UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA INSTITUTO DE QUÍMICA DE ARARAQUARA Gabriella Oliveira Hernandez ELETROQUÍMICA NO ENSINO SUPERIOR: QUAIS AS REFERÊNCIAS? DISCUSSÃO DOS CONCEITOS DE ELETROQUÍMICA E LEVANTAMENTO DOS PRINCIPAIS LIVROS RECOMENDADOS NOS CURSOS DE QUÍMICA DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO BRASIL Araraquara 2024 GABRIELLA OLIVEIRA HERNANDEZ ELETROQUÍMICA NO ENSINO SUPERIOR: QUAIS AS REFERÊNCIAS? DISCUSSÃO DOS CONCEITOS DE ELETROQUÍMICA E LEVANTAMENTO DOS PRINCIPAIS LIVROS RECOMENDADOS NOS CURSOS DE QUÍMICA DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO BRASIL Dissertação apresentada ao Instituto de Química, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Química. Orientador: Denis Ricardo Martins de Godoi Coorientador: Vagner Antonio Moralles Araraquara 2024 H557e Hernandez, Gabriella Oliveira Eletroquímica no ensino superior : quais as referências? Discussão dos conceitos de eletroquímica e levantamento dos principais livros recomendados nos cursos de Química das universidades públicas do Brasil / Gabriella Oliveira Hernandez. -- Araraquara, 2024 104 f. : il. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Química, Araraquara Orientador: Denis Ricardo Martins de Godoi Coorientador: Vagner Antonio Moralles 1. Eletroquímica. 2. Checklist. 3. Levantamentos. 4. Química - Estudo e ensino. 5. Livros Didáticos. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). Impacto Potencial desta Pesquisa Esse trabalho visou disponibilizar ao professor e ao aluno um instrumento para ser utilizado na análise de livros didáticos do ensino superior, com a finalidade de contribuir com o processo de ensino e aprendizagem dos conceitos que envolvem eletroquímica. O objetivo desta pesquisa foi ao encontro ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, pois teve como intenção promover uma educação de qualidade, considerando que não há um programa nacional que analise a qualidade dos livros utilizados no ensino superior. Potential Impact of this Research This work aimed to provide teachers and students with an instrument to be used in the analysis of higher education textbooks, with the purpose of contributing to the teaching and learning process of concepts involving electrochemistry. The objective of this research was in line with the Sustainable Development Goal of the 2030 Agenda of the United Nations, as it was intended to promote quality education, considering that not a national program that analyzes the quality of books used in higher education. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Araraquara "ELETROQUÍMICA NO ENSINO SUPERIOR: QUAIS AS REFERÊNCIAS? DISCUSSÃO DOS CONCEITOS DE ELETROQUÍMICA E LEVANTAMENTO DOS PRINCIPAIS LIVROS RECOMENDADOS NOS CURSOS DE QUÍMICA DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO BRASIL" TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: GABRIELLA OLIVEIRA HERNANDEZ ORIENTADOR: DENIS RICARDO MARTINS DE GODOI COORIENTADOR: VAGNER ANTONIO MORALLES Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Mestra em Química, pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. DENIS RICARDO MARTINS DE GODOI (Participaçao Virtual) Departamento de Quimica Analitica, Fisico-Quimica e Inorganica / Instituto de Quimica - Unesp/Câmpus de Araraquara Profa. Dra. PATRICIA HATSUE SUEGAMA (Participaçao Virtual) Faculdade de Ciências Exatas e Tecnológicas - UFGD - Dourados Dra. LUCIANA NATALIA CIVIDATTI BRAGUETE (Participaçao Virtual) Departamento de Química / Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP - Catanduva - SP Araraquara, 06 de setembro de 2024 Instituto de Química - Câmpus de Araraquara - Rua Prof. Francisco Degni, 55, 14800060 http://www.iq.unesp.br/#!/pos-graduacao/quimica-2/CNPJ: 48.031.918/0027-63. DADOS CURRICULARES IDENTIFICAÇÃO Nome: Gabriella Oliveira Hernandez Nome em citação: HERNANDEZ, G. O. FORMAÇÃO ACADÊMICA/TITULAÇÃO Licenciada em Química pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Química de Araraquara. ATIVIDADES ACADÊMICAS RELEVANTES HERNANDEZ, G. O.; GODOI, D. R. M.; MORALLES, V. A. Eletroquímica no ensino superior: quais as referências? Identificação dos principais livros recomendados nos cursos de química das universidades públicas do Brasil. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE ELETROQUÍMICA E ELETROANALÍTICA (SIBEE), 2023, Porto Alegre. Anais... Lajeado: Editora Univates, 2024, p. 274. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a minha família, pelo apoio, carinho e paciência infinita. Dedico especialmente ao Vagner, por toda paciência, compreensão, companheirismo e por acreditar em mim até nas vezes em que eu não acreditava. Dedico ao Denis, pela compreensão, conselhos de vida e por me apoiar em todos os sentidos. Eu não poderia ter tido uma orientação melhor, e mais paciente, do que tive nesse trabalho. Minha admiração por esses dois professores sempre foi e sempre será imensa. AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos iniciais vão para a UNESP (Universidade Estadual Paulista) e ao Instituto de Química de Araraquara, por terem me proporcionado um ensino de qualidade e gratuito. Um agradecimento especial ao LEEN (Laboratory of Environmental Electrochemistry and Nanotechnology), o qual teve contribuição fundamental nos conhecimentos eletroquímicos abordados neste trabalho. Meu muito obrigada ao Prof. Dr. Denis Ricardo Martins de Godoi, pela paciência, ensinamentos e conversas durante o trabalho. Ele mudou minha visão sobre a físico-química, especialmente sobre a Eletroquímica. Além de ser uma pessoa muito inteligente, é compreensivo e tem uma forma de trabalhar muito acolhedora com todo o grupo de pesquisa. Este trabalho não teria acontecido sem o Dr. Vagner Antonio Moralles. Ele foi um fator decisivo para a escolha do tema e a razão para esse trabalho ser finalizado. Obrigada por não ter me deixado desistir. Gostaria de agradecer à minha banca de qualificação, Prof. Dr. Amadeu Moura Bego e Prof. Dr. Leonardo Luiz Okumura, pelas contribuições que foram fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. E para finalizar, um agradecimento especial à minha banca de defesa. À Profa. Dra. Patricia Suegama e à Profa. Luciana Cividatti, por aceitarem o convite para estar presente neste dia tão importante para mim. “Devemos manter a nossa certeza de que depois dos dias ruins, os bons virão novamente” Marie Skolodowska-Curie RESUMO A eletroquímica está muito presente em nosso dia a dia devido à grande difusão de dispositivos que exigem a utilização de pilhas e baterias, como celulares, relógios digitais, meios de transporte elétricos, computadores, entre outros. No entanto, é muito corriqueiro, no dia a dia de sala de aula, ouvir professores e alunos reclamarem da dificuldade do entendimento dos conteúdos relacionados aos conceitos de eletroquímica. Investigações da literatura, que se debruçaram a estudar o processo de ensino e aprendizagem dessa área da química, supõe que as origens dessas dificuldades podem estar relacionadas ao alto grau de abstração desses conteúdos; a necessidade de interrelacionar várias áreas do conhecimento; o exagerado foco em aspectos quantitativos; erros conceituais, concepções alternativas e obstáculos epistemológicos presente nas falas dos professores e no próprio livro didático. Mais alarmante ainda, é que alguns estudos apontam que mesmo em livros direcionados para o ensino superior, esses erros são frequentes. Dentre esses múltiplos fatores para as dificuldades no processo de ensino e aprendizagem de eletroquímica, essa pesquisa se baseou sobre o problema do livro didático do ensino superior, uma vez que, não existe um programa governamental para analisar e recomendar os livros a serem utilizados em cursos de química ou áreas afins. A proposta foi desenvolver um checklist que permita que professores analisem os livros que vão utilizar e encontrem o melhor material ou uma composição de materiais para esse conteúdo. Outro ponto orientador deste trabalho foi desenvolver um mapeamento dos principais livros utilizados em cursos do ensino superior de química, para ensinar eletroquímica. Esse mapeamento pode auxiliar os professores a selecionarem os livros nos quais o checklist será operacionalizado, possibilitando verificar se os livros mais indicados abrangem os conceitos necessários para o aprendizado dos conceitos de eletroquímica. Para cumprir os objetivos deste trabalho foi escolhido o método misto de pesquisa, com vista a analisar os dados tanto de um viés qualitativo, quanto quantitativo. Como fontes de informação foram utilizados documentos e sujeitos. Os documentos foram os projetos político-pedagógicos, as ementas e planos das disciplinas dos cursos de química das universidades públicas do Brasil. Já os sujeitos foram seis professores do ensino superior que se portaram como juízes para validar o checklist proposto. Dentre esses estão três professores especialistas da área de ensino de química e três especialistas da área de eletroquímica. O mapeamento revelou que no ensino de eletroquímica em nível superior são utilizados livros de físico-química, química geral, química analítica, química inorgânica, química ambiental, entre outros. Como perspectivas para essa pesquisa estão a operacionalização do checklist nos livros mais utilizados no ensino superior para trabalhar a eletroquímica. Ademais, pretende-se desenvolver outros checklist para abordar outras temáticas da química. Palavras-chave: Eletroquímica; Checklist; Mapeamento; Ensino de Química; Livros Didáticos. ABSTRACT Electrochemistry is very present in our daily lives due to the widespread use of devices that require the use of batteries, such as cell phones, digital watches, electric transportation, computers, among others. However, it is very common in the classroom to hear teachers and students complain about the difficulty in understanding content related to electrochemistry concepts. Research in the literature, which has focused on studying the teaching and learning process in this area of chemistry, suggests that the origins of these difficulties may be related to the high degree of abstraction of these contents; the need to interrelate various areas of knowledge; the exaggerated focus on quantitative aspects; conceptual errors, alternative conceptions and epistemological obstacles present in the speeches of teachers and in the textbooks themselves. Even more alarming is that some studies indicate that even in books aimed at higher education, these errors are frequent. Among these multiple factors that contribute to difficulties in the teaching and learning process of electrochemistry, this research was based on the problem of higher education textbooks, since there is no government program to analyze and recommend books to be used in chemistry courses or related areas. The proposal was to develop a checklist that allows teachers to analyze the books they will use and find the best material or a composition of materials for this content. Another guiding point of this work was to develop a map of the main books used in higher education chemistry courses to teach electrochemistry. This map can help teachers select the books in which the checklist will be operationalized, making it possible to verify whether the most recommended books cover the concepts necessary for learning the concepts of electrochemistry. To achieve the objectives of this work, the mixed research method was chosen, with a view to analyzing the data from both a qualitative and quantitative perspective. Documents and subjects were used as sources of information. The documents were the political-pedagogical projects, the syllabuses and plans of the disciplines of chemistry courses at public universities in Brazil. The subjects were six higher education professors who acted as judges to validate the proposed checklist. Among these are three professors who are experts in the area of chemistry teaching and three who are experts in the area of electrochemistry. The mapping revealed that in the teaching of electrochemistry at the higher education level, books on physical chemistry, general chemistry, analytical chemistry, inorganic chemistry, environmental chemistry, among others, are used. The perspectives for this research are the operationalization of the checklist in the books most used in higher education to work on electrochemistry. Furthermore, it is intended to develop other checklists to address other chemistry topics. Keywords: Electrochemistry; Checklist; Mapping; Teaching Chemistry; Textbooks. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Representação de uma célula eletrolítica em equilíbrio. ........................... 25 Figura 2. Representação de uma célula eletrolítica em funcionamento no modo galvânico. .................................................................................................................. 27 Figura 3. Representação de uma célula eletrolítica em funcionamento no modo eletrolítico. ................................................................................................................. 28 Figura 4. Imagem da plataforma e-Mec. ................................................................... 49 Figura 5.Critérios de exclusão utilizados. ................................................................. 59 Figura 6. Livros mais indicados. ............................................................................... 60 Figura 7. Livros de físico-química com maior recorrência. ....................................... 61 Figura 8. Livros de química geral com maior recorrência. ........................................ 62 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Extratos de concepções alternativas na área de eletroquímica (EM: Ensino Médio / ES: Ensino Superior). ................................................................................... 34 Quadro 2.Pré-requisitos fundamentais para a compreensão da Eletroquímica. ...... 51 Quadro 3. Contextualização histórica da Eletroquímica. .......................................... 52 Quadro 4. Conceitos Fundamentais da Química Geral para a Eletroquímica. ......... 52 Quadro 5. Relação da Eletroquímica com a Eletricidade e a Termodinâmica Química. .................................................................................................................................. 53 Quadro 6. Conceitos relacionados às Células Eletroquímicas ................................. 54 Quadro 7. Problemas relacionados às ilustrações e esquemas ............................... 56 Quadro 8. Obstáculos epistemológicos e concepções alternativas .......................... 57 Quadro 9. Checklist reformulado para os conceitos da área de Eletroquímica. ....... 70 Quadro 10. Universidades, cursos e disciplinas obtidos por meio da plataforma e-MEC e os projetos políticos-pedagógicos dos cursos, ementas e grades curriculares. ..... 78 Quadro 11. Livros utilizados para trabalhar os conteúdos de eletroquímica e recorrência. ............................................................................................................... 94 Quadro 12. DECA (Dificuldade, Equívoco e Concepção Alternativa) ..................... 103 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BNCC – Base Nacional Comum Curricular CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ddp - Diferença de potencial DEQ – Divisão de Eletroquímica e Eletroanalítica IUPAC - International Union of Pure and Applied Chemistry MEC - Ministério da Educação Nox - Número de oxidação PNLD - Programa Nacional do Livro e do Material Didático PNLEM - Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio Redox - Reação de óxido-redução SBQ – Sociedade Brasileira de Química SBEE – Sociedade Brasileira de Eletroquímica e Eletroanalítica SIBEE – Simpósio Brasileiro de Eletroquímica e Eletroanalítica SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14 2 APORTES TEÓRICOS .......................................................................................... 17 2.1 BREVE INTRODUÇÃO DOS ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA HISTÓRIA DA ELETROQUÍMICA SEGUNDO A LITERATURA. ........................................................................................... 17 2.3 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE ELETROQUÍMICA .................................................... 22 2. 2 PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE ELETROQUÍMICA ................................. 29 2.3 CONSEQUÊNCIAS PARA O PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM ......................... 41 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............................................................... 43 3.1 JUSTIFICATIVA, PROBLEMA E QUESTÕES DE PESQUISA ............................................ 43 3.2 NATUREZA DA PESQUISA ..................................................................................... 44 3.3 FONTES DE INFORMAÇÃO ..................................................................................... 45 3.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DOS DADOS ............................................................ 46 3.5 VALIDAÇÃO DO INSTRUMENTO .............................................................................. 47 3.6 LEVANTAMENTO DOS DADOS ................................................................................ 49 4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................................ 50 4.1 RECONSTRUÇÃO E VALIDAÇÃO DO CHECKLIST ....................................................... 50 4.2 LEVANTAMENTO DOS LIVROS QUE ABORDAM CONTEÚDOS DE FÍSICO-QUÍMICA MAIS UTILIZADOS EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR ..................................................... 58 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 63 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 65 APÊNDICE A – CHECKLIST PROPOSTO ............................................................... 70 APÊNCIDE B – UNIVERSIDADES RETORNADAS SEGUNDO OS FILTROS UTILIZADOS NA PLATAFORMA E-MEC ................................................................ 78 APÊNCIDE C - LIVROS INDICADOS NAS EMENTAS DE DISCIPLINAS TEÓRICAS QUE ABORDAM ELETROQUÍMICA .................................................... 94 ANEXO A- DECA .................................................................................................... 103 14 1 INTRODUÇÃO É comum, no dia a dia de salas de aulas de química, ouvir alunos e professores reclamarem sobre as dificuldades de entender conteúdos de eletroquímica. Nesse ponto se expõe uma característica intrínseca do próprio conhecimento químico, que é a necessidade de um alto grau de abstração e imaginação (BARRETO, 2020; SILVA et al, 2016; CARAMEL; PACCA, 2011; SANJUAN et al., 2009; OGUDE; BRADLEY, 1996; SANTOS et al., 2018). Em um levantamento na literatura especializada relacionado à visão de quais são os focos de interesse da química, como área de pesquisa, frequentemente são encontradas concepções semelhantes com o recorte a seguir (CHRISPINO, 1998, p. 7): A química é a ciência que estuda a transformação da matéria, a energia consumida ou produzida nesta transformação, bem como a estrutura da matéria. Sinteticamente, o conhecimento químico se desenvolve em um tripé que interrelaciona propriedades, constituição e transformações da matéria, tendo com eixo orientador as substâncias e os materiais (LEAL, 2009). A proposta majoritariamente reconhecida, na área de ensino de química, para trabalhar essa elevada complexidade do conhecimento químico é desenvolver uma abordagem que interrelacione três grandes aspectos do conhecimento químicos, a se citar: I) o fenomenológico: toda informação, direta ou indireta, que pode ser obtida do fenômeno de interesse, a partir dos sentidos humanos ou de instrumentos de medida (macroscópico); II) o simbólico: a linguagem própria da química, que envolve representação próprias e simbologias; III) o teórico: o conhecimento químico propriamente dito, historicamente desenvolvido e validado. É uma interpretação dos fenômenos macroscópicos que se desenvolve, na maioria das vezes, em nível submicrocópico (MORTIMER; MACHADO; ROMANELLI, 2000). Esse último aspecto do conhecimento químico, o teórico, que causa grandes dificuldades no processo de ensino e aprendizagem de química, pois exige trabalhar em uma dimensão da matéria que não pode ser acessada diretamente, os níveis atômico ou subatômico. Para trabalhar nesses níveis é necessário um alto grau de abstração e imaginação, pois esse é interpretado, essencialmente, por meio de modelos. O ensino de química apresenta algumas respostas parciais para essa 15 dificuldade, que é trabalhar com analogias, modelagens, entre outras estratégias (SILVA; DANTAS; FARIAS, 2017). Além dessa dificuldade própria do conhecimento químico, autores que estudam o ensino de conteúdos de físico-química e eletroquímica apontam como principais dificuldades para o processo de ensino e aprendizagem: I) o entendimento dos conteúdos de eletroquímica exige uma série de outros conceitos que antecedem o estudo desse ramo, como: átomos, elétrons, íons, cátions, ânions, corrente elétrica, entre outros; II) requer a compreensão de outras áreas do conhecimento, como a física e a matemática; III) muitas vezes, as aulas são construídas com um foco exagerado em processos quantitativos; IV) utilização de termos próprios da área de forma inadequada pelos professores; V) a presença de concepções alternativas e obstáculos epistemológicos na fala do próprio professor e nos livros didáticos; VI) o fato de, na grande maioria das vezes, o conhecimento ser tratado de forma ahistórica e de crescimento linear. Ou seja, a construção do conhecimento sobre eletroquímica é trabalhada sem discutir as dificuldades e as teorias que foram abandonadas e/ou modificadas até se alcançar o atual entendimento químico vigente. Ademais, pouco se fala sobre pesquisas que foram essenciais e basilares para o desenvolvimento das teorias aceitas mais conhecidas (WHARTA; REZENDE, 2011; BARKE et al, 2009; SANGER; GREENBOWE, 1999; SILVERSTEIN, 2011; FERREIRA; GONÇALVES; SALGADO, 2021; MORTIMER; AMARAL, 1998). Como pode ser visto no parágrafo acima, as dificuldades associadas ao processo de ensino e aprendizagem de conteúdos de físico-química não apresentam um foco único, sendo um processo multifocal, complexo e orgânico. Tentar estudar todas essas variáveis associadas pode exigir uma grande equipe de trabalho e um período de tempo excessivamente longo. Uma alternativa para viabilizar esse estudo é particionar o problema em grandes blocos e, posteriormente, articulá-los em busca de inferências consistentes e fundamentadas. Dentro desses blocos analíticos, esse trabalho se propôs a analisar especificamente o ensino de eletroquímica e focar nas problemáticas associadas ao livro didático, particularmente, a livros utilizados no ensino superior, que não apresentam nenhum mecanismo de controle em nível de política de Estado. A eletroquímica, entendida como componente da química que tem como função estudar as interrelações entre a eletricidade e as reações químicas, com foco tanto em processos espontâneos e não-espontâneos, foi selecionada como base 16 dessa pesquisa, por ser uma área muito visada pelo atual desenvolvimento tecnológico. Cada dia mais, dispositivos que fazem uso de pilhas e baterias (recarregáveis ou não) vem ganhando grande destaque e difusão no meio social, a se citar: notebooks, celulares, relógios, agendas eletrônicas, carros elétricos, entre outros (BROWN et al., 2016; SANTOS et al., 2018). Entender esses dispositivos e se posicionar criticamente na sociedade frente ao seu uso e produção exige, essencialmente, o conhecimento sobre conceitos básicos da eletroquímica, principalmente, o funcionamento de células galvânicas e eletrolíticas. Dessa forma, essa pesquisa teve o intuito principal de refinar um instrumento, que pode ser utilizado de forma autônoma tanto pelo docente quanto pelo discente, para avaliar os livros de eletroquímica de nível superior, em busca de escolher o melhor material que permita dirimir as principais dificuldades e problemas encontrados no ensino e/ou aprendizado dessa área do conhecimento. O instrumento refinado nesse trabalho, chamado de checklist, foi reformulado em quadros que organizam, de forma didática, os principais pontos que devem ser avaliados antes de selecionar um livro para estudo: quadro 1 - pré-requisitos fundamentais para a compreensão da eletroquímica; quadro 2 - contextualização histórica da eletroquímica; quadro 3 - conceitos fundamentais de química geral para a eletroquímica; quadro 4 - relação da eletroquímica com a eletricidade e a termodinâmica química; quadro 5 - conceitos relacionados às células eletroquímicas; quadro 6 - problemas relacionados às ilustrações e esquemas; quadro 7 - obstáculos epistemológicos e concepções alternativas. Para a reconstrução do checklist foi desenvolvido, inicialmente, um aprofundamento teórico tanto em relação aos conteúdos de eletroquímica, como ao ensino de eletroquímica. Esse estudo é apresentado nos aportes teóricos e também tem a função de servir de fonte de consulta e, devido a isso, os tópicos foram apresentados de forma minuciosa, sendo utilizadas um grande número de fontes de informação. Todo o conteúdo dessa seção foi avaliado por dois especialistas da área, um de eletroquímica e outro de ensino de química. Para que o instrumento proposto apresente validade e consistência para a área do conhecimento, além de ser avaliado pela pesquisadora, pelo orientador e coorientador, o mesmo foi submetido a uma análise de especialistas das áreas, com propósito de refinamento e validação. Os especialistas, três da área de eletroquímica e três da área de ensino de química, verificaram a pertinência e correção das 17 assertivas de cada quadro. Ademais, os especialistas propuseram cortes, acréscimos e reestruturações no instrumento. Ademais todo processo de reconstrução do checklist, com o propósito de instrumentalizar o docente ou discente em suas escolhas, foi desenvolvida uma pesquisa documental para explicitar quais são os principais livros utilizados para trabalhar os conteúdos de eletroquímica no ensino superior nas instituições públicas brasileiras. Como critérios de inclusão, foram selecionadas instituições que apresentam cursos de química, na modalidade presencial, e que estavam cadastradas no Ministério da Educação no ano de 2024. A importância dessa pesquisa, portanto, está na possibilidade de apresentar um rol dos livros mais utilizados em cursos de ensino superior, para, a partir desses, o docente ou discente operar o checklist, selecionando o melhor livro ou uma composição de livros que podem ser utilizados no seu planejamento e que contribuam para dirimir as principais problemáticas associadas ao ensino e aprendizado de eletroquímica. O fato do checklist apresentar a versatilidade de ser utilizado em quadros distintos, permite que o usuário faça suas escolhas fundamentadas nas especificidades que o mesmo necessitar no momento. A execução de toda proposta ocorreu por meio de uma pesquisa enquadrada na perspectiva mista, ou seja, em uma interrelação orgânica e complexa entre métodos quali e quantitativos de pesquisa. Nas próximas seções estão descritos todo o percurso de pesquisa, relatado de forma resumida, nessa introdução. 2 APORTES TEÓRICOS 2.1 Breve introdução dos aspectos fundamentais da história da eletroquímica segundo a literatura. Para compreender os eventos relacionados ao desenvolvimento histórico da eletroquímica é necessário, primeiro, investigar como o conhecimento sobre a eletricidade evoluiu ao longo dos anos. A proposta foi traçar uma linha histórica que tem início desde perspectivas filosóficas até o atual conhecimento científico consensual da área. 18 Séculos antes da descoberta da eletricidade, o filósofo pré-socrático Tales de Mileto (636 - 546 a.C.) descreveu a atração que o âmbar1 exercia sobre materiais, como o papel e a cortiça, após ser atritado com a lã. Somente no século XVI, William Gilbert (1540 - 1603) identificou que materiais compostos por uma matriz vítrea e enxofre apresentavam comportamento semelhante ao âmbar quando atritados (OKI, 2000). Estudos sobre a eletricidade foram impulsionados no século XVII, com a construção das máquinas eletrostáticas desenvolvidas por Otto von Guericke (1602 - 1686). Uma versão modificada da máquina eletrostática de Guericke foi desenvolvida no início do século XVIII por Francis Hauksbee (1660-1713) que, em 1705, construiu uma máquina eletrostática capaz de gerar grandes fagulhas elétricas. Esta versão ficou conhecida como máquina de Hauksbee e foi utilizada em experimentos por Stephen Gray (1666 - 1736) em 1729 (SOUZA FILHO; BOSS; CALUZI, 2007). Gray realizou experimentos com pessoas demonstrando que corpos eletrizados atraíam outros materiais, como papel ou penas. Por meio das observações realizadas, o cientista classificou os materiais em condutores e não-condutores. Contudo, Gray não conseguia armazenar a eletricidade gerada (SANTOS, 2015). Ainda no século XVIII surgiu a proposta do físico Charles Dufay (1692 - 1739) de que a eletricidade poderia ser resinosa ou vítrea, sendo que objetos portadores da mesma eletricidade teriam a propriedade de se repelir (resinosa-resinosa ou vítrea- vítrea), enquanto objetos com eletricidades diferentes teriam a propriedade de se atrair (resinosa-vítrea). Em 1746, durante um experimento, Pieter van Musschenbroek (1692 - 1761) conseguiu armazenar as cargas elétricas em um recipiente, que recebeu o nome de Garrafa de Leyden, em homenagem a uma cidade da província da Holanda do Sul, na qual Musschenbroek fez sua descoberta. Na literatura, a Garrafa de Leyden é considerada a precursora do capacitor moderno (OKI, 2000). No final do século XVIII, a rivalidade entre Luigi Galvani (1737 - 1798) e Alessandro Volta (1745 - 1827) foi determinante para o desenvolvimento sobre a teoria da eletricidade. Galvani era conservador e tinha interesse no uso da eletricidade para tratamentos de saúde. Defendia que o corpo era movido por uma chamada “eletricidade animal” (OKI, 2000). Ele percebeu que ao encostar no nervo da perna do sapo um fio de cobre ligado a uma máquina de Hauskbee, ela se mexia. Esse fenômeno era explicado como 1 Uma resina de árvore fossilizada, muito utilizada para produzir joias. 19 uma energia chamada de “eletricidade animal”, que seria inerente aos seres vivos (OKI, 2000). Já Alessandro Volta era a favor do pensamento racional e da busca do conhecimento por meio da ciência. Para ele, o experimento com o sapo poderia ser explicado por meio do entendimento da eletricidade produzida artificialmente, oriunda da máquina de Hauksbee (OKI, 2000). Para confrontar as ideias de Galvani, Volta construiu uma pilha com placas de diferentes metais empilhadas e intercaladas com papéis embebidos com soluções aquosas ácidas. A construção da pilha demonstrou que era possível gerar eletricidade de forma contínua e sem a presença de um animal, constituindo assim as primeiras concepções sobre corrente elétrica (OKI, 2000). Os resultados obtidos por Volta estimularam vários pesquisadores a desenvolver novos experimentos com a eletricidade oriunda da pilha. Ao testar o efeito da eletricidade sobre a água, Anthony Carlisle (1768 - 1840) e William Nicholson (1753 - 1815) verificaram que um fluxo constante de carga elétrica decompunha a água em oxigênio e hidrogênio gasoso (TOLENTINO; ROCHA-FILHO, 2000). A descoberta da eletricidade contínua possibilitou o aperfeiçoamento da eletrólise e o desenvolvimento de algumas áreas da química e da física. Como forma de homenagear Volta por sua descoberta, seu nome foi atribuído à uma unidade de medida física, o Volt, utilizado para mensurar tensão e potencial elétrico (SANTOS, 2019). Inspirado na pilha criada por Volta, Humphry Davy2 (1778 - 1829) desenvolveu um equipamento para gerar eletricidade em grandes quantidades, composto por pilhas de ácidos e metais. O equipamento foi o maior já criado, com cerca de oitocentas pilhas voltaicas em série, capaz de gerar uma descarga elétrica contínua e de brilho intenso (SANTOS, 2019). Por volta de 1820, Michael Faraday (1791 - 1867), assistente de Humphry Davy, produziu a indução da corrente elétrica por meio da rotação contínua de ímãs em torno de fios condutores (FARADAY, 2003). Este experimento é considerado o primeiro da história a converter corrente elétrica em movimento contínuo, isto é, o primeiro protótipo do motor elétrico. 2 Davy foi responsável, também, por isolar diversos metais, entre eles potássio, bário, magnésio, sódio e cálcio (DOS SANTOS, 2019). 20 Entre os séculos XVII e XIX acreditava-se que existiam vários tipos de eletricidade, como por exemplo: I) comum, proveniente da máquina eletrostática; II) animal, oriunda dos músculos dos animais; III) voltaica, proveniente da pilha de Volta; IV) magnética, gerada por uma máquina de imãs. Desconfiado de que os tipos de eletricidade tratavam da mesma coisa, Faraday propôs uma série de experimentos, para demonstrar que a eletricidade era a mesma independente da fonte (SANTOS; PORTO; KIOURANIS, 2020). A pesquisa mais importante de Faraday para a eletroquímica deu origem à Primeira e à Segunda Lei de Faraday, também chamadas de Leis da Eletrólise. Por meio de experimentos envolvendo a eletrodecomposição, Faraday propôs que, durante o processo de eletrólise, a massa de uma substância liberada por um eletrodo é diretamente proporcional à quantidade de eletricidade que passa na célula eletrolítica, originando a Primeira Lei da Eletrólise (PILLA, 2010). Faraday observou, também, que a quantidade de eletricidade envolvida na eletrodecomposição e as massas dos produtos formados são proporcionais, sendo que esses produtos apresentam massas proporcionais às suas massas equivalentes. Esta observação deu origem à Segunda Lei da Eletrólise (SANTOS, 2019; SANTOS; PORTO; KIOURANIS, 2020). As contribuições de Faraday para a eletroquímica foram tão importantes, que a unidade de capacitância recebeu seu nome. A constante de Faraday corresponde à carga realacionada a um mol de elétrons e equivale a, aproximadamente, 96485 C.mol-1 (MAHAN; MYERS, 1995). Em 1876, a partir dos estudos de eletrólise realizados por Faraday, Friedrich Kohlrausch (1840 - 1910) desenvolveu um método para determinar a condutividade. Kohlrausch estabeleceu, assim, a Lei da Migração Independente dos Íons, na qual cada íon em migração possui uma condutividade molar específica (GAMA; AFONSO, 2007). Quatro anos depois, em 1880, Friedrich Ostwald (1853 - 1932) e Svante Arrhenius (1859 - 1927) escreveram a teoria da dissociação eletrolítica. De acordo com a teoria, espécies que produziam íons hidrogênio (H+) em soluções aquosas, apresentam propriedades ácidas. Desta forma, Arrhenius limitou a definição de ácido apenas às espécies que geram íons hidrogênio em solução aquosa, e designou base às espécies que geram íons hidroxilas (OH-) em soluções aquosas (SOUZA; ARICÓ, 2017). 21 Em 1923, aproximadamente 50 anos após a proposição de ácido e base de Arrhenius ser estabelecida, outras definições começaram a se destacar, como as de Johannes Nicolaus Brönsted (1879 - 1947), Thomas Martin Lowry (1874-1935) e Gilbert Newton Lewis (1875 - 1946) (SOUZA; ARICÓ, 2017). Em seus trabalhos, Brönsted discutiu a formação de ácidos doadores de íons hidrogênio (H+) e suas bases conjugadas3, enquanto Lowry associou a definição de ácido e base à liberação ou aceitação de prótons. Como as definições eram as mesmas, a teoria ficou conhecida como Brönsted-Lowry, na qual os ácidos são definidos como doadores de H+, e as bases como receptoras de íons hidrogênio. Em solução aquosa, o H+ não é encontrado na forma livre, sendo representado na sua forma hidratada pelo íon hidrônio, H3O+ (ATKINS; JONES, 2012; SOUZA; ARICÓ, 2017). A teoria de Brönsted-Lowry é centralizada na transferência de prótons, enquanto a de Lewis é focada no compartilhamento de pares de elétrons. Lewis definiu os ácidos como espécies que aceitam pares de elétrons e as bases como espécies que doam pares de elétrons (ATKINS; JONES, 2012). Em síntese, é perceptível que o desenvolvimento da eletroquímica está intrinsecamente relacionado à história da eletricidade. As primeiras máquinas eletrostáticas criadas instigaram os outros cientistas a estudar formas de armazenar e produzir eletricidade em grande quantidade. Um dos resultados do confronto entre as ideias de Galvani e Volta foi a pilha de Volta, intercalada com as soluções ácidas. Essas soluções influenciaram cientistas como Arrhenius, Brönsted, Lowry e Lewis a estudar a formação de ácidos e bases, a fim de compreender qual era a relação entre a estrutura dos compostos e a condutividade elétrica. Com base na discussão acima, é possível verificar que estudos relacionados à eletricidade foram precursores para as pesquisas relacionadas à eletroquímica. O desenvolvimento da eletroquímica no Brasil é discutido na próxima seção. 2.2 Desenvolvimento histórico da Eletroquímica no Brasil Como visto na seção anterior, os estudos sobre eletricidade tiveram maior interesse no século XVII, sendo que a eletroquímica, propriamente dita, foi introduzida 3 Base conjugada é a espécie produzida quando o ácido doa um próton (ATKINS; JONES, 2012). 22 no final século XVIII com os estudos de Galvani e Volta. No Brasil o desenvolvimento da eletroquímica ocorreu no século XX, quase 50 anos após o surgimento da teoria de ácidos e bases de Brönsted-Lowry. A implantação da pesquisa em eletroquímica no Brasil teve início no final da década de 60, com trabalhos envolvendo o desenvolvimento de técnicas e construção de aparelhos. Entretanto, a Divisão de Eletroquímica e Eletroanalítica (DEQ) da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) foi criada somente em 1990, durante a 13º Reunião Anual da SBQ e implantada em 1993 (AVACA; TOKORO, 2002). Antes da criação da DEQ, os trabalhos desenvolvidos na área eram apresentados no Encontro Nacional de Corrosão e Eletroquímica, organizados pela Associação Brasileira de Corrosão e, a partir de 1978, no Congresso Brasileiro de Energia. Em 1978 ocorreu também o I Simpósio Brasileiro de Eletroquímica e Eletroanalítica (SIBEE), que continua a ser realizado bienalmente (AVACA; TOKORO, 2002). Entre 2013 e 2015 foi criada a Sociedade Brasileira de Eletroquímica e Eletroanalítica (SBEE), sendo efetivada em 2016, após o SIBEE ter se tornado um importante fórum de discussão, com um número expressivo de trabalhos. Vale ressaltar que os SIBEE e a criação da DEQ desempenharam papel importante na disseminação da Eletroquímica e da Eletroanalítica no Brasil (Zanoni et al, 2017). Zanoni e colaboradores realizaram uma análise da produção científica da área no Brasil no período de 1980 a 2016, utilizando a base de dados InCites, da Web of Science. No período de 2006 - 2015 houve um aumento de 40% na produção científica no Brasil, sendo acompanhado de um crescimento mundial de publicações na área de eletroquímica e eletroanalítica, que atingiu cerca de 112 mil artigos (ZANONI et al, 2017). Após a abordagem dos conceitos históricos do desenvolvimento da eletroquímica, e do início de sua pesquisa no Brasil, aborda-se, na próxima seção, os principais conceitos de eletroquímica. 2.3 Conceitos fundamentais de eletroquímica Considerando que a complexidade da eletroquímica se deve à relação entre conceitos de diferentes áreas, como física, termodinâmica e química geral, nesta seção foram discutidos conceitos considerados fundamentais para o entendimento da 23 eletroquímica, com base nos livros didáticos utilizados no ensino superior, na tentativa de diminuir a complexidade dessa temática. A eletroquímica envolve o uso de reações químicas espontâneas para produção de eletricidade e o uso de eletricidade para forçar reações não-espontâneas. Essas reações ocorrem por meio da transferência de elétrons, que são considerados carreadores de energia (ATKINS; JONES, 2012). O elétron possui a mesma quantidade de carga elétrica que o próton, porém, tem 1836 vezes menos massa, apresentando assim grande mobilidade. De acordo com a International Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC), a carga elétrica pode ser definida como a integral da corrente elétrica ao longo do tempo, sendo chamada de carga elementar da menor carga elétrica encontrada sozinha (ATKINS; JONES, 2012; IUPAC, 2014). As transferências de elétrons ocorrem em reações ditas de oxidação e de redução, que compõem a reação ditas redox completa. Cada elemento químico possui um número de oxidação, comumente chamado de Nox (ATKINS; JONES, 2012). O número de oxidação pode ser definido como a carga que o átomo teria se todos os ligantes fossem removidos juntamente com seus pares de elétrons compartilhados. Ou seja, a carga que o átomo teria se participasse de uma ligação perfeitamente iônica. Vale ressaltar que o número de oxidação de um elemento na forma elementar é zero (IUPAC, 2014) De modo geral, em uma reação redox, um átomo é oxidado enquanto outro é, necessariamente, reduzido. Isso porque ocorre transferência eletrônica, ou seja, o número de elétrons deve ser o mesmo nos reagentes e nos produtos. De acordo com o princípio da eletroneutralidade, em uma molécula os elétrons devem estar distribuídos de forma que a carga nos átomos se aproxime de zero. Na oxidação ocorre a perda de elétrons e, consequentemente, o aumento do número de oxidação. A reação de oxidação pode ser representada na forma de (ATKINS; JONES, 2012): A0 An+ + ne- (Equação 1) Na redução ocorre o ganho de elétrons, resultando na diminuição do número de oxidação. A reação de redução pode ser representada por (ATKINS; JONES, 2012): Bn+ + ne- B0 (Equação 2) 24 Os processos eletroquímicos podem ser classificados em galvânicos (espontâneos no sentido em que a reação está escrita) e eletrolíticos (não- espontâneos no sentido em que a reação está escrita). O processo galvânico ocorre em um dispositivo, chamado de célula galvânica, composta por dois eletrodos (cátodo e ânodo) e um eletrólito (condutor iônico), sendo comumente utilizada a água (ATKINS; JONES, 2012). Quando a célula galvânica está em funcionamento, o polo negativo é chamado de ânodo, e pode ser definido como o eletrodo no qual ocorre predominantemente a oxidação, que entrega elétrons ao circuito externo. O polo positivo, chamado de cátodo, é associado ao eletrodo no qual ocorre majoritariamente a redução, e que recebe os elétrons do circuito externo. Em um condutor iônico a corrente elétrica é estabelecida por meio do movimento dos íons (IUPAC, 2014; PILLA, 2010). Durante o funcionamento da célula galvânica, também chamada de pilha, há um fluxo duplo de íons em direções opostas que resulta no acúmulo de cátions, no cátodo, e de ânions, no ânodo. Esse acúmulo de íons gera uma diferença de potencial (ddp), entre os potenciais dos eletrodos da esquerda e da direita. A diferença de potencial gerada pela junção de duas soluções eletrolíticas, de composição diferente, é chamada de potencial de junção líquida (IUPAC, 2014). Para que ocorra o fluxo de íons é necessário que a pilha esteja em funcionamento, isto é, que o circuito esteja fechado com um fio condutor e um condutor iônico. O fluxo de elétrons pelo condutor externo, e o de íons pela solução, resultam na circulação de corrente elétrica, a qual pode ser utilizada para a geração de trabalho (PILLA, 2010). Para fechar o circuito é utilizada uma ponte salina, um dispositivo que conecta os compartimentos da esquerda e da direita, sendo composta por uma solução contendo íons inertes4 que permitem a passagem de corrente elétrica sem afetar a reação. A ponte é composta, normalmente, por um tubo de vidro, no formato de U invertido, com solução salina, com cátions e ânions com mobilidade iônica semelhante (ATKINS; JONES, 2012; TEIXEIRA JUNIOR; SILVA, 2015). As extremidades do tubo de vidro podem ser fechadas com lã de vidro, algodão, ágar-ágar ou outro material poroso que impeça a solução salina se misture com a solução dos compartimentos, mas que permita a troca de íons entre a ponte e as 4 Íons que não reagem com metais, nem com a solução (ATKINS; JONES, 2012, p. 841). 25 soluções eletrolíticas. A função da ponte salina é manter a neutralidade elétrica da célula, evitando o acúmulo de carga elétrica nos compartimentos da célula, o que impediria que a reação continuasse ocorrendo (ATKINS; JONES, 2012; TEIXEIRA JUNIOR; SILVA, 2015). Quando a pilha está em funcionamento, a presença da ponte salina evita o aparecimento do potencial de junção líquida. Porém, se os íons da ponte salina estiverem em desequilíbrio, o potencial de junção líquida dificulta o funcionamento da célula (PILLA, 2010). Nas células galvânicas, o movimento de elétrons no condutor eletrônico, ocorre no sentido do ânodo para o cátodo. No ânodo ocorre a liberação de elétrons e no cátodo o recebimento desses elétrons (ATKINS; JONES, 2012). Na Figura 1 é possível visualizar uma representação esquemática da pilha de Daniell, na qual não ocorreria reação, conforme mostra o amperímetro. Isto porque o voltímetro bloquearia a passagem de corrente elétrica, visto que possui, idealmente, resistência infinita, o que manteria a célula galvânica em equilíbrio. Figura 1. Representação de uma célula eletrolítica em equilíbrio. Fonte: Elaboração própria. Quando um fio condutor é adicionado à pilha, conforme mostrado na Figura 2, ocorreria a reação no modo galvânico, fato verificável por meio do amperímetro, que confirma a passagem de corrente. É possível observar na Figura 2 que a ddp medida 26 pelo voltímetro, diminui, quando comparada à Figura 1, pois os reagentes são consumidos conforme a reação ocorre, diminuindo assim a ddp da célula. O processo ilustrado na Figura 2 exemplifica o que ocorre durante o uso de uma bateria de celular, por exemplo. Comparando as figuras 1 e 2 também é possível observar a mudança na coloração da solução de sulfato de cobre (CuSO4), utilizada no cátodo. Esta mudança se deve ao fato de que a coloração azul é característica do íon Cu2+ (aq) em solução, sendo que conforme os íons Cu2+ (aq) transformam-se em Cu0 (s) metálico, a coloração azul torna-se menos intensa. A coloração azul da solução se deve a transições eletrônicas propiciadas pela presença de íons cobre(II) hidratados. No entanto, ao reduzir o cátion de cobre para cobre metálico, essas transições responsáveis pela cor da solução não são mais possíveis. Dessa forma, quanto mais íons cobre(II) são convertidos para cobre metálico, menos intensa fica a cor azul da solução. Outro detalhe importante da Figura 2 é o efeito da ponte salina na pilha. Conforme a reação se processa, cátions Zn2+ (aq) se acumulam no compartimento da esquerda, gerando um excesso de carga positiva. Se nada for feito, os elétrons passam a ser atraídos por essa carga positiva e a reação na pilha é interrompida. Por isso, é imprescindível a utilização da ponte salina. Os ânions presentes na ponte, no caso da figura o cloreto (Cl-(aq)), se deslocam para o compartimento da esquerda balanceando o excesso de carga positiva, permitindo que os elétrons reduzam o Cu2+ (aq) no compartimento da direita. O mesmo processo ocorre no compartimento da direita. Pois, ao reduzir Cu2+ (aq) a Cu0 (s) é gerado um excesso de carga negativa. O balanceamento é feito pelo cátion da ponte salina, no caso da figura o cátion potássio (K+ (aq)). 27 Figura 2. Representação de uma célula eletrolítica em funcionamento no modo galvânico. Fonte: Elaboração própria. Na eletrólise, para que a reação ocorra, é necessário aplicar uma corrente elétrica por meio de uma fonte externa, como uma bateria. A fonte externa deve fornecer um sobrepotencial5, que pode ser representado por η, à célula galvânica para que a reação inversa se inicie. Diferentemente da célula galvânica, na célula eletrolítica, os eletrodos localizam-se, geralmente, no mesmo compartimento e, consequentemente, na presença de apenas um eletrólito. Assim como no processo galvânico, majoritariamente, a redução ocorre no cátodo e a oxidação no ânodo. Entretanto, nas células eletrolíticas, o ânodo é associado ao polo positivo enquanto o cátodo associa-se ao polo negativo (ATKINS; JONES, 2012). Na Figura 3 visualiza-se a mesma representação esquemática de uma célula de Daniell, porém funcionando no modo eletrolítico, isto é, em processo de eletrólise. A presença de uma fonte de tensão externa, que fornece o sobrepotencial, possibilita 5 O sobrepotencial representa a energia extra necessária para forçar a reação do eletrodo a prosseguir na taxa necessária (THE ELECTROCHEMICAL SOCIETY, 2013). 28 a ocorrência da reação inversa da pilha, de modo que a corrente elétrica ocorre no sentido do cátodo para o ânodo. A fonte de tensão externa possibilita que a reação ocorra, visto que a espontaneidade depende das condições nas quais a célula se encontra. Isto é, na ausência de uma fonte de tensão externa, a reação ocorre no modo galvânico, no sentido do ânodo para o cátodo. Já na presença da fonte, a reação se reverte, de forma que o sentindo da corrente se altera, ocorrendo no sentido do cátodo para o ânodo, pois é fornecido o sobrepotencial para a reação ocorrer no sentido inverso. O processo ilustrado na Figura 3 é o que ocorre, por exemplo, ao se carregar a bateria do celular. Figura 3. Representação de uma célula eletrolítica em funcionamento no modo eletrolítico. Fonte: Elaboração própria. No processo retratado na Figura 3 é possível observar que a solução de sulfato de cobre (CuSO4) apresenta uma coloração azul mais intensa, comparada às soluções das figuras 1 e 2, proveniente da maior concentração de íons Cu2+ em solução. Por ser incolor, não é possível observar visualmente mudança na coloração 29 da solução de zinco, porém sua menor concentração pode ser verificada por um método analítico. Por fim, é importante salientar que as cores escolhidas para os átomos e íons nas figuras não pode ser interpretada como as cores reais dessas entidades. A função das cores é, única e exclusivamente, de diferenciar os elementos. Ademais, essas foram escolhidas de modo aleatório. 2. 2 Processo de ensino e aprendizagem de eletroquímica O processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos de eletroquímica foi organizado em três grandes subseções, as concepções alternativas (subseção 2.2.1), os obstáculos epistemológicos (subseção 2.2.2) e as implicações dessas duas vertentes para a dinâmica de sala de aula. 2.2.1 Concepções alternativas O ensino de química exige, normalmente, um alto nível de abstração para o entendimento dos conceitos e modelos. Entretanto, essa abstração pode gerar ou reforçar concepções alternativas, seja por erros conceituais, contextuais, falha na interpretação ou uso de analogias (VENTURI et al., 2021). Estudos da década de 1990 mostram que os estudantes são capazes de resolver questões quantitativas em eletroquímica, mas apresentam dificuldade nas questões qualitativas, que necessitam de maior conhecimento conceitual e envolvem relações entre os níveis macro e submicroscópico (OGUDE; BRADLEY, 1996). As concepções sobre um determinado conceito científico que divergem das concepções científicas historicamente estabelecidas e validadas são conhecidas como concepções alternativas, que podem ser definidas como ideias, originadas no senso comum, que os alunos utilizam como ponto de ancoragem para acomodar um novo conceito. A concepção alternativa resulta, normalmente, da associação errônea de uma concepção prévia ao conhecimento científico e pode ocorrer, dentre outras formas, durante o processo de ensino e aprendizagem. Dessa forma, é possível inferir que as concepções alternativas são geradas não apenas pelo cotidiano dos alunos, como também por meio do ensino formal e/ou livros didáticos (SANMARTÍ, 2009; SILVA JÚNIOR; DANTAS; FARIAS, 2017). As concepções alternativas podem ser caracterizadas, principalmente, por serem: I) estáveis e resistentes à mudança, podendo ser verificada em indivíduos que passaram por longos processos de escolarização; II) semelhantes entre pessoas de 30 diferentes: sexo, idade, formação ou país; III) implícitas e, geralmente, não verbalizadas; IV) fundamentas na utilidade prática, e não na consistência teórica. As concepções podem ser, ainda, classificadas como: sensorial, cultural e escolar. Na sensorial as explicações são atribuídas às atividades cotidianas, enquanto a cultural relaciona-se à natureza, ciência e tecnologia. Já a dimensão escolar está associada à explicação do professor e aos livros didáticos (POZO; GÓMEZ CRESPO, 2013). Nos assuntos relacionados à química, o nível de abstração necessário para entender teorias e modelos é elevado e as tentativas que o professor geralmente faz para simplificar o conteúdo, muitas vezes, é uma das fontes geradoras de concepções alternativas nos alunos, assim como os livros ou desenhos esquemáticos. Os conteúdos de eletroquímica requerem um raciocínio abstrato, principalmente na relação entre o macroscópico e o submicroscópico. Estudos como os discutidos no Quadro 1 buscam identificar quais as principais dificuldades, bem como as concepções alternativas e os obstáculos epistemológicos apresentados na literatura para alunos tanto no ensino médio quanto no ensino superior (VENTURI et al., 2021; VIEIRA et al., 2021). O quadro apresenta extratos de concepções alternativas de diversos trabalhos relacionados à área de eletroquímica. Um dos fatores que influenciam na construção e/ou reforço dessas concepções é a linguagem utilizada pelos professores. Um exemplo é se referir aos eletrodos com os nomes dos metais, ou até mesmo por suas cargas (VENTURI et al., 2021). Outro fator é relacionado à abordagem dos conteúdos nos livros didáticos. Um estudo verificou que a abordagem e as ilustrações utilizadas no ensino de eletroquímica nos livros poderiam gerar algumas concepções alternativas, como por exemplo a atribuição de posições específicas para cátodo e ânodo durante o ensino de pilhas (VENTURI et al., 2021). Quando as concepções alternativas geradas não são descontruídas, podem acompanhar o aluno da educação básica até o ensino superior, dificultando o entendimento de conceitos científicos de forma correta e impedindo-o de relacionar um conceito com os demais. No caso do ensino superior há uma preocupação ainda maior, visto que muitos graduandos se tornarão professores, que poderão trabalhar os conceitos de forma simplista, ou até mesmo equivocada, com seus alunos (VENTURI et al., 2021). 31 Com a intenção de identificar as concepções alternativas presentes nos alunos, Caramel e Pacca (2011) propõem duas questões envolvendo pilhas e eletrólise, com três itens cada. Essas foram trabalhadas com alunos do 3º ano do ensino médio, e do 3º ano dos cursos de licenciatura e bacharelado em química no ensino superior. As respostas foram analisadas por meio de duas categorias: conservação de cargas e circulação da corrente (CARAMEL; PACCA, 2011). A categoria relacionada a conservação de cargas foi subdividida em: I) transferência de carga sem conservação: não se considera que em uma reação química redox ocorre o balanceamento de carga nos reagentes e nos produtos; II) dois efeitos inicialmente separados que se somam: não considera o processo de oxidação e redução como um único fenômeno, entende-se que a reação consiste soma das equações de oxidação e redução; III) transferência de cargas “marcadas”: a igualdade no número de elétrons cedidos e recebidos não é devidamente associada ao equilíbrio de cargas no sistema; IV) perda da natureza da espécie: alguns estudantes relacionam a redução da espécie com a diminuição no número de elétrons e não na carga da espécie. Não se reconhece que em uma reação de redução, enquanto a carga da espécie diminui ocorre um aumento no número de elétrons (CARAMEL; PACCA, 2011). A categoria sobre a circulação de corrente foi subdividida em: I) a “energia” do sistema flui em dois sentidos: movimento dos íons associado à carga dos eletrodos, e não à carga dos íons presentes na solução dos compartimentos; II) corrente unicamente de natureza iônica: consideram apenas os íons provenientes da reação de óxido-redução, não sendo considerados os íons da dissociação que ocorre no eletrólito; III) origem da circulação/eletrólito inativo: as cargas resultantes da dissociação e do eletrólito são ignoradas; IV) elétrons em movimento na solução: a condução eletrolítica é associada apenas ao movimento dos elétrons e não dos íons (CARAMEL; PACCA, 2011). O trabalho de Caramel e Pacca (2011), evidencia que as mesmas concepções alternativas são encontradas em diferentes níveis de conhecimento, desde o ensino médio até o superior. Foi observada a dificuldade dos alunos com conceitos químicos, nos níveis: descritivo, funcional, representacional e explicativo, considerando que os alunos apresentam dificuldades nas representações dos processos de óxido-redução, além de termos como oxidação, redução e íons serem utilizados com sentidos que divergem das definições científicas (CARAMEL; PACCA, 2011). 32 Em outro trabalho, Pacca e colaboradores (2003) discutem as concepções alternativas dos alunos de ensino médio de uma escola sobre corrente elétrica, após observarem um experimento no qual uma lâmpada era acesa ao ser ligada à uma pilha por dois fios condutores. Os alunos foram convidados a desenhar a corrente elétrica de um trecho dos fios do experimento observado. Após análise dos desenhos, Pacca e colaboradores (2003) concluíram que nenhum dos desenhos demonstrava ser coerente com o modelo científico. Foram detectados termos utilizados em Física, porém sem a correta equivalência científica (PACCA et al., 2003). Para melhor análise dos desenhos, Pacca e colaboradores criaram categorias para conceituar as concepções de senso comum, sendo elas: I) energia, carga, força e eletricidade: termos usados indistintamente nas respostas dos alunos; II) duas correntes que se opõem: são atribuídas duas correntes, uma positiva e outra negativa, carregadas por fios diferentes; III) quebra de circuito: fluxo de cargas não inclui o filamento da lâmpada; IV) luz/faísca/curto-circuito: a luz é atribuída a uma faísca e/ou à uma descarga elétrica, sendo que de cada lado da lâmpada chega uma energia positiva e negativa que se equilibra, ou se anula, após um curto-circuito; V) expressões triviais sem significado aparente: termos científicos utilizados sem distinção, como força, eletricidade e energia, e utilização de palavras do cotidiano, como molinha, faísca e curto-circuito (PACCA et al., 2003). As categorias possibilitam localizar, especificamente, as falhas conceituais dos alunos, possibilitando assim maior enfoque do professor. Os materiais analisados demonstraram as dificuldades dos alunos em compreender a estrutura dos condutores, o interior da pilha e a circulação de energia elétrica, evidenciando as barreiras conceituais presentes na construção do conhecimento científico (PACCA et al., 2003). Barreto, Batista e Cruz (2017) desenvolveram uma pesquisa semelhante à de Pacca e colaboradores (2003), realizando experimentos de deposição química e eletrodeposição com alunos do ensino médio. Um dado importante nesse trabalho foi que, em uma entrevista realizada com os alunos, 92% afirmaram que seus conhecimentos são adquiridos durante a aula com o professor e que, apenas, 8% adquirem conhecimento químico por meio de livros didáticos. De acordo com os autores, os alunos têm dificuldade no exercício de abstração, de compreender além de uma visão macroscópica (BARRETO; BATISTA; CRUZ, 2017). 33 Já Venturi e colaboradores (2021) realizaram um trabalho com os alunos ingressantes no curso de licenciatura em química de uma universidade pública de Santa Catarina. Para o estudo, foi aplicado um questionário contendo quatro questões relacionadas à eletroquímica, para 25 alunos. Para análise de resultados foram utilizadas categorias baseadas em um levantamento sobre dificuldade, equívoco e concepção alternativa (DECA). A tabela utilizada pela autora foi compilada dos trabalhos de Garnett e Treagust (1992a; 1992b) e de Sanger e Greenbowe (1997a; 1997b) (VENTURI et al., 2021). Em uma parte adicional do questionário, na qual os estudantes podiam expressar suas opiniões, alguns alegaram que teriam receio quando fossem lecionar conteúdos relacionados à eletroquímica, dada a dificuldade em diferenciar conceitos, espécies oxidantes e redutoras, além de compreender a oxirredução. Essas dificuldades foram vivenciadas durante o aprendizado de eletroquímica, assim como problemas na interpretação de figuras e representações (VENTURI et al., 2021). O trabalho de Goes, Fernandez e Agostinho investigou as concepções alternativas presentes em um grupo de professores de química. Para a coleta de dados foi utilizado um questionário com onze questões dissertativas envolvendo conceitos como oxidante, redutor, eletrodo, pilha, célula eletrolítica, reações de oxirredução e ponte salina (GOES; FERNANDEZ; AGOSTINHO, 2016). Foram identificadas concepções alternativas como, a necessidade do oxigênio para ocorrência da reação de oxirredução, sendo que existem oxidantes diferentes, como o cloro e o íon permanganato. Ademais, nem toda reação com oxigênio é uma reação de oxirredução, pode-se tratá-las como reações ácido-base. Outra concepção alternativa verificada no grupo de professores consiste na associação errônea de que a ponte salina auxilia o fluxo de elétrons, sendo que o fluxo na ponte salina é de cátions e ânions, e não de elétrons (GOES; FERNANDEZ; AGOSTINHO, 2016). 34 Quadro 1. Extratos de concepções alternativas na área de eletroquímica (EM: Ensino Médio / ES: Ensino Superior). Referência Nível Avaliação Concepção alternativa Exemplos de frases dos alunos que representam as concepções Caramel; Pacca (2011) EM; ES 2 questões dissertativas com 3 itens cada “A energia é da pilha e está principalmente no pólo positivo. Alguns alunos também afirmam que é produto de uma reação química” “Não aparece a função de condutor de eletricidade ao longo de todo um circuito fechado” “O movimento de partículas, quaisquer que sejam elas, aparece interrompido quando encontra a lâmpada ou tem continuidade através do soquete metálico” “Um fio leva da pilha a energia positiva, que pode ser excesso de átomos, excesso de partículas e o outro fio leva a energia negativa, que pode ser excesso de elétrons, ou eventualmente leva menos partículas, menos energia” “O encontro das cargas que saem dos pólos de sinais opostos, que ocorre apenas no soquete, o qual faz a lâmpada acender” “O filamento da lâmpada não aparece como um fio condutor semelhante aos fios da ligação com a pilha; é o lugar em que, de algum modo, aparece luz” “As palavras força, eletricidade e energia estão presentes em todas as explicações, não transparecendo nenhuma distinção entre seus significados” “O movimento das cargas é da esquerda para a a direita” “Elétrons saem da parte negativa da bateria, atravessam a solução em direção à parte positiva” “A corrente elétrica é produzida através da passagem das cargas negativas de B (onde Ag está sofrendo redução) para A (onde Ni está sendo oxidado). “O pólo positivo sobe pelo fio do lado esquerdo da lâmpada e o pólo negativo sobe através do fio de cobre, pelo lado direito do fio da lâmpada; as duas se equilibram na molinha da lâmpada, fazendo-a acender (pólo positivo – prótons, pólo negativo – elétrons)” “Quando passa corrente, a lâmpada acende ou vai ocorrer uma radiação” Pacca et al. (2003) EM Desenhos após a realização de um experimento envolvendo eletricidade “Reação química faz eletricidade” “O positivo e o negativo, ao se encontrarem na lâmpada, causam um curto-circuito na molinha” “Acender a lâmpada é a energia que sai da pilha, uma “força” que vem de dentro” “É quando a energia negativa e a positiva se juntam, dão uma “descarga” na lâmpada e fazem com que ela acenda”. 35 Barreto; Batista; Cruz (2017) EM Desenhos após a realização de um experimento. Concepção alternativa macroscópica, na qual não são observadas as reações de óxido-redução, como a deposição do revestimento da prata no cobre e a condução do eletrólito. Venturi et al. (2021)6 ES Questionário com 4 questões dissertativas, com subitens “Estado de oxidação de um elemento é o mesmo que a carga do íon monoatômico desse elemento” “A eletricidade na química e na física é diferente, porque o fluxo da corrente ocorre em direções opostas” “Em uma célula eletroquímica, a ponte salina fornece elétrons necessários para completar o circuito” “A lista de potencial padrão de redução coloca a reatividade dos metais em ordem decrescente de cima para baixo” “Uma diferença de potencial entre dois pontos é exclusivamente devido a diferente concentração de carga nesses pontos” “Elétrons entram na solução pelo cátodo, viajam pelo eletrólito (e/ou ponte salina) e emergem no ânodo para completar o circuito” As concepções alternativas identificadas foram classificadas de acordo com as categorias DECA. Goes; Fernandez; Agostinho (2016) Professores do EM Questionário com 11 questões dissertativas “Necessidade do oxigênio para ocorrência da reação de oxirredução” “Ponte salina auxilia no fluxo de elétrons” As concepções alternativas verificadas foram destacadas separadamente da classificação das respostas, que foram categorizadas como certas, erradas ou parcialmente corretas. Fonte: elaboração própria. 6 O quadro completo sobre Dificuldades, Equívocos e Concepções Alternativas (DECA) encontra-se nos Anexos. 36 Em uma revisão sistemática da literatura realizada por Vieira e colaboradores (2021) com enfoque na aprendizagem de conceitos em Eletroquímica, de estudantes do ensino médio, foram considerados como critérios de seleção: I) periódicos relacionados à área Química que tenham Qualis/CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) de A1 a B5 na avaliação do quadriênio 2013 a 2016; II) periódicos da área de Ensino que tenham Qualis/CAPES A1 e A2 na avaliação do quadriênio 2013 a 2016; III) periódicos que o escopo permite a abordagem de conceitos químicos, considerando o processo de ensino e aprendizagem (VIEIRA et al., 2021). A partir dos critérios acima, foi realizado o levantamento em cinco periódicos: Química Nova, Química Nova na Escola, Caderno Brasileiro de Física, Enseñanza de las Ciencias: Investigaciones Didácticas e Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. Como descritores da busca foram utilizados termos como: aprendizagem, concepções alternativas, eletroquímica, ânodo, cátodo, pilhas, eletrólise, redox, oxirredução, ponte salina, reações químicas, Nox, íon, cátion, ânion, ddp, voltagem, corrosão, eletrodo, oxidação, redução, solução eletrolítica, redutor, oxidante, solução eletrolítica e condutividade elétrica (VIEIRA et al., 2021). Foram selecionados 156 artigos, sendo realizada a leitura do resumo, fundamentação teórica, metodologia e discussão dos resultados. A partir dos critérios de inclusão/exclusão obteve-se um corpus de 19 publicações que abordavam aprendizagem, aquisição de conceitos e/ou apresentavam contribuições para a aprendizagem de conceitos eletroquímicos em sala de aula (VIEIRA et al., 2021). Vieira e colaboradores (2021) apresentaram os resultados em duas categorias: dificuldades de aprendizagem e estratégias remediativas das dificuldades de aprendizagem. A primeira categoria inclui quatro subcategorias, das quais se destacam duas que se relacionam a este trabalho: inapropriação de conceitos químicos e incompreensão dos fenômenos (VIEIRA et al., 2021). A subcategoria inapropriação de conceitos químicos inclui: I) uso inadequado de conceitos científicos e de vocabulário específico da eletroquímica; II) ausência dos conceitos necessários para interpretação; III) dificuldades de desenvolver argumentos para justificar suas respostas; IV) abordagem inadequada dos conceitos químicos em livros didáticos. Já a subcategoria de incompreensão de fenômenos relaciona-se com: V) limitação na explicação do comportamento dos materiais; VI) explicações 37 macroscópicas aos conceitos; VII) incompreensão do papel dos íons nas transformações químicas (VIEIRA et al., 2021). Em seu trabalho sobre erros conceituais, Uehara (2005) associa as dificuldades dos estudantes a um tratamento superficial do conteúdo presente no livro didático. Além dos estudantes não possuírem o nível de abstração necessário para o entendimento de conceitos científicos, a simplificação dos conteúdos, com a intenção de facilitar o aprendizado, acaba prejudicando o aprendizado (BERLOTTI, 2011; UEHARA, 2005). Para Rosa e Schnetzler (1998) as concepções alternativas podem ser associadas à ausência de discussões aprofundadas nas aulas, à ênfase na visão empirista do conhecimento e à falta de uma relação explícita entre os níveis macroscópico e submicroscópico. Com base nos trabalhos mencionados acima, verifica-se a dificuldade dos estudantes com a eletroquímica, tanto no ensino médio quanto no ensino superior. A presença de concepções alternativas pode ser atribuída, entre outros fatores, ao material didático utilizado. Na próxima seção são discutidos obstáculos epistemológicos, os quais também podem interferir no aprendizado dos estudantes. 2.2.2 Obstáculos epistemológicos Gaston Bachelard, um filósofo do século XX, contribuiu para a ciência com a inclusão de termos como “fenomenotécnica” e discutiu os aspectos necessários para a formação do Novo Espírito Científico, nome do seu livro lançado em 1934. O filósofo introduziu também a noção de obstáculos epistemológicos, que se discute nessa seção (REIS, 2015). Para Bachelard o conhecimento é construído a partir da ruptura com o conhecimento anterior, ou seja, é necessária uma ruptura entre o conhecimento comum para alcançar conhecimento científico. Durante esse processo pode ocorrer a chamada anti-ruptura, associada a formação de obstáculos epistemológicos, que impedem a transposição entre o conhecimento comum e o conhecimento científico (REIS, 2015). Nos trabalhos desenvolvidos por Lopes (1992; 1993; 1996), foram realizadas pesquisas documentais sobre os obstáculos epistemológicos, baseada nos conceitos de Bachelard, presentes nos conteúdos de química dos livros didáticos. Lopes destaca que as teorias científicas têm caráter provisório, pois entende-se que a ciência 38 é um conhecimento humano, historicamente construído e validado que, pode ser revisto ou modificado sempre que um novo dado ou teoria são desenvolvidos. A construção de um novo equipamento, por exemplo, gera uma série de novas informações em nível fenomenológico que pode exigir a revisão de teorias vigentes (LOPES, 1996). A autora argumenta, ainda, que existem alguns problemas na transposição do conhecimento científico para o conhecimento curricular. Muitas vezes, as especificidades do conhecimento científico são ensinadas sem a possibilidade de promover a resolução de problemas, sendo transmitida sem origem ou perspectiva histórica, de forma transcendente ao tempo. Ao retirar os conceitos científicos do contexto histórico, além de restringi-lo a definições simplistas, pode-se gerar uma série de obstáculos que limitam a compreensão desses conceitos (LOPES, 1996). De acordo com Lopes (1992, p. 255), os obstáculos epistemológicos “são entendidos como entraves, inerentes ao próprio conhecimento científico, que bloqueiam seu desenvolvimento e construção”. Eles ocorrem quando o professor não entende por que o aluno não compreende determinado assunto. Nesses casos, os conhecimentos prévios do aluno não são considerados e a probabilidade de reafirmar os erros das concepções de senso comum é maior. Isso ocorre, pois na tentativa de simplificar o conhecimento científico e torná-lo acessível aos alunos, o professor pode distorce-lo até não haver mais relação com a ciência (LOPES, 1992). As principais classes de obstáculos epistemológicos são: animistas, realistas, verbais e substancialistas. Os obstáculos animistas são caracterizados pela atribuição de vontades e preferências, às espécies químicas, como por exemplo a “vontade” de receber elétrons, os “sentimentos” dos átomos e o “casamento” entre os elementos químicos (LOPES, 1992). Já nos obstáculos realistas há uma supervalorização do objeto, ou seja, o conhecimento é atribuído às características superficiais e propriedades. Tais obstáculos são verificados quando o racionalismo é pouco desenvolvido. Como exemplo, pode-se citar a ligação metálica, na qual as interações não são consideradas, de forma que um átomo de alumínio é considerado igual ao alumínio presente em barras do metal, sendo desconsideradas que as propriedades dos materiais apresentam relação direta com a organização em nível submicroscópicos (LOPES, 1992). O uso de termos científicos sem a devida distinção dos termos 39 comuns pode impedir a construção do conhecimento, além de formar conceitos errados, gerando assim obstáculos à abstração (LOPES, 1993). Lopes (1996) discute os obstáculos verbais, mais especificamente ao obstáculo relacionado ao potencial padrão de redução e a eletronegatividade. A eletronegatividade é associada a capacidade que um átomo possui em atrair elétrons, enquanto o potencial padrão de redução é associado à atração por elétrons. Dessa forma, muitos autores de livros didáticos relacionam a ordem crescente de potenciais padrão de redução à eletronegatividade (LOPES, 1996). Dificuldades como a descrita acima evidenciam o problema em retirar o conhecimento científico do contexto histórico, ao se ensinar a definição de eletronegatividade7, por exemplo, não é destacado que a tendência em atrair elétrons é estabelecida em uma situação de contorno específicas, ou seja, em uma ligação covalente, com uma única molécula isolada e no estado gasoso. Também não é ressaltado que a definição atual de eletronegatividade se aproxima da definição proposta por Linus Pauling, e não a proposta por Jöns Jacob Berzelius que se aproximava mais dos conceitos atuais de carga e dipolo (LOPES, 1996). O mesmo ocorre no conceito de potencial padrão, quando não é realçado que se trata de uma propriedade macroscópica e no equilíbrio, de forma que os valores estão relacionados apenas às espécies envolvidas na reação redox, e não à sua eletronegatividade. Esses valores são obtidos indiretamente, por meio da extrapolação de um gráfico composto pelos valores de potencias de eletrodo obtidos utilizando-se soluções diluídas da espécie em análise e, não por meio de uma medida experimental direta como afirmam diversos livros didáticos de Química (LOPES, 1996). Os obstáculos substancialistas relacionam-se à qualidade superficial, ou seja, é associado um conjunto de propriedades à determinada substância. Dessa forma não são consideradas as relações entre as substâncias, nem as propriedades resultantes dessas relações. Como exemplo pode-se citar a cor amarela atribuída ao metal ouro, 7 De acordo com a IUPAC (2014), “o conceito de eletronegatividade foi introduzido por L. Pauling como a capacidade de um átomo numa molécula atrair elétrons”.Para os átomos A e B, a escala mais utilizada é baseada nas energias de dissociação (Ed) em eV, sendo definida apenas as diferenças entre as eletronegatividades, visto que os valores são adimensionais. χ𝑟,A − χ𝑟, B = √ 𝐸𝑑(𝐴𝐵) 𝑒𝑉 − 1 2 𝐸𝑑(𝐴𝐴)− 𝐸𝑑(𝐵𝐵) 𝑒𝑉 Onde χ𝑟 representa a eletronegatividade definida por Pauling. 40 desconsiderando-se dessa forma a variação de cores que ocorre de acordo com a espessura da lâmina do metal, ou no tamanho de partícula (LOPES, 1993). Em seu trabalho, Bocanegra (2010) analisa obstáculos epistemológicos presentes em livros didáticos de química aprovados Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM)8. O autor exemplifica o obstáculo verbal na análise do trecho de um livro: O potencial elétrico de uma pilha é sua capacidade de deslocar elétrons através de um circuito fechado externo que pode realizar trabalho. Essa capacidade é denominada potência, ou diferença de potencial (ddp), entre os polos (SANTOS et al., 2007, p. 654). O uso inadequado do termo diferença de potencial como equivalente à potência elétrica dificulta a compreensão dos conceitos abordados no livro, mesmo que as definições corretas sejam discutidas posteriormente. No mesmo livro é possível encontrar outros obstáculos verbais, como em “No caso da palha de aço, o ferro passa do metal para a solução. Essa reação pode ser representada pela equação: Fe(s) → Fe2+ (aq) + 2 e-" (p. 650). Ao discutir o processo de oxidação da palha de aço em uma solução de sulfato de cobre (CuSO4), não é enfatizado que são os elétrons que são transferidos para interface metal-solução, e não o ferro (BOCANEGRA, 2010). Na análise de um outro livro didático, Bocanegra (2010) identifica um obstáculo verbal na abordagem do potencial das pilhas, como no trecho: Para conhecermos os valores dos potenciais eletroquímicos dos diversos eletrodos, é importante a escolha de um eletrodo-padrão que possa ser comparado com os demais. [...] É necessário observar que o potencial obtido para o zinco é exatamente o potencial eletroquímico (Eo) de oxidação do metal em questão (BIANCHI et al., 2005, p. 492). No trecho acima o termo potencial eletroquímico é associado como equivalente ao conceito de potencial de eletrodo. Não é discutido que o potencial químico atua no processo de difusão no transporte da espécie química, enquanto o potencial elétrico relaciona-se com o processo de condução da espécie em questão. Dessa forma, o potencial eletroquímico é composto pelos processos de difusão e condução das espécies químicas, no transporte das espécies carregadas. Isto é, os conceitos de potencial eletroquímico e potencial do eletrodo não são equivalentes (BOCANEGRA, 2010). Também não é discutido que os valores dos potenciais são relacionados às 8 Hoje em dia o PNLEM foi extinto, sendo suas premissas incorporadas no PNLD (Plano Nacional do Livro Didático). 41 espécies, e não ao eletrodo. O valor do potencial refere-se ao par redox metálico, isto é, de uma espécie quando associada à outra (LOPES, 1996). Em relação aos obstáculos realistas, Bocanegra cita como exemplo os procedimentos de medida da diferença de potencial do eletrodo, nos quais é comumente utilizado um eletrodo-padrão ou o eletrodo padrão de hidrogênio (EPH), porém, não são discutidos os limites das medidas realizadas. Como por exemplo, pode-se citar o livro dos Santos et al. (2007, p. 656), uma imagem exemplifica a medição do potencial elétrico de uma pilha, utilizando-se um voltímetro. Entretanto, não é discutido que medição realizada se refere à, como é chamada no livro, força eletromotriz. Vale ressaltar que esse termo também pode ser considerado um obstáculo realista, visto que o conceito não representa uma força, sendo característico dos processos eletrolíticos que envolvem carga e descarga (BOCANEGRA, 2010). Já o obstáculo substancialista é verificado quando é atribuída uma propriedade à espécie química, como no caso da água. No material analisado pelo autor, as propriedades são determinadas pelos átomos que compõem a água, hidrogênio e oxigênio, e não pela interação dos átomos entre si (BOCANEGRA, 2010). Conforme discutido acima, na tentativa de facilitar o entendimento do conhecimento científico, obstáculos epistemológicos podem ser gerados por meio de simplificações, comparações sem o devido embasamento científico, personificação de objetos inanimados, entre outros. Os obstáculos epistemológicos, assim como as concepções alternativas, podem gerar consequências para o processo de ensino e aprendizagem em eletroquímica, conforme discutido na próxima seção. 2.3 Consequências para o processo de ensino e aprendizagem O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) tem como objetivo avaliar, comprar e destinar os materiais didáticos, de forma gratuita, às escolas das redes municipais, estaduais e federais. As escolas podem escolher os materiais que mais se adaptam a seu contexto de trabalho, com a restrição de que esses tenham sido aprovados nas avalições pedagógicas desenvolvidas pela comissão técnica, organizada e instruída no PNLD, com gestão do MEC (BRASIL, 2023). As avaliações são realizadas seguindo como referência os critérios comuns e específicos para os componentes curriculares especificados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Após aprovação na avaliação pedagógica, o livro didático 42 é analisado quanto seus atributos físicos, se estão em conformidade com as exigências do edital e da legislação vigente (BRASIL, 2023). Para participar do programa, as obras são inscritas pelos autores, de acordo com os critérios do edital. O Guia Digital do PNLD é composto pelas obras aprovadas, e tem como objetivo auxiliar o corpo docente e diretivo das escolas na escolha do material a ser utilizado (BRASIL, 2023). O programa abrange os quatro níveis de ensino: ensino infantil, anos iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental e ensino médio. O decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, unificou as ações de compra e distribuição dos livros didáticos, além de ampliar o escopo, permitindo a incorporação de outros materiais didáticos, como softwares, jogos educacionais, materiais de reforço, entre outros (BRASIL, 2023). Já em relação ao ensino superior não há um programa de avaliação para os livros didáticos utilizados, de forma que sua qualidade não é verificada por um comitê de especialistas como realizado nos outros quatro níveis de ensino. Assim, não há um guia de consulta para discentes e docentes utilizarem como referência na escolha dos livros a serem utilizados. A ausência de um programa de análise da qualidade dos livros no ensino superior pode ser associada ao fato de que um dos objetivos do PNLD é analisar os livros didáticos que são distribuídos gratuitamente nas escolas públicas. No ensino superior, não ocorre essa distribuição. Os livros disponibilizados nas bibliotecas da instituição são escolhidos pela própria instituição. Considerando as consequências da presença de concepções alternativas e obstáculos epistemológicos no processo de ensino e aprendizagem, além da abordagem equivocada de alguns conceitos químicos nos livros didáticos, esta pesquisa pretende contribuir com o desenvolvimento de um material de análise para escolha dos livros utilizados no ensino de eletroquímica. Esse material de análise envolve não apenas os principais conceitos de eletroquímica, como também a análise da presença de concepções alternativas e obstáculos epistemológicos. No trabalho realizado por Freitas (2021), a autora desenvolveu e validou um checklist para analisar os principais conceitos de eletroquímica presentes nos livros didáticos do ensino superior. Este trabalho visa avançar nas discussões ao realizar uma atualização no checklist desenvolvido por Freitas (2021), a revalidação do instrumento, e o mapeamento dos principais livros didáticos recomendados como 43 referências bibliográficas básicas nos cursos de Química das universidades públicas do Brasil. A atualização visa incluir aspectos de ensino, como verificação da presença de concepções alternativas e obstáculos epistemológicos, além de rediscutir os conceitos de eletroquímica abordados inicialmente. Dessa forma, uma das etapas da pesquisa consistiu em um levantamento das universidades públicas brasileiras que oferecem os cursos de química aprovados pelo MEC. Por meio deste, foi possível obter as referências mais utilizadas no ensino de eletroquímica no ensino superior brasileiro. Vale ressaltar que os conceitos da eletroquímica estão presentes não somente nos livros de eletroquímica, mas também nos livros de química geral, por exemplo, que constam nessa lista. 2.4 Objetivos de pesquisa Considerando a ausência de um programa de análise dos livros didáticos utilizados no ensino superior e de um instrumento que auxilie docentes e discentes na escolha de um livro didático, este trabalho teve como objetivo geral: propor um instrumento para avaliar os conceitos de eletroquímica apresentados nos livros didáticos indicados como referências bibliográficas básicas para os cursos de Química das universidades públicas do Brasil. A partir do objetivo geral, foi proposto dois objetivos específicos, com o intuito de orientar e operacionalizar a pesquisa, são eles: I) mapear os livros indicados como referências bibliográficas básicas no ensino de eletroquímica das universidades públicas do Brasil, reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC); II) desenvolver um instrumento de análise dos conceitos de eletroquímica apresentados nos livros didáticos utilizando como base um checklist adaptado da pesquisa de Freitas (2021). 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 3.1 Justificativa, problema e questões de pesquisa O relato da dificuldade no processo de ensino e aprendizagem de assuntos relacionados a eletroquímica é muito frequente na fala de professores e alunos. Alguns autores da literatura especializada apontam como possíveis justificativas para essas dificuldades o fato de ser uma área que trabalha em uma fronteira que intersecciona conhecimentos de várias outras áreas como física, matemática, química 44 geral, entre outras. Ademais, exige o domínio prévio de teorias altamente abstratas, como os conceitos de átomos e elétrons, por exemplo. Somados a essas duas grandes problemáticas intrínsecas da própria natureza do conhecimento de eletroquímica, estão abordagens em sala de aula extremamente quantitativas, focando apenas no conhecimento operacional de cálculos; um ensino de eletroquímica ahistórico e de crescimento linear; a presença de erros conceituais, concepções alternativas e obstáculos epistemológicos nas falas dos professores e no próprio material didático. O problema se torna ainda mais preocupante ao ser constado, na literatura especializada, que livros referências de ensino superior, que servem de fonte de conhecimento na formação de professores e pesquisadores da área, apresentam uma série de erros conceituais e várias lacunas a serem preenchidas em relação ao conhecimento de eletroquímica (WHARTA; REZENDE, 2011; BARKE et al, 2009; SANGER; GREENBOWE, 1999; SILVERSTEIN, 2011; FERREIRA; GONÇALVES; SALGADO, 2021; MORTIMER; AMARAL, 1998; FREITAS, 2021; BARRETO, 2020; SILVA et al, 2016; CARAMEL; PACCA, 2011; SANJUAN et al., 2009; OGUDE; BRADLEY, 1996; SANTOS et al., 2018). A discussão do parágrafo traz um panorama que sugere que os problemas no processo de ensino e aprendizagem de eletroquímica são multifatoriais. Em específico, essa pesquisa focou no fato livro didático do ensino superior, uma vez que, não há um programa governamental que analise os livros didáticos utilizados no ensino superior. Por conseguinte, essa pesquisa tem como objetivo auxiliar o professor do ensino superior a desenvolver, de forma autônoma, a escolha e análise dos melhores livros a serem utilizados em suas disciplinas de eletroquímica. 3.2 Natureza da pesquisa Esta pesquisa seguiu os princípios teórico-metodológicos do método misto. Johnson, Onwvegbuzie e Turner (2007) definem o método misto como um estudo que combina conceitos e técnicas próprias das pesquisas quantitativas e qualitativas, com a finalidade de tornar a análise dos dados mais complexa e com menor falseabilidade. Para Tashakkori e Creswell (2007) a pesquisa de método misto pode ser definida como aquela na qual os dados são coletados e analisados, e sua inferências são extraídas por meio de métodos qualitativos e quantitativos em um único estudo. Yin (2016) destaca como características da pesquisa qualitativa ser aplicada em um contexto real, tendo o mínimo de interferências dos processos de pesquisa, e 45 a ausência do controle de variáveis. A pesquisa qualitativa possibilita a coleta de dados aberta, ou seja, uma análise interpretativa. A pesquisa qualitativa não exige que se tenha uma hipótese teórica a ser estudada e operacionalizada a priori. Ademais, não há uma preocupação de quantificação ou padronização das pesquisas. A proposta é analisar informações para produzir hipóteses explicativas e teorias. As generalizações são obtidas em um nível teórico (FLICK, 2013). Já na pesquisa quantitativa a análise é estatística, isto é, uma teoria que se tem um ponto de partida a ser testado. A análise qualitativa pode ser generalizada em um sentido teórico, ao contrário da quantitativa que é orientada estatisticamente para a população (FLICK, 2013). Uma característica fundamental da pesquisa quantitativa é a garantia de uma coleta de dados e uma análise que possa ser replicada e testada por outros pesquisadores, cumprindo critérios de confiabilidade, validade e objetividade (MOREIRA, 2011; FLICK, 2013). Dessa forma, o método misto apresenta características tanto da pesquisa qualitativa quanto quantitativa, tendo como uma de suas vantagens a combinação dos pensamentos indutivo e dedutivo em um único estudo (CRESWELL; CLARK, 2013). A escolha do método misto nessa pesquisa se fundamenta pela possibilidade de trabalhar dados de diferentes naturezas com técnicas distintas. Dessa forma, os dados oriundos do mapeamento dos livros utilizados para trabalhar conteúdos de eletroquímica em cursos de ensino superior, registrados no MEC, foram tratados em uma perspectiva predominantemente quantitativa. Já os dados obtidos dos especialistas que permitiram refinar o checklist, focou essencialmente em uma perspectiva predominantemente qualitativa. 3.3 Fontes de informação As fontes de informação utilizadas para a discussão dos conceitos fundamentais de eletroquímica foram documentos e sujeitos: I) Os documentos consistiram em livros didáticos do ensino superior e artigos, que permitiram desenvolver os aportes teóricos sobre eletroquímica e sobre o ensino de eletroquímica (concepções alternativas e obstáculos epistemológicos). Ademais, para o levantamento dos livros didáticos indicados nos cursos de química, foram 46 consultados os projetos político-pedagógico e ementas das disciplinas, disponibilizados no sítio eletrônico das universidades ou obtidos solicitação, via e-mail. II) Os sujeitos foram seis especialistas que avaliaram a precisão e validaram o checklist, esses são professores que ministraram aulas no ensino superior, constituído por três da área de eletroquímica e três da área de ensino de química. 3.4 Procedimentos de análise dos dados O checklist é um instrumento de controle composto por um conjunto de itens ou tarefas, que devem ser executadas ou analisadas. Pode ser entendido como uma lista de verificação, com a finalidade de garantir a objetividade, credibilidade e reprodutibilidade da avaliação (FREITAS, 2021). Neste trabalho o checklist utilizado foi baseado no instrumento de análise utilizado por Freitas (2021), que teve como referencial metodológico o trabalho de Leite (2002). Vale ressaltar que os dois trabalhos tratam da análise de livros didáticos. Segundo Leite (2002), o checklist é um instrumento adequado para auxiliar e direcionar a análise do conteúdo de forma qualitativa, visto que indica os itens que devem ser verificados durante a análise. Dado o interesse do trabalho desenvolvido nesse projeto, as categorias do checklist tratam da análise dos conteúdos de eletroquímica nos principais livros didáticos indicados como bibliografia básica nos cursos de química do ensino superior. Em seu trabalho, Freitas (2021) verificou que documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Química (BRASIL, 2001) e a Resolução CNE/CES 8, de 11 de março de 2002 (BRASIL, 2002), não especificam quais conceitos de eletroquímica devem estar presentes. Dessa forma, foram utilizados os livros Princípios de química: questionando a vida moderna e o meio ambiente (ATKINS; JONES, 2012) e Físico-química II: equilíbrio entre fases, soluções líquidas e eletroquímica (PILLA, 2010), além do Gold Book da IUPAC, para embasamento teórico dos conteúdos de eletroquímica. Relacionado ao instrumento de análise, o checklist foi construído com base no utilizado por Freitas (2021), porém além da redistribuição das categorias já existentes, foi inserida uma categoria adicional, relacionada aos obstáculos epistemológicos e concepções alternativas. Dessa forma, o checklist é composto pelas categorias: I) Contextualização Histórica da Eletroquímica; II) Conceitos Fundamentais de Eletricidade para a Eletroquímica; III) Conceitos Fundamentais da Química Geral para 47 a Eletroquímica; IV) Relação da Eletroquímica com a Eletricidade e a Termodinâmica Química; V) Conceitos relacionados às Células Eletroquímicas; VI) Problemas relacionados às ilustrações e esquemas; VII) Obstáculos epistemológicos e concepções alternativas. Nas categorias de 1 a 6, os itens podem ser classificados como “abordado”, “necessita revisão” e “não abordado”. A última categoria é a única a apresentar classificação diferente das outras, sendo os itens classificados em “sim”, “não” e “necessita revisão”. O objetivo da classificação dos itens é facilitar a visualização do quanto o livro didático atende aos conceitos analisados. Livros nos quais são predominantes as classificações “abordado” nas categorias de 1 a 6, e classificações “não” no item 7, seriam considerados como indicados para o estudo. Em contrapartida, livros com classificações predominantes de “não abordado” nas categorias de 1 a 6, e classificação “sim” na categoria 7, não seriam livros recomendados. Isso porque, além de não abordar os conceitos considerados fundamentais para o aprendizado de eletroquímica, ainda possibilita a admissão de concepções alternativas ao conhecimento. 3.5 Validação do Instrumento A utilização de instrumento de análise implica na necessidade de que o mesmo apresente a mínima interferência de julgamentos subjetivos. Utiliza-se a validação como forma de examinar a precisão de um determinado instrumento, com a finalidade de verificar como o instrumento de análise está sendo interpretado a cada aplicação (RAYMUNDO, 2009). Segundo Cunha, Neto e Stackfleth (2016), a validade é um dos principais critérios utilizados para verificar a qualidade de um instrumento, visto que identifica, utilizando um conjunto de evidências, se o instrumento está analisando o objeto de interesse. De acordo com Raymundo (2009) é realizada a validação da interpretação dos dados, obtidos por meio de um procedimento específico, e não necessariamente do instrumento em si. Dessa forma, cada aplicação do instrumento pode gerar uma interpretação dos resultados. Considerando que os itens presentes no instrumento de análise são abrangidos por um contexto educacional atual, a validação não é permanente, podendo ser alterada de acordo com as alterações curriculares. Vianna 48 (1989) salienta que o processo de validação não se esgota, podendo ser repetido mais vezes em um mesmo instrumento. A validação pode ser realizada por meio de três aspectos: conteúdo, critério ou construto. A validade de conteúdo verifica se o instrumento abrange todos os aspectos dos elementos relacionados a análise, de forma que esses aspectos não possam ser atribuídos a outros elementos. A análise é subjetiva, realizada por especialistas que verificam se os itens do instrumento possuem a mesma interpretação, e se são relevantes e pertinentes (RAYMUNDO, 2009). Na validação de critério, também chamado de desempenho, o intuito é verificar se o instrumento apresenta os melhores itens para uma atividade específica, a partir da relação entre medidas de desempenho. Esse tipo de validade pode ser classificado como preditiva ou concorrente. Na preditiva o critério é avaliado posteriormente ao instrumento, enquanto na concorrente o instrumento e o critério são avaliados simultaneamente (RAYMUNDO, 2009). A validação de construto permite verificar se o instrumento