim de monitorar e promover a implementação de todas essas garantias, o que anteriormente era função exercida exclusivamente pelos Estados. Em meio a esse contexto, tornou-se cada vez mais claro que os mandatos e maestrias das normas internacionais não se alinharam às necessidades e expectativas modernas (ICISS, 2001, p. 3, tradução nossa). Portanto, a partir da nova ordem internacional assente no sistema de segurança coletiva, e a evolução do DI e dos DH, resultando no nomeado Direito da Humanidade, criou-se uma dimensão no contexto internacional em que há a oportunidade e a capacidade de ação comum em relação às questões de proteção humana. Segundo Simone Rodrigues Pinto (2004): A percepção internacional, de que crises humanitárias representam ameaça à paz e à segurança internacional, gerou uma série de transformações conceituais e práticas nas relações internacionais. Estas transformações foram 35 possíveis porque por um lado, as normas passaram a valorizar os direitos humanos e a flexibilizar o dever de não- intervenção, e por outro lado, as demandas geradas pela emergência de conflitos internos prolongados, genocídios, limpeza étnica e crescimento do número de refugiados criaram uma urgência em agir. A convergência destes dois fatores criou o ambiente propício para que a intervenção humanitária ganhasse a agenda internacional do novo milênio. (PINTO, 2004, p. 281). Com o fim da bipolaridade e os episódios de atrocidades em massa contra civis, gerando crises humanitárias, observou-se um maior debate sobre a evolução das normas de intervenção humanitária (KENKEL, 2012, p. 29). O debate mencionado se centrou na “questão de quando, e se é apropriado para os Estados tomarem medidas coercitivas ─ em especial militares ─ contra outro Estado, com a finalidade de proteger as pessoas em risco nesse outro Estado” (ICISS, 2001, p. VII, tradução nossa). Esta polêmica situa-se longe de alcançar um consenso, visto que se constataram controvérsias, tanto na ausência quanto na efetivação das intervenções militares. Outra consequência do quadro pós-Guerra Fria foi de certa forma o descongelamento do CSNU, paralisado durante o período da ordem bipolar, resultado do impedimento de convergência32 entre os Estados-membros permanentes do CSNU absorvidos, por sua vez, pelo sistema de veto deste órgão, e pela falta de interesse político (BIERRENBACH, 2011, p. 14; GARCIA, 2004, p. 71). Simultaneamente, verificou-se também a reanimação em torno do debate sobre a produção e implementação de normas internacionais, e das atividades das OI (HERZ, 1997, p. 2). É nesse cenário que surgiu o princípio da R2P, nos anos de 1990, durante a discussão central entre os defensores da intervenção humanitária, baseado na noção de que os Estados teriam o direito de intervir militarmente em outros Estados, mesmo sem o consentimento destes, para a defesa dos indivíduos, e os apoiadores das prerrogativas tradicionais da soberania estatal, contrários à ingerência em assuntos internos de outros Estados (EVANS, 2008, p. 285). 32“Oportuno recordar, contudo, que no período da Guerra Fria tais faculdades não puderam ser postas em prática de modo completo. Respondem por isso, de um lado, o poder de veto dos cinco membros permanentes; de outro, a falta de interesse político em iniciar ações de força e assumir suas consequências” (GARCIA, 2004, p. 71). 36 Essa contenda concentrou-se, principalmente, em torno da legalidade e legitimidade da intervenção humanitária, ou seja, das ações comuns dentro do aparato institucional de segurança coletiva. A carta da ONU não é explícita quanto à proteção dos DH, e demonstra uma aparente contradição: se por um lado, o item 3, do 1º Artigo da Carta da ONU, define como um dos seus propósitos “promover e incentivar o respeito aos direitos humanos” (ONU, 1945, art. 1), por outro lado, como esta proteção pode ser operacionalizada se, segundo o item 7, do 2º Artigo da Carta, não se pode intervir “em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado” (ONU, 1945, art. 2)? Quanto à esta questão, os mantenedores do “direito de intervir”, em casos de violações de DH (ONU, 2004, p. 65), acreditam no potencial triunfo dos DH sob a soberania estatal, em razão da expansão dos DH como valores universais, ou entendem a soberania como condicionada à capacidade do Estado em proteger os cidadãos. Por este ângulo, os defensores do direito legal à intervenção, em geral, utilizam como fundamento da sua argumentação os três aspectos subsequentes: [...] a) A proibição da guerra constante no art. 2º, da Carta das Nações Unidas, perdeu sua força jurídica ao ser repetidamente violada por Estados na prática: A constante transgressão do aludido dispositivo, então, teria impossibilitado sua operacionalização prática; b) A modificação da esfera normativa da política mundial se resume ao recuo da regra de não intervenção, vis-à-vis o progresso do humanitarismo: Alega-se que as mudanças normativas, como a regulamentação de ilícitos internacionais, tomaram impulso com o avanço na prática do intervencionismo; c) Os conceitos de soberania e intervenção são, de fato, complementares, e não contraditórios: ou seja, a soberania é dependente de um governo que respeita a obrigação de proteção do seu povo. A incolumidade legal do Estado, assim, deixaria de existir se este Estado estiver envolvido na disseminação de abusos contra os direitos de seus cidadãos. (SOUZA, 2016, p. 121). Em contrapartida, os apoiadores da soberania absoluta tradicional, chamada por Stephen Krasner (2004) de soberania westfaliana, baseada no princípio da autonomia e de não intervenção, declaram que as violações aos DH deveriam ser resolvidas internamente, sem a ingerência de outros países. Aliás, eles alegam que certos Estados dominantes do sistema internacional fazem o uso da retórica humanitária e dos DH para o exercício de seu interesse estatal. A estruturação da soberania desenvolvida por Stephen Krasner tem quatro vertentes, sendo elas: a soberania legal internacional, a soberania westfaliana, a 37 soberania doméstica e a soberania interdependente que contribui para o argumento favorável às intervenções humanitárias, ao passo que se o Estado não é capaz de manter um desses elementos, justifica-se a intervenção. A soberania legal internacional refere-se ao reconhecimento mútuo jurídico de entidades territoriais independentes. a qual está conectada à noção de igualdade legal entre os Estados. A soberania westfaliana vincula-se com a concepção tradicional de soberania ligada ao princípio de não intervenção, ao passo que a influência ou determinação, por atores externos, sobre os alicerces da autoridade interna, configura a sua violação. Já a soberania doméstica relaciona-se com a capacidade do Estado para gerir as estruturas domésticas de autoridade, as quais controlam as populações e o território. Por último, a soberania interdependente, que envolve a capacidade de controle das autoridades públicas sobre o movimento de informações, ideias, bens, pessoas, poluentes ou capitais, através das fronteiras, imprescindível no mundo globalizado. Vale destacar que esses tipos de soberanias podem não ser propriedades concomitantes num mesmo Estado, pois o exercício de uma das soberanias pode prejudicar a outra e, desta maneira, nem todos os Estados terão todas as vertentes da soberania. A inexistência de uma delas não resulta logicamente na degradação das outras, embora estejam, na prática, correlacionadas. Por exemplo, um Estado pode ter a sua soberania reconhecida internacionalmente, mas estar com as suas estruturas de autoridade doméstica entregues a controle externo, assim como não ter controle dos movimentos transfronteiriços, e ser autônomo (KRASNER, 2004, pp. 85-87 e 118; KRASNER, 1999, pp. 4-25). No contexto da intervenção na Líbia a qual descreveremos no terceiro capítulo, observa-se que a soberania interdependente e a doméstica foram afetadas, todavia, a soberania legal internacional se conservou. Em virtude do conflito identificado no debate das intervenções humanitárias entre os DH e o princípio da não intervenção, constatou-se que durante a metade dos anos 1990 não existia um consenso sobre a justificação da violação da soberania de um Estado, em casos em que o próprio Estado provocasse a insegurança de seus cidadãos, ou fosse incapaz de protegê-los (STUENKEL, 2014, p. 6). Mas este impasse gerado foi quebrado quando, em 2001, na ICISS, surgiu 38 oficialmente o conceito da “responsabilidade de proteger” /R2P (EVANS, 2008, p. 285). Esta ideia representou um marco histórico para a discussão sobre a prevenção de atrocidades, e apareceu como um princípio orientador, a fim de auxiliar na desconexão verificada entre os instrumentos estabelecidos pela Carta da ONU para gerenciamento da ordem mundial, e as práticas estatais reais após 56 anos da assinatura deste documento (ICISS, 2001, p. 15). Portanto, a evolução dos DH e dos estudos de segurança, assim como do DI, colaboraram para uma alteração em relação à visão absoluta que se tinha sobre a soberania, predominante desde a concepção do sistema interestatal, levando ao surgimento da noção de soberania responsável (EVANS, 2008, p. 285). De acordo com Finnemore (2003), Essas mudanças de entendimento sobre humanidade e soberania obviamente fazem muito mais do que mudar a intervenção humanitária. Elas alteram amplamente o objetivo da força na política mundial, mudando a maneira como as pessoas pensam sobre os usos legítimos e eficazes da coerção estatal em várias áreas. Afinal, os entendimentos que moldam o propósito social não existem no vácuo. O objetivo social é formado por uma densa rede de entendimentos sociais que são lógica e eticamente inter-relacionados e, pelo menos até certo ponto, se apoiam mutuamente. Assim, as mudanças em uma vertente desta teia tendem a ter amplos efeitos, fazendo com que outros tipos de entendimento se ajustem (FINNEMORE, 2003, p. 67, tradução nossa). Em decorrência dessas transformações nos entendimentos e no contexto normativo internacional elencados nesta seção, as intervenções humanitárias adquiriram a moderna configuração que perdura hoje. Diferentemente da concepção anterior de anormalidade vinculada aos episódios de intervenção (GIANNINI, 2008, p. 112-113), detectou-se a conversão da intervenção humanitária, em parte fundamental no quadro do sistema de segurança internacional (SOUZA, 2016, p. 15). O debate sobre as intervenções humanitárias reúne, portanto, o conflito entre o princípio da não intervenção, a soberania e os DH. Segundo Finnemore (2003), a partir do fim da Guerra Fria, o equilíbrio em meio a esta contenda entre princípios aparenta ter se modificado refletindo na superação das reinvindicações humanitárias sobre as de soberania (FINNEMORE, 2003, p. 79). Para entender com mais apreço como essas mudanças nos 39 entendimentos e no contexto normativo impactam no arranjo da política mundial, apresentar-se-á, em seguida, a dinâmica construtivista das ideias e normas. De acordo com Kenkel (2012, p. 19 e 34), existem duas interpretações distintas quanto ao relacionamento desses três elementos: a não intervenção, a soberania e os DH. A primeira perspectiva se refere à percepção, tanto da igualdade horizontal entre os Estados (fonte da não intervenção e da inviolabilidade das fronteiras), quanto do contrato vertical entre o soberano e o cidadão (fonte das concepções de DH), como elementos integrantes da tensão inerente ao conceito de soberania, gerando uma necessidade de equilíbrio entre ambas. Já a segunda leitura considera a soberania como um elemento externo e horizontal de não intervenção e inviolabilidade das fronteiras. De modo a conciliar o princípio da não intervenção, a soberania e os DH, assim como as diferentes vertentes e concepções quanto ao uso da força para a proteção de civis em casos extremos, elabora-se a R2P. Este princípio direciona-se a superar as disparidades entre a antiga teoria das intervenções humanitárias, denominada teoria da guerra justa, e o DI contemporâneo através do apoio político da comunidade internacional (MARQUES, 2007). Além do mais, conforme Ana Maria Bierrenbach, o conceito seria uma “nova fórmula do direito de intervenção humanitária”, ou melhor, a “nova face do jus ad bellum, ou da guerra justa” ao permitir a intervenção da comunidade internacional em um Estado com o uso da força, a fim de proteger a população deste. Sendo a correspondência entre o DIH e o conceito da R2P equiparada à distinção entre o jus in bello e o jus ad bellum, ou seja, entre os meios e os fins da guerra. (BIERRENBACH, 2011, p. 109-200). Em 2005, na Cúpula Mundial das Nações Unidas, mais de 150 Estados aprovaram, por unanimidade, a adoção do conceito da R2P, o qual teve seu ponto de inflexão na Resolução nº1973, no ano de 2011 – emanada pelo CSNU – que redundou na intervenção na Líbia, primeira intervenção coercitiva justificada sob a luz deste princípio. Não obstante, críticas e contestações seguiram-se após a aplicação da R2P, em casos como o da Líbia e da Costa do Marfim. Apesar da R2P ter se consolidado como princípio do DI Contemporâneo em 2005, há um imenso debate sobre sua implementação, ou seja, a aplicação do princípio e as consequências morais e práticas da intervenção (ZIEGLER, 2016, p. 3). 40 Em meio a esse contexto, o Brasil teve uma posição ativa como empreendedor normativo, ao propor a RwP como forma de resposta aos excessos e falhas ocorridos durante a implementação da Resolução nº1973. A RwP foi citada pelo Brasil pela primeira vez em setembro de 2011, por ocasião da abertura da AGNU, oportunidade em que este evento anual, pela primeira vez na história, foi aberto por uma mulher, a presidenta Dilma Rousseff, e propunha a adoção de um conjunto de princípios e parâmetros para a regulação das missões humanitárias, destacadamente para a implementação da R2P. 2.2 Dinâmica construtivista das ideias, interesses, normas e comportamento Após a exposição do desenvolvimento das normas de intervenção humanitária e a mudança ocorrida nos entendimentos sobre o objetivo de emprego da força na política mundial, além do contexto internacional do surgimento da Responsibility to Protect, abordar-se-á o embasamento teórico para a análise das normas R2P e RwP. Apresentaremos, nesta seção, a dinâmica construtivista das ideias e normas33, assim como o seu relacionamento com os interesses e ações estatais. O estudo das normas nas relações internacionais tem sido debatido desde os anos 1990, mas somente com o aparecimento da pesquisa social construtivista, no final daquela década, é que as normas passaram a ser pauta das pesquisas, apesar destas se restringirem ao seu processo de surgimento e difusão (DEITELHOFF e ZIMMERMANN, 2018, pp. 1-4). Sendo assim, o construtivismo é o principal ramo teórico quando se pretende abordar o estudo das normas internacionais (KROOK e TRUE, 2010, p. 122). Tendo em vista que o propósito desta seção é desenvolver o arcabouço teórico, a partir do qual o restante do trabalho se respaldará, será apresentada uma revisão da literatura de relações internacionais sobre o estudo das normas internacionais, a fim de explicitar o papel das normas sobre o comportamento estatal na política internacional, para compreender assim a função da RwP na estrutura 33 Aqui se refere à norma numa concepção sociológica e construtivista. 41 dinâmica normativa internacional, procurando-se, com isto, entender como mudanças, nos entendimentos e no contexto normativo, abalam a política mundial. No campo de estudos das relações internacionais, o construtivismo ganha relevância na última década do século XX, e acerca deste período, em relação à literatura sobre normas, destacam-se os trabalhos de Kratochwil e Ruggie (1986), Wendt (1987), Nadelmann (1990), Finnemore (1996) e Florini (1996) (DEITELHOFF e ZIMMERMANN, 2018, p. 4). Independentemente de o construtivismo apresentar uma visão crítica às teorias mainstream34 (GUZZINI, 2013, p. 378), ele não é considerado uma inovação, uma vez que se reporta a pensamentos já apresentados por autores como Wittgenstein e Anthony Giddens, além dos entendimentos fundamentais para a Escola Inglesa e os Estudos da Paz. Esta teoria surgiu no contexto de fim da Guerra Fria, em meio aos debates internos que estruturaram a disciplina ao determinar as fronteiras e as suas identidades, caracterizada pela crise do neorrealismo (LAGE, 2007, pp. 102-111). Porém, antes de abordar o construtivismo, é preciso estabelecer algumas definições conceituais que sustentarão a análise. O conceito de normas, por exemplo, pode ser definido como padrões de comportamento apropriado para atores com uma determinada identidade (KATZENSTEIN, 1996, p. 3) que, por sua vez, correspondem às expectativas comportamentais generalizadas temporal, social e materialmente, em um grupo social estabelecido (HABERMAS, 1996, p. 107). Similarmente, segundo Finnemore (1996b, p. 22), as normas são “[...] expectativas compartilhadas sobre o comportamento apropriado mantido por uma comunidade de atores”. Mais especificamente, de acordo com Antje Wiener (2009), as normas internacionais são definidas como ideias refletidas em diversos Estados, e atores globais com diferentes graus de abstração e especificação em relação a valores fundamentais, princípios organizadores ou procedimentos padronizados (WIENER, 2009, pp. 182-184). Dissemelhantemente a esta conceitualização, Finnemore destaca uma diferenciação entre as ideias e as normas, à medida que as ideias [...] podem ser realizadas em particular, as normas são compartilhadas e sociais; elas não são apenas subjetivas, mas intersubjetivas. Ideias podem, ou não, ter implicações 34 Sendo elas o realismo e o liberalismo, e suas vertentes. 42 comportamentais; normas por definição dizem respeito ao comportamento. (FINNEMORE, 1996b, p. 22, tradução nossa). Verifica-se, assim, o importante elo entre as normas e o comportamento, o qual, de certa forma, é mais estreito que o vínculo entre as ideias e as ações. Contudo, para fins desta análise, utilizaremos a definição de normas de Finnemore, como “um conjunto de entendimentos intersubjetivos prontamente aparente para atores que fazem reivindicações comportamentais sobre esses atores” (FINNEMORE, 1994, p. 2, tradução nossa). Utilizando, como base, esta ligação entre norma e comportamento, distinguem-se as normas em inúmeros tipos, sendo as principais: as normas que exigem abstenção de determinados comportamentos por parte dos indivíduos; as que requerem o comprometimento a um definido comportamento, e ainda as que permitem aos indivíduos incorrer em certo comportamento (DEITELHOFF e ZIMMERMANN, 2018, p. 3). Além disto, [...] todos os tipos de normas podem ter várias formas. As normas podem ser de natureza legal, sendo consagradas em tratados e convenções, ou tornando-se parte do direito consuetudinário, como a proibição de tortura, ou podem ser de natureza social, como normas político-morais, geralmente incorporadas em resoluções ou códigos de conduta como a Responsabilidade de Proteger. (DEITELHOFF e ZIMMERMANN, 2018, p. 3, tradução nossa, grifo nosso). Da mesma forma, Denise Garcia institui (2011, pp. 457-458) dois modos de surgimento das normas: por meio de um quadro legal, onde elas são especificadas como um tratado, ou mediante a sua importância e aplicação social em termos do reconhecimento por um grupo social particular (“facticidade social”). Ainda sobre os tipos de normas, conforme citado anteriormente na definição de normas da Wiener (2007b, 2009), a autora também estipula três categorias diferentes de normas: normas fundamentais, princípios organizadores e procedimentos padronizados. As normas fundamentais estão ligadas no nível da política, isto é, são as “normas constitucionais essenciais” usadas com referência às constituições dos Estados-nações, sendo assim situadas em contextos domésticos, como, por exemplo, o Estado de Direito e os DH, ao lado das “normas processuais básicas” usualmente empregadas na teoria das relações 43 internacionais, ou seja, em contextos da política global, como a igualdade soberana e a não intervenção (WIENER, 2007b, p. 6; 2009, pp. 183-184). Os princípios organizadores estruturam o comportamento de indivíduos ou grupos, e evoluem através da elaboração das políticas e dos processos políticos como, ilustrativamente, prestação de contas, responsabilidade, transparência e manutenção da paz (WIENER, 2007b, p. 6; 2009, pp. 184-5). Novamente, se destaca a conexão entre as normas e o comportamento. Os procedimentos padronizados são como regras e prescrições que envolvem conselhos detalhados e articulados para atividades específicas, como diretrizes para processos eleitorais, para ficarmos apenas em uma possibilidade (WIENER, 2007b, p. 6; WIENER, 2009, pp. 184-185). Não obstante, “[...] todas as normas impõem aos seus destinatários obrigações que eles se sentem obrigados a cumprir em vários graus e por várias razões” (SANDHOLTZ e STILES, 2009 apud DEITELHOFF e ZIMMERMANN, 2018, p. 3, tradução nossa). A fim de explicitar o papel das normas na dinâmica da política internacional, mais especificamente da RwP, caso do presente trabalho, escolheu-se a abordagem construtivista, posto que dentre as principais teorias das relações internacionais, o construtivismo é a vertente teórica que mais se atenta com o papel das ideias e normas na expressão do comportamento dos atores. O construtivismo foca na natureza construída da política internacional (FINNEMORE, 1996b, p. 3) e no papel dos valores subjetivos na constituição dos atores e de suas ações, já que eles constituem e são constituídos neste processo, estando marcado pela “mútua constituição entre agentes e estruturas, mundo material e mundo ideacional (e intersubjetivo), e teoria e prática” (LAGE, 2007, p. 112). Essa teoria considera que o sistema internacional tem suas regras elaboradas e reproduzidas mediante as práticas humanas (GUZZINI, 2013, p. 391). Essas regras e normas, orientadoras do comportamento dos atores, são apontadas como intersubjetivas, e não individuais como salienta a teoria da escolha racional35, por serem formadas a partir de crenças compartilhadas baseadas na prática social, e 35 A perspectiva racionalista apoia-se no materialismo, ao considerar o cálculo racional efetuado pelos atores com base num balanço dos benefícios concedidos pelos regimes, ou dos mecanismos de coerção criados por estes. Desta forma, focaliza nos seguintes elementos: coerção, análise de custos e benefícios, e incentivos materiais. (FRANCE, 2017, p. 45). 44 por meio dela reproduzidas (FARREL, 2004, p. 119). Nessa perspectiva, a ação deriva da intencionalidade coletiva de que compartilha o indivíduo. Sob esse prisma, aprecia-se o sistema internacional como um artefato social, ideia já difundida pela Escola Inglesa, bem como pelos Estudos da Paz (GUZZINI, 2013, p. 389). Deste modo, as relações internacionais consistem em relações sociais e não materiais, nas quais as identidades e interesses dos atores são estruturados, e estruturadores, por meio de normas, regras, e instituições intersubjetivas. O mundo social e político que integra o das relações internacionais não seria algo exterior à consciência da humanidade, mas sim uma criação humana de um sistema formado por ideias e normas construídas por indivíduos num certo momento e espaço definidos. Portanto, a realidade é uma construção social que tem como princípio de partida as ideias, e se estas se alteram, consequentemente modifica-se o sistema das relações, tal como as percepções compartilhadas entre os atores. Segundo Stefano Guzzini (2013, p. 380), dois antecedentes à teoria construtivista merecem ser destacados para a sua compreensão: a virada interpretativista e a sociológica das ciências sociais. A virada interpretativista ou hermenêutica da ciência traz a concepção de ação significativa, isto é, uma ideia de ação dotada de sentido, significado, a qual não pode ser considerada sem uma interpretação (WEBER, 1958). Esse conteúdo não se restringe somente ao exame consciente do ator em si no nível da ação, mas engloba também os sentidos atribuídos por outros atores no nível da observação (GUZZINI, 2013, p. 400). A virada sociológica da ciência institui que a ação significativa é um fenômeno social ou intersubjetivo, e destaca o contexto social e cultural no qual as identidades e interesses se formam (GUZZINI, 2013), como relevante para compreensão do comportamento dos atores. Semelhantemente, Antje Wiener (2007) destaca também a influência dos aspectos culturais e da identidade na constituição da comunidade internacional. Numa ênfase da correlação entre o mundo social e a construção social dos significados, além de incluir o conhecimento, entende-se que o cerne estaria no contexto social, pois a ação é influenciada pelos conhecimentos anteriores compartilhados, provenientes de um sistema de significados de uma sociedade. Assim, “nossas interpretações são baseadas em um sistema compartilhado de códigos e símbolos, de linguagens, modos de vida e práticas 45 sociais. O conhecimento da realidade é socialmente construído” (GUZZINI, 2013, p. 398). Transferindo essa compreensão para o nível internacional e as relações estatais, os interesses e o comportamento estatal são entendidos por meio de uma análise da estrutura internacional de significados e valor social (FINNEMORE, 1996b, p. 2). Nesta direção, Finnemore (1996b) destaca que Nós não podemos entender o que os estados querem sem entender a estrutura social do qual eles fazem parte. Estados estão imersos em uma densa rede de relações internacionais e transnacionais que moldam suas percepções do mundo, e do seu papel no mundo. [...] os estados nem sempre sabem o que querem. Eles e as pessoas neles desenvolvem percepções de interesse e compreensão do comportamento desejável, a partir de interações sociais com outras pessoas no mundo em que habitam. Os estados são socializados para aceitar certas preferências e expectativas da sociedade internacional, nas quais eles e as pessoas que os compõem vivem. (FINNEMORE, 1996b, p. 2, 128, tradução nossa). Assente nesta transformação das ciências sociais anterior ao desenvolvimento do construtivismo, é possível compor uma abordagem norteada no nível estrutural, conforme adotada pela autora acima. Além disto, a diferenciação entre os níveis da ação e da observação, e a relação entre eles, auxilia na compreensão de que “o objeto ou evento socialmente significativo é sempre o resultado de uma construção interpretativista do mundo exterior” (GUZZINI, 2013)36. Vale relembrar que além do construtivismo existem outras vertentes teóricas, que também destacam os valores sociais da estrutura, e que moldam a política internacional contemporânea, como a Escola Inglesa já mencionada anteriormente