UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO MARIANA VIRGÍNIA MORETTI CARVALHO QUANDO OS QUADRINHOS VIRAM HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DAS CHARGES DE HENFIL E O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO NO REGIME MILITAR BRASILEIRO Rio Claro 2016 LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA MARIANA VIRGÍNIA MORETTI CARVALHO QUANDO OS QUADRINHOS VIRAM HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DAS CHARGES DE HENFIL E O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO NO REGIME MILITAR BRASILEIRO. Orientador: Prof. Dr. José Euzébio de Oliveira Souza Aragão Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de licenciada em Pedagogia Rio Claro 2016 Carvalho, Mariana Virgínia Moretti Quando os quadrinhos viram história : uma análise das charges de Henfil e o contexto da educação no regime militar brasileiro / Mariana Virgínia Moretti Carvalho. - Rio Claro, 2016 66 f. : il., figs. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: José Euzébio de Oliveira Souza Aragão 1. Educação - história. 2. Charges. 3. Henfil. 5. Regime militar. I. Título. 370.9 C331q Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Aos meus pais, Fábio e Lucy AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Fábio Carvalho e Lucy Moretti, pela paciência. Ao time de Rugby da UNESP Rio Claro, família que eu escolhi. Aos professores que influenciaram a minha (trans) formação na UNESP, em especial meu orientador José Euzébio Aragão e às professoras Raquel Borghi, Áurea Costa e Bruna Carvalho. Também agradeço ao Ricardo Salgado, meu primeiro professor de Filosofia. Aos amigos ecólogos: Poliana Arantes “Mãe Beraba”, Diego Ken Osoegawa “Jaspion”, Marina Gusson “Bá”, Marcel Godoy “Monstro”, Camila Lacerda “Bituca”, Daniel Guedes Vieira “Pagode”, Bruno Martins “Baleia”, Andrey Borges “Xernobs”, pelos momentos incríveis em Rio Claro, pelas cervejas e principalmente, pelas constantes risadas. Ao Projeto de Extensão em Educação Ambiental “Semente Viva”, em especial a Poliana Arantes “Beraba”, Victor Fontanive “Krill”, Luísa Blanco “Canadá”, Tainara Proença Nunes “Xuxa”, Antônio Miranda “B.O.”, Daniel Peret “Fuso”, Fernanda Esteves, Juliana Soares, Vinícius Teixeira “Bichano”, Lucas Guedes “Zeca”. Agradeço aos alunos que nos ensinaram tanto nesses anos. A Larissa Benites, Mellissa Fernanda, Felipe “Cansas” e professor Samuel, por acreditarem e incentivarem o Curso de Extensão em Rugby da Escola de Educadores, que tanto me ensinou. Ao PIBID da Pedagogia da Escola Municipal Dante Egréggio de Rio Claro, em especial a professora Tati. Agradeço aos amigos educadores físicos, companheiros de república, de jogos e de rango, Marina Kanesiro “Japa”, Vinícius Alota “Paiasso”, Larissa Portinho, Maira Teodoro “Zuada” e Marolzinha por todos os momentos. Ao Irto Prefeito, Anke “Alemoa”, Ramón “Presunto”, Danilo Soares, Luna e Bisteca, todo meu carinho. Aos amigos Beatriz Monteiro "Regaça", Marcelo Gutierrez “Pança”, Antônio Almeida “Tonhão”, Bruno Piato “Créu”, Rafael Vilela “Canto”, Lucas Antunes “Pé de Pano”, Georg Murbach “Gó”, Leonardo Lessi, por todos os gorós compartilhados. A turma da Pedagogia 2013, em especial aos companheiros pedagogos: Ana Laura Buoro, Fer Argentin, Lucas Pedroso, Thaís Camargo, Karyn Aila, Karinão Jürgensen, Larissa Carnecine. Ao Centro Acadêmico da Pedagogia (CAPed “Edson Luis” e “Dandara dos Palmares”) e a luta dos estudantes por uma universidade mais justa. Aos Beatles, Led Zeppelin, Sublime, Caetano e Chico, por fazerem a trilha sonora não só desse trabalho, mas de tantos outros. Aos amigos de São Paulo, Fernando Zemann, Jean Gustavo, Henrique Reichert, Caique Souto, Tomás Duarte, Daniel Matsuoka, Bruno Rentes, Sócrates Kentaro, Rafael Moreira, ao time de Rugby feminino da USP, ao time da FFLCH que não tem vogal, ao Centro Acadêmico de Filosofia (CAF/USP), em especial à gestão Emanação. A Dorothy Hari, Artu Lezama, Keila Lima e todos os amigos de Ourém, Pará. A equipe do Museu da Energia de Corumbataí, que é trabalho: Ana Laura Curcio “Fazenda”, Cadu Santuário, João Marcos Correa “Tião” e Rafael Zanetto “Brioco”, Paulinha, Seu Zé, Donizetti e Edivan. A todos os alunos que me escutaram falar, e aos que não escutaram também. Aos companheiros do Estação Turismo, Caio “Xera”, Andrey “Xernobs”, Raulzito, Erick “Exu”. Ao Seu Tião, a Lê Cruz, Kelly Marco, Jaque Betiol e claro, ao grande amigo Rooney Grella. À dona Lurdes, Ana, Aline, João e amigos por clarearem o caminho. Ao Pai João também. Agradeço a Deus por todas as voltas que dei até encontrar o caminho. Epa-hey Iansã Meus heróis não viraram estátua. Morreram lutando contra quem virou. Uma História de Amor e Fúria, 2013 RESUMO Desde tempos remotos, os seres humanos produziram esboços de seu cotidiano e procuraram manifestar sua visão de mundo utilizando o desenho e a arte. Essas representações gráficas, desde seu advento até os dias atuais, fornecem um valioso acervo para a análise e compreensão de contextos históricos específicos. O presente estudo pretende analisar aspectos do Regime Militar Brasileiro (1964-1985) com enfoque em suas consequências na educação, sobretudo na educação das camadas populares do país. Para direcionar tal investigação, bem como identificar características e tecer considerações acerca dos aspectos mencionados, foram selecionadas charges de humor do cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, produzidas no período de 1967 a 1988, que satirizam as diretrizes adotadas pelo governo autoritário e evidenciam, com forte teor crítico, os impactos deste na sociedade brasileira durante sua vigência. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa que faz uso da análise de discurso como metodologia de interpretação das charges, bem como o levantamento bibliográfico para aprofundamento no tema proposto. Espera-se com essa pesquisa, enriquecer o estudo sobre os rumos da educação em períodos históricos utilizando como ferramenta as charges de humor. Palavras-chave: Charges. Educação. Henfil. Regime Militar. ABSTRACT Since ancient times, human beings have produced sketches on daily lives and sought to express view of the world using design and art. These graphic representations, since their advents to date, have provided a valuable collection for the analysis and understanding of specific historical contexts. This study aims to analyze aspects of the Brazilian Military Dictatorship (1964-1985) focusing on its consequences to education, particularly education of the common people of Brazil. To conduct such investigation and identify characteristics and to make considerations on the aspects mentioned, Henrique de Souza Filho or, as he is know, Henfil’s humorous cartoons, produced from the 1967 to 1988, were selected, lampooning the guidelines adopted by the authoritarian government and showing its impact on Brazilian society with a strong critical content. Therefore, this is a qualitative research which makes use of speech analysis as a methodology for the interpretation of the cartoons, as well as a bibliographic survey to do deep into the proposed theme. It is expected, with this research, to enrich the study of education in historical periods using cartoons as a tool. Keywords: Cartoons. Education. Henfil. Military dictatorship. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Charge do cartunista argentino Quino........................................................33 Figura 2: Henrique de Souza Filho, o Henfil..............................................................35 Figura 3: Henfil e seu irmão, Betinho.........................................................................36 Figura 4: A personagem Graúna e a militância de Henfil pela democracia...............38 Figura 5: Pasquim número 300, 29 de março de 1975..............................................40 Figura 6: Orçamento de educação no Brasil é 4%.....................................................42 Figura 7: Henfil e o Congresso da UNE.....................................................................48 Figura 8: Estudantes presos no 30º Congresso da UNE em Ibiúna-SP, 1968..........49 Figura 9: Não tenho vergonha, mas tenho fome, serve?...........................................51 Figura 10: Vida de professora....................................................................................54 Figura 11: Morro, mas meu desenho fica...................................................................59 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10 1.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................................................................... 12 1.2 ORGANIZAÇÃO DAS SEÇÕES .................................................................................... 16 2 EDUCAÇÃO NO REGIME MILITAR BRASILEIRO ............................................... 17 3 EDUCAÇÃO, REPRESSÃO E CONTROLE SOCIAL ........................................... 25 4 A PESQUISA: HENFIL, AS CHARGES, A DITADURA E A EDUCAÇÃO ............ 32 4.1 AS CHARGES COMO RESISTÊNCIA ............................................................................ 32 4.2 QUEM É HENFIL? ................................................................................................... 34 4.3 O PASQUIM: VENCENDO A CENSURA COM HUMOR ..................................................... 39 4.4 HENFIL, A DITADURA E A EDUCAÇÃO ......................................................................... 41 5 DISCUSSÃO E RESULTADOS ............................................................................. 42 5.1 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO ............................................................................ 42 5.2 A REPRESSÃO AOS ESTUDANTES ............................................................................. 45 5.3 AGRAVAM-SE AS CONTRADIÇÕES SOCIAIS ................................................................ 50 5.4 A CONDIÇÃO DOS PROFESSORES ............................................................................. 54 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 57 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 60 10 1 INTRODUÇÃO Os regimes totalitários comumente são caracterizados pela unilateralidade ideológica imposta pela censura nas expressões artísticas. O período compreendido pelo regime militar brasileiro, de 1964 a 1985, os chamados "anos de chumbo", foram marcados pela dura repressão que privava a população do direito à liberdade de expressão, sob justificativa de impulsionar o desenvolvimento econômico do país. Para compreender a ascensão de um governo dessa estirpe, é necessária uma contextualização histórica do que acontecia em solo brasileiro nas décadas anteriores. A crise do modelo populista (1930-1964) se deu, entre outros fatores, pela procura de alternativas à República agroexportadora, à crescente urbanização, à necessidade de industrialização, ao “modelo de substituição das importações” que se tornou hegemônico na década de 60, permitindo ao segmento industrial que internacionalizasse o capital, fazendo a manutenção dos privilégios de uma minoria dominante, sob o viés da “modernização” (CUNHA, GÓES, 1989). Nesse sentido, desde o projeto desenvolvimentista do governo do “50 anos em 5“ de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960), o fluxo de capital estrangeiro para o desenvolvimento econômico se intensificou e esse período da economia brasileira é marcado por programas de reformas democrático-burguesas (RIBEIRO, 2003). O forte apoio e investimento norte-americano aliado a conjuntura da década de 60, marcada pela crise econômica e a fragilidade política, permitiu que o governo militar se instalasse e se perpetuasse durante longos vinte e um anos no Brasil. Faz-se mister pontuar que, às vésperas do golpe militar de 1 de abril de 1964, algumas diretrizes prometiam marcar profundamente os rumos da educação no Brasil, caso pudessem ter sido amplamente concretizadas. O governo de João Goulart (1961-1964) propunha nas Reformas de Base, o Plano Nacional de Alfabetização (PNA, decreto 53465, de janeiro de 1964), que almejava oficializar o Sistema Paulo Freire a nível nacional, visando a alfabetização de cinco milhões de brasileiros até 1965 (RIBEIRO, 2003). Sobre esse Sistema, escrevem Cunha e Góes (1989) que 11 [...] No clima das Reformas de Base do Governo Jango, o Sistema Paulo Freire foi um verdadeiro achado. Através dele seria possível - era a previsão - acrescentar cinco milhões de eleitores ao corpo eleitoral em 1965 (?) e assim desequilibrar o poder da oligarquia em favor do movimento popular. De janeiro de 1962 (Dona Olegarinha) até final de 1963 e início de 1964, a proposta Paulo Freire de alfabetização em 30 horas saiu dos limites de uma quase anônima experiência com cinco analfabetos para ser adotada nacional e oficialmente como proposta do governo federal. (CUNHA, GÓES, 1989, p. 21) Este e outros projetos, principalmente os que eram voltados à classe trabalhadora foram paralisados após o golpe militar, representando um retrocesso na educação das camadas populares. Além disso, ocorreram alterações no quadro de financiamento e investimento da educação, intensificou-se a repressão aos estudantes e agravou-se a condição de proletarização dos profissionais da educação, como este estudo pretende evidenciar mais adiante. A relevância do presente estudo é o aprofundamento de discussões já existentes sobre a educação no regime militar tendo como pressuposto a relação conflituosa entre regimes ditatoriais e a liberdade de expressão. Esta pesquisa faz uso das charges como ferramenta de identificação das críticas a esse tipo de regime, uma vez que esse tipo de produção cultural, em certos momentos, foi capaz de escapar à censura e atingir o público, criticando as políticas adotadas pelo governo que influenciavam diretamente a sociedade. A publicação das charges, material de cunho contestador, na chamada imprensa alternativa, era um caso à parte no referido período, tendo em vista as perseguições sofridas por diversos artistas e intelectuais, e cujos atos discricionários eram essenciais para que o regime se perpetrasse. Além disso, a charge consiste em composição de imagem e texto de fácil compreensão pelo leitor cuja única premissa é a de estar familiarizado com o contexto abordado para que essa expressão artística de estilo satírico atinja seu objetivo – o humor. Dessa forma, mais estudos poderiam ser realizados a partir desta ferramenta, tendo em vista a relevância deste material como ferramenta de identificação. Nesse sentido, é de suma importância que se destaque que alguns artistas conseguiram expor ao público, por meio de sua obra, as características autoritárias 12 deste governo e fundamentais indicadores sociais. Um forte expoente deste movimento foi o cartunista mineiro Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil. Desse modo, para aprofundar a compreensão das reformas realizadas no militarismo e suas consequências para a educação brasileira, serão selecionadas as charges em que o cartunista trabalha diretamente com o tema como objeto de interpretação. Temas complementares relacionados à política social do período também serão identificados e analisados, levando em consideração a relevância e constância de sua abordagem pelo desenhista. De que forma as charges de Henfil evidenciam de maneira satírica as características totalitárias do regime militar brasileiro neste período, sobretudo as consequências na área da educação? Em suma, este trabalho pretende discorrer acerca dos rumos da educação brasileira no período do regime militar, a partir das críticas ao governo autoritário apresentadas nas charges de humor de Henfil. Como objetivos específicos pretende- se: a) evidenciar as reformas educacionais durante o período da ditadura militar e investigar seu impacto na educação da classe popular brasileira; b) analisar os temas relacionados ao contexto político em questão, como a censura e a repressão. 1.1 Procedimentos metodológicos De acordo com André e Lüdke (1986, p.1), “para se realizar uma pesquisa é preciso promover o confronto entre os dados, as evidências as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele”. A pesquisa é, portanto, “uma ocasião privilegiada”, cujo ponto de partida é a definição de um problema que desperta curiosidade do pesquisador, que se lança à investigação a partir dos trabalhos já existentes sobre o assunto, dando continuidade às contribuições nesta área de conhecimento (ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p.2). Escreve Goldenberg (2005) que a ciência está muito mais próxima de nossa ignorância do que de nossas certezas. E faz tal afirmação porque o conhecimento 13 científico não se trata de uma verdade absoluta, mas está em constante criação. Tem- se como premissa que a pesquisa é a construção de conhecimento sistemático e original, que contribui para avançar a área de conhecimento a qual se dedica. Para tal construção, faz-se necessário que a pesquisa tenha um método, um conjunto de passos que conduza o pesquisador, de forma coerente e sistemática, à resolução do problema que ele se propõe a investigar (GOLDENBERG, 2005). A metodologia utilizada para o presente estudo é a abordagem qualitativa, caracterizada, dentre outros aspectos, pelo interesse pela maneira que os indivíduos dão significado à sua existência; pela preocupação com o contexto e as circunstâncias históricas e sociais que o produziram; pela descrição minuciosa dos eventos em questão, bem como a valorização os detalhes que podem fornecer subsídios valiosos para análise (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Sobre os investigadores desse tipo de pesquisa: [...] Os investigadores qualitativos estabelecem estratégias e procedimentos que lhes permitam tomar em consideração as experiências do ponto de vista do informador. O processo de condução de investigação qualitativa reflecte uma espécie de diálogo entre os investigadores e os respectivos sujeitos, dado estes não serem abordados por aqueles de forma neutra. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 51). Nesse sentido, os investigadores qualitativos analisam o mundo de forma minuciosa, com a ideia de que nada é trivial, “tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora de nosso objecto de estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p.49). As características mencionadas, que constituem o diferencial das abordagens de natureza qualitativa, justificam sua relevância metodológica para a realização desta pesquisa. Outro fator importante para a realização do presente estudo é a compreensão dos aspectos que envolvem a pesquisa e o pesquisador. É possível conceber o pesquisador “como membro de um determinado tempo e de uma específica sociedade, [que] irá refletir em seu trabalho de pesquisa os valores, os princípios 14 considerados importantes naquela sociedade, naquela época” (ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p.3). Sobre a relação entre pesquisa e pesquisador, escrevem os autores que: [...] O papel do pesquisador é justamente de servir como veículo inteligente e ativo entre esse conhecimento acumulado na área e as novas evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa. É pelo seu trabalho como pesquisador que o conhecimento específico do assunto vai crescer, mas esse trabalho vem carregado e comprometido com todas as peculiaridades do pesquisador, inclusive e principalmente com as suas definições políticas. “Todo ato de pesquisa é um ato político”, já disse muito bem Rubem Alves (1984) (ANDRÉ; LÜDKE, p.5). Por conseguinte, sobre a dimensão social da pesquisa, refuta-se que exista uma relação hermética entre o pesquisador e sua pesquisa, uma vez que o sujeito traz consigo uma bagagem cultural que não pode ser desvinculada da construção do conhecimento científico, pois são esses valores que servem de orientação à abordagem escolhida para seu trabalho. Sendo assim, entende-se que “a construção da ciência é um fenômeno social por excelência” (ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p.2). Em suma, parte-se do princípio que o qualitativo não é sinônimo de literatura ou poesia, tampouco dispensa de rigor e consistência (GATTI, 1999), mas trata-se de busca da validade do discurso a partir de um método investigativo consistente. Ademais, de acordo com a autora, entende-se que o método é questão de vivência de um problema, não se limitando apenas à rotina de passos e etapas, mas possuindo perspectivas e metas pertinentes e consistentes. Além disso, o presente estudo não pretende ceder ao mecanicismo ou à imitação de pesquisas já existentes, repetindo receitas prontas. Tem-se como pressuposto uma apropriação transformadora das regras e orientações formais para contribuir de forma efetiva na área de pesquisa pretendida (GATTI, 1999). Para a realização deste estudo, tem-se a análise de discurso (AD) da linha francesa, como técnica de interpretação das charges. Esse tipo de análise pode ser definida da seguinte maneira: 15 [...] A AD trabalha com o sentido e não com o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia + história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito quando se filia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário que está no inconsciente, ou seja, o sistema de ideias que constitui a representação; a história representa o contexto sócio histórico e a linguagem é a materialidade do texto gerando “pistas” do sentido que o sujeito pretende dar. Portanto, na AD a linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que são ecos da memória do dizer. (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 680-681). Dessa forma, a análise de discurso é uma forma de interpretar e atribuir sentido à linguagem, considerando também os aspectos sociais e ideológicos de quem a produziu. Considerando esse tipo de análise para as charges, pode-se afirmar que: [...] A natureza de todo sistema de comunicação, de toda linguagem é eminentemente ideológica e a charge é uma delas, por ser desenho que se refere a fatos acontecidos em que agem pessoas reais, em geral conhecidas, com o propósito de denunciar, ironizar, criticar e satirizar. (SOUSA, 2008, p. 40). Assim, para que se analisem as charges e que sejam estabelecidas consistentes relações entre o que elas apresentam como sátiras e o contexto a que se referem, é necessário que haja um envolvimento entre o enunciado, o sentido que o autor quis atribuir a esse enunciado, e o leitor, que necessita de um conhecimento prévio do assunto para que a charge atinja seu objetivo (SOUSA, 2008). Ante o exposto, essa pesquisa se baseia no levantamento do acervo de charges e demais publicações do autor, apresentadas em livros, jornais e periódicos. Será realizado, concomitantemente, um levantamento bibliográfico sobre o período da ditadura militar no Brasil, com ênfase às análises das reformas educacionais do período e aos dados sociais de relevância para a pesquisa. 16 Como referencial teórico do presente estudo, serão utilizadas a obra de Cunha e Góes (1991), Germano (2011) para discutir a educação brasileira no período considerado e Foucault (2013), para tratar de temas complementares de interesse do cartunista, como a perseguição, a tortura e a censura. Por fim, os dados levantados com a consulta à obra do cartunista serão relacionados de maneira crítica às análises existentes sobre o regime militar, bem como os rumos da educação neste período, de modo a criar uma nova abordagem sobre o tema. 1.2 Organização das seções Na seção 1 é possível encontrar uma breve contextualização do regime militar e suas consequências para a sociedade, além de apresentados os procedimentos metodológicos e os referenciais teóricos que serviram de base para a realização do estudo. Na seção 2 são apresentadas as medidas tomadas pelo governo militar na área da educação, enquanto a seção 3 é dedicada a compreensão do funcionamento dos aparelhos repressivos da ditadura sob a perspectiva do filósofo francês Michel Foucault. Já na seção 4 disserta-se a respeito das charges, bem como conceitos que acercam o tema, e apresenta-se Henrique de Souza Filho, o Henfil, sua trajetória e sua relevante contribuição para o tema. Os resultados estão dispostos na seção 5, em que são apresentadas as charges escolhidas para análise, seguida pela seção 6, dedicada às considerações finais. Finaliza-se o estudo com as referências utilizadas para o embasamento do estudo. 17 2 EDUCAÇÃO NO REGIME MILITAR BRASILEIRO O Estado Militar deve ser encarado em sua historicidade, já que faz parte de um projeto desenvolvimentista de cunho capitalista, que defende os interesses dos conglomerados internacionais contando com forte apoio dos setores tecnocratas, cuja direção é feita pelas Forças Armadas (GERMANO, 2005). Na América Latina, o militarismo se acentua após a Segunda Guerra Mundial, uma vez que os Estados Unidos começam a investir na chamada “latino- americanização” da Guerra Fria (GERMANO, 2005). As Reformas de Base do governo Jango, que incluíam o polêmico projeto de reforma agrária, representavam uma ameaça aos ideais imperialistas norte-americanos, cujo temor residia nas supostas tendências socialistas que o governo adquiria. A eliminação de Jango era necessária para a manutenção do capitalismo imperialista no Brasil, cujo golpe de 1964 seria orquestrado pelo então presidente John Kennedy e o embaixador norte- americano Lincoln Gordon. Assim, em abril de 1964, instalava-se um regime como descreve Germano (2005): [...] Por contraposição à “democracia populista”, ao assumirem o poder em 1964, os militares implantaram um regime autoritário - que segundo Loewenstein (1983:72) se caracteriza pelo fato de o “poder não estar submetido a nenhum limite, estar fora de qualquer controle político” - e ditatorial, embora não se revista de uma forma totalitária. O fato é que se configura uma hipertrofia do Executivo combinada a uma existência praticamente simbólica dos demais poderes, uma vez que estamos diante de um Poder Legislativo que não legisla e de um Poder Judiciário que não julga, mas que atuam conforme a vontade e conveniência do Executivo. (GERMANO, 2005, p. 18) O período compreendido pelo regime militar, de 1964 a 1985, foi marcado pela dura repressão que privava a população do direito à liberdade de expressão, e contraditoriamente, foi um momento também marcado por uma euforia desenvolvimentista. O autoritarismo e a censura aceleravam a consolidação do chamado “milagre econômico”, enquanto que os indivíduos que se manifestavam 18 contrariamente ao regime eram perseguidos, exilados ou até mortos. Escrevem Ferreira Júnior e Bittar (2006) que: [...] Os governos militares adotaram um movimento político de duplo sentido: ao mesmo tempo em que suprimiam as liberdades democráticas e instituíam instrumentos jurídicos de caráter autoritário e repressivo, levavam à prática os mecanismos de modernização do Estado nacional, no sentido de acelerar o processo de modernização do capitalismo brasileiro. Em síntese: propugnavam a criação de uma sociedade urbano-industrial na periferia do sistema capitalista mundial, pautada pela racionalidade técnica] (FERREIRA JR; BITTAR, 2006, p. 335). No âmbito da Educação, desde as décadas de 1950 e 1960, destacava-se o movimento caracterizado pela mudança de postura dos educadores para solucionar os conflitos vividos na escola, buscando subsídios nas transformações sociais da época. Em outras palavras, o educador passou a “espiar o que se passava no campo social como um todo e voltar à sala de aula com a visão da realidade do processo que estava sendo vivido”. O pioneirismo dessa prática é atribuído a Paulo Freire, educador nordestino cujas contribuições mudaram o rumo das práticas educacionais (CUNHA, GÓES, 1989). Nesse contexto, se desdobrava a mais longa discussão da Educação em nível nacional que havia começado em 1948 com o Projeto Mariani, e se acentuado com o substitutivo apresentado pelo deputado Carlos Lacerda. Tratava-se do polêmico debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em que se discutiam os rumos da Educação de forma polarizada, de um lado, os educadores que defendiam a escola pública, de outro, os privatistas do ensino (CUNHA, GÓES,1989). Sobre a privatização do ensino, escreve Ribeiro (2003) que [...] O sistema de concessão de bolsas de estudo, para a escola particular em termos de pagamento de anuidade, pretendida no texto do projeto substitutivo, é ineficaz, segundo os defensores da escola pública, representando, na realidade, uma descapitalização do Estado em favor de grupos. A permanência de boa parte dos alunos na escola não é garantida somente com tal pagamento, já que as famílias pobres, que são a maioria, necessitam da ajuda financeira dos filhos. 19 Assim, se o Estado estivesse interessado em resolver o problema, além da anuidade deveria fornecer uma ajuda de custo à família. Num país com deficiência econômica como o Brasil seria mais lógico que o montante pago em anuidades fosse aplicado em escolas públicas, cujo patrimônio continuaria sendo do Estado. (RIBEIRO, 2003, p. 169). A promulgação da Constituição de 1967 deixou clara a perversa intenção do Estado de descomprometimento com a educação pública e seu financiamento, ao mesmo tempo que evidenciou o interesse de privatização do ensino (DE ASSIS, 2011). A LDB termina sendo uma síntese dos projetos Mariani e Lacerda, de maneira que “o ensino no Brasil é direito tanto do poder público quanto da iniciativa privada”. De acordo com Anísio Teixeira, educador que levantou a bandeira da escola pública, “a LDB é uma meia vitória, mas uma vitória” (CUNHA, GÓES,1989, p.14). Ainda na década de 60, outras transformações prometiam marcar profundamente os rumos da Educação no Brasil. O governo de Jango propunha, dentre outras ações, o Plano Nacional de Alfabetização (PNA, decreto 53465, de janeiro de 1964), que oficializou o Sistema Paulo Freire a nível nacional, visando a alfabetização de cinco milhões de brasileiros até 1965 (RIBEIRO, 2003). Sobre esse Sistema, escrevem Cunha e Góes (1989) que [...] No clima das Reformas de Base do Governo Jango, o Sistema Paulo Freire foi um verdadeiro achado. Através dele seria possível - era a previsão - acrescentar cinco milhões de eleitores ao corpo eleitoral em 1965 (?) e assim desequilibrar o poder da oligarquia em favor do movimento popular. De janeiro de 1962 (Dona Olegarinha) até final de 1963 e início de 1964, a proposta Paulo Freire de alfabetização em 30 horas saiu dos limites de uma quase anônima experiência com cinco analfabetos para ser adotada nacional e oficialmente como proposta do governo federal. (CUNHA, GÓES, 1989, p. 21) O PNA era, acima de tudo, um projeto ousado porque tinha a proposta de contemplar a população pobre, fazendo-a ler e escrever, e mais do que isso, interpretar a realidade vivida por meio da metodologia de Paulo Freire. A ascensão letrada da camada popular e seu consequente acesso ao voto representava uma ameaça aos interesses da minoria detentora do poder, bem como a manutenção de 20 seus privilégios. Portanto, não é de se admirar que quatorze dias após o golpe, em 14 de abril de 1964, o PNA foi extinto pelo Estado, que também paralisou os núcleos de educação popular (RIBEIRO, 2003). Por conseguinte, a militarização da educação atingia seus fins de controle ideológico e político, incentivando o ensino privado em detrimento do ensino público, e garantindo a supremacia das classes abastadas. Nesse sentido, escrevem Paulino e Pereira (2009): Em 1966, a Escola de Comando e Estado Maior do Exército do Rio de Janeiro e outros grupos de comissões, foram destinados a propor sugestões para Reforma do Sistema Educacional brasileiro, organizaram o Seminário de Educação e Segurança Nacional para determinar as diretrizes ao Aparelho Educacional. A militarização da educação atuou desde a ocupação/intervenção dos soldados dentro das Universidades até a destituição de reitores civis e nomeação de componentes do exército (PAULINO, PEREIRA, 2009, p. 41) A reforma educacional era um projeto que visava o controle do sistema de ensino a fim de fazer a manutenção da hegemonia do governo e minguar as manifestações a favor da democracia (PAULINO, PEREIRA, 2009). Desse modo, acentuavam-se as contradições sociais perpetuadas pelo descaso com o ensino público, e este fato ainda se agravava com acordos e outras medidas adotadas pelo governo militar, como os acordos do Ministério da Educação e Cultura/United States Agency International for Development (MEC/USAID) e a criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Os acordos MEC/USAID imprimiam uma lógica empresarial de racionalização e organização às universidades brasileiras sob pretexto de melhorar seu desempenho. A USAID, que antes havia financiado as experiências de Paulo Freire em Angicos-RN, acabara por discordar dos rumos da educação durante o governo Jango e suspender os recursos financeiros, para retomá-los após o golpe (GERMANO, 2005). Desse modo, as Reformas Universitárias financiadas pelo capital da USAID eram orientadas pelo formato do sistema de ensino norte-americano, com as devidas modificações que atendiam aos interesses ditatoriais. Essas reformas 21 educacionais do regime baseavam-se na Teoria do Capital Humano, "com a intenção de submeter a educação aos interesses do capital, ao mercado de trabalho e à produção" (PAULINO, PEREIRA, 2009, p.43). Já o MOBRAL foi criado em 15 de dezembro de 1967 (Lei nº 5.370), durante o governo de Artur da Costa e Silva (1967-1969), embora tivesse iniciado as atividades apenas em 1970. Sua função, também baseada no ideal tecnicista da Teoria do Capital Humano, era erradicar o analfabetismo de jovens e adultos, entre 15 e 35 anos, pois era essa faixa etária que atenderia às demandas do mercado de trabalho (PAULINO, PEREIRA, 2009). Sobre a vasta propaganda de governo realizada a respeito do MOBRAL, escreve Alves (s/d): Para os brasileiros foi criado um doutor, o Mobral. Seu diagnóstico: o maior mal do Brasil é o analfabetismo. O Remédio: a mobilização popular em torno do tema via propaganda, para convencer os analfabetos a ingressarem nos seus programas e também, os alfabetizados a contribuírem como puderem nesta empreitada (ALVES, s/d, p.3). Nesse sentido, o MOBRAL foi apresentado como um projeto que impulsionaria o crescimento do país, além de disseminar a ideia de que o governo militar estava preocupado com a população pobre e analfabeta. Mais uma vez, o governo colocava a educação à serviço do capital, não para fornecer uma educação de qualidade e humanizadora, mas para suprir as necessidades do "milagre econômico" (DOS SANTOS, 2014). Durante o governo do general Emílio Médici (1969-1974), viveu-se o chamado “milagre econômico”, que seguiu os passos do governo de Juscelino Kubitschek, com promessas de modernização do país. Tal denominação foi possível devido às baixas taxas de juros, aos planos de estabilidade política e combate às frentes de esquerda, além do apoio do governo norte-americano ao regime militar que encorajaram o capital estrangeiro a investir no Brasil. O interesse estrangeiro estava amplamente atendido com os grandes depósitos de matéria prima e mão de obra barata e abundante (VICENTINO, DORIGO, 1997). 22 Foi neste contexto que cresceram os privilégios da classe média brasileira, iniciando um estilo de vida consumista que incluía a compra de um segundo automóvel da família, uma casa de veraneio e os filhos ingressando em escolas particulares e em cursinhos pré-vestibulares, garantindo a perpetuação dessa ascensão social através do diploma obtido em universidades públicas. O entusiasmo consumista da classe média era tamanho, que cerrava os olhos dessa parcela da população aos excessos da ditadura: a repressão desmedida sob a ilusão da chamada “propaganda da ideologia progressista” (VICENTINO, DORIGO, 1997). Os privilégios eram amplamente garantidos às camadas de renda mais elevada e aos setores empresariais. Na área da educação, o Estado militar não media esforços ao repasse de verba às escolas particulares, de forma a facilitar a privatização e fazer com que a Educação se tornasse uma “mercadoria de alto custo” (GERMANO, 2011). Escreve Germano (2011) que [...] Na educação, é a iniciativa privada que domina a pré-escola, avança no 2º grau e se torna majoritária no nível superior. Uma pequena fração da população tem acesso aos mais elevados graus de escolarização, enquanto substanciais parcelas do povo sequer têm acesso à escola” (GERMANO, 2011, p.75). Fica evidente, portanto, que o Estado militar contribuiu para acelerar a privatização do ensino, de forma a mercantilizar a educação e realizar repasses de verba às instituições privadas, sucateando o ensino público. Nas escolas, a presença de disciplinas como a Educação Moral e Cívica contribuíam para o arcabouço ideológico do sistema totalitário. Em março de 1966, durante o governo de Castello Branco (1964-1967), a Educação Moral e Cívica foi decretada pelo Ministério da Educação. Sua função era basicamente de "preencher o vazio ideológico deixado na mente dos jovens, para que não fosse preenchido pelas insinuações materialistas e esquerdistas" (CUNHA, GÓES, 1991, p. 74). Dentre as funções dessa disciplina, destacam os autores (1991): 23 a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, a dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições, e os grandes vultos da sua história; e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-política-econômica do País; g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva visando ao bem comum; h) o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (CUNHA, GÓES, 1991, p. 75) Assim, essa disciplina era ministrada do ensino primário ao ensino superior (sob o nome de Estudos de Problemas Brasileiros). O caráter da Educação Moral e Cívica era unir o pensamento reacionário do Estado ao catolicismo conservador e à doutrina da segurança nacional, sob o pretexto positivista de ordem e progresso. A disciplina pretendia, inegavelmente, "santificar" a cruel ditadura que assolava o país, sendo auxiliada pelos preceitos da religião católica tradicional (CUNHA, GÓES, 1991, p. 77). Outra disciplina que também se enquadrou nos ideais do governo militar foi a Educação Física. A política desportista da ditadura, além de disciplinar os corpos, produzia a "coesão nacional e social" (CUNHA, GÓES, 1991). Escrevem os autores que: Sob os generais Geisel e Ney Braga, as bolsas de estudo deveriam ser concedidas, de preferência, aos alunos de qualquer nível que se sagrassem campeões desportistas. Com isso, visava-se uma seleção às avessas: ao invés do desempenho intelectual e profissional, o desempenho esportivo (CUNHA, GÓES, 1991, p. 80). Além das cartilhas educativas do MOBRAL, que possuíam alto teor sanitarista e visavam conduzir o leitor a mudanças comportamentais, cabe ressaltar a criação de 24 um personagem que se tornou bastante popular durante o regime, chamado Sujismundo. Desenhado pelo publicitário Ruy Perotti, esse personagem foi concebido para reforçar as diretrizes higienistas adotadas pelo governo: Povo desenvolvido é povo limpo (ALVES, s/d). Essas diretrizes pretendiam incutir na população a recém inventada "propaganda política despolitizada", em que a partir das ações solidárias é possível construir conjuntamente o bem-estar do povo, ou seja, "o Sujismundo assim como o analfabeto do MOBRAL, não tinha culpa de sua condição. Havia sido malcuidado e abandonado pelos “corruptos” governos anteriores e só agora com a atenção dada pelos militares é que se transformaria" (ALVES, s/d, p.7). 25 3 EDUCAÇÃO, REPRESSÃO E CONTROLE SOCIAL O regime militar durou longos vinte e um anos no Brasil, e essa vigência só foi possível devido à grande repressão a sociedade civil, em especial aos opositores do golpe que se instalara em 1964. A repressão, organizada em um complexo sistema operacional, era necessária para "combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamente qualquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem" (MAGALHÃES, 1997). Após o golpe e o declínio do governo Jango, a ala liderada pelo marechal Castello Branco assume o poder uma vez que, diferentemente das demais alas, apresentava um projeto conciso para a intervenção na política nacional, cujo embrião foi gerado na Escola Superior de Guerra (ESG) desde a década de 1950. Esse projeto ficou conhecido como Doutrina de Segurança Nacional (DSN). A Doutrina era baseada no lema Mais canhões, menos manteiga, síntese do ideal do governo em que caso a segurança fosse ameaçada, a liberdade e as garantias constitucionais seriam sacrificadas (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Subproduto da ESG, o Serviço Nacional de Informações (SNI) era a estrutura do governo a qual todos os órgãos de repressão pertenciam, como o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que em 1970 se tornou uma instituição oficial, que unia representantes das demais forças policiais (MAGALHÃES, 1997). O DOI-CODI foi inspirado na Operação Bandeirantes (OBAN) composta por diversos setores do Exército e da força policial em diferentes níveis de atuação. Vale destacar que a OBAN recebia recursos de multinacionais como a Ford e a General Motors. Na escala dos aparelhos repressivos do Estado, logo abaixo do DOI-CODI havia o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em âmbito estadual (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Esses aparatos lideraram o ranking de abusos contra os direitos humanos no referido período, como o presente estudo pretende evidenciar mais adiante. 26 No âmbito da censura aos meios de comunicação, pode-se destacar a criação da Divisão de Censura de Diversões Publicas (DCDP), como descreve Pires (2006): À Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) coube o rigoroso controle sobre os temas ligados às práticas comportamentais ou morais e, de forma sigilosa, a qualquer tipo de referência crítica à política. A assimilação deste controle moral foi algo patente entre a sociedade civil, expresso através de cartas encaminhadas ao DCDP dirigidas a senadores, ministros, superintendentes regionais, diretores, entre outros importantes cargos do regime militar (PIRES, 2006, p.14). Embora as nomenclaturas apresentadas anteriormente não se relacionem diretamente ao contexto da educação no Estado militar, é de interesse desse estudo que o leitor se familiarize com a quantidade de esforços do governo militar de consolidar seu projeto político utilizando a força e a repressão de maneira desmedida. Faz-se mister que seja pontuado o marco repressivo no governo militar, o Ato Institucional número 5 (AI 5), outorgado em dezembro de 1969 pelo governo "linha dura" de Costa e Silva. O mais violento dos atos não tinha prazo de expiração e previu o fechamento do Legislativo, a suspensão dos direitos políticos e garantias constitucionais, a intervenção federal em estados e municípios e a possibilidade do decreto de estado de sítio sem aprovação do Congresso (VICENTINO, DORIGO, 1997). Dessa forma com a decretação do AI 5, foram oficializadas em solo nacional a censura, a repressão e a perseguição dos opositores do regime. Não apenas foram suspensos os direitos individuais dos cidadãos, mas também se deu aval para o início de "um sinal para atacar" (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 137). No que diz respeito a aceitação das imposições do regime militar, pode-se afirmar que a população brasileira não foi uma massa homogênea. Enquanto uma pequena parcela mergulhava na cultura de consumo propiciada pelo desenvolvimento econômico e fechava os olhos aos abusos dos militares, outra parcela se mobilizava e lutava contra os absurdos totalitaristas que acometiam a sociedade civil. 27 Nesse sentido, é de suma importância que se destaque a participação dos estudantes, trabalhadores, intelectuais e artistas brasileiros na mobilização contra o regime. Neste período, a cultura brasileira passava por agitações em diferentes âmbitos: o Cinema Novo, de Glauber Rocha, que destacava os problemas sociais, a Tropicália que resgatava o modernismo de 1922, e as canções de protesto de inúmeros artistas que foram presos e exilados (VICENTINO, DORIGO, 1997). Nas palavras de Ridenti (2005): [...] Os artistas engajados das classes médias urbanas identificavam- se com os deserdados da terra, ainda no campo ou migrantes nas cidades, como principal personificação do caráter do povo brasileiro, a quem seria preciso ensinar a lutar politicamente. Propunha-se uma arte nacional-popular que colaborasse com a desalienação das consciências. Recusava-se a ordem social instituída por latifundiários, imperialistas e – no limite, em alguns casos – pelo capitalismo (RIDENTI, 2005, p. 87) Mas como é possível compreender o caráter totalitarista do governo a partir da análise da censura e repressão? Quais suas consequências para a educação? O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) fornece, em suas obras, a "chave interpretativa" para a investigação da ordem social moderna e a influência dos aparatos institucionais na construção de uma sociedade disciplinar (PILETTI, PRAXEDES, 2010, p. 89). Para Foucault, a disciplina fabrica os chamados "corpos dóceis", capazes de se adequarem às normas e leis com obediência e submissão. Assim, corpos disciplinados são produzidos a partir de um "adestramento adequado". Esse adestramento, dentre outras características, inclui o impedimento da formação da coletividade, ou seja, que os indivíduos se solidarizem entre si e, sobretudo, o controle de atividades desses indivíduos por meio de uma constante vigilância (PILETTI, PRAXEDES, 2010, p. 91). A questão da constante vigilância é fundamental para que se entenda o êxito dos órgãos disciplinares, e, no caso deste estudo, fornece o entendimento necessário do funcionamento dos aparelhos de repressão do Estado. 28 Na chamada fase genealógica de seus estudos, Foucault investiga as práticas de poder. E o que é poder? Como se relaciona ao saber? O conceito de poder recebe uma nova acepção nos escritos de Foucault. O poder é uma "rede produtiva", "uma questão de exercício, não de posse". O poder é composto por relações que se efetivam como "tecnologias", cujo objeto é o corpo. A disciplina, por exemplo, é uma tecnologia de poder. Dessa forma, os regimes de saber contêm relações de poder, e este poder é uma rede difusa: não é uma posse, "não se centraliza nem se totaliza". (CARVALHO, et.al., 2006, p.148). As relações de poder pertencem a uma singularidade histórica, dialogando com o contexto em que foram produzidas e são geradoras dos saberes desse mesmo contexto (DE CARVALHO, et. al, 2006). Escreve Xavier (2011) a respeito da relação saber e poder: As apropriações sociais dos discursos referem-se ao produto resultante que as instituições responsáveis pela distribuição dos discursos gerenciam. Tomemos como exemplo o sistema educativo, Foucault afirma que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes e eles trazem consigo” (op. cit., 2000, p. 44). Quanto aos sistemas de sujeição e de controle do discurso, concordamos que não há barreira que demarque seus espaços. (XAVIER, 2011, p. 32) O sistema educativo, dentro dessa lógica, produz um saber vinculado ao poder de forma a consolidar a ideologia do regime vigente, eliminando qualquer discurso contrário à sua manutenção. Nesse sentido, as disciplinas citadas na seção anterior, como a Educação Moral e Cívica e os Estudos de Problemas Brasileiros foram meios de controle para possibilitar a disciplina dos corpos durante o regime militar. Os alunos eram moldados de maneira a serem úteis ao sistema a que pertenciam, na medida que o ensino formal os docilizava (PILETTI, PRAXEDES, 2010, p. 89). De acordo com Aragão e Araújo (s/d): Neste ponto surge a formação de uma nova forma de saber escolar, baseada nos valores morais e no civismo, visando exaltar a pátria e formar um bom cidadão. As relações de poder em vigência formam então novos saberes, que foram moldados à ideologia militar. Deste modo a supressão do ensino de História e Geografia, bem como o de Filosofia, sintetizando-os em duas novas disciplinas, os Estudos 29 Sociais, para as primeiras séries e a Educação Moral e Cívica para os alunos de séries mais avançadas são um sinal desta mudança (ARAGÃO, ARAÚJO, s/d, p. 3). Paralelamente às alterações no currículo escolar, para garantir a ordem e a submissão da sociedade civil, o governo lançou mão de organismos como o SNI e o DOI-CODI, citados anteriormente. Esses aparelhos repressivos funcionavam articuladamente e visavam o controle e a vigilância dos civis. Os indivíduos que fossem suspeitos de serem contrários ao regime militar eram duramente perseguidos, na maioria das vezes presos, torturados e assassinados. Nesse cenário antidemocrático, em que a liberdade individual era suprimida, a tortura foi um método amplamente adotado pelos militares nos interrogatórios. Escreve Foucault (2013) que [...] Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função “purgar” o crime, não reconcilia; traça em tomo, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. (FOUCAULT, p.37) A tortura, apesar de instituição antiga no mundo, como descreve Foucault sobre os suplícios, no Brasil, à época da ditadura, também era uma forma de "produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória" (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.43). E a quem se destinava essa tortura? Cabe ressaltar que a tortura era aplicada a todos que apresentassem suspeitas de realizarem atividades subversivas, independentemente de idade ou sexo. De fato, a tortura não se aplicava apenas a vítima, mas também às relações de parentesco, por exemplo. Mulheres grávidas tinham seus filhos abortados e crianças sacrificadas diante dos pais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Sobre o interrogatório e a tortura, escreve Foucault (2013): 30 Em primeiro lugar, o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente codificado. A tortura é um jogo judiciário estrito (FOUCAULT, 2013 p. 59). Foucault afirma que a tortura não é uma prática selvagem, mas baseia-se em procedimentos bem definidos. Assim, não se pretendia arrancar a verdade do interrogado, mas causar-lhe dor a ponto de deixar-lhe sequelas psicológicas, fazer- lhe sofrer humilhações sem limites, e sobretudo, conduzir o interrogado a afirmar o que querem os interrogadores. Esse procedimento metodológico do interrogatório foi tão comum à época que eram ministradas aulas aos militares das Forças Armadas, usando como cobaias os próprios interrogados, enquanto o Brasil se gabava em exportar o know-how da tortura a outros países (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.33). Em outras palavras, a barbárie da tortura transformava-se deliberadamente na disseminação do medo, na medida que a cada desaparecido, havia uma aura de assombro que pairava na sociedade: ou aceitavam a suspensão dos direitos constitucionais enfiando goela abaixo a propaganda do desenvolvimento econômico, ou desapareciam nos porões da ditadura, após severas sessões de dor e sofrimento. A sociedade se dividia então, entre vítimas e algozes, e os civis recebiam orientações na forma de panfletos, por exemplo, para denunciar os suspeitos de subversão (MAGALHÃES, 1997). Por conseguinte, nesta divisão maniqueísta da sociedade entre vítimas e algozes, os próprios civis estavam encarregados da vigília e denúncia dos chamados "subversivos". A propaganda do governo incentivava a própria população a vigiar a si mesma, não deixando passar nenhum "suspeito". Sobre esse aspecto, escreve Germano (2005) que, com a mudança no conceito de Segurança Nacional na Constituição de 1967, a defesa do Estado não cabia apenas às Forças Armadas, mas 31 a "toda pessoa natural ou jurídica" (GERMANO, 2005, p. 64). Ora, cada cidadão era incumbido, segundo a Constituição, a vigiar os próprios compatriotas. Em seus escritos, Foucault (2013) resgata um conceito que é capaz de explicar o fenômeno da vigilância citado anteriormente. O filósofo Jeremy Bentham havia idealizado o conceito de pan-óptico, no final do século XVIII, conceito que foi retomado nos estudos de Foucault para explicar o fenômeno de coerção. O pan-óptico consiste em "uma estrutura arquitetônica construída em formato de anel, utilizável em uma instituição prisional, escolar, hospitalar ou fabril, com uma torre central que permite a um vigilante monitorar visualmente todos os membros da organização (PILETTI, PRAXEDES, 2010, p. 93). Ora, qual o objetivo de tal estrutura? Qual sua relação com a repressão à sociedade civil? De acordo com Piletti e Praxedes (2010), o objetivo do pan-óptico era controlar a rotina das pessoas, fazendo uso da observação individual e de uma multidão concomitantemente, coibindo sua atividade. Em uma primeira análise, é possível relacionar os aparatos repressivos como o DOI-CODI e o DOPS com o conceito de pan-óptico retomado por Foucault, uma vez que eram organismos oficiais ligados ao governo. Entretanto, a verdadeira torre de vigilância durante a ditadura não se tratava de uma estrutura física, ou estava personificada nos organismos de repressão do Estado. O pan-óptico estava presente na a própria sociedade, na medida que cada cidadão, coibido pelo Estado, funcionava como uma torre de vigilância individual e móvel, capaz de obter uma ampla visão de todos civis a sua volta, em seu cotidiano, e fornecer informações ao governo daqueles que eram potencialmente "perigosos". Em suma, como escreve Germano (2005, p. 64), cada cidadão era um informante, e o fato de negligenciar informações poderia transformá-lo em um criminoso. 32 4 A PESQUISA: HENFIL, AS CHARGES, A DITADURA E A EDUCAÇÃO Ante o exposto nas seções anteriores, é possível avaliar a dificuldade de disseminação de publicações cujo material era fruto de um posicionamento contrário à ideologia dominante. Entretanto, as charges de humor veiculadas em jornais e periódicos neste período escapavam da censura da forma que podiam, e fornecem hoje um valioso instrumento de identificação das inquietações dos artistas, pensadores, e intelectuais da época e o contexto em que viviam. 4.1 As charges como resistência O fascínio do ser humano em contar histórias por meio de desenhos vem de longa data, o que comprova a presença de "histórias em quadrinhos" desde tempos remotos. Na pré-história, as pinturas rupestres são capazes de fornecer um vasto acervo sobre o cotidiano a partir da observação dos desenhos das paredes das cavernas. No antigo Egito, histórias eram contadas nas paredes das grandes pirâmides e no Livro dos Mortos por meio dos desenhos, dentre outras civilizações que também apresentavam esse hábito (ALVES, 2001). Para que se compreenda os termos a serem utilizados neste estudo, far-se-á uma breve caracterização de conceitos que envolvem o universo dos desenhos. O termo caricatura, por exemplo, que possivelmente surge no Renascimento, vem do verbete italiano caricare, que significa carregar, no sentido de exagerar, realçando características que se deseja exaltar, com a intenção de satirizar, atacar (ARRIGONI, 2011). Sobre as definições de charge, caricatura e cartum, escreve a autora (2011) que [...] Há algum tempo, admitem-se diferenças entre os termos charge, caricatura e cartum. No entanto, não são todos os autores que se apropriam dessas diferenciações, considerando, assim, a charge e a caricatura como mesmo gênero. Ainda que haja divergências sobre 33 isso, a ideia de que a caricatura e a charge são gêneros distintos já está consolidada pela maioria dos estudiosos de imagens (ARRIGONI, 2011, p. 2). Segundo Santos (2010), além de visarem o entretenimento, as charges começam a ser porta-vozes de ideias críticas a partir do século XVIII. Nesse sentido, escreve Sousa (2008): O termo charge é proveniente do francês “charger” (carregar, exagerar). Sendo fundamentalmente uma espécie de crônica humorística, a charge tem o caráter de crítica, provocando o hilário, cujo efeito é conseguido por meio do exagero. Ela se caracteriza por ser um texto visual humorístico e opinativo, que critica um personagem ou fato específico (SOUSA, 2008, p.43). As charges também podem ser caracterizadas por geralmente possuírem um desenho único que faz uma crítica de certa forma agressiva, a um acontecimento de natureza política, por exemplo (ARRIGONI, 2011). Esse caráter crítico desperta o humor e provoca uma reflexão do leitor a respeito do tema que se deseja abordar. A ironia de costumes (XAVIER, 2011), está constantemente presente no universo das charges, como é possível constatar a seguir (Figura 1). Figura 1: Charge do cartunista argentino Quino Fonte: http://editora.globo.com/epoca/edic/266/quino/05.jpg 34 No Brasil, as charges ganham visibilidade a partir do século XX, em que começam a ser veiculadas nos meios de comunicação. O uso da linguagem não verbal tinha como objetivo atacar e satirizar situações cotidianas com ideias de fácil assimilação pelo público leitor (XAVIER, 2011). Assim, durante a época da ditadura militar, as charges ganham importância como manifestações da contracultura, funcionando como instrumentos de indagação ao poder vigente. Apesar de serem veiculadas na imprensa alternativa, as charges conseguem alcançar visibilidade nacional. Segundo Pires (2006): [...] Durante os anos de intensificação da coerção e da censura sobre os agentes e produtores de cultura no Brasil, a imprensa alternativa se destacou pela desabrida opção de rejeitar o papel que a grande mídia vinha desempenhando desde a conflagração do golpe em 64. Gradativamente, esta se transformou num dos principais veículos utilizados por diversos atores sociais para expressar a oposição ao regime instaurado e ao modelo econômico proposto, a defesa da restituição do respeito aos direitos humanos e de transformações sociopolíticas que restaurassem o espaço para atuação política das massas e de seus representantes legais e legítimos. (PIRES, 2006, p.94). Portanto, a imprensa alternativa foi essencial para escapar à censura que se intensificava principalmente após o AI 5. Apesar de não ter tido o alcance que a grande mídia possuía, essa imprensa conseguiu ter significativa expressão na luta contra o regime, colocando-se a serviço da defesa da democracia e da liberdade de pensamento. 4.2 Quem é Henfil? Ser brasileiro descendente de família do norte de Minas Gerais, região árida, um aluno relapso nas atividades escolares e hemofílico como os irmãos Herbert de Souza (Betinho) e Francisco Mário (Chico Mário) eram algumas das características que compunham a personalidade singular de Henrique de Souza Filho, o Henfil. De 35 acordo com Malta (2008), na difícil escolha da carreira, encontrou-se dividido entre a Sociologia e o cartum, tendo seguido o caminho deste último, embora nunca tenha abandonado os questionamentos e as inquietações que o estudo de Sociologia lhe deixara como legado. Sobre sua obra, tem-se que: [...] A produção de Henfil, em sua quase totalidade, foi pautada em termos críticos. Adotou a caneta como arma para denunciar e questionar tradições e comportamentos sociais. Tocava em pontos chave, desenvolvendo um inconformismo contagiante. Valores que até então eram vistos como naturais, eram espezinhados na mão do cartunista. (MALTA, 2008, p.3) Figura 2: Henrique de Souza Filho, o Henfil Fonte: http://jornalismojunior.com.br/sala33/70-anos-de-henfil-os-cartuns-como- forma-de-resistencia/ Discípulo do irmão Betinho, sociólogo e ativista, nove anos mais velho, Henrique converteu-se em um ávido leitor, enquanto desenvolvia um acentuado senso de preocupação social (MORAES, 1997). Cresceu em meio às notícias da Revolução Cubana de 1959, que lhe serviu de inspiração, e frequentando os encontros da 36 Juventude Estudantil Católica (JEC). Publicou seu primeiro cartum aos 17 anos em um periódico da própria JEC (MALTA, 2008). Betinho, assim como muitos intelectuais da época, também sofreu com a repressão e foi exilado no Uruguai, tendo o cartunista se posicionado como ferrenho defensor da luta pela anistia e pela redemocratização brasileira. Figura 3: Henfil e seu irmão, Betinho Fonte: http://www.professorjarbasbio.com.br/henfil.htm Frequentando o ambiente universitário, antes mesmo de ingressar na faculdade de Sociologia, era constantemente convidado pelos dirigentes acadêmicos para fazer ilustrações em cartazes e panfletos dos diretórios acadêmicos. Apreciador dos traços de Mauro Borja Lopes (Borjalo) e Ziraldo Alves Pinto, Henfil foi aperfeiçoando seu traço na medida que o usava como instrumento para denunciar as contradições sociais que tanto o incomodavam (MORAES, 1997). Tido como "aluno problema" durante toda sua infância e adolescência, devido a sua falta de atenção, falta de comprometimento com as aulas e às péssimas notas que recebia, Henfil ingressou no curso de Sociologia na UFMG no conturbado ano de 37 1964, passando em oitavo lugar dentre os setenta candidatos. Contudo, desistiu da universidade para se dedicar ao desenho (MORAES, 1997). Como Henrique de Souza Filho se consagrou como Henfil? Foi Roberto Drummond, escritor e jornalista que reergueu a Revista Alterosa (cujas atividades foram paralisadas em 1964), que viu no atrapalhado revisor Henrique, o "novo Borjalo" que tanto procurava. Indicou os cartunistas franceses Bosc e Sempé para que o recém-batizado Henfil aprimorasse seus desenhos, inspirando-se na leveza do traço dos franceses que posteriormente tornou-se sua marca registrada (MORAES, 1997). Esse traço característico foi definido posteriormente por seu amigo e também cartunista Jaguar como "caligráfico", o que significa que Henfil "desenhava assim como escrevia" (MALTA, 2008, p. 13). Após o fechamento da Revista Alterosa em 1964, Henfil trabalhou no Diário de Minas em 1965, em 1967, mesmo ano em que se muda para o Rio de Janeiro, colaborou com o Jornal dos Sports, onde foram consagrados seus personagens Urubu (Flamengo), Bacalhau (Vasco), Pó de Arroz (Fluminense), Cri-Cri (Botafogo), Gato Pingado (América). Os personagens, inspirados na posição social dos torcedores, acabaram substituindo as mascotes já existentes de cada clube, caindo nas graças das torcidas (MORAES, 1997), o que contribuiu para o crescimento da popularidade do cartunista. Outros personagens também foram criados por Henfil, como Os Fradinhos Baixinho e Cumprido, o trio da Caatinga composto por Graúna, Zeferino e Bode Orellana, Ubaldo e Caboclo Mamadô (personagem incumbido de enterrar as celebridades a favor do regime militar), a feminista Zilda-Lib, o operário Orelhão, o Preto-que-ri, entre outros (MALTA,2008). 38 Figura 4: A personagem Graúna e a militância de Henfil pela democracia Fonte: http://jornalismojunior.com.br/sala33/70-anos-de-henfil-os-cartuns-como- forma-de-resistencia/ Henfil colaborou também com o suplemento Cartum JS, o periódico O Sol e foi convidado a participar do ousado jornal alternativo Pasquim no ano de 1969, "que se tornou a principal janela de suas críticas ao regime militar" (MALTA, 2008, p.28). Em 1972, no Jornal do Brasil, o trio da Caatinga trazia ironias diretamente do Nordeste Brasileiro, denunciando o descaso e esquecimento da sociedade brasileira para com a região. Publicou também nos Estados Unidos, onde recebia tratamento para hemofilia, uma versão do Fradim, The Mad Monks. Não apenas teve destaque na mídia impressa como também se dedicou a peça de teatro A Revista do Henfil e o TV Homem, programa televisivo. Em 1977 viajou à China, publicando sobre a jornada na Revista Isto é e no Pasquim (MALTA, 2008). Dentre seus livros publicados podem-se destacar Hiroshima, meu humor (1966), Diário de um Cucaracha (1976), Como se faz humor político (1984) e Henfil na China (antes da Coca-Cola) (1984) (MORAES, 1997). Durante sua breve vida (1944-1988) a produção de Henfil esteve intimamente relacionada à ditadura militar brasileira (MALTA, 2008). Faleceu em 1988, vítima do vírus HIV contraído em uma das transfusões de sangue as quais se submetia para o tratamento da hemofilia. Como escreve Malta (2008, p. 14), "o escritor Charles Baudelaire classificou os desenhos de humor em dois tipos: os que desaparecem com 39 o decorrer do tempo e os duráveis, eternos". O presente estudo pretende evidenciar que seu legado permanece vivo na história e cultura brasileira, pela importância de sua contribuição e de seu engajamento político. 4.3 O Pasquim: vencendo a censura com humor Em 26 de junho de 1969, seis meses após o AI 5, nascia o Pasquim, único jornal que escapou à censura na época da ditadura militar. Sua importância é tamanha que é considerado porta-voz de uma geração, além de ser fonte e objeto de pesquisa (BUZALAF, 2009). Escreve a autora (2009) que [...] Além de conseguir sobreviver muito mais do que qualquer periódico da imprensa alternativa, e de ter ido além do seu ambiente de origem, o Pasquim mudou alguns preceitos de produção jornalística. Ignorou as técnicas tradicionais, tirou o formalismo do texto jornalístico utilizando o humor como linha editorial. E não poderia ser diferente, já que grande parte dos jornalistas que se juntaram para produzir o semanário já vinha de experiências com o jornalismo humorístico (BUZALAF, 2009, p.16). A patota indomável do Pasquim, como denominou Moraes (1997), era composta por nomes como Millôr Fernandes, Sérgio Cabral, Ivan Lessa, Ziraldo, Jaguar e Henfil, dentre outros não menos importantes. Uma trupe de peso em matéria de humor. O Pasquim mantinha a chama da democracia e da liberdade de expressão acesa, em meio a violência da censura oficializada pelo AI 5. As edições se esgotavam rapidamente, os leitores bombardeavam a redação com cartas com sugestões para as tiras, e o Pasquim se sobressaía como "fonte geradora de cartunistas", revelando de 100 a 200 novos nomes (MORAES, 1997, p. 109). 40 Figura 5: Pasquim número 300, 29 de março de 1975 Fonte: http://www.memorialdademocracia.com.br/card/o-pasquim-sai-sem-veto-e-e- apreendido Símbolo de uma geração e baluarte da contracultura nos "anos de chumbo", o Pasquim teve entrevistas e contribuições de personalidades como Vinicius de Moraes, Darcy Ribeiro, Chico Buarque, Caetano Veloso, Leila Diniz (edição número 22 que vendeu mais de 117 mil exemplares), entre outros (MORAES, 1997). Buzalaf (2009) o considera como expressão do crescimento de uma cultura jornalística não-comercial e criativa. Escreve Moraes (1997) sobre o impacto do Pasquim: O Pasquim impôs-se pela imaginação incontrolável, pela quebra de formalidades jornalísticas. Com alvos claros: a ditadura, a classe média moralista, a grande imprensa, os caras-de-pau e os coniventes de plantão. De quebra, ocupou o terreno baldio existente entre a cultura chapa-branca e a cultura oficial de esquerda, discutindo modos de vida e até ecologia. Com a anticaretice e o humor venenoso do Pasquim, o cenário morno do jornalismo brasileiro adquiriu alta voltagem (MORAES, 1997, p. 106) 41 Em suma, o Pasquim foi um importante meio de comunicação que defendia a democracia e a liberdade de expressão por meio das criativas produções de seus escritores, jornalistas e cartunistas. O jornal foi o que Buzalaf (2009, p. 40) chamou de "experimentalista no sistema de produção de suas páginas, e inovador na linguagem que estabelece, o semanário é apoiado e apóia um público que acaba mantendo o jornal – tanto na produção quanto nas vendas". 4.4 Henfil, a ditadura e a educação Embora sua produção não tenha se dedicado especificamente à área da educação, o presente estudo selecionou algumas charges que tratam de temas relacionados às alterações sofridas pelo sistema educacional brasileiro durante o regime militar ou tratam indiretamente desse tema. Como já apresentado anteriormente, Henfil foi um grande contestador das diretrizes adotadas pelo governo golpista, criticando e satirizando os acontecimentos do período. 42 5 DISCUSSÃO E RESULTADOS Tendo em vista a abordagem feita nas seções anteriores, contemplando a contextualização histórica do regime militar bem como algumas de suas consequências na educação brasileira, nesta seção far-se-á uma análise de aspectos do regime evidenciados pelas sátiras das charges selecionadas de Henfil. 5.1 O financiamento da educação Considerando o panorama apresentado a respeito das reformas implementadas pelo regime militar e pelos questionamentos trazidos pelos debates acerca da educação neste período, tem-se a charge de Henfil (Figura 6). Figura 6: Orçamento de educação no Brasil é 4% Fonte: http://anelceara.blogspot.com.br/2010_09_01_archive.html Sabe-se que Henfil, enquanto grande contestador da ditadura, era contrário às iniciativas do governo bem como utilizava a sátira como instrumento para exteriorizar 43 essa contestação e promover a reflexão dos leitores. Dessa forma, pode-se destacar na charge uma cena comum no cotidiano das grandes cidades brasileiras assoladas pela desigualdade social: um furto protagonizado por um menor de idade. Também é possível identificar as duas personagens que são retratadas neste enredo, que representam tipos sociais conhecidos. De um lado, uma senhora robusta, branca, de traje fino composto por vestido, sapatos de salto alto e joia, e que, pode-se inferir pertencer a classe média. Do outro lado, um moleque negro, sem camisa, descalço, que foge roubando a bolsa dessa mulher. A linguagem escrita traz um importante dado: “Orçamento de educação no Brasil é 4%”. Enquanto persegue o menino, estupefata, a mulher indaga: “Moleque, não tem educação, não?”, e ele responde ironicamente: “Tenho 4%”. A análise da taxa de escolaridade das crianças contribui para o entendimento da crítica apontada pela charge. Em 1971, a escolaridade obrigatória dos jovens de sete a catorze anos era dobrada: de quatro para oito anos. Apesar dessa iniciativa, garantida pela LDB 5.692/71, ter colocado o Brasil como um dos países com a mais alta taxa de escolaridade do mundo, não garantia as condições necessárias para oferecer essa escolaridade obrigatória. Prova disso são os números de 1970 a 1980, a taxa de escolaridade das crianças de sete a dez anos baixou de 66,3% para 65,5%, o que significa que na década de 1980, mais de um terço das crianças que deveriam estar cursando a antiga escola primária, estavam fora das escolas (CUNHA, GÓES, 1989). Na área urbana, a taxa de escolarização das crianças também é alarmante, na década de 1970, de 82,7% caiu para 79,9%. Já na área rural, de 48,5% caiu para 42,2%. Esses dados reforçam o que os autores afirmam ser “uma eficiente máquina produtora de analfabetos” pois em 1970, 24,3% dos jovens não sabiam ler, e mesmo com os generosos recursos aplicados à escola privada e os planos setoriais de educação esse número em dez anos só baixou para 19% (CUNHA, GÓES, 1989). Sobre o fracasso das políticas educacionais na ditadura, dissertam os autores: [...] Uma dessas persistências é a taxa de evasão e repetência na 1ª série do ensino de 1º grau, da ordem de 40% como média nacional. 44 Ao invés de enfrentá-la pela diminuição do número de alunos por sala; do aumento do número de horas de aula por dia e do número de dias de aula por ano; da qualificação dos professores; da melhoria do material didático e de sua distribuição gratuita; da adaptação dos métodos didático-pedagógicos às características sócio-culturais das crianças, os pedagogos da ditadura lançaram mão do expediente paternalista, antidemocrático e antipedagógico da promoção automática. Mesmo que os estudantes não tivessem aprendido coisa alguma, eram promovidos a série seguinte. Com isso, a expansão da rede escolar, das oportunidades físicas de escolarização, não corresponde, na prática, a um aumento das oportunidades pedagógicas de escolarização. (CUNHA, GÓES, 1989, p. 57) De acordo com Saviani (2008), durante o governo militar “o investimento em educação por parte do MEC chegou a aproximadamente um terço do mínimo fixado pela Constituição de 1946 e confirmado pela LDB de 1961“. Esse fato apenas foi possível após a promulgação da Constituição de 24 de janeiro de 1967, cujo objetivo era desvincular a responsabilidade da União, dos estados e dos municípios de destinarem um percentual mínimo para a educação, como garantiam as Constituições de 1934 e 1946, que fixaram 10% para a União e 20% para Estados e municípios, e 12% para a União e 20% para Estados e municípios, respectivamente. Essa porcentagem foi gradativamente sendo reduzida pelo governo federal, tendo em vista de que, em 1970, os recursos aplicados na educação eram da ordem de 7,6%, enquanto que em 1975 esse número caiu para 4,3% (SAVIANI, 2008), porcentagem apontada na charge pelo cartunista. Tal diminuição orçamentária trouxe graves consequências que perpassam o âmbito educacional. Sobre esse aspecto escreve Germano (2005) que [...] o elevado grau de analfabetismo e o baixo percentual de escolarização da população economicamente ativa permitem inferir que, nas condições do capitalismo brasileiro, a política educacional pós-64 contribuiu para a exclusão social das denominadas classes populares ou classes subalternas, “aquelas que vivem uma condição de exploração e de denominação no capitalismo, sob múltiplas formas” (Wanderley, 1980:63). Ou seja, a política educacional, de fato, privilegiou o topo da pirâmide social. (GERMANO, 2011, p. 22) O regime militar investiu mais na esfera econômica e na repressão de toda ordem do que nas políticas sociais. Pode-se dizer que, de acordo com Germano 45 (2005), “o Regime, ao mesmo tempo em que fez uso da política educacional como estratégia de hegemonia, deixou de cumprir uma das principais funções tradicionalmente afetas ao Estado capitalista (...) e que consiste justamente em assegurar a escolarização da força de trabalho potencial ou ativa". 4.2 A repressão aos estudantes A UNE (União Nacional de Estudantes), eram um dos grupos que representavam grande resistência ao regime militar. Fundada em 1937, passou a representar a unidade da luta dos estudantes em escala nacional. Posteriormente, outras entidades foram criadas, como as UEEs (Uniões Estaduais dos Estudantes), sob liderança da UNE, e nas universidades os Diretórios e Centros Acadêmicos (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). A sede da UNE, situada na praia do Flamengo no Rio de Janeiro, foi saqueada e incendiada no dia 1 de abril de 1964, através da ação do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização paramilitar do governo golpista. Essa ação era justificada pela identificação dos estudantes como subversivos e comunistas, por terem sido favoráveis às reformas de base do governo Jango (MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO). Ainda em 1964, para agravar os desafios das lutas estudantis, a lei do Ministro da Educação Suplicy Lacerda colocou as entidades estudantis na ilegalidade, como afirmam Paulino e Pereira (2014): Pós 1964, com o advento da Lei elaborada por Flávio Suplicy de Lacerda, impôs que as congregações estudantis a partir de então entrariam para ilegalidade, reprimindo, desta sorte, as reuniões dos estudantes da União Nacional dos Estudantes – UNE – e das UEEs – Uniões Estaduais de Estudantes. O Estado tentou criar novos órgãos de representatividade estudantil “ligados/atrelados” ao governo, os quais ficaram conhecidos como entidades“pelegas”. Os movimentos estudantis contra repressão ditatorial tornaram cada vez mais constantes, e, em 1966, culminou numa luta contra os atos 46 impostos pela Lei Suplicy, movimento conhecido como “setembrada" (PAULINO, PEREIRA, 2014, p. 6). Contudo, a lei Suplicy não foi capaz de minguar as manifestações estudantis. Em 1965, organizou-se um plebiscito no Rio de Janeiro em que os estudantes repudiaram o decreto do Ministro da Educação, contrários a substituição da UNE pelo Diretório Nacional dos Estudante, entidade pelega do governo (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Cabe ressaltar que a "setembrada" Trazia à tona uma mistura de reivindicações específicas da área do ensino, como a defesa da UNE, do ensino gratuito, da autonomia universitária, da não vinculação da Universidade a órgãos norte- americanos, com denúncias políticas de ordem geral, reunidas no slogan "Abaixo a Ditadura" (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 133) Dentre os diversos questionamentos dos estudantes, pode-se destacar a intensa campanha contrária a parceria MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura e United States Agency International for Development). Os estudantes denunciavam os acordos que representavam um “mecanismo de subordinação da educação aos interesses norte-americanos” (RIBEIRO, 2003, p.190). Esses acordos de cooperação no campo do ensino orientaram a educação para um caminho produtivista sob a égide do lema máximo resultado com o mínimo dispêndio (SAVIANI, 2008). Outras demandas estudantis, do Plano de Ação da UNE eram, segundo Sanfelice (2015): [...] luta pela Reforma Universitária, pela revogação do acordo MEC- USAID, contra a transformação das universidades federais em fundações particulares, pela escola pública gratuita, pela alfabetização de todo o povo, por um ensino secundário voltado para a formação profissional e pela revogação da Lei Suplicy. Luta contra a política econômica financeira do atual governo que se orienta por integrá-la no complexo industrial imperialista; pela revogação da Lei de Greve; pela revogação dos Atos Institucionais; contra a Lei do Arrocho; pela anistia geral dos presos políticos; pela reforma agrária, pela mais ampla liberdade de organização política e filiação partidária; contra a farsa eleitoral; por eleições livres e diretas; pela formação de uma constituinte popular; contra a 47 invasão do Vietnã pelo imperialismo norte-americano; pela igualdade internacional (SANFELICE, 2015, p.11) O ano de maior efervescência nas manifestações estudantis, às quais somavam outros setores que contestavam o regime, foi inegavelmente, o ano de 1968. Passeatas e choques com as forças policiais marcaram o cenário político brasileiro. Em 28 de março de 1968, durante o governo “linha dura” de Costa e Silva, a manifestação estudantil no restaurante universitário Calabouço, no Rio de Janeiro, acabou resultando no assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto (VICENTINO, DORIGO, 1997). Como resposta a esse acontecimento, as manifestações se multiplicaram no país inteiro, culminando na Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968, no Rio de Janeiro, que contou com a participação de Henfil. Escreve Sanfelice (2015) sobre esse episódio: A Passeata dos Cem Mil foi um marco de adesão popular com clérigos, freiras, artistas e intelectuais. Um acontecimento pacífico de 21 de junho de 1968 no Rio de Janeiro. Pelo Brasil afora centenas de prisões se multiplicando e a UnB [Universidade de Brasília] se tornando o palco de nova brutalidade ao sofrer mais uma invasão sob o pretexto de se prender estudantes comunistas e o líder Honestino Monteiro Guimarães, cuja captura seria imprescindível à segurança nacional (SANFELICE, 2015, p. 13). Outro confronto marcante envolvendo os estudantes foi a Batalha da Maria Antônia, em outubro de 1968, no centro da cidade de São Paulo. Esse nome se deu ao confronto entre os alunos da Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), sede da UEE de tendência esquerdista, e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com alunos filiados a movimentos conservadores como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) (SANFELICE, 2015). 48 Figura 7: Henfil e o Congresso da UNE Fonte: https://quadrinhos.files.wordpress.com/2015/08/congresso-une- ok.jpg?w=620&h=238 Na charge (Figura 7), Henfil retrata o Congresso da UNE na qual uma fila de pessoas, os quais infere-se serem estudantes, aguarda a entrada em um recinto cuja porta é revestida por grades, vigiada por um indivíduo fardado que aponta para cima com altivez e brada: “Declaro aberta a seção”. A sátira da charge reside no fato da reunião estudantil ser “organizada” por um militar, que “abre as portas” para que a reunião aconteça em uma cela, evidenciando o caráter censurador do regime. Sobre os movimentos repressivos, escrevem Paulino e Pereira (2009) que [...] Com o Golpe de 1964, os militares iniciaram movimentos repressivos no sentido de consolidar e solidificar sua liderança. Iniciou- se uma ação de “caça aos comunistas”, ou seja, entidades e núcleos formadores de possíveis oposições ao Governo, tais como: Centro Popular de Cultura – CPC –, Centro de Educação Popular – Ceplar –, União Nacional dos Estudantes – UNE –, dentre outros que lutavam pela educação e cultura popular, começaram a ser dominados e/ou dizimados pelo Regime. (PAULINO, PEREIRA, 2009, p.5) A sede da UNE, no Rio de Janeiro, havia sido incendiada pelos militares e dessa forma, impedida de continuar suas atividades legalmente. Assim, em 12 de 49 outubro de 1968, os estudantes organizaram, de forma clandestina, o 30º Congresso da UNE em Ibiúna, interior de São Paulo, visando a reorganização e o debate de questões políticas. A falta de infraestrutura na pequena cidade de Ibiúna foi responsável pela invasão policial do Congresso. A falta de alimentos para todos os presentes, assim como a chegada dos estudantes à cidade, levantou suspeitas da população local, e não demorou até que houve uma queixa na delegacia local (MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO, s/d). Figura 8: Estudantes presos no 30º Congresso da UNE em Ibiúna-SP, 1968 Fonte: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/15658-congresso-da-une-em- ibiuna#foto-270108 O Congresso clandestino, interceptado pelos militares, culminou na prisão de 719 líderes que foram levados para o prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) onde foram indiciados em inquéritos, expulsos de suas universidades, submetidos a sessões de tortura. Desses 719, 23 estudantes passaram a compôr a lista dos mortos e desaparecidos durante a ditadura: Antonio Guilherme Ribeiro Ribas (SP), Antonio Pádua Costa (RJ), Antonio Três Reis de Oliveira (PR), Aylton Adalberto Mortati (SP), Bergson Gurjão de Farias (CE), Eduardo Collier Filho (BA), Gildo Macedo Lacerda (MG), Helenira Resende de Souza Nazareth (SP), Ivan Mota Dias (RJ), Jaime Petit da Silva (MG), João Roberto Borges de Souza 50 (PB), José Carlos Novais da Mata Machado (MG), José Maurílio Patrício (RJ), José Roberto Arantes de Almeida (SP), José Wilson Lessa Sabag (SP), Lauriberto José Reys (SP), Luiz Eduardo da Rocha Merlino (SP), Marcio Beck Machado (SP), Maria Augusta Thomaz (SP), Ranusia Alves Rodrigues (PE), Ruy Carlos Vieira Berbert (SP), Tito Alencar de Lima (SP) e Umberto de Albuquerque Câmara Neto (PE) (SECRETARIA DE CULTURA, s/d). É de suma importância que esses nomes sejam pontuados neste estudo assim como nunca sejam esquecidos. Após o incidente de 1968, apenas se realizou outro Congresso da UNE em 1979 (SANFELICE, 2015). 4.3 Agravam-se as contradições sociais Durante o governo do general Emílio Médici (1969-1974), viveu-se o chamado “milagre econômico”, que seguiu os passos do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), com promessas de modernização do país. Tal denominação foi possível devido às baixas taxas de juros, aos planos de estabilidade política e combate às frentes de esquerda, além do apoio do governo norte-americano ao regime militar que encorajaram o capital estrangeiro a investir no Brasil. O interesse estrangeiro estava amplamente atendido com os grandes depósitos de matéria prima e mão de obra barata e abundante (VICENTINO, DORIGO, 1997). Foi neste contexto que cresceram os privilégios da classe média brasileira, iniciando um estilo de vida consumista que incluía a compra de um segundo automóvel da família, uma casa de veraneio e os filhos ingressando em escolas particulares e em cursinhos pré-vestibulares, garantindo a perpetuação dessa ascensão social através do diploma obtido em universidades públicas. O entusiasmo consumista da classe média era tamanho, que cerrava os olhos dessa parcela da população aos excessos da ditadura: a repressão desmedida sob a ilusão da chamada “propaganda da ideologia progressista” (VICENTINO, DORIGO, 1997). 51 Os privilégios eram amplamente garantidos às camadas de renda mais elevada e aos setores empresariais. Na área da Educação, o Estado militar não media esforços ao repasse de verba às escolas particulares, de forma a facilitar a privatização e fazer com que a Educação se tornasse uma “mercadoria de alto custo” (GERMANO, 2011). Escreve Germano (2011) que “Na educação, é a iniciativa privada que domina a pré- escola, avança no 2o. grau e se torna majoritária no nível superior. Uma pequena fração da população tem acesso aos mais elevados graus de escolarização, enquanto substanciais parcelas do povo sequer têm acesso à escola”. Figura 9: Não tenho vergonha, mas tenho fome, serve? Fonte: http://images.virgula.uol.com.br/2015/01/henfil1.jpg Na charge (Figura 9), pode-se identificar um homem branco, de terno e gravata, pertencente a classe média brasileira, que é abordado por um menino pobre. Cabe relacionar os traços usados por Henfil para desenhar o menino ao retrato de desigualdade social e o descaso para com o povo nordestino denunciado no poema Morte e Vida Severina consagrado por João Cabral de Melo Neto: 52 Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. (MELO NETO, 1994, ) Sabe-se que Henfil lutou pela justiça social, evidenciando o descaso para com o povo nordestino a partir das sátiras das charges das personagens Bode Orellana, Graúna e Zeferino. Na charge apontada, o menino desenhado apresenta profundas olheiras e ventre crescido, elementos que se relacionam a linguagem escrita: “Não [tenho vergonha], mas tenho fome, serve?”. Sabe-se que grande parte da população brasileira, principalmente a população pobre, sofria de doenças relacionadas às verminoses, cujo tratamento e prevenção não aconteciam durante o chamado “milagre econômico”. Quando terminam os anos Médici e Geisel assume o governo, as verminoses e outras doenças estão fora do controle, como escrevem Bertolozzi e Greco (1996): [...] O período marcou o fim do “milagre econômico”, cujos efeitos se faziam sentir no setor saúde através da crise no padrão de prestação de serviços da rede pública e da previdência social, além do privilégio dos produtores privados nos serviços de saúde. O quadro epidemiológico que passou a evidenciar-se mostrava a coexistência de doenças infecto-contagiosas e doenças crônico-degenerativas. Além disso, enfermidades como a doença de Chagas, esquistossomose e malária, dentre outras, que incidiam preponderantemente na zona rural, passaram a assolar também as cidades. (BERTOLOZZI, GRECO, 1996, p.10). O regime militar investiu mais na esfera econômica e na repressão de toda ordem do que nas políticas sociais. Pode-se dizer que, de acordo com Germano (2005), “o Regime, ao mesmo tempo em que fez uso da política educacional como estratégia de hegemonia, deixou de cumprir uma das principais funções tradicionalmente afetas ao Estado capitalista (...) e que consiste justamente em 53 assegurar a escolarização da força de trabalho potencial ou ativa”. Ainda escreve o autor que [...] o elevado grau de analfabetismo e o baixo percentual de escolarização da população economicamente ativa permitem inferir que, nas condições do capitalismo brasileiro, a política educacional pós-64 contribuiu para a exclusão social das denominadas classes populares ou classes subalternas, “aquelas que vivem uma condição de exploração e de denominação no capitalismo, sob múltiplas formas” (Wanderley, 1980:63). Ou seja, a política educacional, de fato, privilegiou o topo da pirâmide social. (GERMANO, 2011, p. 22). Vale ressaltar que, dentre as mais diversas estratégias de propaganda do regime militar, o governo Médici utilizava amplamente o futebol como forma de tornar o governo mais “popular” conquistando a aceitação do povo, ao mesmo tempo que desviava sua atenção das duras repressões que assolavam o país desde o advento do Ato Institucional 5, de dezembro de 1968. O mundial de 1970, em que o Brasil se sagrou campeão no México foi divulgado como prova do sucesso do desenvolvimentismo pregado pelo governo (GUTERMAN, 2004). Escreve Henfil em Cartas da mãe (1981): [...] Natal, 7 de junho de 1978. “Mãe! Aí, na hora que a coisa tava indo, tava indo... chega a Copa do Mundo e leva tudo pra lá. É sempre assim: não conseguimos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Não sabemos assobiar e fazer xixi ao mesmo tempo. Não conseguimos chutar bola e fazer democracia ao mesmo tempo. Mas sabe o que me dá mais raiva? Vez por outra vêm me perguntar se eu vou torcer pelo Brasil. Só porque a gente tá na oposição, eles acham que estamos contra a Seleção também? Sim, porque entre os méritos do último governo, sempre acrescentavam:o governo do Tri! Só pra gente ficar com ódio do Tri. E a gente era besta, a gente era bobão, não sabia das coisas e acabou achando que o Tri fosse gol do Governo. Gol deles uma pinóia! Dessa vez ninguém vai me fazer ficar contra a Seleção, pensando que eu tô contra o Ato Institucional número 5, não. A Seleção é do povo! Assim como a greve é do trabalhador! A bênção! “Do seu filho, Henfil.” (HENFIL, 1981,) 54 4.4 A condição dos professores Durante os vinte e um anos da vigência do regime militar, significativas mudanças aconteceram na sociedade brasileira. O desenvolvimento do capitalismo contribuiu para desencadear “uma relação desigual entre capital e trabalho” (GERMANO, 2011). Entre 1970 e 1972, a concentração de renda, que já era muito concentrada em 1960, aumenta, uma vez que a parcela da renda total dos mais ricos sobe para 52,6%, enquanto a dos mais pobres cai para 16,8 (GERMANO, 2011). Esses números evidenciam a desigualdade social que assolava o país no período. Logicamente, essa repartição de renda foi consequência de uma forma monopolista de produção de capital, cuja acumulação de excedentes foi potencializada pelo Estado militar. Figura 10: Vida de professora Fonte: http://zonacurva.com.br/wp-content/uploads/2014/02/5-de-fevereiro-Henfil- foto-4.jpg 55 A charge (Figura 4) traz dois personagens, um homem que, na posição de pai, dá o ultimato à filha: “Minha filha, vê se arruma um emprego! Até quando você vai continuar levando essa vida de professora?”. A filha traja vestes remendadas e chinelos e leva um objeto embaixo do braço, uma possível pasta ou maleta, podendo inferir que ela está a caminho do trabalho. A proletarização do professorado se deu à medida que se colocava o professor no mesmo patamar que os trabalhadores, estes compartilhando das mesmas contradições socioeconômicas. Escrevem Ferreira Jr. e Bittar (2006) que [...] O arrocho salarial foi uma das marcas registradas da política econômica do regime militar. No conjunto dos assalariados oriundos das classes médias, o professorado do ensino básico foi um dos mais atingidos pelas medidas econômicas que reduziram drasticamente a massa salarial dos trabalhadores brasileiros. O processo da sua proletarização teve impulso acelerado no final da década de 1970 e a perda do poder aquisitivo dos salários assumiu papel relevante na sua ampla mobilização, que culminou em várias greves estaduais entre 1978 e 1979. (FERREIRA JR., BITTAR, 2006, p.8) O professor era proletarizado a medida que a profissão docente não se enquadrava mais no perfil dos profissionais liberais, perdendo seu status social. Construiu-se assim, uma nova identidade social do professor, que se assemelhava a da classe operária, por estarem submetidos às mesmas contradições sociais (FERREIRA JR., BITTAR, 2006). Como resposta ao arrocho salarial, nas décadas de 1970 e 1980 eclodiram greves que reivindicavam a melhoria das condições de trabalho dos professores. Além disso, sobre o período de redemocratização, acrescentam os autores (2006): Efetivamente, confirmou-se a democratização da sociedade brasileira no campo político, mas a institucionalização das liberdades democráticas não foi suficiente para estabelecer a retomada do crescimento econômico e muito menos para instituir uma política de redistribuição de renda. A manutenção e o 56 recrudescimento de traços estruturais do passado, na nova ordem institucional inaugurada com o fim da ditadura militar, impediram que a democratização ultrapassasse os limites do âmbito político. Ao contrário, a total subordinação da política macroeconômica brasileira aos ditames do Consenso de Washington (O Estado de S. Paulo, 1994, p. 2) resultou no agravamento das condições de vida e de trabalho dos professores públicos brasileiros (FERREIRA JR., BITTAR, 2006, p.13) . Assim, se durante a ditadura houve o processo de proletarização do professor, no período de redemocratização, a restituição dos direitos constitucionais não bastou para que houvesse alteração nesse quadro. Em 1990, escrevem Ferreira Jr. e Bittar (2006, p.14) que "levas de docentes abandonaram a profissão pela impossibilidade de subsistirem do seu próprio trabalho". 57 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os poderes excepcionais conferidos pelo autoritarismo, pela censura e pelos serviços de informação consolidavam a propaganda do chamado “milagre econômico”, e desencadearam intensas perseguições aos adversários do regime: intelectuais, artistas, professores e estudantes, que eram sistematicamente vigiados, e quando necessário, envolvendo prisões, torturas e mortes,