Universidade Estadual Paulista Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Gustavo Barbosa Platão e a Matemática: uma questão de método Rio Claro 2014 Gustavo Barbosa Platão e a matemática: uma questão de método Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, Área de Concentração em Ensino e Aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosófico-Científicos do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Rio Claro, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Irineu Bicudo Rio Claro 2014 Barbosa, Gustavo Platão e a matemática : uma questão de método / Gustavo Barbosa. - Rio Claro, 2014 158 f. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Irineu Bicudo 1. Matemática - Filosofia. 2. Hipótese. 3. Heurística. 4. História da matemática. 5. Análise e síntese. 6. Epistemologia. I. Título. 510.1 B238p Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Gustavo Barbosa Platão e a matemática: uma questão de método Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, Área de Concentração em Ensino e Aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosófico-Científicos do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Rio Claro, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Irineu Bicudo Comissão examinadora Prof. Dr. Irineu Bicudo – Orientador (IGCE – UNESP) Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho (FFLCH – USP) Prof.ª Dr.ª Renata Cristina Geromel Meneghetti (ICMC – USP) Prof. Dr. Marcos Vieira Teixeira (IGCE – UNESP) Prof. Dr. Inocêncio Fernandes Balieiro Filho (FEIS – UNESP) Rio Claro (SP), 20 de março de 2014 Dedico este trabalho à memória de Pedro Castelar, de quem, por causa da distância, fui impedido de me despedir e de dar meu abraço de solidariedade à esposa, filhos e netos. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família: minha mãe e minha irmã, pelo apoio e compreensão; à minha esposa, pela companhia, pelas pequenas coisas, por permitir, com sua presença, que eu viva simultaneamente com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, e pelo sacrifício por ter ido viver comigo por quase um ano numa ilha paradisíaca do Mediterrâneo; às minhas tias, que têm nos acompanhado e incentivado ao longo dessa jornada. Ao Professor Irineu Bicudo, por todos os ensinamentos, pela paciência, pelas orientações e pela amizade. E também à sua esposa, Elisabeth Christina Plombon pela companhia nos estudos de grego, pela serenidade contagiante, pelas palavras de apoio e pela acolhida. À Coordenação do Programa de Pós-Graduação. À CAPES pelos apoios financeiros, tanto no Brasil como no exterior. À Professoressa Elisabetta Cattanei pela acolhida e pelo auxílio à pesquisa, e ao seu grupo de pesquisa na Università di Cagliari. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, com quem pude aprender muito desde o Mestrado, seja com suas disciplinas, seja nas conversas informais. À Banca Examinadora – em especial à Prof.ª Renata Cristina Geromel Meneghetti, que me iniciou nos caminhos da história e da filosofia da matemática. Aos funcionários do Departamento de Matemática: as secretárias Ana Maria de Lima Sargaço e Maria Elisa Leite de Oliveira de Moraes; a secretária da Pós-Graduação Inajara Federson de Moraes; e os assistentes de suporte acadêmico José Ricardo de Lima Guimarães e Hugo Pereira de Godoy. Por último, mas não menos importante, aos amigos, pela convivência, aprendizados, caminhadas, debates e risos. Aos membros do cortiço, (residentes e agregados – nacionais e internacionais), desde a minha chegada até depois da minha partida.    ; “Pois quando o princípio não é conhecido, ao passo que o fim e as coisas médias estão entrelaçadas ao que não é conhecido, tornar-se a concordância que tal alguma vez em ciência por qual artifício?” (PLATÃO, A República, VII 533 c 2-4) RESUMO O objetivo dessa tese é investigar a relação entre matemática e filosofia em três obras de Platão: o Mênon, o Fédon e A República. Busca-se com isso esclarecer, primeiramente, a influência da matemática no desenvolvimento da filosofia, e, depois, o efeito desta na evolução metodológica daquela, principalmente no que diz respeito ao método analítico, ou hipotético. A pesquisa é norteada pelos testemunhos de Proclus em seus Comentários ao Livro I dos Elementos de Euclides, onde o nome de Platão é associado ao método. Em seguida, verifica-se a descrição dos métodos da análise e síntese feita por Pappus de Alexandria em sua Coleção matemática, a partir da qual são procurados nos diálogos os elementos precursores. A interpretação dos trechos matemáticos dos textos platônicos apoia- se nos testemunhos e fragmentos de Hipócrates de Quios, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento, elaborando assim um quadro geral do estado da arte das ciências matemáticas nos séculos V-VI a.C. O seu intuito foi o de contextualizar as principais questões da matemática que teriam atraído o interesse de Platão, levando-o a valer-se da matemática como paradigma metodológico e heurístico a ser adaptado à filosofia. Apresentando uma inovação didática envolta por problemas da imprecisão da linguagem, Platão reformula as doutrinas pré- socráticas combinadas ao pensamento matemático, cujos desdobramentos são essenciais à organização aristotélica e à formalização Euclidiana. Palavras-chave: Hipótese. Heurística. História da Matemática. Análise e Síntese. Epistemologia. ABSTRACT The objective of this thesis is to investigate the relationship between mathematics and philosophy in three Plato‟s work: the Meno, the Phaedo and the Republic. Searching with this to clarify, first, the influence of mathematics in the philosophy‟s development, and then, the effect of this one on the methodological development of that, especially with regard to the analytical or hypothetical method. The research is guided by the Proclus testimony in his Commentary On The First Book of Euclid’s Element, where the name of Plato is associated with the method. Hereupon, is checked the description of the methods of analysis and synthesis made by Pappus of Alexandria in his Mathematical Collection, from which is searched the precursor elements on the dialogues. The interpretation of the mathematical passages of the Platonic texts are based on testimonies and fragments of Hippocrates of Chios, Philolaus of Croton, and Archytas of Tarentum, thus elaborating a general picture of the mathematical sciences state of the art in the centuries V-VI BC. Its scope was to contextualize the main issues of the mathematics that have attracted the Plato‟s interest and that led him to avail himself of that science as a methodological and heuristic paradigm to be adapted to the philosophy. Featuring a didactic innovation surrounded by the imprecision of language problems, Plato reformulates the pre-Socratic doctrines combined to the mathematical thinking, whose developments are essential to Aristotelian organization and Euclidean formalization. Keywords: Hypothesis. Heuristic. History of Mathematics. Analysis and Synthesis. Epistemology. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS DK – Utilizamos ao longo de todo este trabalho a referência padrão à coletânea de testemunhos e fragmentos dos pré-socráticos de Herman Diels e Walther Kranz, indicando pela letra “A” informações sobre a vida e a obra dos personagens; pela letra “B” os seus fragmentos autênticos, dúbios e espúrios; e por “C” as imitações. À esquerda de cada letra há um número que representa o capítulo da obra de Diels-Kranz, e, à direita, o número que corresponde ao testemunho, fragmento ou imitação do autor em questão. A versão utilizada é a italiana, editada e traduzida por G. Reale, cuja referência completa encontra-se na bibliografia. SUMÁRIO 1 Introdução ........................................................................................................ 12 1.1. O quadro geral do problema ....................................................................... 12 1.2. Matemática e filosofia no pensamento de Proclus...................................... 14 1.3. Pappus e a descrição dos métodos da análise e síntese ............................... 19 1.4. A genealogia do método pelo método ......................................................... 21 1.5. A participação de Platão no mundo da matemática .................................. 22 1.6. O  que, guiado pela , fornece vida a todas as coisas ................. 23 1.7. O método hipotético na matemática e na dialética de Zenão .................... 26 1.8. O itinerário de Platão e os métodos matemáticos na Academia ................ 27 2 O Mênon ........................................................................................................... 30 2.1. Uma inovação didática e heurística ............................................................ 30 2.2. A composição da definição .......................................................................... 32 2.3. Da escala platônica à euclidiana ................................................................. 36 2.4. A lição de geometria .................................................................................... 38 2.4.1. Primeiro Momento (82 b-e): o estabelecimento dos dados do problema. .............................................................................................. 39 2.4.2. Segundo Momento (82 e-84 a): os irracionais ..................................... 41 2.4.3. Terceiro Momento (84 d-85 b): Hipócrates de Quios e a geometria no fim do século V ..................................................................................... 45 2.5. O método hipotético dos geômetras ............................................................ 53 2.6. Platão e os métodos da análise e da síntese ................................................. 56 2.7. Interações metodológicas entre geometria e filosofia ................................. 60 2.8. As perspectivas dos ensinamentos de Platão .............................................. 63 3 O Fédon ............................................................................................................ 65 3.1. A Paixão de Sócrates ................................................................................... 65 3.2. Uma demonstração por partes .................................................................... 66 3.3. Reminiscência e geometria – outra vez mais .............................................. 67 3.4. A qualidade dos personagens e o rigor exigido por eles ............................. 68 3.5. Filolau de Crotona e a semântica da demonstração ................................... 73 3.6. Prelúdio ao método – a busca pelas causas ................................................ 79 3.7. A fixação das hipóteses ................................................................................ 81 3.8. Explorando as consequências das hipóteses ............................................... 82 3.9. A defesa das hipóteses ................................................................................. 87 3.10. Análise e Síntese pré-conceitualizadas no pensamento de Platão .............. 89 3.11. Proclus e a sintaxe da demonstração .......................................................... 92 3.12. O  e o  entrelaçados pela incompletude da linguagem ............. 97 4 A República .................................................................................................... 100 4.1. A cidade, a paidéia e o Bem ....................................................................... 100 4.2. Um caleidoscópio metafórico .................................................................... 101 4.3. As hipóteses e a direção da pesquisa nas ciências matemáticas ............... 104 4.4. As hipóteses e a direção da pesquisa na dialética ..................................... 107 4.5. Educação e reforma em uma família de ciências ..................................... 110 4.5.1. As ciências dos números ..................................................................... 111 4.5.2. A geometria ........................................................................................ 118 4.5.3. A ciência dos sólidos considerados em si mesmos ............................. 124 4.5.4. As ciências dos movimentos ............................................................... 127 4.6. Uma visão de conjunto das ciências propedêuticas à dialética ................ 131 4.7. Análise e síntese e as vias de ascensão e descenso entre matemática e dialética ...................................................................................................... 134 5 Considerações finais ....................................................................................... 138 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 145 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................ 155 12 1 Introdução 1.1. O quadro geral do problema Os métodos da análise e síntese são bem conhecidos pelos matemáticos, embora pouco discutidos. Podem ser descritos, basicamente, como procedimentos complementares. O primeiro parte do fim em direção aos princípios, e termina assim que encontra uma conexão entre esses dois polos; já o segundo segue pela reconstituição do caminho encontrado, porém em sentido inverso, isto é, partindo dos princípios em direção ao fim. A razão por que são pouco discutidos, como escreveu Hardy (2000, p. 56), é porque “a função de um matemático é fazer algo, provar novos teoremas, contribuir para a matemática, e não falar sobre o que ele ou outros matemáticos fizeram”. Esse fascínio pelos resultados em detrimento da reflexão sobre os seus próprios princípios e métodos parece ser um traço genético das práticas dos antigos povos que habitavam as regiões do Egito e da Babilônia. A sua transmissão determina um hábito denunciado por Sócrates na República, o de que os matemáticos, de um modo geral, a respeito das hipóteses que utilizam, “acham que não têm de prestar contas nem a eles mesmos nem aos outros” (VII 510 c, PLATÃO, 2006, p. 262). Mergulhada no caldo cultural da Hélade, essa herança sofre mutação, manifestando-se por meio da relação de influência mútua entre matemática e filosofia, que se “inicia” com Tales de Mileto, e que se aprofunda com Pitágoras de Samos. Mas é na Academia de Platão que ocorre o seu momento de maior prosperidade, onde, levados a uma nova consciência, esses modos de pensamento passam a convergir de maneira mais complexa. O legado se modifica a cada nova geração, alterando o próprio pensar a cada repensar, transferindo-se assim para a geração de Euclides, e estendendo-se à escola de pesquisa matemática de Alexandria. No mesmo ambiente em que se desenvolve uma tradição de exame minucioso dos Elementos, e consequentemente da ampliação do edifício teórico gerado a partir dele, convergem neopitagorismo, neoplatonismo e neoaristotelismo. No seio dessa proposta renovada de sincretismo entre matemática e filosofia, os métodos da análise e síntese surgem relacionados à criação e à exposição da matemática, à pesquisa e ao ensino dessa ciência. Nesse ínterim, os elementos da matemática são reagrupados aos princípios da filosofia, como o Limite () e o Ilimitado (,), o Um () e os Muitos (), e à 13 ciência do ser enquanto ser1. E as suas implicações estão intimamente relacionadas aos movimentos de ascensão e descenso da dialética platônica, como descritos nos livros VI e VII da República, em que as ciências matemáticas, consideradas ontologicamente intermediárias (), desempenham uma função fundamental. Por um lado, enquanto componente intrinsecamente associado a uma práxis, a análise se confunde com a própria atividade do pensamento matemático, em que prevalecem os aspectos intuitivo e imaginativo, artístico e casual. Não seria possível descrever com precisão os processos psicológicos envolvidos, mas apenas dizer que eles seguem sugestões muito sutis, em que elementos não dedutivos têm um importante papel. Na falta de clareza do rigor lógico, caminha-se, por assim dizer, como que tateando na penumbra, de tal modo que os passos mostram-se antes como um descompasso. Ou ainda, aproveitando-se livremente da metáfora utilizada por Sócrates no Fédro, o pesquisador não começa a sua busca pelo princípio, mas pelo fim, “como os que tentam nadar de costas” (264 a, PLATÃO, 2000, p. 97). Neste caso, tudo o que se sabe de antemão são o ponto de partida, pois fora admitido, e o lugar onde se pretende chegar, pois é o que se conhece. O buscado é o caminho traçado na companhia daquele que habita conosco2. De outra parte, temos na síntese a pavimentação do caminho encontrado, segundo os ponteiros da lógica, como inferências e tautologias. Os sinuosos passos do pensamento se tornam tão retos quanto o possível pela formalização da escrita, a individualidade cede lugar ao pensamento coletivo, e entram em cena elementos persuasivos para que a experiência pessoal possa ser compartilhada e confirmada. Pensada simultaneamente como um recurso de ordem expositiva e pedagógica que sanciona ou justifica a descoberta pela demonstração, a síntese não necessitaria de outras explicações além daquelas que traz consigo própria. Com isso, acredita-se poder compreender a maneira pela qual emerge a visão de que, ainda que constituam os meios pelo qual o conhecimento matemático verte e flui, análise e síntese devem ser consideradas como fins em si mesmas, não necessitando de ulteriores explicações. Esse ponto de vista é posto em xeque quando elas ascendem ao plano da teoria do conhecimento, seja pelo viés histórico, seja pelo psicológico, adquirindo o status de modelo metodológico para algumas das mais importantes ideias desenvolvidas no âmbito da filosofia e da matemática. É o caso, por exemplo, da influência dos procedimentos da geometria grega sobre René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1643-1727) na evolução da geometria analítica e do cálculo diferencial e integral. Igualmente, as ideias gregas de 1 Definição aristotélica de ciência primeira; ver Aristóteles, Metafísica: 1026 a 31, 1064 a 3, 28, b 7. 2 Cf. Platão, Hípias Maior, 304 d. 14 análise e síntese tiveram importância na formação da distinção entre os juízos analíticos e sintéticos de Kant (1724-1804)3. Tentativas de se compreender a potencialidade geradora desta dualidade metodológica e a sua constituição como paradigma epistemológico apoiam-se na expectativa de uma regressão até os seus primórdios. Sendo assim, é desejável poder individuar os estágios de seu desenvolvimento, bem como hierarquizá-los. Como sístole e diástole, são dois os princípios pulsantes da análise e da síntese na história das ciências, e estão ambos localizados nas obras de autores da tardia antiguidade. Um deles está na descrição dos métodos matemáticos feita por Pappus de Alexandria (290-350 aprox.); o outro, na ação da potência dinâmica que eles desempenham na teologia de Proclus Diadochus (410-485). 1.2. Matemática e filosofia no pensamento de Proclus Nascido em Bizâncio, Proclus estudou em Alexandria sob orientação de Olimpiodoro senior peripatético, “que o iniciou no estudo de Aristóteles e da matemática” (PROCLO, 1978, p. 11), e depois em Atenas, na Academia platônica, então sob a direção de Plutarco de Atenas4. Junto a este, Proclus leu o De Anima de Aristóteles e o Fédon de Platão, sendo também por ele encorajado a fazer um registro escrito de suas próprias impressões sobre estas obras. Assim, Proclus iniciou-se em uma prática cuja prolificidade o tornaria notável. Após a morte de Plutarco, e sob a direção de Syrianus, Proclus completou os seus estudos aristotélicos sobre lógica, ética, política e metafísica5. Tendo finalizado esses “mistérios menores”, foi iniciado nos “grandes mistérios”6 de Platão. O corpo da sistematização filosófica proposta por Proclus encontra-se nos seus Elementos de Teologia, e em um trabalho posterior intitulado Teologia Platônica7. O primeiro antecipa a Ética de Spinoza (1632-1677) na abordagem elementar, isto é, na exposição segundo o padrão de ordenamento euclidiano de 3 Ver bibliografia em Hintikka & Remes (1974, p. 1-6). 4 No prólogo de Ian Mueller ao texto de Glen Morrow encontra-se a seguinte observação: “Esta escola não tinha conexão com a então chamada Academia fundada por Platão no século IV a.C., uma instituição que quase certamente deixou de existir cerca de três séculos após a sua fundação. A „escola‟ neoplatônica de Atenas era privadamente custeada, autoperpetuando um grupo de pagãos que se esforçaram em manter viva a tradição dos Helenos recrutando e ensinando alunos.” (PROCLUS, 1992, p. x-xi). Salvo indicação contrária, todas as traduções do inglês, italiano ou grego são do autor. 5 Id., p. xl. 6 Id. 7 Segundo Cleary (2013, p. 201), além de contextualizar historicamente a filosofia de Proclus, e de fazer uma análise geral da perspectiva ontológica, epistemológica e metodológica da matemática em seus escritos, deve-se também situar todos estes elementos no amplo contexto de seu projeto de sistematização teológica. 15 proposições seguidas por demonstrações; a segunda trata do próprio sistema de Proclus – ao qual se referia como sendo platônico. Homem de cultura liberal, Proclus foi ainda um grande cultivador da matemática no período que é considerado o último suspiro do pensamento grego antes de sua decadência (BOYER, 1996, p. 139-140). Como escritor, organizou, disseminou e comentou as doutrinas e obras de seus predecessores, em particular Platão e Euclides. No que diz respeito aos seus outros escritos filosóficos, fez uma série de comentários sobre os diálogos de Platão, entre os quais foram preservados os sobre o Parmênides, sobre o Timeu, sobre o Primeiro Alcebíades, e sobre A República. Do Crátilo restaram apenas excertos, e foram completamente perdidos os sobre o Filebo, o Teeteto, o Sofista, e o Fédon (PROCLUS, 1992, p. xlii). Entre os seus trabalhos científicos, estão um tratado elementar de astronomia intitulado Sphaera, um livro sobre Eclipses – que sobreviveu apenas em tradução latina –, e também um ensaio sobre o postulado das paralelas, que infelizmente se perdeu, mas de que temos conhecimento através dos comentários de Philoponus aos Primeiros Analíticos. Proclus escreveu também um Elementos de Física, “principalmente um sumário dos livros VI e VII da Física de Aristóteles e do primeiro livro do De Caelo”8. No entanto, o seu trabalho de maior destaque é o Comentário ao Primeiro Livro dos Elementos de Euclides. Importantes personagens do começo de nossa era debruçaram-se atentamente sobre os Elementos. Heron, Porfírio, Pappus e Simplicius, além de Proclus, escreveram comentários sobre essa obra de Euclides. Theon de Alexandria a reeditou, sem qualquer vantagem metodológica, e Apolônio de Pérgamo tentou, sem sucesso, reformulá-la9. No texto de Proclus, sobressai o seu caráter conciliatório, orquestrado por uma preocupação pedagógica. Aquele fica claro quando ele defende que o propósito último dos Elementos é a construção dos cinco sólidos regulares do Timeu10; e este transparece nas diversas vezes em que Proclus suplementa as demonstrações euclidianas com a inserção de exemplos alternativos e o tratamento de casos omissos. No início de seu comentário sobre as proposições, Proclus apresenta sistematicamente seis partes nas quais todo teorema e todo problema devam ser analisados11. Após aplicar estas distinções à primeira proposição do livro I, sugere que o estudante também o faça para cada uma das proposições restantes, “porque um exame 8 Id., p. xlii-xliii, grifo do autor. 9 Id., p. xlvi. 10 Id., (68.21-23, 70.19-71.5, 82.25-83.2); p. 57, 58, 67-68, respectivamente. 11 Id., 203, p. 159. 16 detalhado destas questões fornecerá exercício e prática não pequenos ao pensamento geométrico”12. As numerosas referências de Proclus aos seus predecessores fazem do seu Comentário uma fonte inestimável de informações a respeito da matemática antiga. O seu julgamento é enviesado pelo entusiasmo que nutria por Platão, reconhecendo Euclides não apenas como mestre nas disciplinas que expõe, “mas também como um autêntico partidário da teoria platônica do conhecimento”13. Embora a falta de evidências não permita qualquer tipo de verificação de que Euclides teria sido membro de uma antiga escola platônica, é suficientemente aceitável que ele tenha adquirido sua instrução dos matemáticos treinados naquela tradição. O que se pode chamar de filosofia da matemática de Proclus fundamenta-se no empenho de articulação entre estes dois autores. Após discutir o significado de elementos ()14, Proclus argumenta em defesa da superioridade do método euclidiano15. Essa mesma potência organizadora é projetada sobre os questionamentos acerca da natureza dos objetos da matemática, que tem na metafísica de Platão o seu pano de fundo. A posição filosófica da matemática assumida explicitamente por Proclus no Capítulo V da primeira parte de seu Prólogo tem como princípio a linha dividida da República (VI 509 d-511 b)16. Portanto, ele adota uma postura deliberadamente platônica quanto à “verdade a respeito da essência da matemática”17, em prejuízo de uma perspectiva que tenha como princípios a imanência ou a abstração. Conforme Proclus, nenhuma destas seria capaz de explicar como é possível obter a precisão do que é impreciso, a perfeição do que é imperfeito, além de que as demonstrações matemáticas partem de princípios universais, em vez de particulares18. O “ser matemático”, como Proclus inicia o seu Prólogo, ocupa uma posição intermediária entre a simples realidade imaterial, de um lado, e o complexo e confuso mundo dos sentidos, de outro. A superioridade da matemática sobre este reside na exatidão, estabilidade e clareza de suas proposições, no estabelecimento de seus atributos e na capacidade de estabelecer relações. A inferioridade relativa àquela recai sobre o 12 Id., 210, p. 165. No original: “For a comprehensive survey of these matters will provide no little exercise and practice in geometrical reasoning”. 13 Id., p. li. 14 Id., (71.25-73.14), p. 58-60. 15 Id., (73.14-75.26), p. 60-62. 16 Id., (10-11), p. 9-10. 17 Id., (13), p. 11. 18 Id., Cap. V da primeira parte do Prólogo; (12-18), p. 10-15. Morrow alega em nota (n. 23, 24, 25 e 26, p. 12- 13) que as diversas alusões no trecho à doutrina aristotélica mostram claramente contra quem são direcionados os argumentos. Ver Aristóteles, Segundos Analíticos: 71 b 20-32, 85 b 23 seg., 73 b 28 seg., 85 b 5 seg.; Metafísica: 1086 b 35, 1060 b 31; De Anima: 403 a 25, 429 a 27. 17 vínculo da matemática com a percepção, impedindo-a de constituir-se como uma ciência de puras formas. Ao lado das distinções metafísicas, Proclus faz outras de origem técnico- epistemológica de grande importância para o estudo da elaboração e da fixação do léxico matemático. Quando discerne procedimentos como análise e síntese, as diversas etapas dos problemas e teoremas, e o papel das hipóteses e das conclusões nas demonstrações, segue Euclides ao se valer da organização científica proposta por Aristóteles. Especialmente em seus Segundos Analíticos, o Estagirita se propõe a detalhar o que é o conhecimento demonstrativo ou a ciência demonstrativa (). Nessa obra, as ciências matemáticas são, desde o início, postas como exemplo paradigmático (I 1, 71 a 3)19, e o uso genérico do termo silogismo () sugere a predominância de uma preocupação com a organização argumentativa. O que está em jogo é a hierarquia das etapas nas demonstrações, quais dentre elas devem ser assumidas e quais são delas derivadas; quais são definidas e quais gozam das propriedades da definição; quais são demonstráveis e quais não são. Uma análise dos modos como são concatenadas as verdades nas ciências demonstrativas deve desvendar a força de suas conclusões. Aristóteles toca ainda na importante questão da diferenciação entre princípios próprios e princípios comuns. Os primeiros adquirem sentido específico em um determinado domínio científico, e os segundos são, por assim dizer, propriedades transversais. Isso quer dizer que o seu significado não é restringido pela espécie do objeto de que trata, mas vale em diferentes gêneros. O exemplo aristotélico de princípio comum é: “subtraindo iguais de iguais os restos são iguais”20, e não é difícil verificar que números iguais subtraídos de iguais terão como resto números iguais, e o mesmo vale se os substituirmos por linhas, áreas, e assim por diante21. Proclus se vale também de tal diferenciação. Uma das partes mais emblemáticas do Comentário de Proclus aproxima o método matemático e a dialética platônica de maneira que direciona os olhares para o que de mais íntimo talvez pudesse ter sido o liame entre eles. Trata-se da afirmação de que Platão teria 19 Cf. Aristotele, 2007, p. 3. 20 Id., 76 a 41:  Mignucci (2007, p. 181) usa em seus comentários a expressão isomorfismo estrutural para exprimir de maneira diversa aquilo que Aristóteles diz sobre os princípios que são “comuns segundo proporcionalidade” (‟). 21 O princípio comum de Aristóteles equivale à noção comum 3 do Livro I dos Elementos de Euclides. As outras, a saber, são: 1. As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si; 2. E, caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos são iguais. 4. E, caso iguais sejam adicionadas a desiguais, os todos são desiguais; 5. E os dobros da mesma coisa são iguais entre si; 6. E as metades da mesma coisa são iguais entre si; 7. E as coisas que se ajustam uma à outra são iguais entre si; 8. E o todo [é] maior do que a parte; 9. E duas retas não contêm uma área. (EUCLIDES, 2009, p. 99) 18 ensinado o método da análise à Leodamas22. A referência é atribuída a Diógenes Laércio, o qual se admite que tenha vivido no século III, e está em sua obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (LAÊRTIOS, 2008, p. 90-91). Para Heath (1921, p. 291), a passagem tem sido interpretada como uma atribuição a Platão à invenção do método da análise. Desde então, um capítulo inteiro da história da matemática tem se iniciado a partir da associação dos métodos da análise e síntese ao pensamento filosófico como o encontramos nos diálogos de Platão, principalmente no que diz respeito às vias de ascensão e descenso da dialética, como descritas nos livros VI e VII da República. A discussão apoia-se igualmente no excursus histórico derivado da História da Geometria, de Eudemo de Rodes (350-290 a.C. aprox.), discípulo de Aristóteles. É verossímil que enquanto escrevia o seu Comentário, Proclus tivesse à mão o texto da História, bem como os Comentários sobre Os elementos de Pappus23, em grande parte perdido (BOYER, 1996, p. 139, grifo do autor). O conjunto de nomes e feitos dispostos no tempo e no espaço é uma importante referência para a reconstrução da geometria pré-euclidiana. Em sua reconstituição, a partir da descoberta da geometria pelos egípcios, e passando pelos fenícios, temos que “Tales, primeiramente tendo ido ao Egito, transportou para a Grécia essa teoria” (EUCLIDES, 2009, p. 38). “E depois desse Memarco”24, “e depois desses Pitágoras”25, “e depois desse Anaxágoras de Clazomene”26, e Oinopedes de Quios e seu conterrâneo Hipócrates, que “também compôs Elementos, o primeiro dos quais são mencionados”27, e Teodoro de Cirene, tornaram-se ilustres pelo zelo em relação à geometria promovendo o desenvolvimento dessa ciência até o tempo de Platão. Simultaneamente a este estão Leodamas de Thasos, Árquitas de Taranto e Teeteto de Atenas, “pelos quais os teoremas foram aumentados e avançaram para uma organização mais científica”28. Graças a estes e outros progressos, Léon compôs também os “Elementos de maneira mais cuidada tanto pela quantidade quanto pela utilidade das coisas demonstradas”29. Eudoxo de Cnido “tendo-se tornado companheiro dos à volta de Platão, primeiro aumentou a quantidade dos chamados teoremas gerais”30. Theudius de Magnésia “arranjou convenientemente os Elementos e fez 22 Id., p. 165. 23 Pappus é mencionado quatro vezes por Proclus. Ver Euclide (2008, p. 257). 24 Id. 25 Id. 26 Id. 27 Id. 28 Id. 29 Id. 30 Id., p. 39. 19 mais gerais muitas coisas das particulares”31. E Hermotimus de Colofon, avançando por sobre as descobertas de Eudoxo e Teeteto, “descobriu mais muitas coisas dos Elementos”32. São estes os principais personagens que se empenharam no aprimoramento da matemática que Euclides arranjou e aperfeiçoou. O que chama mais a atenção é a aproximação de Platão, e por extensão da Academia, aos refinamentos que se refletem contínua e sucessivamente na compilação de Elementos. Este breve relato da intensa atividade e produção intelectual de Proclus tem como escopo esboçar uma imagem para a qual conflui a herança científica de Eudoxo, Euclides, Arquimedes e Apolônio. E na qual se acumula ainda a tradição do pensamento, seja o pré- socrático dos pitagóricos e dos eleatas, seja o da Academia e do Liceu, ou das experiências do epicurismo e do estoicismo33. E que por fim, foram costurados com o fio do misticismo religioso pelas mãos hábeis de um espírito diligente, unitário e organizador, que se esforçou em harmonizar todos estes elementos em uma visão coerente de mundo. 1.3. Pappus e a descrição dos métodos da análise e síntese Sobre Pappus de Alexandria (290-350 aprox.), sabe-se pouca coisa além de que “era movido pelo mesmo espírito que animara Euclides, Arquimedes e Apolônio” (BOYER, 1996, p. 125). Ele teria composto comentários sobre o Almagesto de Ptolomeu, e sobre o livro X dos Elementos de Euclides, cujo excerto nos chegou por uma tradução árabe. Nesse último, mostra um conhecimento considerável dos trabalhos de Platão pelas menções que faz ao Teeteto (63), às Leis (64) e ao Parmênides (76), este considerado parte de um curso avançado de estudos filosóficos (CUOMO, 2000, n. 174, p. 52). Pappus escreveu também uma Geografia, mas talvez a sua obra mais importante seja A Coleção Matemática (Synagoge). Concebida como uma coleção em sentido amplo, ela reúne em si alguns dos conhecimentos dos geômetras que sucederam à tradição de Euclides, acrescidos de comentários, esclarecimentos, correções e críticas, e suas partes teriam sido compostas separadamente e reunidas apenas em um período posterior. A característica básica da Coleção está na prática pedagógica de Pappus, que queria transmitir a um público não especializado a “importância do conhecimento matemático e ao mesmo tempo a sua própria importância 31 Id. 32 Id. 33 Cf. Proclo (1978, p. 12). 20 como repositório desse conhecimento”34. Segundo esse princípio, Pappus buscou critérios de validade para as soluções gerais (os teoremas), e também particulares (os problemas)35. O conteúdo da Coleção vai desde a astronomia e mecânica, até a aritmética e a geometria, contendo “novas provas e lemas suplementares para proposições das obras de Euclides, Arquimedes, Apolônio e Ptolomeu”, e ainda “descobertas e generalizações novas, não encontradas em nenhuma obra anterior” (BOYER, 1996, p. 125). No Livro VII, Pappus faz referência ao Tesouro da Análise (), onde se pode ler o seguinte: O chamado “Tesouro da Análise”, meu filho Hermodoro, em resumo, é uma matéria particular para os que querem, depois da produção dos elementos comuns, tomar a si a faculdade inventiva, (de resolver) nas linhas, os problemas apresentados a eles, e sendo útil para isso apenas. E foi escrita por três homens, Euclides, o autor dos Elementos, e Apolônio de Perga, e Aristeu, o mais velho, a abordagem sendo segundo a análise e a síntese. A análise, com efeito, é o caminho a partir do que é procurado, como aceito, através das sucessivas conseqüências, até algo aceito pela síntese. Pois na análise, tendo (nós) estabelecido a coisa procurada como acontecida, consideramos isso que dela resulta, e, de novo, o precedente daquela, até que, assim voltando sobre nossos passos, cheguemos a alguma das coisas já conhecidas ou que tem a ordem de princípios; e essa abordagem chamamos análise, como solução em sentido contrário. Enquanto que, na síntese, ao contrário, supondo o que foi deixado, por último, na análise, já acontecido, e tendo arranjado como conseqüências as coisas então precedentes, segundo sua natureza, e tendo adicionado umas às outras, chegamos, por fim, à construção da coisa procurada; e chamamos isso síntese. Duplo é o gênero da análise, um a pesquisa do verdadeiro, o qual é chamado teórico, o outro capaz de dizer o que foi proposto, o qual é chamado problemático. Enquanto que, no gênero teórico, tendo estabelecido o que é procurado como existente e verdadeiro, em seguida, por meio das conseqüências sucessivas como verdadeiras, e como existem segundo a hipótese, tendo avançado até algo admitido, caso, por um lado, fosse verdadeiro aquilo admitido, será verdadeiro também o procurado, e a demonstração é uma inversão da análise; caso, por outro lado, encontramos falso o admitido, falso será também o procurado. No gênero problemático, tendo estabelecido o que foi proposto como conhecido, em seguida, por meio das conseqüências sucessivas, como verdadeiras, tendo avançado até algo admitido, caso, por um lado, o admitido seja possível é obtenível, o que os matemáticos chamam dados, possível também será o proposto, e, de novo, a 34 Id., p. 4. Para essa autora, a Coleção teria sido escrita como uma proposta de instrução para o público leigo. Para tanto, ela faz um levantamento das práticas que podem ser aglomeradas em torno do termo matemática no mundo Greco-romano, como a agrimensura, a astronomia, o comércio, a arquitetura e as leis. Naquela época, uma educação matemática ou era inexistente, ou estava subordinada às práticas descritas acima, em muitos casos a sua transmissão era exclusivamente oral e limitada a trechos dos tratados de Euclides, Nicômaco e Ptolomeu. 35 Na opinião de Acerbi (EUCLIDE, 2008, p. 258), não é possível estabelecer uma conexão precisa entre o conteúdo da Coleção e o do comentário ao livro X dos Elementos. No capítulo III (75-95) da Coleção, por exemplo, Pappus oferece construções de poliedros regulares alternativas àquelas encontradas no livro XIII de Euclides. 21 demonstração é uma inversão à análise; caso, por outro lado, encontramos impossível o admitido, impossível será também o problema. Esse tanto, então, acerca da análise e da síntese. E dos livros antes ditos do tesouro da análise, o arranjo é como segue. Um livro dos Dados de Euclides, dois da Seção de uma Razão de Apolônio, dois de Seção de Área, dois de Seção Determinada, dois do Contatos, três dos Porisma de Euclides, dois das Inclinações de Apolônio, dois dos Lugares Planos do mesmo, oito das Cônicas, cinco dos Lugares Sólidos de Aristeu, dois dos Lugares à Superfície de Euclides, dois Acerca das Médias de Eratóstenes. São 33 livros, dos quais te expus, para exame, os conteúdos até das Cônicas de Apolônio, e a multitude dos Lugares e das condições de possibilidade e dos casos, segundo cada livro, mas também os lemas procurados, e nenhum inquérito no tratamento dos livros deixei para trás, como pensava. (BALIEIRO, 2004, p. 64-78)36 Caracterizadas como procedimentos heurísticos e propedêuticos à solução ou demonstração de problemas ou teoremas da geometria, a análise e a síntese aparecem como um tipo de ensinamento reservado aos alunos que estivessem em um estágio avançado no trato dessa ciência. Aqueles que tivessem já adquirido o domínio da geometria pelo estudo de seus elementos estariam aptos a compreender mais a fundo os mecanismos envolvidos no processo de construção da matemática37. 1.4. A genealogia do método pelo método Além das dificuldades que o próprio texto comporta, outras mais são alçadas quando tentamos colocar o seu conteúdo em um quadro filosófico. Da aproximação do testemunho histórico de Proclus ao relato teórico de Pappus surgiram diversas dificuldades de interpretação. Entre elas, destacamos a tentativa de compreender a análise e a síntese sob o prisma da moderna lógica proposicional (HINTIKKA & REMES, 1974, p. 10-11), isto é, como relações de consequência lógica. Essa perspectiva puramente teórica tende, a nosso ver, a relegar a um segundo plano os rastros do processo evolutivo pelo qual passou a linguagem 36 Tradução feita a partir do grego diretamente para o Português pelo Prof. Dr. Irineu Bicudo. Salvo indicação contrária, as citações do texto de Pappus serão todas tiradas desta tradução. O texto de referência é: PAPPUS. Pappi Alexandrini collectionis quæ supersunt. F. Hultsch (ed.). Berlim: 1876-78. Sobre as não poucas dificuldades interpretativas do trecho de Pappus, seguimos Silva (2007, p. 28, n. 2) que sugere o “conselho de D‟Alembert àqueles que poderiam fraquejar diante dos métodos infinitesimais: sigam em frente que a fé lhes virá”. 37 Inicialmente, pode parecer que esta constatação contrasta com a hipótese de Cuomo, que se inicia com a abertura do livro 5 da Coleção (2000, p. 57), onde Pappus pondera sobre o famoso problema envolvendo a forma hexagonal como são construídos os alvéolos das abelhas. No caso, a isoperimetria tem relação direta com os cinco sólidos regulares atribuídos a Platão. E segundo Cuomo (p. 58), o objetivo principal de Pappus era promover o estudo teórico da matemática como uma importante forma de conhecimento. Todavia, como dissemos anteriormente, por se tratar de uma reunião de textos escritos em períodos diversos, é plausível que a Coleção comporte a evolução de uma atividade que ultrapassa a mera resolução de problemas. 22 cotidiana até chegar à sua configuração formal do conhecimento científico. O que inviabiliza a busca de relações entre o uso do método matemático nas obras de Platão com a forma cinzelada como ele se encontra no texto de Pappus. Do mesmo modo, Podem-se descobrir na sua obra [i.e., na de Platão] respostas que antecipam formulações posteriores, mas ao extraí-las do seu contexto para uma análise em separado estamos talvez a apresentar o seu pensamento sob uma forma que ele próprio não reconheceria. (KNEALE & KNEALE, 1980, p. 19). Por isso, consideramos necessário procurar nas obras de Platão elementos de contribuição para o desenvolvimento metodológico, seja da filosofia, seja da matemática, sem as restrições formais que foram posteriormente impostas a estas ciências. É claro que tomando o corpus Platonicum como ponto de partida, não podemos evitar questões sobre a possibilidade de encontrar princípios que poderiam ter a sua origem nos predecessores que influenciaram Platão. E assim, deparamo-nos com o problema geral sobre até que ponto é possível recuar na reconstrução genealógica de um procedimento heurístico-epistemológico. É aceitável pensar que, a exemplo do artifício exposto por Pappus, esta análise encontre princípios bem fundamentados, ou, que termine em algo que seja conhecido mas não necessariamente um princípio? 1.5. A participação de Platão no mundo da matemática “E Platão [...] fez tomar muito grande progresso tanto as outras coisas matemáticas quanto a geometria” (EUCLIDES, 2009, p. 38) é o que diz Proclus, referindo-se à História da Geometria, de Eudemo. A tentação de adentrar nos mistérios desse “grande progresso” tem levado os historiadores da matemática a posições diversas, que, de um modo geral, se distanciam mais ou menos do eixo que constitui o consenso sobre a questão: que Platão não teria sido um matemático, mas sim um enorme entusiasta das ciências dos números, das formas, dos objetos celestes e da harmonia. Tal posição é amplamente embasada pelo o que consta no fragmento em questão, onde é dito que “pelo zelo relativo a elas [i.e., as ciências matemáticas], o qual, é evidente”, Platão teria “tanto de algum modo tendo tornado frequente as composições com os discursos matemáticos quanto despertado por toda parte a admiração relativa a elas dos que se ligam à filosofia” (EUCLIDES, 2009, p. 38). 23 Se por um lado, este sopro de Proclus faz fechar uma porta, desencorajando a busca por qualquer contribuição direta de Platão às ciências matemáticas, seja na forma de um teorema, seja na solução de algum problema; por outro lado, abre um frontão, este com possibilidades mais amplas, que podem nos conduzir à investigação dos processos que levariam – em última instância – à sedimentação da matemática como paradigma de ciência formal. Apesar de essa perspectiva negar a Platão um lugar de honra ao lado de figuras eminentes como Euler (1707-1783), Gauss (1777-1855) e Cauchy (1789-1857), entre outros, ela o coloca manifestamente no marco inicial de uma tradição não menos importante, e que seria reforçada por adeptos não menos eminentes, como Descartes (1596-1650), Leibniz (1646-1716) e Kant (1724-1804) – para ficarmos em poucos exemplos. Estes, tomados pela ideia de que a matemática poderia fornecer as luzes que afastariam da filosofia as sombras da incerteza, empreenderam esforços numa perscrutação de seus procedimentos. 1.6. O  que, guiado pela , fornece vida a todas as coisas Tales de Mileto teria sido o responsável pelas primeiras demonstrações geométricas38, um evento que estabeleceria, definitivamente, os limites entre as práticas matemáticas realizadas pelos povos egípcios e babilônicos, e as elaboradas teorias idealizadas pelos gregos. Além disso, vale lembrar que outras formas de conhecimento, como a dialética e a lógica, também nasceram do mesmo princípio de volição que caracteriza e diferencia os antigos habitantes da Hélade. Do mesmo modo, matemática e filosofia se apresentam, desde o seu início, emaranhadas ao desenvolvimento do pensamento e de uma de suas manifestações: a linguagem. Ao passo que se nutrem umas das outras, evoluem continuamente. Desde o início, respondem a um mesmo esforço racional a filosofia, como recondução de toda a natureza, em sua variedade e sua mutabilidade, a um princípio permanente, e a matemática, como forma de pensamento dedutivo. (CATTANEI, 2005, p. 23). Outro personagem de grande impacto na espiral evolutiva do pensamento matemático foi Pitágoras de Samos, cuja data provável de nascimento é aceita como algo em torno de 572 38 Proclus atribui a Tales as seguintes demonstrações: que o diâmetro divide o círculo em duas partes iguais (PROCLUS, 1992, p. 124); que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais (p. 195); que caso duas retas se cortem, fazem os ângulos no vértice iguais entre si (p. 233); e a igualdade entre triângulos que têm em comum um lado e dois ângulos adjacentes (p. 275). 24 a. C. (CENTRONE, 1996, p. 24-25). A ele se devem as próprias concepções de matemática e de filosofia, não apenas como ciências, mas como meio de vida, aspiração de contemplação da beleza do universo: Talvez a mais notável característica da ordem pitagórica fosse a confiança que mantinha no estudo da matemática e da filosofia como base moral para a conduta. As próprias palavras “filosofia” (ou “amor à saberdoria”) e matemática (ou “o que é aprendido”) supõem-se terem sido criadas pelo próprio Pitágoras para descrever suas atividades intelectuais. (BOYER, 1996, p. 33) Atividades que envolviam os números considerados em si mesmos, como pertencentes ao gênero das coisas que participam da natureza divina, como uma disciplina teórica, em detrimento de sua utilidade na vida prática. O advento do logos culminou no surgimento da matemática e da filosofia como as conhecemos hoje. , em grego, denotava antes de tudo a operação de reunir, juntar ou de recolher fazendo uma escolha. Daí o significado de logos «cálculo» ou «cômputo», e portanto «relação», «correspondência» e «razão» (traduzido também do latim ratio). Apenas secundariamente logos denotava a «palavra» e o «discurso». No escolher e no recolher parece implícito o sentido de definir uma série ou uma totalidade ordenada de coisas ou pessoas, que portanto pertencem, como se diz, a mesma «classe». (ZELLINI, 1999, p. 132, grifo do autor)39 Na definição 3 do livro V dos Elementos de Euclides encontramos a forma canônica como o logos tem sido utilizado na matemática: “Uma razão é a relação de certo tipo concernente ao tamanho de duas magnitudes de mesmo gênero”40 (EUCLIDES, 2009, p. 205). Antes disso, porém, encontram-se numerosos fragmentos que circundam essa definição. Aristóteles, por exemplo, havia dito que “o justo é, pois, uma espécie de proporção, de fato, a proporção não é própria somente do número matemático, mas em geral das quantidades mensuráveis”41. E antes disso, Platão afirma que o cálculo () é uma ciência () do par e do ímpar, não só relativamente à sua própria qualidade numérica, mas às 39 No original: “, in greco, denotava innanzitutto l‟operazione del riunire, del radunare o del raccogliere facendo una scelta. Di qui il significato di logos «calcolo» o «computo», e quindi «relazione», «corrispondenza» e «rapporto» (reso anche dal latino ratio). Solo secondariamente logos denotava la «parola» e il «discorso». Nello scegliere e nel raccogliere sembra implicito il senso del definire una serie o una totalità ordinata di cose o persone, che pertanto appartengono, come si dice, agli stessi «ranghi»”. 40 Em grego:  41 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, V 6 1131 a 28-30:   25 suas relações recíprocas42, e defende, na República (VII 524 d-526 c), que o processo de conversão da alma pode ser facilitado pelo “saber relativo ao cálculo”43. Semelhantemente ao que ocorre nas estruturas algébricas modernas e também na geometria dos fractais, o logos pode ser compreendido como uma relação auto-referente. Isso significa que, além da interpretação básica do logos como relação entre objetos de mesma natureza, é possível também que o logos assuma o papel de conteúdo, juntando-se a outros de mesma natureza que a dele por obra de uma relação maior, um Logos. No primeiro caso, temos a aplicação da definição euclidiana sobre objetos, e no segundo, sobre conceitos. Desse modo, o logos está relacionado à ordem (), à beleza (), e à excelência (). Para Platão, a alma dotada de excelência e razão é boa44, é harmonia ()45, não comete injustiças na argumentação46. E portanto, dentre as muitas relações existentes no edifício da matemática, é a classe daquelas que reúnem todas essas características que interessa à filosofia, as que explicam as coisas da melhor maneira. O uso minucioso do recursivo “e antes disso” certamente nos levaria a muitas outras paragens. Não obstante, façamos um salto até Pitágoras, que tendo atraído notoriedade sobre a sua figura, seja no âmbito da política ou da taumaturgia, se tornou indiscutivelmente conhecido pelas descobertas relativas às grandezas geométricas. A descoberta da incomensurabilidade da diagonal com o lado do quadrado unitário representou, ao mesmo tempo, um avanço nos domínios da matemática, e uma provocação na esfera da filosofia. Para a matemática, surgia um novo objeto, contrariando a concepção de que os números inteiros positivos seriam suficientes para representar toda e qualquer grandeza. Para a filosofia, restava o desafio de definir essa nova entidade e encontrar o seu lugar ontológico. O abalo na doutrina pitagórica de que “tudo é número” (BOYER, 1996, p. 34) culminou numa nova definição de proporção, elaborada por Eudoxo e Árquitas, por volta de 370 a.C. (EVES, 1997, p. 107), que tem na definição de números irracionais via cortes de Dedekind o seu correspondente moderno47. No que diz respeito à filosofia, a contenda envolvendo a 42 Cf. Platão, Cármides, 166 a 5-6:    43 Cf. Platão, República, VII 525 c 8- d 1:  44 Cf. Platão, Fédon, 93 b 8-9:  45 Id. 93 b seg. 46 Cf. Platão, Teeteto, 167 e 2-3. 47 Para mais detalhes dessa evolução, indicamos: EDWARDS, C. H. The historical development of calculus. New York: Springer-Verlag, 1979, e em Língua Portuguesa, o artigo Sobre a teoria das proporções, o método da exaustão e os incomensuráveis, de KISTEMANN JUNIOR, M. A. In: Revista de educação Matemática, SBEM - SP, p. 47-62, 01 mar. 2008. 26 descoberta dos incomensuráveis talvez tenha fornecido os ingredientes para fazer surgir uma nova forma de pensar, que ganhou destaque pelas mãos dos filósofos chamados eleatas. 1.7. O método hipotético na matemática e na dialética de Zenão A demonstração da irracionalidade de 2 perdura até os nossos dias como exemplo de clareza e precisão, sutileza e concisão; características que reunidas constituem o significado do que os matemáticos passaram a denominar elegância. Euclides não só compilou, aperfeiçoou e registrou as descobertas matemáticas de seus predecessores, mas definiu ainda o padrão de estética na confecção desta ciência – servindo de inspiração aos Principia de Newton, além da já mencionada Ética de Spinoza. A argumentação utilizada nessa prova parte da aceitação de um argumento – uma hipótese () – que tendo exploradas as suas consequências revelará um absurdo, ou seja, uma conclusão que contradiz a própria hipótese. E portanto, se tal hipótese não é capaz de levar ao resultado desejado, sua incompatibilidade faz com que ela seja refutada, aceitando-se o seu contrário como solução para o problema. Pouco natural pode parecer o fato de que se uma hipótese relativa àquilo que se pretende provar leva a contradições, então, automaticamente, e sem discussão, temos garantida a validade da sua negação. Todavia, neste ponto, existe uma importante sutileza subjacente que somente é formulada por Parmênides quando “exprime a necessidade do pensamento da qual deriva a impossibilidade de realizar no conhecimento a contradição lógica” (JAEGER, 2001, p. 219). A alusão diz respeito ao princípio que Parmênides, ativo na primeira parte do século V a.C., posiciona no centro de sua doutrina e que estabelece o nexo metodológico entre as especulações pitagóricas sobre os números e a pesquisa filosófica de Platão: “o que é não pode não-ser”48. Aristóteles teria atribuído a Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, a primazia sobre a invenção da dialética (LAÊRTIOS, IX 25, p. 258), que inicialmente designava o método de argumentação característico da metafísica. Todavia, ao explorar as possibilidades lógicas da utilização do princípio parmenidiano, Zenão produziu os paradoxos que levam o seu nome, gerando amplas discussões que motivaram matemáticos e filósofos a aprimorar a distinção entre o contínuo e o discreto. Zenão, por sua vez, deve ter influenciado Sócrates em seu método de refutação (), presente nos escritos daquela que é considerada a primeira fase do pensamento platônico – a sua primeira navegação. 48 Id., grifo do autor. 27 Pelo termo hipótese entende-se “aquilo que os participantes de um debate (retórico) concordam em aceitar por base e ponto de partida da argumentação de cada um” (EUCLIDES, 2009, p. 87, grifo do autor). O verbo  significa colocar como base, estabelecer como fundamento. Consequentemente, o substantivo  significa, primitivamente, base ou fundamento; e por extensão, hipótese, entendida como base ou fundamento para uma construção argumentativa. Portanto, uma hipótese é uma proposição aceita sem demonstração e da qual pode-se verificar, dedutivamente, as consequências em direção a uma conclusão (FRONTERROTA, 2011, p. 70). É possível que Sócrates tenha reconhecido nos paradoxos de Zenão um poderoso instrumento argumentativo, capaz de denunciar a falta de conhecimento de seus pares por meio das contradições que surgiam em decorrência das definições que propunham. Fazia-se então necessário abandonar as hipóteses que levavam à contradição e procurar por outras melhores – donde emergia a consciência, por parte do interlocutor de Sócrates, da fragilidade de suas definições49. Da articulação entre a dialética de Zenão e o  socrático emergem duas possibilidades relativas à refutação, como apontam Kneale & Kneale (1980 p. 10-11): a reductio ad impossibile, em que se refuta uma hipótese porque as conclusões obtidas a partir delas são falsas; e a reductio ad absurdum, na qual uma hipótese é refutada com base no fato de as conclusões dela derivadas serem contraditórias. Se Platão conhecia ou não tal distinção não nos vem ao caso, o importante é verificar como ele as utilizava. 1.8. O itinerário de Platão e os métodos matemáticos na Academia Após a morte de Sócrates em 399, Platão deixou Atenas, retornando apenas por volta de 387. Os lugares por onde passou e as pessoas com quem ele teria estado naquele período nos auxiliam a situar algumas das noções presentes no seu pensamento. Em Megara, esteve com o filósofo Euclides (435-365 a.C.), que também era membro do grupo ligado a Sócrates, e que havia fundado uma escola filosófica que promoveu diversos avanços no campo da lógica. Da mesma forma que se reconhece a existência de uma matemática grega pré- euclidiana, com produção esparsa e irregular, pode-se imaginar uma situação semelhante no âmbito da lógica no período anterior a Aristóteles. Neste caso, é o próprio desenvolvimento da linguagem cotidiana que suscitava desafios ao senso comum, criando argumentos que, 49 Uma consciência que, em geral, não vinha desacompanhada de um sentimento de perplexidade, como, por exemplo, é o caso de Eutífron (11 b-d), que após ter refutadas as suas propostas para a definição do que vem a ser o piedoso, zomba com Sócrates da dificuldade em fixar hipóteses. 28 embora válidos, eram considerados falaciosos. Quando trata dos megáricos, posteriormente chamados erísticos, e mais tarde dialéticos, Diógenes Laércio50 afirma que Euclides “dedicou- se ao estudo de Parmênides”51. Ao explorar as possibilidades heurísticas do método dialético, Euclides teria se destacado pela atitude com que tratava os problemas que se lhe apresentavam; “ao impugnar uma demonstração, esse filósofo não atacava as premissas, e sim as conclusões”52. Platão esteve ainda em Cirene, no norte da África, onde “inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por Teodoro, particularmente as referentes aos irracionais” (PLATÃO, 2008, p. 11). O interesse de Platão pelos aspectos teórico e metodológico dessas pesquisas está devidamente retratado no diálogo Teeteto, cujo homônimo é representado como um jovem e sagaz discípulo de Teodoro. Uma característica singular dessa obra é a tentativa de uma abordagem matemática a um problema filosófico, em que vemos Teeteto desafiado a fornecer uma definição para conhecimento () do mesmo modo como expõe uma classificação para os números. E em visita à região da Sicilia, Platão teve contato com os pitagóricos, tornando-se amigo de Árquitas de Tarento, “o mais importante matemático pitagórico do começo do quarto século a.C.” (BOYER, 1996, p. 36). De volta à Atenas, Platão fundou a Academia, erigida sobre princípios éticos, políticos, científicos e espirituais, fornecendo as condições favoráveis para uma vida de pesquisas e contemplação, não desprovida de debates, no melhor espírito da tradição socrática. Jovens vindos de todas as partes do mundo Grego eram atraídos para a Academia – dentre os quais o mais famoso foi Aristóteles, que lá permaneceu por vinte anos. Sobre as personalidades encontradas na História da Geometria de Eudemo, lê-se que elas, de fato, “viveram na Academia, fazendo as pesquisas em comum” (EUCLIDES, 2009, p. 39). É de se esperar que a situação no interior do círculo da Academia abrangesse o conjunto de disciplinas privilegiadas nos diálogos. Principalmente aquelas de destacada importância na composição do curriculum do livro VII da República, justamente porque acompanhavam as discussões em torno da dialética. Assim sendo, as pesquisas aduzidas por Eudemo seriam relativas à logistike, à geometria, à estereometria, à astronomia e à harmonia. Mueller (2006, p. 171) sugere que outras disciplinas além daquelas previstas na República foram tratadas no ambiente da Academia. Eram investigações que poderiam estar relacionadas aos rudimentos dos métodos infinitésimos, além de elementos de uma geometria 50 Cf. Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos filósofos ilustres, II 106 (2008, p. 73-74). 51 Id. 52 Id., 107, p. 73. 29 de curvas e também de uma, avant le lettre, não euclidiana. Cattanei inclui ainda a metretike, “mencionada no curriculum paralelo das Leis VII 817 e 6-7, que devia ser um correspondente em âmbito geométrico daquilo que a logistike era em âmbito aritmético” (2003, p. 474, n. 2)53. É interessante observar como a especulação filosófica sobre algumas dessas áreas mobilizou esforços que posteriormente demonstraram a impossibilidade de fundamentação com os recursos existentes naquela época54. Platão se queixa, na República, da ausência de pesquisas em determinados setores da matemática, como “os cubos e aos objetos que têm profundidade” (VII 528 b)55. Ele afirmava que “nenhuma cidade preza esses estudos e falta energia à pesquisa, que é trabalhosa; além disso, os pesquisadores carecem de um orientador sem o qual não chegarão à descoberta” (VII 528 b-c)56. Ao mesmo tempo em que nutria os esforços dos matemáticos reunidos ao seu redor, o próprio Platão deve ter sido incentivado pelos procedimentos de pesquisa deles, estabelecendo uma relação de reciprocidade que beneficiou a todos. Uma relação que gerou frutos que foram atribuídos a Platão, devido à importância que ele tem representado para o pensamento ocidental. Tudo o que nos resta é nos empenharmos para adentrar nesses grandes mistérios. 53 No original: “menzionata nel curriculum parallelo delle Leggi VII 817 e 6-7, che doveva essere una sorta di corrispettivo in ambito geometrico di quello che la logistike era in ambito aritmetico”. 54 No que diz respeito aos infinitésimos, houve no final do século XIX um movimento conhecido como “aritmetização da análise”, e que foi liderado por grandes matemáticos como Cauchy, Bolzano, Weierstrass, Cantor e Dedekind. A proposta deles era fornecer uma fundamentação puramente analítica para as demonstrações, diminuindo a dependência que tinham da intuição geométrica. Um novo rigor haveria de uniformizar o uso das ferramentas desenvolvidas no processo de criação do cálculo infinitesimal e diferencial. No que diz respeito ao estudo das curvas, um trabalho significativo fora realizado pelos matemáticos da Escola de Alexandria, que além do próprio Euclides, teve como representantes Arquimedes, Eratóstenes, Apolônio, Hiparco, Menelau, Cláudio Ptolomeu, Herão, Diofanto, Pappus e Hipátia. Sobre problemas matemáticos que precisaram aguardar pelo desenvolvimento da matemática para obterem resolução, pode-se ler, com proveito, o refinado tratamento algébrico que o matemático inglês Ian Stewart faz dos três famosos problemas da antiguidade, a saber, a duplicação do cubo, a trissecção do ângulo e a quadratura do círculo, no capítulo VII de seu livro Galois Theory. 3rd. Edition. New York: Chapman & Hall/CRC mathematics, 2004, p. 75-84. Por fim, com respeito à face filosófica do pensamento matemático, que, questionando sempre os seus pressupostos e propondo novas conjecturas e problemas, tem impulsionado alguns estudiosos aos limites da razão, pode-se creditar como uma das maiores descobertas os Teoremas de Incompletude do lógico-matemático Kurt Gödel (1906-1978) – que demonstram que uma teoria matemática é incapaz de resolver todos os problemas surgidos no seu próprio âmbito. 55 Cf. Platão, 2006, p. 286. 56 Id., p. 286-287. 30 2 O Mênon 2.1. Uma inovação didática e heurística No que diz respeito à tradicional, mas não consensual divisão do Corpus Platonicum em três fases – a dos chamados diálogos socráticos, iniciais ou da juventude; a fase intermediária ou da segunda navegação; e a última, cujos textos são denominados como finais ou da velhice –, o Mênon é amplamente aceito como pertencente ao período de transição entre a primeira e a segunda. E forma, com o Protágoras e o Górgias, uma trilogia que tem como eixo principal a investigação sobre a natureza do conhecimento. Considerado por diversos autores um manifesto da fundação da Academia1, o Mênon se distingue daqueles diálogos que mostram Sócrates professando a sua ignorância diante da pretensa sabedoria de seus interlocutores. Em linhas gerais, os diálogos socráticos terminavam de modo aporético, pois questionados a respeito do ofício em que eram considerados expertos, os interlocutores de Sócrates eram capazes apenas de fornecer exemplos, impondo obstáculos à busca pela definição procurada. É com relação a isso que o Mênon representa uma inovação. O colóquio se inicia à maneira dos Sofistas, isto é, com Mênon perguntando a Sócrates se a virtude é coisa que se ensina ou que se adquire pela prática, se os homens já nascem em posse dela ou se lhes é transmitida pela natureza (70 a)2. Mênon teria aprendido com Górgias de Leontinos (485-380 a.C.), que em visita à Tessália infundiu em seus habitantes esse costume de, se alguém fizer uma pergunta, responder sem temor e de maneira magnificamente altiva, como é natural aqueles que sabem, visto que afinal ele próprio se oferecia para ser interrogado, entre os gregos, por quem quisesse, sobre o que quisesse, não havendo ninguém a quem não respondesse (70 b-c). Para Jaeger (2003, p. 700), esta era “a forma tradicional do problema, a forma sob a qual já estávamos familiarizados com ele desde os poetas antigos, desde Hesíodo, Teógnis, Simônides e Píndaro [...]”. Sócrates não aceita esta abordagem e reformula o problema como lhe parecia ser apropriado a um filósofo. Ele afirma não ser possível responder à questão, uma vez que nem lhe acontece saber, absolutamente, o que é isto, a virtude (71 a). 1 Entre os quais destacamos Cambiano (1967), Reale (2010) e Szlezák (2009). 2 O texto de referência do Mênon utilizado em Língua Portuguesa é a tradução feita por Maura Iglésias (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001). Salvo indicação contrária, as citações são todas tiradas deste texto, mantendo apenas a referência da numeração das linhas da edição do texto grego de John Burnet. 31 Na parte final das Refutações Sofísticas (34, 183 b 36-184 a 8), Aristóteles critica os especialistas em discussões erísticas (), entre eles Górgias, cujo ensino se restringia à memorização de discursos. O resultado era um ensino rápido, mas privado de rigor, uma vez que era fornecido aos discípulos o produto acabado de uma arte, e não a própria arte. Assim sendo, a conduta de Mênon e a resposta de Sócrates refletem visões distintas da dinâmica do processo de ensino e aprendizagem. Em oposição à abordagem de Górgias, na qual o professor atua como um informante e o aluno como um receptáculo de respostas prontas, Sócrates fundamenta a sua atividade na anamnese (), onde o aluno deve obter respostas por meio de seus próprios esforços. O papel do professor, neste caso, é antes o de um catalisador, cuja capacidade maior deve ser a de conduzir bem as perguntas3. Na sequência, Sócrates provoca: “e, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que tipo de coisa ela é?” (71 b). Em busca de exemplificação, a resposta de Mênon não poderia ser mais relativa: diz ele que há a virtude do homem, a da mulher, a da criança, a do ancião, enfim, “há muitíssimas outras virtudes, de modo que não é uma dificuldade dizer, sobre a virtude, o que ela é.”4. Diante dessa variedade de “virtudes”, Sócrates explica que está em busca daquilo em relação “a que elas [i. e., as diferentes virtudes] nada diferem, mas quanto a que são todas o mesmo”5. 3 “Interrogando-se os homens, se as perguntas forem bem conduzidas, eles darão por si mesmos respostas acertadas” (Fédon, 73 a, PLATÃO, 2011, p. 93). Platão pretendia igualmente combater a relação de subordinação a que os Sofistas submetiam os seus discípulos, e desarma Mênon de todo o espírito das disputas erísticas e agonísticas () quando faz Sócrates dizer-lhe: “Mas, se é o caso, como tu e eu neste momento, de que pessoas que são amigas queiram conversar uma com a outra, é preciso de alguma forma responder de maneira mais suave e mais dialética” (75 d). 4 Id., 71 e. 5 Id., 72 c. A advertência de Sócrates de que “ao procurar uma única” virtude, encontram “uma pluralidade” delas (74 a), repete-se no Teeteto (PLATÃO, 2010), quando este jovem aprendiz de Teodoro, tentando definir o que é o saber (), afirma: “Pois então parece-me que os assuntos que se aprendem com Teodoro são saberes – geometria e as que tu ainda agora enunciaste [i.e. astronomia, harmonia e cálculo, em 145 d 1-2]”. E Sócrates responde: “É-te pedida apenas uma coisa, e tu, meu amigo, com nobreza e generosidade, dás muitas e variadas, em vez de uma simples.” (146 d 4-5). O vínculo entre estes dois diálogos não é casual quando se tem em conta a atração de Platão pela definição matemática. No Mênon, esse personagem, quando desafiado a dar uma definição, desfila um elenco de virtudes propriamente morais, como a coragem, a prudência, a sabedoria e a grandeza d‟alma (74 a 4-5), e em resposta Sócrates lhe fornece um exemplo da geometria para ilustrar o caráter de universalidade e generalidade que procura. No Teeteto, esse jovem matemático fala de um estudo feito por ele e um homônimo de Sócrates acerca das “potências de três pés e de cinco pés quadrados” desenhadas por Teodoro, “demonstrando que o comprimento não é comensurável com um pé, e assim continuou por cada uma delas, até à de dezessete pés” (147 d). A partir disso, eles dividiram “todos os números em duas partes. Qualquer um que tivesse o poder de se produzir pela multiplicação de iguais” foram comparados “com a forma de um quadrado”, e chamados “número quadrado ou equilateral”. Depois, tomados os “números intermediários, entre os quais o três, e o cinco e todo número que não tem o poder de se produzir pela multiplicação de iguais, mas multiplicando um número maior por um menor ou um menor por um maior”, foram estes comparados a uma figura oblonga, e chamados “número oblongo” (147 e-148 a). Diante disso, Sócrates o elogia e o encoraja a proceder do mesmo modo no caso dos saberes, isto é, procurando nomear todos numa única definição (148 d). 32 Interessa a Sócrates o caráter geral6 ou a essência () da virtude, o elemento comum a cada uma de suas manifestações. “Embora sejam muitas e assumam toda variedade de formas, têm todas um caráter (geral) único, o mesmo, graças ao qual são virtudes” (72 c). Para isso, portanto, é preciso esclarecer a distinção entre uma definição e os elementos que a constituem. 2.2. A composição da definição Para tornar claro a Mênon o tipo de orientação a ser adotada na pesquisa em que está empenhado, Sócrates recorre a um paradigma: “por exemplo, se queres, a respeito da redondez, eu diria que é uma figura, não simplesmente que <é> figura. E diria assim, pela razão de que há ainda outras figuras”7. Duas coisas chamam a atenção na referida passagem: (i) o uso do termo grego – forma redonda ou redondez; e (ii) a sua associação à figura – . Afinal, qual a conexão entre redondez e figura? 6 Maura Iglésias opta em sua tradução pela interpretação do termo  como “caráter”. A autora está muito provavelmente amparada em Des Places (1964, p. 159-161), que na referência a  como “caráter (geral)” dá, precisamente, essa passagem, 72 c. Embora seja um dos vocábulos utilizados para designar as Ideias no contexto da filosofia platônica, para esta autora a palavra somente adquire este “sentido técnico de realidade em si, por si, separada das coisas que dela participam” (PLATÃO, 2009, p. 113) em diálogos posteriores. Para Klein (1965, p. 47-55, passim), tanto o termo  quanto o  possuem um definido caráter técnico no discurso de Platão, e em uma extensa nota (p. 50) ele afirma: “The technical use of the word “” (and “”) is apparent in the exposition of rhetorical, medical, and mathematical  as well as in Democritus. The colloquial use of the word shades into a technical one in Herodotus and Thucydides, less so in the former, more so in the latter. See all the evidence collected by A. E. Taylor in “The Words ,  in Pre-Platonic Literature,” Varia Socratica (1911) and – so far as the literature attributed to Hippocrates is concerned – put into proper perspective by G. M. Gillespie, “The Use of  and  in Hippocrates,” The Classical Quarterly, VI (1912), 179-203. The technical use of the word “” in mathematics continues, hardly touched by the Platonic-Aristotelian tradition, later on, for example, in Euclid, Elements VI, 19, Porism; 25; Data, Def. 3, etc., in Apollonius I, 12-14; 21 (cf. Def. 11), in Nicomachus, in Diophantus, Arithmetica, ed. Tannery, p. 14, 25-27 and passim. With reference to the colloquial use of the word, it is curious to observe Taylor‟s emphatic rejection (op. cit., p. 183) of “the supposition that the ,  of the Platonic philosophy have been derived from the use in which these words are mere verbals of .” In support of this rejection Taylor quotes (pp. 182 f.) Aristotle‟s explanation of Iliad X, 316 (Poetics 1461 a 12-14) and Plato‟s Protagoras (352 a), where, in the main, facial “looks” are opposed to the “looks” of the entire body. In quoting these passages Taylor seems to imply that only a face can be called “ugly to look at.” As if only Socrates‟ face and not precisely his whole “silenic” body was meant to be described as “ugly looking” in Alcibiades‟ panegyric (Symp. 215 b 4 f.) and in Meno‟s gibe (Meno 80 a 5)! (Cf. Charm. 154 d 4-5· 158 a 7 - b 1; also Gillespie, op. cit., p. 181.) What somebody or something altogether “looks” like, that is what  and  colloquially – and primarily – mean. Taylor himself says (p. 187) with reference to the meaning of  in Thucydides II, 51: “This meaning [of symptoms of the disease regarded collectively] would come naturally from the literal one of „look‟, „appearance‟.” And it is this literal or rather familiar meaning from which Plato derives – by way of contrast, paradox, and pun – his understanding of the  as  (cf. Phaedo 80 d, 79 a; Gorg. 493 b; also below p. 137, note 93.)”. 7 Id., 73 e 3-5:   33 O termo  significa simultaneamente figura e forma8. Neste caso, em particular, pode-se admitir o seu uso coloquial, no sentido de “superfície fechada de uma coisa visível”9. Cerceando o seu significado a partir dos objetos que comporta, Sócrates afirma adiante que “o redondo não é absolutamente mais figura que o reto, nem este mais figura que aquele” (74 e). Por sua vez, forma é também uma das possibilidades de tradução de , e, possivelmente para evitar confusões, muitos tradutores prefiram reservar a palavra forma para o contexto específico das Ideias. Todavia, tal preocupação da tradição estabelece limites onde Platão talvez preferisse a sfumatura. Para Acerbi: A linguagem platônica é, como sempre, mais alusiva que tecnicamente irrepreensível, ainda que ocorra levar em conta que escolhas lexicais não canônicas mesmo em seu tempo podem estar relacionadas a motivações totalmente estranhas ao contexto matemático, de exigências rítmicas ou de referência fonética (EUCLIDE, 2008, p. 95)10. Por outro lado, pode-se conjecturar se o uso de certa graduação de tonalidade linguística em Platão não seria um reflexo da agitação cultural de seu tempo, em que não apenas os pilares da ciência estavam se erigindo, mas simultaneamente a própria linguagem que os acomodaria. Em meio a isso temos o pensamento de Platão em pleno desenvolvimento, seguindo uma espiral evolutiva que perpassa toda a sua obra, e que se mostra como um enfrentamento dos principais problemas de sua época. Ao ceticismo de Acerbi opõe-se a cautela de Kahn (1996, p. 316)11, que considera que “para um escritor tão cuidadoso como Platão, a escolha do vocabulário deve ser significativa”. Procurando compreender melhor o uso do insólito 12, encontramos no décimo capítulo do livro VII da Metafísica (, 1034 b 20-1036 a 25)13 de Aristóteles o emprego de  Neste trecho o Estagirita examina a definição e as suas partes, e a relação entre elas com a forma e as partes da forma. Em seu interesse em classificar e delimitar os campos de atuação dos diversos tipos de ciência, ele se põe a pesquisar em que 8 Cf. Klein (1965, p. 55-56). Des Places (1964, p. 490-491) arrola as seguintes acepções para : (1) “aspecto” (a) de um corpo; (b) de um ser depois da evolução; (2) “figura” (a) geométrica (a passagem 73 e 4 do Mênon); (b) musical, (c) coreográfica; (3) “gesto”, “atitude”; (4) “caráter” (de um personagem real ou fictício (papel)); (5) “profissão”, “condição”; (6) “forma”, “plano”; (7) “prestígio”, (a) fundado, ou (b) ilusório. 9 Klein (1965, p. 55). No original: “closed surface of a visible thing”. 10 “Il linguaggio Platonico è, come sempre, più allusivo che tecnicamente irreprensibile, anche se ocorre tenere conto che scelte lessicali non canoniche anche per i suoi tempi possono essere legate a motivazioni del tutto estranee al contesto matematico, quali esigenze ritmiche i di richiamo fonetico”, no original. 11 “For a writer as careful as Plato, this choice of vocabulary must be significant”, no original. 12 Uma pesquisa lexicográfica conduzida em Radice (2003, versão digital sem paginação) indica duas ocorrências de  e uma de  no Corpus platonicum, todas as três no Mênon. 13 Cf. Radice (2005, versão digital sem paginação). 34 casos a noção das partes deve estar presente na noção do todo, e quando não. Isso irá depender da relação entre eles, por exemplo, “o ângulo agudo deveria ser anterior ao reto”, pois faz parte dele, mas, contrariamente, é o reto que é anterior ao agudo, “pelo fato que subsiste independentemente de suas partes” (ARISTÓTELES, 2002, p. 327) 14. A exposição euclidiana segue a ordem da argumentação aristotélica, definindo primeiro o ângulo reto e nomeando a reta perpendicular que o constitui (EUCLIDES, 2009, p. 97)15, e depois os ângulos obtuso16 e agudo17, respectivamente. O que Aristóteles coloca em relevo é uma correspondência do ângulo reto com a unidade numérica enquanto “medida primeira”, ou seja, como “princípio de nosso conhecimento”18. Aristóteles considera ainda a interação entre matéria e forma na constituição dos objetos. Novamente, há casos em que a matéria é parte constitutiva da noção da forma, e outros em que não. Relativamente aos primeiros, “a noção da sílaba contém a das letras”19, ao contrário dos segmentos do círculo, que “são partes materiais nos quais se realiza a forma”20. Logo, quando “o círculo se realiza no bronze”21, esta particular forma que se esboça na matéria sensível não toma parte na definição do círculo, o mesmo ocorrendo com um particular círculo inteligível. A definição de círculo como o lugar geométrico dos pontos equidistantes de um ponto chamado centro, é, portanto, universal. Ainda que se considere a redondez e o redondo como meros substantivos utilizados para se referir ao círculo, o contexto ontológico em que se inserem, tanto em Platão, quanto em Aristóteles, indica um movimento de constituição das próprias definições. No caso de Platão, este processo como pré-requisito à definição é explicado na digressão filosófica da Carta VII. Não é nosso propósito aqui entrar na discussão dos méritos da sua autenticidade, para os fins do trabalho que apresentamos é suficiente reconhecer que as doutrinas de Platão passam por constantes reformulações e aprimoramentos ao longo dos diálogos, e que a Carta VII representa um estágio avançado deste desenvolvimento. Dito isso, vale a pena cotejar a passagem toda, uma vez que o cuidado de Platão no processo de constituição da definição no Mênon se enquadra na descrição do excursus da Carta: 14 Metafísica,  10, 1034 b 30-35. 15 Cf. Elem. I, Def. 10. 16 Ibid., Def 11. 17 Ibid., Def. 12. 18 Cf. Aristóteles, Metafísica.,  6, 1016 b 19-20: . 19 Ibid.,  10, 1035 a 10. 20 Ibid.,  10, 1035 a 12. 21 Id. 1035 a 13-14:  35 Há em cada um dos seres três [elementos], a partir dos quais é necessário que o saber surja, sendo o quarto ele mesmo; em quinto lugar, há que se pôr o que é em si cognoscível e verdadeiramente é. Um é o nome [], o segundo, a definição [], o terceiro, a imagem [], o quarto, o saber []. Demos um exemplo a quem quiser aprender o que digo agora e pensemo-lo em relação a todas as coisas: o círculo [] é o que é dito, que tem esse mesmo nome que agora enunciamos; a sua definição é o segundo elemento, composta de nomes e de verbos: aquilo que mantém das extremidades ao meio igual distância em toda parte. A definição valeria para o mesmo que tenha esse nome “redondo e circular e círculo” []. Terceiro é o que é desenhado e o que é apagado, o que é torneado e o que se perde. Mas o círculo em si, o mesmo em relação com tudo isso, em nada é afetado, porque é diferente deles. O quarto é o saber, a inteligência e opinião verdadeira sobre ele. Ora, essa unidade deve ser posta não em sons nem em formas de corpos, mas deve ser presente nas almas; o ser destes é manifestamente diferente da natureza do próprio círculo e dos três elementos ditos antes. Desses, o que mais se aproxima por parentesco e semelhança é a inteligência, avizinhada do quinto elemento; os outros se afastam mais. E o mesmo ocorre em relação às figuras retilíneas e circulares, as cores, o bem, o belo e o justo, e em relação a todo corpo artificial e natural, ao fogo, à água e a todas essas coisas, acerca de todo ser vivo e dos caracteres nas almas, e acerca de todas as ações e paixões. Pois desses, caso alguém não compreenda os quatro elementos, de um modo ou de outro, jamais será completamente partícipe do saber do quinto. Diante disso, esses elementos realizam a qualidade, mostrando acerca de cada coisa, mas menos do que o ser de cada uma delas, devido à fragilidade do discurso. Por causa disso, ninguém que tenha juízo ousará expor pela linguagem o seu pensamento, por causa de sua fragilidade, e isso em caracteres imóveis, como acontece com os escritos. Mas é preciso compreender ainda isso que é dito agora. Cada círculo, dos que são desenhados e tomados na prática, ou mesmo dos que são torneados, está cheio do que é contrário ao quinto elemento, pois é tocado pela reta em toda parte; o próprio círculo, dizemos, não em si mesmo algo menor, nem maior, da natureza que lhe é contrária. Dizemos que nenhum de seus nomes é seguro para ninguém: nada impede que o que se chama redondo tenha sido chamado reto, e o reto, redondo; e nada impede que seja menos seguro aos que mudaram do que aos que chamam ao contrário. E certamente acerca da definição dizemos a mesma coisa; uma vê que se compõe de nomes e verbos, nenhuma é segura o bastante. (342 a 7-343 b 6)22 Em vista disso, as diferenças terminológicas podem ser interpretadas como uma etapa entre o primeiro e segundo elementos citados acima, a saber, a nomeação e a definição. Em um movimento gradativo, que parte das contradições da percepção, Sócrates parece fazer, no Mênon, a constatação mais abrangente possível: a redondez é uma forma. Em seguida, em um 22 O texto de referência da Carta VII utilizado em Língua Portuguesa é a tradução feita por José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008). Salvo indicação contrária, as citações são todas tiradas deste texto, mantendo apenas a referência da numeração das linhas do texto grego. 36 contexto geométrico mais específico (74 d-e), o reto () e o redondo () realizam a qualidade de figura, mas sem ainda exprimir uma sua delimitação. Com um isomorfismo argumentativo, que chamaremos aqui de movimento aisthetico horizontal, Sócrates associa as formas ou superfícies à cor (): “Seja pois figura, para nós, o único entre os seres que acontece sempre acompanhar a cor”23. A definição se fundamenta no modo como figura e cor são apreendidas; tratam-se de fenômenos “co- extensivos” ou “mutuamente complementares” (KLEIN, 1965, p. 59). “Mas essa definição é ingênua, Sócrates”, objeta Mênon, e “se alguém dissesse que não sabe o que é a cor [...]?” (75 c)24. A observação “socrática” de Mênon é no sentido de que a definição apresentada recorre a conceitos não estabelecidos anteriormente. Reconhecendo o erro de método, é dele que parte a exigência de um critério de validação para a definição, que “deve conter apenas termos previamente esclarecidos e perfeitamente definidos” (PLATONE, 2010a, n. 16, p. 195)25. A co-extensão, consequentemente, mostra-se útil na esfera da percepção, porém, quando se procura saber o que é (), faz-se necessário um movimento de outro tipo, capaz de promover uma ascensão da alma, um movimento noetico vertical. Para efetuá-lo, deve-se estabelecer uma base, tanto formal, quanto metodológica, a partir da qual os participantes da discussão acordem com o significado dos termos usados na composição da definição. 2.3. Da escala platônica à euclidiana Partindo deste princípio, Sócrates pergunta se “há algo a que dás o nome „término‟ []”, querendo “dizer algo tal como limite [] e extremidade []” (75 e, grifo nosso). O sentido dos termos em destaque é puramente coloquial, mas reunidos com outros específicos da geometria, como a superfície [] e o sólido [], se estabelece precisamente a definição, cujo exemplo matemático viria a se tornar a base do rigor dialético: “a figura é o limite do sólido”26. 23 Id., 75 b. 24 Do ponto de vista dramático e pedagógico é interessante ver como Platão troca o papel de seus personagens. Desta vez, é Sócrates quem é desafiado a fornecer uma definição, enquanto a Mênon cabe a função de analisá-la e verificar se ela serve ao contexto do que é requerido. Se Mênon apresenta repetidas dificuldades em compreender o que lhe está sendo pedido, Sócrates lhe oferece uma definição por analogia, cuja negação, por parte do jovem, fará com que o problema se torne compreensível a ele. 25 “Una definizione, dunque per essere valida, deve contenere solo i termini previamente chiariti e perfettamente definiti”, no original. 26 Id., 76 a:  37 Considerando esse o modelo correto de definição, Platão não apenas mantém o recorrente vínculo intuitivo ao uso de figuras, como também conecta a geometria ao estudo dos sólidos, a partir de um padrão extensivo, construtivo e acumulativo que será posteriormente utilizado por Euclides. No caso das figuras (ou formas ou superfícies) e a cor, só se pode ver uma delas por meio da outra, e por isso o seu caráter de co-extensão ou reciprocidade. No caso da figura e o sólido, a extensão é unilateral, e segue uma lei de composição dimensional que Platão explicitará com detalhes na organização das disciplinas matemáticas no curriculum da República (VII 521 c-531 c)27. Entretanto, “nada nos autoriza a sustentar que os dois níveis fossem já considerados incindíveis e um subordinado ao outro.” (CAMBIANO, 1967, p. 134)28. Um sinal disso se encontra propriamente na República, quando após estabelecer “a ciência do número e do cálculo” (VII 522 c, PLATÃO, 2006, p. 278), como os primeiros aprendizados capazes de arrastar a alma até o ser, e a geometria como segundo29, Sócrates defende, como terceiro, o estudo dos sólidos em oposição à astronomia. “Depois das superfícies, [...] tomamos o sólido já em movimento antes de considerá-los em si mesmos. O correto é, imediatamente após a segunda dimensão, tratar da terceira, isto é, da que se refere à dimensão dos cubos e dos objetos que têm profundidade”30. Os detalhes estão na queixa que acompanha a proposta de reestruturação, já que “nenhuma cidade preza esses estudos e falta energia à pesquisa, que é trabalhosa; além disso, os pesquisadores carecem de um orientador sem o qual não chegarão à descoberta”31. Entre Platão e Euclides encontra-se Aristóteles, e se o primeiro incitou uma reforma na hierarquia pitagórica dos mathemata de sua época, o último nos fornece um retrato em que se vê já um novo estado das coisas. A Metafísica é a obra onde a análise ontológica de seu autor traz concepções diversas dos objetos matemáticos, campo da batalha dialética com Platão e alguns acadêmicos antigos, como Speusippus, Xenócrates e um grupo de “acadêmicos pitagorizantes”32. No livro XIV, Aristóteles critica “alguns filósofos”, para o quais “o ponto é o limite e a extremidade da linha, a linha é limite e a extremidade da superfície e a superfície é limite e extremidade do sólido”33(ARISTÓTELES, 2002, p. 677). O que sugere uma resposta à reivindicação de Platão ainda em seu próprio tempo. 27 Ver infra Cap. III. 28 “in ogni caso nulla ci autorizza a sostenere che i due livelli fossero già considerati inscindibili e uno subordinato all'altro”, no original. 29 Id., VII 526 c-527 c, p. 284-285. 30 Id., VII 528 a 9-b 2, p. 286. 31 Id., VII 528 a-d, p. 286-287. 32 Para ulteriores detalhes ver Cattanei (2005, p. 217-318). 33 Metafísica,  3, 1090 b 5-7. A partir de limite ou extremidade, Euclides definirá fronteira como sendo “aquilo que é extremidade de alguma coisa” (Elem. I, Def. 13: ). Proclus (1992, p. 109) 38 É significativo para a história da matemática que o testemunho de Aristóteles delimite o tempo (século IV a.C.), o espaço (a Academia), os personagens e os objetos de tal contenda, fornecendo-nos um quadro sintético do estado da arte de seu período. Além disso, nesse quadro pintado a muitas mãos, as texturas utilizadas pelo Estagirita são úteis não apenas em si, mas nos permitem distinguir o esboço platônico do acabamento euclidiano, bem como a linha evolutiva que liga um ao outro. 2.4. A lição de geometria Para o historiador e filósofo da matemática Imre Toth, “mais do que em sua expressão figurativa, é naquela musical que a estrutura matemática do experimento maiêutico do Mênon manifesta a riqueza e a extraordinária eficácia do pensamento que contém” (PLATONE, 2010a, p. 221)34. Comparada à Oferenda Musical de Bach, a chamada “lição de geometria” oferece uma porção limitada de variações sobre um tema infinitamente reproduzível35. O entusiasmo deste autor ocorre porque se interrogado com “os instrumentos específicos de uma filologia matemática” (PLATONE, 2010a, p. 232; TOTH, 1998, p. 41)36 o trecho nos permite um aprofundamento da concepção de irracional na cultura grega antiga e do desenvolvimento da teoria das proporções. Considerada um drama em três atos, a prova da anamnese por meio de um experimento maiêutico (82 b-86 c) é definida por Toth do seguinte modo: o drama que se anuncia; a iteratividade infinita; e o final feliz da geometria. argumenta, em seu comentário, a favor de uma distinção entre fronteira () e limite () obedecendo ao critério de composição dimensional, com o segundo sendo utilizado estritamente para a delimitação de áreas, provavelmente herdado de antigas técnicas de agrimensura. Aristóteles usa os dois termos como sinônimos. Ver Heath (1908, v.1, p. 182). 34 “Tuttavia, più che nella sua espressione figurativa, è in quella musicale che la struttura matematica dell‟esperimento maieutico del Menone manifesta la ricchezza e la straordinaria efficacia del pensiero che racchiude”, no original. 35 A citação é retirada de um ensaio integrativo à edição italiana do Mênon, editada por G. Reale. O ensaio é um recorte de um trabalho mais amplo e aprofundado, que se encontra em Toth (1998). 36 “gli strumenti specifici di una filologia matematica”, no original. Estes instrumentos são compostos por um conjunto de obras que estudos mais recentes têm trazido ao debate e que vêm a se juntar às outras já tradicionais sobre o tema, como as que se encontram nas notas e referências de Cattanei (2003) e Toth (1998). Para Toth, “cada texto é parte orgânica constitutiva do contexto na complexidade de todos os textos: do presente, do passado, do futuro. Todos os textos falam, mas nenhum texto é um solilóquio. Os textos falam uns com os outros.” (1998, p. 189, grifo do autor). Sob essa ótica, é necessário procurar vias comunicação não somente entre os diálogos, mas também com fontes secundárias da matemática da época, como testemunhos e fragmentos. Essa dimensão exegética tem dupla vantagem, pois ao passo que propõe avanços na compreensão da matemática na filosofia de Platão, traz, de seus textos, elementos teóricos e epistemológicos cuja contemporaneidade auxilia na reconstrução desses saberes em fase de ajuste. 39 2.4.1. Primeiro Momento (82 b-e): o estabelecimento dos dados do problema SO. Dize-me aí, menino: reconheces [] que uma superfície quadrada é desse tipo? ESC. Reconheço. SO. A superfície quadrada então é que tem iguais todas estas linhas, que são quatro? ESC. Perfeitamente. SO. E também não é que tem iguais estas aqui, que atravessam pelo meio? ESC. Sim. SO. E não é verdade que pode haver uma superfície desse tipo tanto maior quanto menor? ESC. Perfeitamente. (82 b-c). Tendo em vista que a único pré-requisito é que o escravo fale grego (82 b 4), o uso do verbo  na primeira pergunta parece ter dupla função. Ao mesmo tempo em que Sócrates questiona se o escravo reconhece o quadrado de sua vida pregressa, isto é, na imortalidade de sua alma, o termo indica também a imputação de um nome a uma imagem, que muito provavelmente era desenhada enquanto se desenvolvia a conversa. O seu sentido não se refere a um conhecimento prévio do quadrado pelo escravo em sua vida presente, e sim se ele se recorda e admite que aquilo que lhe é mostrado seja denominado quadrado. Note-se que após o seu consentimento segue-se a definição, e depois desta o conhecimento, quando indica na sua última resposta afirmativa a posse das propriedades universais do quadrado pela possibilidade de conceber exemplares maiores ou menores sem perder as suas características. Na definição, a figura descrita por Sócrates certamente se identifica com o quadrado euclidiano por tratar-se de uma superfície com quatro ângulos iguais e também com todas as quatro linhas iguais37, determinando assim a sua retangularidade. Mas na pergunta seguinte, qual a necessidade das linhas iguais que atravessam a figura pelo meio? Trata-se de uma informação essencial à definição ou ela é um acessório? Pode-se pensar que a sua inserção tem como propósito facilitar os cálculos a partir de um quadrado unitário, o que adquire sentido quando Sócrates certifica com o escravo o processo de cálculo de áreas pela multiplicação dos lados da figura em 82 c 6-d 4. Estratégia semelhante de divisão da figura pelas linhas i