UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA TÁSSIA FERREIRA TÁRTARO EX DOCENTE: Invenções do devir-guerreiro no professor de Matemática. RIO CLARO - SP 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro TÁSSIA FERREIRA TÁRTARO. EX DOCENTE: Invenções do devir-guerreiro no professor de Matemática. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática – Área de Concentração em Ensino e Aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosóficos-Científicos, para obtenção do Título de Doutor em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Carrera de Souza Rio Claro - SP 2016 Tártaro, Tássia Ferreira Ex docente : invenções do devir-guerreiro no professor de matemática / Tássia Ferreira Tártaro. - Rio Claro, 2016 178 f. : il., figs. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Antonio Carlos Carrera de Souza 1. Professores - Formação. 2. Invenção. 3. Espirito livre. 4. Educação Matemática. I. Título. 370.71 T194e Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP TÁSSIA FERREIRA TÁRTARO EX DOCENTE: Invenções do Devir-guerreiro no professor de Matemática. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação Matemática. Comissão Examinadora Prof. Dr. César Donizetti Pereira Leite Profa Dra. Audria Alessandra Bovo Prof Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Thiago Donda Rodrigues Rio Claro, 09 de agosto de 2016 A Antônio Tártaro Neto (In Memória) Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor, mas não pode ser. Moro em Jaçanã, se eu perder este trem que sai agora às onze horas só amanhã de manhã. Adoniran Barbosa AGRADECIMENTOS Acredito que esta tese é resultado dos múltiplos encontros que o devir me proporcionou antes e durante esses quatro anos na Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista. No percurso deste curso de doutorado, tive a possibilidade de me inventar enquanto professora/pesquisadora. Sou hoje alguém completamente diferente e tenho muito a agradecer às pessoas que encontrei nesta viagem de invenção. Durante esse período, aprendi a arte do cuidado de si e suas dificuldades. Enquanto professora/pesquisadora da rede básica, tive a oportunidade de colocar em prática os ensinamentos do cuidado de si e percebi que, diferente de muitos modelos educacionais, cuidar de si pode ser um caminho para o governo de uma sala de aula. Com certeza falharei, pois não há palavras que consigam expressar minha gratidão; mesmo assim, insisto em evidenciar algumas afetações que me vêm em mente no momento da escrita: A Ismael, meu esposo. Suas contribuições estão além desta tese, ao mesmo tempo em que a perpassam continuamente. Meu agradecimento pelo companheirismo, que vai além de uma instituição familiar. Nossa amizade sempre foi o pilar que nos sustentou neste tempo que estamos juntos. Seu ombro, sua assistência e generosidade foram essenciais para que eu conseguisse fazer um doutorado trabalhando em dois empregos distintos. Por fim, minha gratidão à maneira com que se ocupa de nossa família. A Antônio Carlos Carrera de Souza. Tenho muito orgulho de ter sido sua orientanda. Você foi a fonte de inspiração para a escrita de toda esta tese. Aprendi contigo uma maneira outra de pesquisar em Educação Matemática. Serei eternamente grata pela maneira com a qual me ensinou a ser, também, orientadora futuramente. Carrera, você foi, nesses quatro anos, minhas asas e meus freios; por conta disso, em muitos momentos fiz duplo roubo de suas ideias e muitos desses duplos roubos se encontram nas linhas deste texto. Muito obrigada. A Gilda. Você, com seu olhar generoso e seu sorriso encantador, sempre ao lado de meu orientador, me ensinou que é preciso acreditar nas potências dos acasos da vida e retirar dos múltiplos encontros que nos chegam o melhor que eles podem nos oferecer. Ao grupo de pesquisa Uns e às discussões que tais encontros me proporcionaram, e em especial a Michela e a Nádia, companheiras praticamente em todo este percurso. Michela, sua delicadeza e cuidado quando se trata de julgar o outro me ensinou a ver a vida com olhos menos matemáticos. Nádia, sua força e a maneira com que fala sua verdade e a pratica me serviram de exemplo para também evidenciar a minha, independente do que os outros possam pensar. A Maria Lucia, Benedita e Clarismindo, que, juntamente com outros familiares, me ajudaram com suas companhias, orações e vibrações, o que foi de grande ajuda no decorrer desse processo de viver. A todos os professores e alunos que participaram desta tese. Muito obrigada por terem compartilhado comigo suas histórias. Em especial, gostaria de agradecer à Roseli e ao Luis Antonio, que me acolheram em sua casa no tempo que passei em Ilha Solteira. Mas não apenas por isso, também agradeço pelo carinho com minha família desde a época da graduação. Seus cuidados, conselhos e puxões de orelhas foram imprescindíveis para a profissional que me tornei. À minha banca de qualificação. Vocês foram generosos ao compartilhar comigo ideias que viabilizaram esta escrita. Proporcionaram, cada um à sua maneira, a composição de uma tese singular. Agradeço, portanto, À Capes, pela bolsa de doutorado, de março de 2014 a julho de 2015. RESUMO: Essa pesquisa é uma composição realizada com professores, alunos, Nietzsche, Foucault, Deleuze sobre como somos constituídos por linhas de força que nos subjetivam a todo instante e quais são as possibilidades de resistência que podemos criar diante de tais processos de subjetivação. O objetivo é apresentar uma discussão sobre a formação de professores buscando a possibilidade da existência de um espírito livre segundo Nietzsche (2005,2008a, 2008b, 2012a, 2012b, 2012c) que tenha o cuidado de si, conforme Foucault (1984, 1985, 2010), enfim, um nômade capaz de devir-guerreiro de acordo com Deleuze e Guatarri (1996) em um curso de licenciatura em matemática. Para isso, a produção de dados foi feita por meio de cartografias de subjetividades humanas com oito professores de matemática e uma pedagoga do ensino básico da rede pública, sete professores de um curso de Licenciatura em Matemática e cartografias coletivas com os licenciandos deste mesmo curso de licenciatura que forneceram fluxos de pensamentos sobre a formação, tais como: Quem forma quem? Como o sujeito se torna um professor de matemática? Como se dão as trajetórias de formação do licenciando em matemática? Qual a contribuição do curso de licenciatura para a formação dos professores? Qual tipo de profissional nossos cursos de licenciatura tem formado? Será que as linhas de força de nossos cursos de licenciatura em Matemática têm auxiliado na invenção de sujeitos capazes de resistir às subjetivações existentes em tal curso? Enfim, podemos encontrar espíritos livres em um curso de licenciatura em matemática? Tais questões proporcionaram um movimento que descreve as rupturas, os encontros, as fugas, os agenciamentos, as resistências, as arborescências, os rizomas que são (re) criados continuamente neste movimento de se inventar. Palavras-Chave: Formação. Invenção. Devir-guerreiro. Espírito Livre. Educação Matemática. ABSTRACT This research is a composition performed with teachers, students, Nietzsche, Foucault, Deleuze about how we are made up of lines of force that subjectify in all the time and what are the possibilities of resistance that we can create on such subjective processes. The goal is to present a discussion on the training of teachers seeking the possibility of a free spirit according to Nietzsche (2005, 2008a, 2008b, 2012a, 2012b, 2012c) that take care of itself, as Foucault (1984, 1985, 2010) finally, a nomadic warrior capable of becoming according to Deleuze and Guattari (1996) in a math degree course. For this data production was made by cartography of human subjectivities eight math teacher and a pedagogue of basic education in public schools, seven professors from a Bachelor's Degree in Mathematics and collective cartographies with licentiate this same course degree who provided thoughts flow on training, such as: who so who? As the subject becomes a math teacher? How to give training trajectories of licensing in mathematics? What is the degree course's contribution to the training of teachers? What kind of professional our degree courses has formed? Will the lines of force of our degree courses in mathematics have helped in the invention of individuals capable of resisting the existing subjectivities in such a course? Finally, we can find free spirits in a math degree course? These issues provided a movement that describes the breaks, meetings, leaks, assemblages, the resistance, the arborescences, rhizomes that are (re) created continuously in this movement to invent. Keywords: Training. Invention. Becoming Warrior. Free spirit. Mathematics Education. LISTA DE FIGURAS Figura 1 — Desenho do curso de Licenciatura em Matemática que F atua como docente......36 Figura 2 — Desenho do curso de licenciatura em que o Professor H atua como docente........65 Figura 3 — Desenho do curso de Licenciatura em Matemática que o professor P atua e seu complementar............................................................................................................................72 Figura 4 — Foto do Massacre da Praça da Paz Celestial........................................................103 SUMÁRIO 1. CONSEQUENTE ..............................................................................................................09 1.2 JOGO DOS CACOS...................................................................................................24 2. FORMAÇÃO E INVENÇÃO E LICENCIATURA E MATEMÁTICA E DEVIR E GUERREIRO E PROFESSOR E.....................................................................................26 1..........................................................................................................................................26 2..........................................................................................................................................31 3..........................................................................................................................................35 4..........................................................................................................................................38 5..........................................................................................................................................41 6 .........................................................................................................................................45 7..........................................................................................................................................49 8..........................................................................................................................................54 9..........................................................................................................................................58 10........................................................................................................................................62 11........................................................................................................................................67 12........................................................................................................................................73 13........................................................................................................................................75 14........................................................................................................................................82 15........................................................................................................................................86 16........................................................................................................................................90 17........................................................................................................................................92 18.......................................................................................................................................99 19......................................................................................................................................101 20......................................................................................................................................104 21......................................................................................................................................111 22......................................................................................................................................115 23......................................................................................................................................117 24......................................................................................................................................120 25......................................................................................................................................124 26......................................................................................................................................127 27......................................................................................................................................134 28......................................................................................................................................136 29......................................................................................................................................140 30......................................................................................................................................147 31......................................................................................................................................151 32......................................................................................................................................154 33......................................................................................................................................159 3. INCONSEQUENTE.........................................................................................................163 REFERÊNCIAS....................................................................................................................173 ÍNDICE REMISSIVO..........................................................................................................178 9 1. CONSEQUENTE Descrever os caminhos, as rotas, os percalços... Deixar evidente quais foram as escolhas e como exatamente elas foram feitas... Será possível fazer isso? Escrever uma tese é evidenciar um problema que pouco tem a ver com as respostas de determinadas perguntas, pois sua potência se encontra na invenção de caminhos. Sendo assim, este texto abre a possibilidade de conhecermos caminhos de formação, uns longos, outros curtos, mas todos se entrecruzando, de forma que ora eles se distanciam, ora se aproximam, cada qual oferecendo uma visão sobre os outros. Não há começo de história. Tampouco há começo de tese. Uma tese é também desejo. E desejo é agenciamento que se dá no meio. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. (DELEUZE, 1997, p. 11) Temos sempre a pretensão de começar narrando nosso movimento de formação em uma tentativa frustrante de realização própria. Tais práticas partem do pressuposto que o leitor poderá, de alguma forma, nos entender. Nada disso faz sentido, pois a escrita está além do contar as próprias histórias, sonhos ou traumas. Escrever é seguir o avesso de sua história. É conseguir encontrar a potência do impessoal. Não se trata de produzir casos gerais, mas sim de tentar adentrar a potência da singularidade em seu mais alto grau. Dessa forma, antes da escrita desta tese, caminhos foram construídos e desfeitos. Desvios foram criados. Não existiria tese sem os desvios que a própria pesquisa nos impôs. Assim, relataremos alguns desvios, alguns percalços, inseguranças, frustrações, histórias... Esta tese propõe uma discussão do conceito de formação. Formação de professores de Matemática. Frequentemente, o termo “formação” é usado na tentativa de colocar o sujeito em uma forma. Assim, os cursos de licenciatura são organizados para que todos os licenciandos, ao findar do tempo da graduação, tenham um perfil único que os identifique enquanto professores formados por determinada instituição. Queremos propor algo que vá além deste tipo de formação: propomos que esta tese evidencie uma alternativa de invenção de um si professor de Matemática. Vivemos rodeados por situações que colocam em cheque nossas práticas docentes. Enquanto aquele que ensina, esperamos que nossas práticas sejam exemplos para nossos alunos, pois sabemos que elas são semelhantes àquelas que outrora nos foram ditas ou feitas 10 por pessoas que foram referências para nós. No entanto, enquanto integrantes da escola, nos discursos produzidos em cada reunião, planejamento ou replanejamento, temos a impressão de que os professores são culpados, seja pela gestão escolar ou pelo governo, por não conseguirem propiciar a aprendizagem satisfatória de seus alunos. Uma grande parte dos professores, ao se deparar com tais discursos, não se coloca contra, não se posiciona, não refuta tais acusações. No entanto, se a maioria assume tal posição, existe uma minoria que não aceita e questiona discursos baseados em uma avaliação externa, que pouco diz sobre a realidade de uma escola. Sendo assim, perguntamos: como se inventam estes sujeitos que têm a coragem de se expor, de se colocarem contra as normas impostas pelo estado? Pois, em geral, esses poucos professores são sempre “os inconvenientes” da escola. São considerados, pela direção, os que resistem ao que é hábito nesse espaço. Nesse momento, algumas questões começam a surgir. Entre elas, uma se destaca: como nos tornamos o que somos? Cada um, ao recordar seu passado, pode chegar a determinadas conclusões sobre quais foram as escolhas e caminhos, as alegrias, tristezas, desilusões e sonhos que nos transformaram no que somos hoje. Certamente algumas situações cairão no esquecimento, outras nos acompanharão como tatuagens capazes de (dês) potencializar uma arte de viver. Quando as marcas do passado viram imagens e o tempo cronológico cessa, abre-se espaço ao tempo das lembranças. Neste momento, nos damos conta da imensidão de acontecimentos que perpassam nossa vida. É nesse tempo que as horas não podem suportar e 24 horas pode ser nada ou tudo ao mesmo tempo. Tempo... Tempo... Tempo. Vivemos momentos. Movimentos que nos formam, mas que não podem ser fragmentados a ponto de sabermos ao certo em que etapa do viver nos tornamos o que somos atualmente. Essas inquietações, esses fluxos de pensamentos sobre a formação nos levaram às seguintes indagações: quem forma quem? Como o sujeito se torna um professor de Matemática? Como se dão as trajetórias dos licenciandos em Matemática? Qual a contribuição do curso de licenciatura para a formação dos professores? Qual tipo de profissional nossos cursos tem o objetivo de formar? Será que as linhas de força de nossos cursos de licenciatura em Matemática têm auxiliado na invenção de sujeitos capazes de resistir às subjetivações existentes neles? Enfim, podemos encontrar espíritos livres em um curso de licenciatura em Matemática? Os cursos de licenciatura em Matemática têm como objetivo central a formação do professor de Matemática, ou seja, formar aquele que ensina a Matemática. Quando 11 perguntamos se é possível encontrar espíritos livres em um curso de licenciatura em Matemática, direcionamos nosso alvo para os sujeitos que compõem este espaço. Sendo assim, a intenção desta tese reside na procura de situações proporcionadas por um curso de formação que servem de estopim para a invenção de um sujeito capaz de resistir às linhas de forças impostas sem uma lógica coerente. Nosso anseio é narrar a influência que um curso de licenciatura tem naquele que decide inventar-se professor de Matemática. Dessa forma, nosso objetivo é cartografar um curso de licenciatura em Matemática, identificando quais processualidades estão em funcionamento neste dispositivo, com um olhar sobre os modos de subjetivação que o percorrem e como isso influencia as práticas de seus alunos. Acreditamos que um curso de licenciatura em Matemática se constitui um dispositivo, pois, para Foucault, em “Vocabulário Foucault” escrito por Castro (2009), um dispositivo é uma rede de relações estabelecidas entre “discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito” (2009, p. 124). Nesse caso, em um curso de licenciatura tais práticas estão inseridas, pois ele se constitui em um sistema de regras pelas quais circulam discursos que acabam por engendrar uma série de conceitos morais. “O dispositivo estabelece a natureza do nexo que pode existir entre elementos heterogêneos” (2009, p. 124). Nesse caso, os discursos que perpassam um curso de licenciatura em Matemática aparecem como um programa que compõe uma instituição, como um elemento que justifica ou oculta uma prática docente. Um dispositivo tem uma função de, em algum dado momento, responder a uma urgência. Dessa forma, o dispositivo licenciatura tem uma função estratégica na medida em que garante uma demanda mercadológica de formação de professores de Matemática. Além disso, um dispositivo se define por sua gênese e, uma vez constituído, permanece como tal na medida em que tem lugar um processo de sobredeterminação funcional. No entanto, o que significa dizer que olharemos os modos de subjetivações de um determinado dispositivo? Ao olhar os modos de subjetivação que percorrem o curso de Matemática, mostraremos as linhas de força que perpassam o processo de se tornar professores dessa disciplina. Explicitaremos que “sujeito-professor” se fabrica com os modos de subjetivações presentes neste dispositivo. Também cartografaremos os licenciandos em Matemática de determinada universidade. Cartografar é relatar o acontecimento. Nada há antes ou depois. Só há a processualidade existente no próprio acaso deste movimento de formar-se. Assim, mostramos 12 nosso caminhar. Produzimos nossos dados, criamos caminhos, costuramos as histórias, as marcas, as farsas, o real, o fictício, as lembranças, os sonhos, enfim, inventamos uma história de formação. Conforme Passos, Kastrup e Escóssia (2009), a cartografia é uma forma de produção de dados formulada por Deleuze e Guattari (1995) que tem por objetivo acompanhar um processo ao invés de representá-lo. Segundo essas autoras, a palavra processo possui dois sentidos: o primeiro sentido refere-se à ideia de processamento, isto é, a pesquisa é entendida e praticada como produção de informação. No segundo, a cartografia é entendida como processualidade, em que o objetivo é a investigação de processos de produção de subjetividade. É nesse caminho que estamos entendendo a cartografia. Assim, “o cartógrafo se encontra sempre na situação paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações” (PASSOS, KASTRUP E ESCÓSSIA, 2009, p. 58). No entanto, quando falamos em cartografia é necessário deixar claro qual nosso entendimento dela. Em um artigo escrito por integrantes do grupo Uns/PPGM1 de Rio Claro para um minicurso no Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM), do qual fazemos parte, achamos importante discutir a semântica da palavra cartografia. Assim, apontamos as diferenças entre a cartografia da geografia física – que se constitui como um mapa físico que, por exemplo, divide as regiões e os estados do nosso país; a cartografia da geografia humana – que retrata os costumes, as etnias, as religiões entre outras questões; e a cartografia da subjetividade humana – em que o mapa construído não é um mapa físico que estabelece limites de acordo com as fronteiras de um mapa-múndi, nem visa mapear processos e procedimentos técnicos de professores de Matemática e outros sujeitos da escola, mas sim um mapa das subjetivações humanas (SILVA et al, 2013). Esta é a que praticaremos nesta pesquisa. Dessa forma, nossa intenção é fazer um mapa da formação do licenciando em Matemática, caminho que se justifica nas palavras de Deleuze e Guattari (1995), quando, ao falar do conceito de mapa, o identifica como aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Para eles, o mapa pode ser rasgado, revertido, adaptado a montagens de qualquer tipo, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. “Um mapa 1 Grupo de Estudo que discute a Educação Matemática, amparado pela literatura que fundamenta a filosofia da diferença, orientado pelo professor Doutor Antonio Carlos Carrera de Souza. 13 tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22). Identificamo-nos com a cartografia na medida em que ela nos permite dialogar com o diferente, com o que não está determinado, com os diversos olhares de uma mesma situação, com as mudanças constantes do sujeito enquanto construção de si mesmo. Acreditamos que, por meio da cartografia, não nos ligamos a um método que nos enrijeça. Por conta disso, nos tornamos abertos às mudanças, olhares, construções e desconstruções. Pois, conforme Passos, Kastrup e Escóssia (2009), conhecer é fazer, criar uma realidade de si e do mundo, que tem consequências políticas. Assim, conhecer a realidade é acompanhar seu processo de construção, o que não pode se realizar sem uma imersão no plano da experiência. A imersão nesse plano se dá por um olhar atento para as linhas de força que compõem os discursos daqueles que perpassam os sujeitos de um curso de licenciatura. Essas linhas compõem o dispositivo a ser cartografado. Para Deleuze (1990), desemaranhar as linhas que compõem um sujeito ou um espaço é traçar um mapa, cartografar. Assim, a cartografia é: [...] um caminho que nos ajuda no estudo da subjetividade dadas algumas de suas características [...] não comparece como um método pronto [...] A cartografia é um procedimento ad hoc, a ser construído caso a caso. [...] Um método processual vai se fazendo no acompanhamento dos movimentos das subjetividades e dos territórios. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 76) Dessa forma, podemos dizer que a cartografia é um caminho intermezzo. Não importa em que lugar teve início a história de formação; na cartografia, o que importa é o presente. Se partirmos do pressuposto de que estamos pesquisando o acontecimento, então não é possível definir o caminho a seguir, tampouco acreditamos na neutralidade em relação ao sujeito da pesquisa. Ao propormos pesquisar um processo de formação de professores de Matemática, estamos interferindo neste processo e este, por sua vez, interfere em nós. Intervir, então, é fazer esse mergulho no plano implicacional em que as posições de quem conhece e do que é conhecido, de quem analisa e o que é analisado se dissolvem na dinâmica de propagação das forças instituintes características dos processos de institucionalização. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 25) 14 Assim, as impressões geradas a cada contato com os sujeitos da pesquisa foram documentadas em um diário de campo, onde estão relatadas as características, o ambiente em que se deu a entrevista, quem estava presente, desenvolvendo uma descrição mais ou menos detalhada do momento. Conforme Passos, Kastrup e Escóssia (2009) esses relatos buscam captar, descrever aquilo que se dá no plano extensivo das forças e afetos. O diário de campo é atravessado pelo nosso diálogo com o outro, sendo estes outros tudo o que vai deixando marcas em nós ao longo do processo. Segundo as autoras, a cartografia é uma pesquisa de intervenção, pois se trata de um mergulho na experiência que agencia pesquisadores e pesquisados, teoria e prática, em um processo de produção com o outro. Dessa forma, a tarefa do cartógrafo é colocar em evidência tais afetos; se espera dele a composição dos mapas a partir dos elementos que foram encontrados. Ou seja, cabe ao cartógrafo tentar desemaranhar as linhas de força que perpassa, agencia, sedimentaliza, tentando identificar algumas das “múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 2010, p. 181). De acordo com Silva et al (2013), a cartografia lança mão de vários procedimentos para a produção de dados. Baseado em Passos, Kastrup e Escóssia (2009), Rotondo (2010), Bovo (2011), Gasparotto (2010) e Bovo et al (2011), o cartógrafo, ao buscar acompanhar as processualidades dos acontecimentos, pode fazer uso de narrativas pessoais, entrevistas, etnografias, análise de documentos, dados quantitativos e mapas narrativos. É com a ajuda desses procedimentos que os dados vão se construindo, de tal forma que, ao narrar os discursos dos sujeitos da pesquisa, o cartógrafo consiga levar algo de si para dentro do ambiente em que está. Assim, os encontros do pesquisador com seus pesquisados são afetações do próprio pesquisador a partir dos encontros produzidos. Dessa forma, os relatos dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa são escolhidos a partir das afetações que foram produzidas entre pesquisador e pesquisados. O que queremos ao cartografar é produzir encontros para um diálogo sobre a formação do professor de Matemática. Assim, ao cartografar buscamos devires, geografias, orientações e direções, entradas e saídas. E, se acreditamos que ao cartografar produzimos dados, o fazemos, pois conforme Deleuze e Parnet (1998) as palavras podem ser substituídas umas por outras. Assim, não há um único modo de contar, ou melhor, relatar como as linhas de força perpassam um diálogo. O nosso descrever já é em si mesmo um processo de criação, pois “sob cada palavra cada um coloca seu sentido ou, ao menos, sua imagem que, no mais das vezes, é um contrasenso” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 5). 15 Assim, resta esclarecer como cartografamos a formação do professor de Matemática com intuito de narrar sua “formação integral”. Começamos com uma conversa e um pedido para o chefe do Departamento de Matemática e o coordenador do curso de Matemática da UNESP de Rio Claro para assistir às aulas que faziam parte do currículo deste curso no que diz respeito às áreas de Matemática e Educação. Após a permissão do departamento, coordenador e professores do curso de licenciatura em Matemática, passaríamos para a segunda parte, que seria frequentar as disciplinas que compõem a licenciatura, e nenhum dos professores ou alunos seriam citados nesta pesquisa, se assim desejassem. Para isso, seriam utilizados nomes fictícios quando necessário para descrever este processo de formação. Nesta etapa da pesquisa, iriamos flanar2 pelo curso de licenciatura. Para isso, observaríamos algumas disciplinas que compõem a formação dos professores de matemática, dedicando a cada uma cerca de quinze dias de observação em 2014. No decorrer destas aulas, seria observada a trajetória de formação dos alunos neste curso. Durante as aulas, as anotações feitas seriam exclusivamente do conteúdo lecionado naquele dia pelo professor responsável pela disciplina. Tais anotações diriam respeito à aula de Matemática, tal qual um aluno matriculado na disciplina. Nenhuma anotação sobre comportamentos ou afetações durante o momento da aula seria feita, pois não tínhamos intenção de violar a privacidade dos alunos ou dos professores ali. Após o término de cada aula, seria redigido, no que se designaria de “caderno de campo da pesquisa”, um relatório que versaria sobre a processualidade da aula. Um detalhamento das afetações que nos atingiram enquanto sujeito naquele espaço de ensino, colocando em evidências situações que faziam parte deste processo de formação. A partir das afetações descritas neste caderno de campo, poderiam surgir pontos interessantes de situações que nos afetaram no decorrer deste processo. Se ou quando isso acontecesse, seriam convidados alguns professores e alunos, com os quais tivemos contatos no decorrer do tempo em que estivemos em sala de aula ou em momentos que poderiam existir antes ou depois das aulas, de conversas com eles, para a realização de uma cartografia individual que versasse sobre a formação do professor. 2 Flânuer, no sentido de Walter Benjamin (2000), é um passear não fixando a lugar nenhum, ou seja, o flâneur é, assim, aquele que caminha pela cidade, experimentando as diferentes sensações que ela produz sem se fixar em um lugar específico. 16 Essas cartografias individuais seriam realizadas por meio de uma entrevista com aqueles que aceitassem o convite proposto. Para os professores entrevistados, nossa conversa teria como foco: o que significaria para ele formar um professor de Matemática? Já para os alunos que talvez estivessem mais abertos a mapas narrativos e preferencialmente aqueles que estivessem prestes a se formar, nosso foco seria: como você, a partir deste curso, se torna/tornou um potencial professor de Matemática? Estas cartografias, tanto as individuais quanto as coletivas, teriam como objetivo encontrar não apenas as grandes linhas de subjetivações da licenciatura, mas qualquer linha que passasse ou tocasse este curso. Era evidente o fato de que se tratava de duas cartografias, uma das aulas de Matemática das quais participaríamos dentro do curso de licenciatura, e outra, as cartografias individuais que poderiam ocorrer a partir das nossas afetações das aulas assistidas, sendo que, a cartografia individual teria o propósito de narrar as multiplicidades existentes dentro deste curso. Enfim, partimos do princípio de que os sujeitos que fazem parte de um processo de formação são múltiplos, logo a intenção era olhar o sujeito enquanto multiplicidade. Um contar dos sis que percorrem, existem, sobrevivem e transformam-se enquanto parte desse processo. MAS ISSO NÃO ACONTECEU... E COMO ESTA TESE SE TORNOU O QUE É COMEÇA AQUI... A primeira tentativa de realizar esta pesquisa se deu no final de 2013, quando procuramos a Secretaria do Departamento de Matemática de Rio Claro para entregar o projeto de pesquisa. Essa foi nossa primeira opção de campo, o Curso de Licenciatura na UNESP de Rio Claro. Tal pedido passou pelo conselho e a resposta foi que não cabia a ele a aceitação ou não de tal proposta de pesquisa, mas sim aos professores de cada disciplina. Queremos evidenciar o problema que segue de tal decisão. Primeiramente, não poderíamos dizer que iríamos flanar, se precisaríamos necessariamente da autorização de alguém para entrar em determinado espaço de formação. O segundo problema que inviabilizava a pesquisa é que cada pedido iria requerer certas condições, como por exemplo, o professor poderia querer ler as afetações e participar da decisão do que colocar ou não na tese. Mas se são necessárias tais combinações para assistir a determinada aula, então não existe liberdade nesse espaço. Parece existir uma liberdade condicionada, mas, para nós, isso não é liberdade. 17 O que observamos é que existe um movimento na sala de aula de um curso de licenciatura em Matemática que só pode ser descrito com a autorização do professor que leciona determinada disciplina. Isso implica que só se pode ver o que o professor decidiu que se veria. Se aceitas essas condições, as linhas de força se delineariam a partir do professor, e não do pesquisador. Nesse caso, os acordos realizados para adentrar o espaço de uma sala de aula poderiam impossibilitar a proposta desta pesquisa. Além disso, temos que nos atentar na possibilidade, por exemplo, de que o professor de Cálculo I poderia não se opor à nossa presença, mas o de Cálculo II, sim. Dessa maneira, esta pesquisa seria resumida ao que o professor deseja, o que faria cair por terra qualquer ideia de formação integral do licenciando. No entanto, não foi aqui que esta pesquisa mudou. Decidimos procurar por outra instituição. Dessa vez, uma instituição privada. Ao procurar por uma instituição privada, nos deparamos com nossa primeira barreira: encontrar um curso de licenciatura em Matemática que tivesse suas quatro turmas. Foi uma luta. Vimo-nos no limbo, pois quase nenhuma universidade particular na região de Rio Claro tem curso de licenciatura em Matemática presencial. Encontramos uma que, embora não tivesse suas quatro turmas, tinha três delas. Assim, estenderíamos nossa pesquisa, mas garantiríamos a execução dos planos iniciais dela. Então, procuramos a coordenadora do curso de Matemática da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), localizada em Piracicaba/SP, para que a pesquisa fosse realizada. Tivemos uma recepção bem calorosa por parte da diretora da Faculdade de Ciências Exatas e da Natureza, mas assim que contamos o que pretendíamos, ela disse que seria inviável tal pesquisa naquela instituição, pois, a partir de uma regra da casa, como não éramos alunos, não poderíamos entrar em sala de aula. Ficamos parados buscando alternativas para aquela linha de força. Decidimos, então, fugir. Mudamos de assunto, talvez para ganhar tempo para pensar no que fazer naquele momento. Falamos sobre a importância de olhar tal curso por conta do perfil dos alunos desta universidade, pois a diretora já tinha dito que estes alunos trabalhavam na escola pública concomitantemente com o curso de graduação. Perguntamos se não poderíamos coordenar um grupo de estudos ou até monitorias. A resposta foi não. Isso só poderia ser feito se fôssemos alunos. Outra pergunta realizada foi se era possível conseguir o e-mail dos alunos para tentar conversar com eles. Elas disseram que “extra-oficialmente” isso poderia ser arrumado. A diretora disse que tinha uma reunião com o Comitê de Pesquisa e iria comentar sobre a nossa pesquisa, pois gostou muito da proposta e 18 do nosso olhar para com o curso de licenciatura e também dada a boa relação que tinha com a UNESP de Rio Claro. Esperamos até que a resposta definitiva fosse dada pela diretora da faculdade, embora já não acreditássemos em tal possibilidade, dada a exigência de pagamento para frequentar as disciplinas que compunham o curso. Como esperado, a resposta da diretora da faculdade após uma conversa com a seção de pesquisa foi que precisaríamos submeter o trabalho ao Comitê de Ética da UNIMEP e, mesmo assim, para assistirmos às aulas deveríamos estar devidamente matriculados como alunos regulares do curso de Matemática. Mais uma vez fomos barrados. Novamente fecharam as portas para uma pesquisa dentro de uma universidade. As perguntas que ficam são: o que será que tem dentro das salas de aulas dessas duas universidades que ninguém pode ver? Essa pergunta não pode ser respondida por esta pesquisa. Fica evidenciada a impossibilidade de mostrar quais os movimentos, quais linhas de força atravessam a sala de aula de um curso de licenciatura em Matemática. No entanto, esta pesquisa já mostra uma linha de força que age dentro deste curso. Mostra uma linha de força que atravessa a instituição: a linha da proibição. É proibido o outro entrar. Pode até entrar, desde que sejam bem claras suas intenções e que se firmem acordos de sujeição com os “donos do lugar”. Observe que ninguém, em momento algum, nos disse para conversar com os alunos ou para perguntarmos se poderíamos dividir com eles aquele espaço de saber. Fica evidenciado que os espaços da sala de aula, nas duas universidades, não são públicos, mas privados. Ora pertencem ao professor, ora à universidade. Observem que, nos dois casos, o ensino foi tratado como produto. Em um dos casos, é preciso negociar para entrar; já no outro, é preciso pagar. A partir disso tínhamos duas escolhas. Colocar a mochila nas costas e sair pelo Brasil procurando um curso de Matemática que aceitasse nossa entrada ou nos “desterritorializarmos” dessa ideia — com muito sofrimento — para nos “territorializarmos” em outra. E, nessa parte, não podemos deixar de dar crédito aos encontros no plano de imanência que nos ajudaram. Ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia, mandamos um artigo para correção gramatical. Em linhas gerais, o artigo se referia às diferenças entre os espíritos livres e os espíritos cativos, diferenças essas que aparecerão posteriormente nesta tese. Ao nos retornar o artigo, o professor sentiu a necessidade de fazer algumas considerações a partir do texto. 19 Nessas considerações, ele dizia que acredita ser um espírito livre e se sentia cansado e vencido pelos espíritos cativos, aqueles que seguem o caminho mais fácil. Dizia que pessoas como ele encontravam muitas barreiras e, no fim de toda a luta diária como docente, se perguntava: será que vale a pena? Pois o fim de uma carreira docente, sendo de espíritos livres ou não, termina no mesmo lugar: “aposentadoria”. Dizia, ainda, que os espíritos cativos, estes que concordam com tudo, que aceitam tudo, são mais despreocupados. O que importa para eles são eles mesmos e seus próximos. Os demais que se virem. Os livres nunca serão reconhecidos pelo seu trabalho... No máximo comparados a algum grande pensador ou teórico e esquecido, pois tudo segue da forma mais rápida, sempre numa corda bamba e, nesta corda, os cativos se equilibram e os livres sempre caem. Estou despencando, pois tudo o que faço e fiz para melhorar, diferenciar ou equilibrar a educação, em sala de aula ou fora dela, acaba em fones de ouvido ou celulares. Sem falar nos palavreados desconexos do mundo em que vivem. Vale a pena? O estresse, pensar por eles? O Governo que não nos reconhece? Vale a pena olhar para os alunos, para a sala de aula e pensar: o que estou fazendo aqui??????? Estou nessa fase... sugiro o estudo daqueles que são considerados espíritos livres... quais as consequências dessa escolha? (G, professor do ensino básico, Chronos Registra: 24 de março de 2014) Concomitantemente a este comentário, discutíamos no grupo de pesquisa Uns um texto de Foucault (2010), do livro “A Hermenêutica do Sujeito”, que falava sobre a maestria da formação. Conforme este autor, a formação do sujeito nos diálogos socrático-platônicos se dava a partir de três tipos diferentes de maestria, que são três tipos de relação com o outro, relações estas indispensáveis à formação do jovem. A primeira é a maestria do exemplo, na qual o outro se apresenta como um modelo de comportamento, modelo transmitido e proposto aos mais jovens e indispensáveis à formação deles. O segundo tipo é a maestria da competência, ou seja, a simples transmissão de conhecimentos, princípios e aptidões, habilidades aos mais jovens. E, por último, há a maestria socrática, a maestria do desembaraço e da descoberta, exercida por meio do diálogo. Discutíamos a impossibilidade desse tipo de formação na escola que temos hoje, problematizávamos a questão da falta de diálogo dentro da escola, mas também dentro da própria família, e como os jovens de hoje estão fechados em seus mundos virtuais. A partir desses acontecimentos, ficou ainda mais evidente a necessidade de olhar para a formação. Percebemos que, pelo sistema de formação docente, ou seja, pelas linhas centrais de um curso de licenciatura, não conseguiríamos muita coisa. Então quem sabe usássemos as margens desses cursos? Com muita coragem, pois encontrar uma linha de fuga e reterritorializar em outro espaço não se constituiu algo fácil, decidimos reformular nosso caminho. Mas como faríamos 20 isso, já que não poderíamos frequentar as aulas livremente, ou seja, sem acordos que inviabilizassem esta pesquisa? Precisávamos achar um território. Encontrar algum lugar em que seríamos aceitos pelos professores sem restrições. Assim, apenas um lugar nos veio à mente: resolvemos voltar para onde fizemos nosso curso de licenciatura em Matemática. Após alguns contatos com antigos professores, conseguimos uma resposta positiva, de forma que poderíamos até assistir às aulas se quiséssemos, sem nenhuma restrição. No entanto, a localidade agora era a restrição, pois esse curso está situado aproximadamente a 600 km de distância de Rio Claro e, mesmo que quiséssemos manter o projeto inicial, não teríamos condições de frequentar as aulas o ano inteiro. Dadas as dificuldades encontradas pelas propostas anteriores, o que fizemos foi propor nesse curso uma conversa com os licenciandos de Matemática, que ocorreram durante seus respectivos horários de aula. No primeiro ano, as discussões se concentraram em torno da seguinte questão: por que você escolheu estar em um curso de licenciatura em Matemática? No segundo e terceiro ano, as questões firmaram-se em: o que te mantém neste curso de licenciatura em Matemática? Vale a pena ser professor de Matemática? E no quarto ano: o que vocês, como professores de Matemática hoje, podem? Quais as possibilidades que vocês veem para si mesmos como professores de Matemática? Essas cartografias coletivas tiveram por objetivo encontrar nos discursos dos licenciandos tanto as grandes linhas de subjetivações da licenciatura, como qualquer linha que passe ou toque esse curso. Também foram feitas cinco cartografias individuais com mapas narrativos com os professores do curso. Tais cartografias foram essenciais para a pesquisa, já que o diálogo com os alunos foi apoiado nas cartografias individuais dos professores. Elas foram orientadas pelos mapas narrativos que tiveram como tema gerador as seguintes questões: como você vê o curso de licenciatura em Matemática em que atua enquanto docente? Como você vê outro curso de licenciatura? Como você vê um professor de Matemática formado por esta instituição? Como você vê um professor de Matemática formado por outro curso? Contudo, nossa tese não poderia parar nesse espaço, pois o professor de Português nos fez ver além. Nos fez olhar para a escola, pois falamos de formação de professores, e a formação também se encontra ancorada nas linhas de força da prática docente. Precisávamos mostrar o real que a escola é capaz de evidenciar. 21 Para isso, procuramos nove professores de Matemática que atuam no ensino básico — nove é nosso número mágico; poderiam ser dez, doze ou vinte e oito — para uma cartografia individual, com a qual buscamos um diálogo em torno da seguinte questão: qual a contribuição de seu curso de licenciatura para sua prática profissional dentro da escola? Para este diálogo, foram entrevistados um professor com até três anos de docência no ensino público básico, seis professores em um intervalo de três a quinze anos de trabalho docente e dois professores com mais de quinze anos de trabalho em escolas estaduais. Os diálogos se deram em múltiplos lugares. Ora foram feitos na escola, ora nas casas dos professores. A escolha foi de cada um, para que a conversa fosse criada onde cada um se sentisse mais confortável para que o diálogo acontecesse. É difícil "se explicar" – uma entrevista, um diálogo, uma conversa. A maior parte do tempo, quando me colocam uma questão, mesmo que ela me interesse, percebo que não tenho estritamente nada a dizer. As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer. Se não deixam que você fabrique suas questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as colocam a você, não tem muito o que dizer. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 2, grifos do autor) Amparados por essa leitura, decidimos criar apenas uma pergunta que nos direcionasse na busca da formação do outro. Partíamos, então, de um contar sobre como foi a licenciatura em Matemática de cada um dos entrevistados para, depois, adentrarmos nas nervuras do real. E tais diálogos foram acontecendo de uma forma diferente com cada sujeito que encontrávamos. E é justamente neste passo que descobrimos a dificuldade existente ao cartografar. Cartografar é se preparar para o inesperado. Mas como se preparar para o que você não faz ideia do que irá encontrar? Como sair para uma conversa para a qual você não tenha todas as perguntas prontas, organizadas? Tal situação não se constituiu uma preparação fácil, pois mesmo conversando com muitas pessoas que já tinham cartografado, seus argumentos pareciam não serem suficientes. Precisávamos de algo que fizesse nosso corpo vibrar, que, tal qual Rolnik (1989), nos fizesse participar, algo que nos levasse à constituição de territórios existenciais, composições de realidade. Deixar com que nosso corpo vibrasse ante todas as linhas de forças possíveis e, nessa processualidade, inventar posições e perguntas diante das linhas que se evidenciavam diante de nós. É isso que consistia nossas práticas naquelas conversas. Encontrar os sons, as fugas e consequentemente novos meios de existência com os professores. 22 Foi ao acaso que encontramos um elemento que preparasse nosso corpo para o encontro com o real de cada um dos professores e licenciandos: uma música. Tocada ao acaso em uma rádio, se tornou o enredo que antecedia cada uma das entrevistas com os professores. Ela foi ouvida antes de cada um dos diálogos, com todos os participantes desta pesquisa. Axé Acapella – Intérprete: Maria Gadú Pararam pra reparar? Estão ouvindo esse som? Pulsando seco no ar Merece nossa atenção! Preparem bem os sensores Para poder captar Parem usinas motores Para ouvirmos bater Dum! Dum! Dum! Seu clamar Som de corte pungente, mundo doente além da conta Sangra lucro imediato mas a cura de fato não aponta Em uma remota viela a voz de uma santa faz menção Um axé acapella feroz insinua o batidão Pararam pra reparar? Estão ouvindo esse som? Reparem não vai parar Diante a tal condição Jogos de egos gigantes Sem dar sossego à fatal pulsação Que segue até seu furor Tornar-se ensurdecedor Dum! Dum! Dum! Seu clamar Chega de jogar confete, de botar enfeites, achar desculpas É guerra, é dente por dente e rasga somente carne crua Rouco um cantor se esgoela sozinho em meio a uma multidão Um axé acapella feroz insinua o batidão E se bater vai matar! E se bater vai tremer! Não sobrará mais que o leito de um rio Que escorre a prenda de um passado sombrio Enquanto o homem não acorda Idiota! Nem nota! Se enforca com a corda da própria tensão E um axé feito acapella Vai se transformando num batidão Aí é choro doído, é sonho moído, é fim de trilha Já mortalmente ferido um lobo banido da matilha 23 Silente um bom Deus vela a terra sagrada da ingratidão Um axé acapella feroz insinua o batidão! (BLACK E MALTA, 2011). Tal música nos coloca em estado de atenção para com o que o outro tem a dizer. Buscar subjetivações, marcas, linhas de força requer que parem seus motores, sua inquietude, sua agitação, para observar outros motores. Ouvir o som. O som que nem sempre é alto o suficiente, o som existente entre as palavras, o som dos gestos, das pausas, o som do próprio movimento. E, muitas das vezes, nas conversas com os professores observamos que o que contava era seu sonho moído, seu choro doído, de uma profissão que os bane diariamente de suas próprias matilhas. Sendo assim, nesse processo de conversar com o outro, aprendendo a ouvir mais do que falar, em um movimento em que as perguntas surgem no instante, pois nada existe antes dela, em um espaço onde as indagações nunca são as mesmas, em cada uma das histórias singulares é que esta pesquisa foi se constituindo. Assim, todas as entrevistas foram gravadas em áudio ou vídeo, ouvidas/vistas até que se descobrissem as linhas de força existentes em cada um dos momentos dos diálogos. Depois de feito isso, observamos quais as linhas de força que perpassaram a maioria dos docentes. Linhas do curso de licenciatura, linhas da prática docente e também linhas de fora do ambiente do curso de licenciatura e da escola e que os afetavam. Todas as linhas que encontramos foram colocadas em evidência, tanto no que diz respeito aos professores da rede básica quanto aos professores e alunos do curso de licenciatura. Foi neste ir e vir que esta pesquisa foi se produzindo, nesses desvios que a própria pesquisa necessita para existir. O movimento só existe enquanto possibilidade de se reinventar. Nós nos reinventamos, (re) criamos nosso caminho. Nossa pergunta produziu mais que uma resposta, criou possibilidades de novas indagações. Mas linhas de força externas também adentraram esta pesquisa. Enquanto pesquisamos, o mundo produzia linhas de forças, que interferiram em todo o processo de construção da escrita. Não escreveremos a partir dos teóricos que surgirão nas linhas por vir. Escreveremos com eles, mas também com os professores e alunos que ajudaram a compor esta tese. Fizemos uma composição enquanto produzíamos os dados. Várias foram as versões desta composição. Praticamente (re) inventamos todo o texto umas centenas de vezes. 24 Construímos algumas partes apenas para reconstruí-las depois. Choramos, pois, enquanto processo de produção, a morte também adentra esta pesquisa, ela vem de fora, não pede licença para entrar. Então aceitamos morrer juntamente com aqueles que se foram durante este processo e assim, nascemos outra vez. Afinal, viver é uma arte que se situa no limiar da reinvenção de si mesmo. Dessa forma, esta tese é uma cartografia. Uma produção de dados. Uma composição feita juntamente com os professores e alunos e Nietzsche e Foucault e Deleuze e... 1.1 Jogo dos Cacos De múltiplas maneiras, esta tese é muitas teses. O que o leitor irá encontrar nas páginas a seguir são cacos de formação que podem, ao se juntarem, produzir vitrais magníficos, mas também têm, enquanto cacos, o poder de nada compor. Dessa forma, o leitor fica convidado a escolher entre muitas possibilidades uma ordem de leitura. Mas por onde começar? Pelo meio, pelo começo ou pelo fim? Tanto faz. Pode-se ler apenas um, dois ou três fragmentos e sentir-se satisfeito ou ler todos na ordem em que foram apresentados. Aqui tudo é certo. Não há a melhor maneira de ler esta tese, tampouco um único jeito de entrar no texto. Podemos entrar por todos os lados, percorrer as linhas que o compõem, sair sem nada ou com várias possibilidades para se pensar. Nesta tese, pode-se tudo, nada é proibido. No entanto, acreditamos que alguns caminhos possam ser delineados em virtude dos conceitos que os fragmentos engendram na intenção de inventar um professor de matemática. Sendo assim, apresentaremos algumas possibilidades de leitura que o leitor pode ou não acatar. Se a intenção do leitor for descobrir as linhas que compõem um devir-guerreiro do professor de Matemática, sugerimos que faça o seguinte caminho pelos fragmentos que compõem este texto: 11-13-21-17-18-23-14-19-20-22-24-4-27-28-32-33-7-31-30-25-2-5-6-9-1-8-3- 12-15-10-16-26-29-inconsequência. Já se o propósito de leitor for visualizar as grandes linhas de força que compõem um curso de licenciatura em Matemática, aconselhamos que tente um caminho outro pelos fragmentos: 8-4-14-18-19-10-26-28-22-6-2-5-16-20-13-17-15-27-32-33-31-7-21-25-1-3-9- 11-12-24-23-29-30-inconsequência. 25 Se seu objetivo for descobrir como um sujeito se inventa professor de Matemática, criando um oásis para si nas brechas das linhas de força de um curso de licenciatura em Matemática, sugerimos outra possibilidade: 1-2-5-6-13-17-7-27-31-32-33-18-14-4-10-8-26-29-28-23-19-24-30-25-21-9-3- 11-12-20-16-15-22-inconsequência. Pode ser que seu objetivo seja apenas elucidar o que é um espírito livre em um curso de licenciatura em Matemática; para isso, bastará ler o fragmento 13. Ou então queira, apenas, saber a diferença entre guerreiro e soldado no que diz respeito a um curso de licenciatura: para isso, precisará ler os fragmentos 18-19-22-23-24. São múltiplas entradas, caminhos e direções. Não é possível evidenciar todas elas. No entanto, caro leitor, o desafiamos a encontrar um caminho nesses fragmentos que o leve a outros conceitos ainda não evidenciados neste jogo. Se isso ocorrer, podemos imaginar que a cada leitura, ao se mudar as ordens dos fragmentos, podemos criar novos conceitos, que podem não terem sido vistos na primeira sequência de escolhas. E até, talvez em um momento de plena loucura, poderíamos usar esta tese como uma série de textos que lemos aleatoriamente. A cada vez que abrimos, estamos em um fragmento, participamos de uma história, depois, abrimos novamente e assim sucessivamente, deixando o acaso nos guiar. E essa pode ser outra maneira de ler. Boa leitura. 26 2. FORMAÇÃO E INVENÇÃO E LICENCIATURA E MATEMÁTICA E DEVIR-GUERREIRO E PROFESSOR E... 1 Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além d’a tarefa. (NIETZSCHE, 2008a, p. 45-46, grifos do autor) Para falar de formação de professores de Matemática, partiremos do mesmo princípio de Nietzsche (2008a), desta contínua exigência em resgatar nosso próprio percurso de formação, “juntar os cacos e reunir os fragmentos de si mesmo deixados ao longo do caminho da vida, que passo a passo vai se desenhando fora de si e sem prévio controle e disposição por parte daquele que vive” (GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 265, grifos do autor). Tanto meu pai como minha mãe eram professores, ou seja, vivi em todos os sentidos dentro dos muros da escola. Ora como filha de professores, que tinha que ser boa aluna em todas as matérias, pois minha mãe falava: nem pensar saber de vocês dando trabalho na escola. Enfim, dava-me bem com a Matemática, mas também com qualquer matéria, menos Educação Física. Acho que minhas escolhas eram, naquela época, fazer Psicologia ou Matemática. Como passei em uma universidade pública para o curso de licenciatura em Matemática e meus pais não tinham dinheiro para pagar a faculdade particular de minha irmã e a minha, para não ficar um ano sem estudar fui fazer o curso de licenciatura em Matemática. (K, professor do ensino básico, Chronos Registra: 16 de agosto de 2014) Esse juntar de cacos, que entendemos como uma arte de formar-se, é um movimento que se engendra em nosso corpo antes, durante e depois de um curso de licenciatura em Matemática. Um formar-se tal qual uma música sem composição previamente definida, apenas rupturas de sons, capazes de nos transportar de um lugar a outro. Mas não será isso uma composição dos cacos das marcas que nos perpassam? Somos sujeitos fragmentados que se constituem em meio a uma sucessão de encontros. Marcamos e somos marcados. Rupturas são produzidas em nosso corpo enquanto buscamos nossa constituição. São estas práticas que ora dispõem e integram, mas também em momentos outros se despedaçam para logo após se juntarem novamente que nos compõem continuamente. 27 Fiz um curso de processamento de dados e comecei a dar aula de Matemática, pois tinha que ajudar a sustentar minhas duas filhas. Eu precisava fazer licenciatura para me aperfeiçoar na Matemática, por uma questão de segurança, para dar aula para o ensino médio, precisava de um curso de licenciatura. Do diploma, E também eu me identificava com a matéria, sempre tive facilidade. (V, professor do ensino básico, Chronos Registra: 09 de abril de 2014) Escolhi a Matemática porque foi o único curso em que consegui bolsa de estudo. (D, professor do ensino básico, Chronos Registra: 24 de maio de 2014) A escolha por um curso de licenciatura em Matemática é um dos múltiplos cacos que são fragmentos isolados e, ao serem compostos, podem produzir certa configuração. Mas não uma configuração fixa, pois cacos podem ser reorganizados continuamente e produzir outros múltiplos desenhos. Cada desenho é uma composição singular do próprio sujeito. Compor com cacos abre a possibilidade de se reconstruir de outro modo. É como se nenhuma forma fosse suficiente quando se tem cacos, pois falta um pedaço, uma fagulha que não dá conta do que escapa à própria produção de compor. Conforme Dominick (2003), os conhecimentos tramados no corpo não têm necessariamente um início. Ele se dá no enlace de gerações com as várias culturas que coabitam o mundo. Tais conhecimentos se evidenciam na trama das raízes que se afundam ou afluem da terra e na quebra de vidros que, como cacos, podem ser recombinados com outros tantos em vitrais. Nem tudo é contínuo. Acontecimentos se dão no fluxo da própria vida. Imagens preservadas na memória do esquecimento que, apesar de já não simbolizarem a mesma coisa, ainda se fazem presentes. Aos 18 anos de idade comecei a cursar o magistério, mas parei porque engravidei e depois casei. Após o nascimento de minha filha, comecei a trabalhar em uma loja de tecidos e fiquei lá por seis anos, até que um dia uma das meninas que trabalhavam na loja me chamou para tentar prestar o vestibular para um curso de ciências/matemática. Topei. A escolha era a seguinte: ser balconista ou professora? Melhor ser professora, não acha? (A, Professor Ensino Básico, Chronos Registra: 24 de abril de 2014) Certos cacos podem mudar os rumos de uma vida, têm o poder de mudar direções, ideias e desejos. É a vida que, tal qual um furacão, insiste em se movimentar sem uma rota a ser seguida. Nada se sabe a priori do furacão; tampouco dos acontecimentos de uma vida. E, nesse caso, a escolha por um curso de licenciatura pode ser feita em um instante, sem uma ideia pensada de antemão, um lampejo que ainda nos dias atuais remete ao outro uma pergunta: “é melhor ser professora que balconista, né?” No entanto, são múltiplas as formas de decisão que perpassam um sujeito que resolve frequentar um curso de licenciatura em Matemática. 28 Eu sempre fiz escola pública, Queria entrar logo na faculdade e gostava de Matemática. Para mim, a Matemática sempre foi algo muito fácil. Pensei em fazer Engenharia, mas seria mais difícil passar no vestibular. Então, fui fazer Matemática. Foi por eliminação. Eu não sabia o que eu queria, gostava de ensinar. Sempre achei que eu poderia ensinar diferente do que a professora ensinava. Ela complicava muito as coisas. Achava que ela falava besteira. Prestei apenas em universidades públicas, porque eu acho o ensino melhor, pois existe uma seleção de alunos. A faculdade particular, ela é mais fácil, fraca. O interesse da faculdade particular é dinheiro, então não se força os alunos e eles não são levados ao limite. (B, professor do ensino básico, Chronos Registra: 20 de junho de 2014) Somos agenciados por um primeiro eixo horizontal que comporta um segmento de conteúdo e outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. (ZOURABICHVILI, 2004, p. 8) Nossas escolhas se produzem entre agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciações. Somos e estamos entre corpos que se atraem, repelem, expande ou retraem, mudam de lugar, se transformam. Podem ser corpos, partes de corpos ou até mesmo grupos que possuam determinadas características comuns. Há múltiplas formas de corpos, “os corpos podem ser físicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais, são sempre corpos ou corpus” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 22), e podem ser também máquinas, ferramentas, energias que se integram ou transformam-se sob os véus de determinadas regras. Haraway, Kunzru e Tadeu (2000) relatam que vivemos na era do ciborgue em um espaço onde os corpos vivem em relação constante com as múltiplas formas de máquinas. Tais relações compõem uma espécie de maquinação do próprio corpo. Não se trata apenas das máquinas que podem ser acopladas em um determinado corpo, como as diversas formas de implantes que encontramos na forma corpo atual, mas também máquinas que compõem nosso percurso diário, tais como o carro, o computador, o micro-ondas, o vídeo game, máquinas que só existem a partir de uma determinada ideia de corpo. Nosso corpo é uma máquina e como tal se (re)produz a partir das ligações com outras máquinas. Vivemos conectados a uma rede desordenada de dor pessoal, política e ciência capaz de compor uma determinada consciência (HARAWAY; KUNZRU; TADEU, 2000), ou seja, vivemos em um mundo de conexões repletas de agenciamentos maquínicos de corpos. 29 Eu trabalhava em uma empresa de ônibus e cursava o ensino médio à noite. Não ia fazer nenhuma faculdade, pois não tinha condições nem de pagar a inscrição para o vestibular, mas a escola ganhou umas inscrições e minha professora me deu e fui prestar, porque como trabalhava na empresa de ônibus podia ir de graça à cidade que precisava fazer a prova. Eu acho que quem escolheu o curso de Matemática foi a professora que me deu a inscrição. (P, professor do ensino básico, Chronos Registra: 28 de maio de 2015) Existe em um agenciamento um jogo de regras que o concretiza em algo, mas também algo que foge às suas próprias normalizações e, ao fugir, produz caminhos outros que a regra ainda não capturou. Há, no próprio agenciamento, um coletivo de enunciações, múltiplas falas que também nos produzem, ao mesmo tempo em que produzem o outro. As enunciações não representam algo específico, elas possuem forma própria, têm o poder de juntar, antecipar, reinterpretar o corpo. Só se pode agenciar entre agenciamentos. O agenciamento é o cofuncionamento, é a "simpatia", a simbiose. [...] A simpatia não é um sentimento vago de estima ou de participação espiritual, ao contrário, é o esforço ou a penetração dos corpos, ódio ou amor, pois também o ódio é uma mistura, ele é um corpo, ele só é bom quando se mistura com o que odeia. A simpatia são corpos que se amam ou se odeiam, e a cada vez populações em jogo, nesses corpos ou sobre esses corpos. (DELEUZE E PARNET, 1998, p. 43) Para eles, se a simpatia é este corpo a corpo, então, é a simpatia agenciar. Assim, formar se dá por simpatia, neste corpo a corpo, entre as coisas e os acontecimentos. Eu sabia que queria ir para sala de aula de qualquer jeito. Seria de Matemática ou Português, pois eram as disciplinas que sobravam mais aulas nas atribuições. Escolhi a Matemática. Eu nunca gostei de ter que pedir ou dar satisfação de minha vida para os outros. Queria ser independente. Para isso, era preciso trabalhar, ter meu dinheiro e a minha casa. Viver o que vivi com meus amigos, brigar, “desbrigar”, não ter dinheiro, ter que se virar nos trinta com o feijão e a batata da geladeira. Era isso que queria de princípio, e depois, nem o pouco que eu ainda dependia de minha mãe eu queria depender. (M, professor do ensino básico, Cronos registra: 24 de maio de 2014) Acontecimentos são produzidos por corpos que se encontram constantemente. Poderíamos nos perguntar onde se encontra ou em que consiste o acontecimento dentro da formação de professores de Matemática? Haverá acontecimento em um curso de licenciatura em Matemática? Tais perguntas não podem ser respondidas, até porque todo acontecimento já é em si mesmo inexplicável. Formar é um acontecimento, pois existe nele uma parte “que sua realização não basta para realizar, um devir em si mesmo que está sempre, a um 30 só tempo, nos esperando e nos precedendo como uma terceira pessoa do infinitivo, uma quarta pessoa do singular” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 53). Lembro-me dos meus pais me deixando pela primeira vez na cidade onde ia cursar o curso de licenciatura em Matemática, como eles não tinham dinheiro, eu consegui ficar no alojamento da faculdade, um lugar que depois de se acostumar não era tão ruim. Mas a primeira impressão? Fiquei aterrorizada. Se fechar meus olhos, vejo até hoje o carro indo embora e me deixando sozinha naquele lugar. (K, professor do ensino básico, Chronos Registra: 16 de agosto de 2014) O formar engendra-se e produz em nossos corpos, mas chega de fora, singularmente incorporal e se funde em nós em meio a uma batalha, de tal forma que, enquanto agentes ou não de nossa própria formação, o que nos resta é sermos dignos do que nos acontece (DELEUZE; PARNET, 1998). Assim, há dentro de nós múltiplas maneiras de formar. Se optarmos por sermos agentes de uma possível invenção de um si singular, estaremos em batalha contra as linhas de força que desejam nos subjugar às normas de uma sociedade. Mas se nossa escolha for ser subjugado por tal linha, basta que fiquemos parados e cumpramos as ordens estabelecidas por outros. Formar parece não estar relacionado apenas a um determinado curso de licenciatura. Há momentos de formação que acontecem fora dos portões da universidade e, ao mesmo tempo, os atravessam; é todo um movimento que se dá em/entre discursos: o casamento, o curso de licenciatura, a família, a Matemática, o namorado, o chopp no bar, os amigos, entre outros. Tais conjuntos, com seus respectivos discursos, engendram-se em um curso de licenciatura em Matemática, ao mesmo tempo que o curso, com seus enunciados, adentra tais ambientes. Nossa vida é feita assim: não apenas os grandes conjuntos molares (Estados, instituições, classes), mas as pessoas como elementos de um conjunto, os sentimentos como relacionamentos entre pessoas são segmentarizados, de um modo que não é feito para perturbar nem para dispersar, mas ao contrário para garantir e controlar a identidade de cada instância, incluindo-se aí a identidade pessoal. [...] Todo um jogo de territórios bem determinados, planejados. Tem-se um porvir, não um devir. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 62) Eu chegava em casa do curso de matemática às 24h e das 24h até 1h30 eu estudava. Dormia então às 2h da manhã e acordava às 5h [para trabalhar]. Essa era minha rotina. Eu consegui fazer tudo isso com uma filha e um marido contra a minha faculdade. Meu marido me trancava fora de casa, e era fácil me trancar fora, pois eu esquecia a chave. Aí eu batia na porta e ele demorava a abrir, pois ele sabia que eu tinha medo de escuro e de bicho, até porque eu morava na zona rural. Chegou o momento que eu pedi a separação, pois, entre ele ou o estudo, eu queria 31 estudar. O primeiro ano foi barra pesada. (A, Professor Ensino Básico, Chronos registra: 24 de Abril de 2014) É entre conjuntos molares e sobre eles que o sujeito se situa. Casamento, família, trabalho, licenciatura, Matemática. Todo um sistema de regras diferentes, de acordo com o conjunto molar que se encontre no momento. No entanto, tudo não passa de escolhas. Escolher uma profissão, um marido, uma casa e, após a escolha, enfrentar ou fugir, mas mesmo fugir é enfrentar, pois ao sairmos de um conjunto já estamos em outro. Sendo assim, formar pressupõe uma passagem por múltiplos estratos. Tais estratos são fluxos que nos arrastam por redes de linhas de forças extremamente rígidas, que tem por função controlar, normatizar e enquadrar na busca por manter a ordem de determinado estrato social. Dessa forma, resta ao próprio sujeito procurar diferentes práticas de constituição de si, pois mesmo entre as linhas que nos enquadram podem existir linhas outras que fogem à própria normalização. 2 Cremos ser necessário descrever o que entendemos como formação. Para Ferreira (2004, p. 923), o significado da palavra formação, do latim formatione, é o ato, efeito ou modo de formar. Constituição, caráter. Maneira pela qual se constitui uma mentalidade, um caráter ou um conhecimento profissional. Ainda conforme o mesmo dicionário, ato é aquilo que se fez, feito. Efeito, resultado de um ato qualquer, efetivação, execução, realização (FERREIRA, 2004). Assim, a partir dessa contribuição, pode-se dizer que formar um sujeito pressupõe as maneiras usadas para a constituição de uma mentalidade, um caráter ou um conhecimento profissional. Mesmo conhecendo as divergências existentes nas ideias dos filósofos da diferença com os conceitos socráticos, optamos por trazer um diálogo de Sócrates e Diotíma no “Banquete”, publicado por Platão (1999), pois tal discussão pode nos fornecer subsídios para o entendimento do formar-se enquanto uma luta constante pela busca do conhecimento. Neste diálogo, Diotíma relata que a formação é possível àquele que não é ignorante o suficiente para dizer que não precisa ser formado, ao mesmo tempo que entende que nunca estará formado plenamente. “Ignorância, ao mesmo tempo, das coisas que se deveria saber e ignorância de si mesmo enquanto sequer se sabe que as ignora” (FOUCAULT, 2010, p. 42). Ele vai se formar a ser; ele não é no momento, é um devir, uma multiplicidade, uma potência. 32 Quando Sócrates dialoga com Diotíma sobre Eros3, ela nos mostra que Eros queria ser belo e que esse desejo o fazia continuar dedicando seus esforços em busca disso. Em um contexto de formação, a ideia é a mesma, é a busca por formar-se que impulsiona o sujeito a determinada direção, mesmo que ele nunca se encontre totalmente formado. Reiteramos que o diálogo entre Diotíma e Sócrates nos fornece subsídios para o entendimento que formar-se pressupõe uma luta constante pela busca do conhecimento. Assim, o sujeito está, a todo instante, em vias de se tornar algo. Entretanto, este tornar-se depende da luta, da disposição e do interesse existente para a invenção de si. Inventar-se é duplo roubo que se dá na relação com si mesmo e com o mundo. É este o movimento de formar-se. Ou seja, enquanto nos formamos, roubamos e somos roubados continuamente. Todo conhecimento é feito por encontros. Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, nada além de uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla- captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isso que faz, não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre "fora" e "entre". (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 6-7) Assim, não existe um discurso único, uma ideia única, mas um discurso em formação, ou seja, um movimento que forma. Um movimento que nunca é igual, pelo contrário, é diferente. Em cada conversa há nuances de linhas de força quase invisíveis que nos perpassam. O momento do encontro... não será, então, toda formação uma sucessão de encontros? Tenho uma história com o André, que rouba as câmeras da escola. Esse menino é um toquinho. Ele não sabe nem falar direito. A vida dele é esta: a mãe e a avó estão presas por tráfico de droga. O pai é viciado em crack e está na rua e quem cuida dele é uma tia de terceiro grau. Conclusão: ele vem para a escola e fica aprontando. Aí eu comecei pegá-lo e fazer com que ele ficasse do meu lado, logo, ele só tinha presença na minha aula. Observei que todas as atividades que eu dava, ele conseguia fazer, inclusive as atividades de quinta série. Ele sabe fazer, apenas não quer fazer. O que acontece é que, nas outras aulas, ele foge. Ele só participa das minhas aulas, me procura em outras salas e fica me perguntando que horas eu irei à classe dele. Ele nem gosta de Matemática. Dá para perceber, ele gosta de mim. Um dia ele estava acendendo fósforos e arremessando-os no cabelo das meninas da classe, eu chamei a diretora. Ele olhava com tanto ódio para mim e dizia: “eu te odeio, professora, eu te odeio”. A diretora o tirou da sala e, depois de um tempo fora, ele chegou chorando e dizendo: ”eu não te odeio, professora”. Ele estava aos prantos. O problema é que eu não tenho apenas esse na sala, eu tenho vários outros que o pai é traficante, não tem mãe, se tem mãe ela não sabe o que faz com o filho. Esses dias eu estava dando 3 Eros, filho de Afrodite, na mitologia grega, é considerado o deus do amor. 33 aula em uma sala, demorei 15 minutos para fazê-los sentarem e abrirem o caderno. Quando eu ia começar a aula, chegou o André na porta e gritou assim: ”quem quer bala...?” E tacou bala pela sala e saiu correndo. O que eu tinha feito foi desfeito por conta da bala. Não é para desistir de tudo, sentar e chorar? Ele fez isso em todas as salas do corredor em que eu estava. Nenhum professor, a não ser eu, fica com ele na sala. Alguns dias atrás, ele ficou quatro aulas comigo, foi o único jeito que achamos para ele não ser suspenso novamente. (A, Professor Ensino Básico, Chronos Registra: 24 de abril de 2014) Múltiplos são os encontros. Ora produzimos encontros, ora os encontros são produzidos pelos espaços em que nos encontramos. Com ou sem nossa permissão, a vida se dá por uma sucessão de encontros. Dessa forma, encontros que formam podem se produzir dentro e fora de ambientes de formação. Não há um tempo cronológico que dê conta dos encontros com nós mesmos e com o mundo que nos cerca. Falamos de uma formação de professores de Matemática que não se restringe a um espaço/tempo determinado. Há uma incompletude que fundamenta a própria arte de formar, pois formar-se é um movimento que acontece enquanto se vive, uma invenção que tem relação com maneira como cuidamos de nós mesmos, com o modo com que cuidamos de nosso corpo e alma. Para os gregos, os jovens deveriam se preocupar apenas com o dinheiro e com a guerra; por conta disso, existiam práticas que deveriam ser seguidas para que isso acontecesse. Sócrates propõe outra ideia: cuidar do corpo e da alma e não se preocupar apenas com um ou outro, mas com os dois “na Apologia, por exemplo, quando Sócrates diz que incita seus concidadãos de Atenas e, de resto, todos aqueles que ele encontra, a se ocuparem com sua alma (psykhé) a fim de que ela se torne o melhor possível” (FOUCAULT, 2010, p. 50). Foucault (1985) relata que o sujeito deve viver cuidando-se sem cessar. Narra, também, que esta vacância toma a forma de uma atividade múltipla que demanda que não se perca tempo “e que não se poupem de ‘formar-se’, ‘transformar-se’, ‘voltar a si’” (FOUCAULT, 1985, p. 52). Assim, o conhecimento não é um caminho suave, é um percurso tortuoso que qualquer um pode percorrer, se essa for sua vontade. O formar-se se dá pelo desejo do sujeito. Dessa forma, formar-se implica um olhar para dentro de si, conhecer-se, uma visão para os elementos que o aprisionam, um voltar a si. Tudo isso faz parte de um movimento singular daquele que deseja constituir-se, inventar-se. 34 Assim, a formação enquanto invenção de si seria um devir constante. Quando pensamos em formação nesta ótica, pensamos em movimento, o movimento do sujeito, daquele que forma-se. Afinal, o sujeito é como o rio de Heráclito, aquele no qual não se entra duas vezes, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras. Quando passei no vestibular para cursar a licenciatura em Matemática, tive que largar o emprego e mudar para outra cidade. Mas como ia me sustentar lá? Consegui então ficar no alojamento da faculdade e ganhei uma bolsa de 120,00 reais para me sustentar. Dava para comer. Naquele momento, era o que eu precisava: um lugar para comer e dormir. Mas no começo do segundo ano aconteceu um problema no Departamento de Recursos Humanos e me tiraram a bolsa. Alegaram que eu não precisava dela porque tinha gente que precisava mais do que eu e me deram vale alimentação. O que eu fazia, então? Almoçava e vendia o vale alimentação da janta para poder comprar coisas básicas. Meu orientador tinha pedido uma bolsa de iniciação científica da Fapesp, mas ainda não tinha chegado o resultado. Fui à sala dele e falei que iria desistir do curso, pois não tinha como me sustentar mais. Ele me disse, então, que até sair a bolsa da Fapesp ele daria para mim o mesmo valor da bolsa. Não precisou porque na outra semana saiu a bolsa da Fapesp. (P, professor do ensino básico, Chronos Registra: 28 de maio de 2015). Enquanto sujeitos, passamos por estágios de formação. Nietzsche (2011) relata os três estágios que um espírito pode passar enquanto inventa-se. O primeiro é o camelo, que é o espírito de resistência ligado pelo respeito; cargas pesadas pedem a sua força. No mais ermo dos desertos, o camelo se transforma em leão: quer conquistar sua liberdade para ser senhor de seu próprio deserto. “Todas essas coisas mais que pesadas o espírito resistente toma para si: semelhante ao camelo que ruma carregado para o deserto, assim ruma ele para seu próprio deserto” (NIETZSCHE, 2011, p. 27-28). A palavra de ordem para o leão não é mais “tu deves”, mas sim, “eu quero”. Zaratustra nos interroga dizendo: Meus irmãos, para que é necessário o leão no espírito? Por que não basta o animal de carga, que renuncia e é reverente? Criar novos valores – tampouco o leão pode fazer isso; mas criar a liberdade para a nova criação – isso está no poder do leão. Criar liberdade para si e um sagrado Não também ante o dever: para isso, meus irmãos, é necessário o leão. (NIETZSCHE, 2011, p. 28) No entanto, há ainda uma última metamorfose necessária ao espírito. O leão se torna criança. É preciso se tornar criança para dizer sim à sua vontade, dizer sim ao seu mundo. Para Zaratustra, é uma roda que gira por si mesma. Para nós, é a roda da formação. O que pensamos para a formação é justamente isso. Enquanto camelos, carregamos o peso das obrigações que não são nossas, mas nos são impostas; enquanto leões, dizemos não a 35 essas obrigações, lutamos contra elas, para podermos ser dono de nosso próprio mundo; no entanto, serão necessários novos valores. Para isso, teremos que nos tornar crianças e dizer sim, um sim a valores singulares, um sim à vida. Tais estágios de formação não são escadas que escalamos para passar do camelo para o leão e após isso chegar à criança em certa ordem que nos formará. Pelo contrário, podemos ser crianças e nos tornarmos camelos, assim como um camelo se tornar um leão ou vice-versa. É a roda da construção de si, uma roda que se extingue com o último suspiro de vida. Por conta disso, não é possível se dizer formado para nada, pois estamos sempre em vias de nos inventar para enfrentar algo ou alguma situação. 3 O diálogo é a conversa perfeita, porque tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em restrita referência àquele com quem fala, ou seja, tal como sucede na troca epistolar, em que a mesma pessoa tem dez maneiras de exprimir sua alma, conforme escreva a este ou àquele indivíduo. No diálogo há uma única refração do pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, com espelho no qual desejamos ver nossos pensamentos refletidos do modo mais belo possível. (NIETZSCHE, 2005, p. 196) O diálogo se apresenta como uma ferramenta fundamental à formação. No entanto, quais as possibilidades existentes em um curso de licenciatura em Matemática que favorecem espaços de diálogos? É possível, em nossos cursos de licenciatura, produzir momentos para que haja uma conversa perfeita em que cada um possa expressar seus gestos, referências e tons? Meu relacionamento com meus alunos sou eu aqui e eles lá. É pouco nosso relacionamento. Eu passo o conteúdo e pronto. Na minha aula, não tem muita discussão entre professor e aluno. O que faço é expor o conteúdo e pronto. (H, professor Universitário, Chronos Registra: 05 de junho de 2014) O professor Cesar Leite (informação verbal)4 acredita que existe uma linha de força na fala do professor H que deve ser evidenciada. Será que tal linha de força pode ser a comprovação de que tal professor acredita que a formação de um licenciando em Matemática deve ser medida pela exposição do conteúdo matemático? Ou então, pode ser a possibilidade da distância a que o próprio docente se coloca de seus alunos, para que não exista nenhuma chance de diálogo entre eles? 4 Informação obtida com o professor Doutor Cesar Donizetti Pereira Leite na qualificação desta tese, em 2016. 36 Figura 1: Imagem do curso de licenciatura em Matemática em que F atua como docente. Acho que é a própria característica do lugar, por ser menor é mais fácil o contato com os alunos, por ser menos alunos, embora na Matemática seja cada vez menos o número de alunos. Mas se você pega outros lugares, Rio Preto, por exemplo, como são mais alunos, tem um distanciamento maior. Os alunos aqui são bem assistidos. Os professores estão preocupados em saber como os alunos estão indo. Em outros lugares, em bacharelado talvez até mais puxados, o professor vai lá e faz a dele e os alunos que corram atrás. (J, professor Universitário, Chronos Registra: 06 de junho de 2014) Qual a intenção desta característica singular da UNESP de Ilha Solteira? Porque os alunos, diferentemente de outras universidades, se beneficiam com um maior contato com os professores? Qual a intenção docente que reside nessa ferramenta? O que garante a qualidade de um conceito matemático seria a dificuldade de tal conceito? Diálogos podem existir para a discussão de determinado conceito matemático ou a necessidade de saber como os alunos estão se adaptando a determinadas situações, mas será apenas essa a sua função? Mesmo antes do curso de Matemática, o pessoal da Engenharia falava que aqui se tinha uma relação mais pessoal com os professores. Aqui, por ser uma cidade pequena, o contato pessoal é maior com os alunos, o que pode não acontecer em outras localidades. Em São Paulo, por exemplo, o aluno via o professor na hora da aula. Não tinha horário para tirar dúvidas, ver a prova ou ir à sala do professor. Mas aqui sempre teve um contato maior. Com o curso de Matemática foi maior ainda, não sei se continua tão forte, mas no começo foi assim, a gente tinha proposto o curso há muito tempo e, quando saiu o curso, foi uma realização para todo o grupo que participou da formação do curso. Então todo o grupo se dedicou mais aos alunos. Ainda continua, os alunos continuam procurando, conversando. Vários têm bolsas. O contato também fica fora da sala de aula. (F, professor Universitário, Chronos Registra: 06 de junho de 2014) Ao propor uma discussão sobre a importância do diálogo no processo de formação de professores de Matemática, podemos cair na armadilha de teorias educacionais que pregam o 37 diálogo como uma “força mágica” capaz de fornecer educação a todos. O diálogo é uma ferramenta que faz parte da formação, sua importância é indiscutível. No entanto, embora os discursos fundamentem a importância do diálogo, o que aparece é a incapacidade de sua efetivação. Diante dessa impossibilidade, o discurso de sua importância pode gerar um processo dialógico quimérico. Queremos nos distanciar de discursos educacionais que pregam o diálogo como salvação, pois acreditamos que o diálogo pode fornecer um espaço de tensão que povoe este processo de invenção de si, um espaço onde linhas de força circulem em uma conversa sobre determinada teoria ou conceito matemático. Não se trata de uma imposição de conceitos matemáticos, mas de uma discussão deles mesmos. O diálogo pode produzir linhas de força cuja tensão pode acelerar encontros entre os sujeitos que compõem determinado dispositivo formativo. Assim, o diálogo pode ser visto por um campo de conflitos que explicita as tensões que nos atravessam enquanto somos subjetivados. Dessa forma, as tensões produzidas em tal espaço não são apenas aquelas que compõem a agenda de conceitos matemáticos, mas sim são de todas as formas, vem de todos os lados. Os diálogos. Acho que antes acontecia mais. Hoje já não muito. Não sei se é porque eu estou ficando velho. Mais no final da disciplina tem mais [diálogo]. Na sala de aula não há muito tempo para isso. No começo, eles têm um pouco de medo da gente. Eles querem saber sua posição em relação às políticas educacionais do país, mas isso depende da liberdade que o aluno tem ou não com o professor. Mas quando tem muito diálogo, você paga um preço, pois tem hora que eles acham que você é psicólogo deles. Eles te param e começam a contar problemas particulares, ou seja, te confundem com psicólogos. Para discutir a Matemática a gente tem fóruns, semanas da Matemática e dia da graduação, que são dedicados para isso. Os coordenadores do curso têm um diálogo mais próximo até pelos cargos que ocupam. Agora você tem alunos que têm mais confiança em você ou em outro e vai procurá-lo. Mas esta cidade favorece nesses diálogos, por ser um curso pequeno. Talvez em cursos maiores isso ocorra com menos frequência. (P, professor Universitário, Chronos Registra: 06 de junho de 2014) O conceito do diálogo toma nuanças diversas nas falas dos professores. Em determinados momentos, quase tocamos o fio da ferramenta diálogo, que acreditamos ser indispensável à formação, mas quando pensamos em tocá-lo, ele já não existia mais. Esse jogo abre espaço para um diálogo no qual falar de si mesmo é suportável, mas não indispensável. O formar começa a se distanciar do sujeito. Este si que forma-se parece não ser mais essencial para a formação de professores de Matemática. 38 4 Estamos vivendo o tempo das exigências. Qualquer movimento do sujeito pressupõe uma lista de capacidades específicas para desempenhar determinadas atividades. Hoje, chamamos isso de perfil profissional. Ou seja, para barrar alguém, basta dizer que esse sujeito não possui o conjunto de habilidades compatíveis com as exigências de determinado cargo. Assim, qual seria o perfil de um professor de Matemática? Tal pergunta pode ser transformada em outra, como: o que é necessário para a formação de um professor de Matemática? Vejo, no geral, os alunos alegres, satisfeitos. Temos, hoje, quatro ambientes só da Matemática: um laboratório de informática e três salas adicionais além desse laboratório de informática, sendo que em uma delas será criado um laboratório de ensino de Matemática, um laboratório audiovisual e uma sala alternativa de aula ou uma sala de estudos para os alunos. As chaves dessas salas geralmente estão com eles. Isso melhorou muito o comportamento deles em relação ao estudo. Tem internet, ar condicionado, quadro acrílico, o que mais eles poderiam querer? O que mais querem? As condições para estudar estão aí! A biblioteca melhora a cada ano, o acervo. O mínimo razoável [foi dado]. É só estudar. (C, professor Universitário, Chronos Registra: 05 de junho de 2014) Além dos aspectos físicos que uma universidade pode oferecer para a formação de professores de Matemática, o que mais pode querer um sujeito que deseja frequentar tal curso de licenciatura? Em geral, o que a universidade poderia oferecer para seus licenciandos? O essencial para sermos bons professores, a faculdade não dá. O que eles nos dão é a parte teórica. Você aprende isso e de onde isso veio e talvez uma forma de ensinar. Agora para eu chegar na sala e... sei lá, explicar para uma criança uma fração, porque isso, de onde veio, para onde vai, isso vem de mim. Isso a faculdade não me proporciona. E hoje em dia as crianças não gostam de Matemática. Não. Elas não entendem Matemática, e não é culpa delas. É o professor que tem que se preocupar em passar de uma forma mais clara. Infelizmente, a Matemática é muito mal vista, porque ela é jogada desde o ensino médio. Então aqui na faculdade a gente aprende de onde a Matemática vem. A pergunta que todos fazem até hoje é onde nós iremos usar o que estamos aprendendo aqui. Para que isso serve? E até hoje ninguém respondeu. A gente sai procurando, mas é como os exercícios de uma prova, os que o professor dá nunca são suficientes para fazer a prova, então para ser um bom professor eu tenho que fazer estágio. Dar aula. Ir para a escola. Analisar como o professor é na sala de aula, para saber se o que ele faz é bom ou não para que eu possa usar. (Aluno 3, 2º ano do curso de licenciatura em Matemática, Chronos Registra: 01 de dezembro de 2014) A universidade fornece saberes matemáticos, contudo, parece não conseguir ultrapassar os muros de seus conhecimentos teóricos. No curso de licenciatura em Matemática, parece que tudo não passa de teorias matemáticas e pedagógicas, de forma que 39 não se abre espaço para nada fora deste limiar. No entanto, toda essa teoria é uma grande caixa de ferramenta. Conforme Deleuze: Uma teoria é uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas. E curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. (FOUCAULT, 1979, p. 43) Talvez o curso de licenciatura pudesse assumir que o conceito matemático não deve ser procurado, e sim encontrado. Os saberes matemáticos não são uma “entidade metafísica” da qual devemos nos apropriar, é tão somente uma ferramenta que foi criada e produzida no mundo e a partir do mundo. Os conceitos não estão para serem compreendidos. A compreensão, o que faz, é imobilizar o pensamento, na medida em que apresenta a resposta para um problema. Se o problema está resolvido, já não é necessário pensar. Os conceitos, ao contrário, são mobilizadores e motores do pensamento, estão para fazer pensar, não para paralisar, imobilizar o pensamento. Cada conceito remete a outro conceito, a outro problema. Cada conceito conecta-se com vários outros e pede novas conexões. Assim, num movimento infinito do pensamento, o que temos é sempre novos conceitos sendo criados, por conexão, por deslizamento, por deslocamento... é a invenção de novos problemas, como num motor contínuo. (GALLO, 2008a, p. 66. Grifos do autor.) Desta forma, os conceitos matemáticos servem para determinadas situações e, por conta disso, é difícil chegar a conclusões de quais ferramentas são imprescindíveis àqueles que terminam um curso de licenciatura em Matemática, pois, ao definir o que se deve ou não ensinar, limitamos a invenção de outros conceitos. Tais zonas definidas de formação castram o funcionamento dos motores do conceito matemático. Devemos assumir que permaneceremos ignorantes ao que ensinamos e que nos perderemos por vezes dentro do próprio saber matemático imposto. Nossas práticas se assemelham à analogia usada pelo aluno, “[...] O que o professor dá nunca é suficiente para fazer a prova.” (Aluno 3, 2º ano do curso de licenciatura em Matemática, Chronos Registra: 01 de dezembro de 2014) 40 E pode ser que, consequentemente, nosso saber não seja suficiente para ensinar alguma disciplina; mas mesmo assim se ensina, na ilusão de conhecer o necessário para que certas práticas sejam assimiladas. Temos sempre este impulso de criar ideais. Cada um cria para si mesmo um modo de ser professor; pode-se dizer que cada um carrega um modelo de professor. Dessa forma, a universidade se encarrega de também nos afetar para o modelo já estabelecido de um profissional da educação. No entanto, será que ficam em nós indícios desses modelos reproduzidos por determinado curso de licenciatura? Enfim, quais imagens ficam engendradas em nosso corpo enquanto alunos de um curso de licenciatura em Matemática? A hora da correção da prova? [Risos]. Cada professor aqui tem certas características. Esse professor é assim, então nós temos que fazer deste jeito. Tem professor que joga a matéria de qualquer jeito e tem professor que passa definição, exemplo, proposição. Você vê que ele veio preparado para passar isso, se não der tempo, você percebe que para ele tudo bem, não deu. Agora tem professor que vem aqui com o roteiro, ele parece um robozinho na lousa, não interessa a ele se você sabe ou não e se você pergunta você fica com mais dúvida do que antes de ter perguntado. Na minha opinião, por mais que a gente esteja na universidade e as coisas não podem ser tão devagar, tem que ter certa velocidade, um professor que explica e se preocupa com o aluno ainda é necessário. Eu acho que um bom professor é aquele que tira pelo menos uma dúvida por aula e não aquele que taca tudo na lousa e no fim fala: qualquer dúvida vai à minha sala. Eu até poderia ir. Mas e uma pessoa que tem vergonha, porque não sabe nem a dúvida que tem para ir lá perguntar? (Aluno 6, 2º ano do curso de licenciatura em Matemática, Chronos Registra: 01 de dezem