1 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP AGENOR ALMEIDA FILHO CARACTERIZAÇÃO DA ESCRITA NO CIBERESPAÇO: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS EM SALAS DE BATE-PAPO BRASILEIRAS Araraquara 2011 2 AGENOR ALMEIDA FILHO CARACTERIZAÇÃO DA ESCRITA NO CIBERESPAÇO: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS EM SALAS DE BATE-PAPO BRASILEIRAS Orientador: Profa Dra Rosane de Andrade Berlinck. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara 2011 3 4 AGENOR ALMEIDA FILHO CARACTERIZAÇÃO DA ESCRITA NO CIBERESPAÇO: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS EM SALAS DE BATE-PAPO BRASILEIRAS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Sociolinguística. Orientador: Profa Dra Rosane de Andrade Berlinck Membros componentes da Banca Examinadora: ____________________________________________________________ Presidente e Orientador: Profa Dra Rosane de Andrade Berlinck Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho UNESP – Araraquara ____________________________________________________________ Membro Titular: Profa Dra Gladis Massini Cagliari Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho UNESP – Araraquara ____________________________________________________________ Membro Titular: Profa Dra Cristina Martins Fargetti Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho UNESP – Araraquara ____________________________________________________________ Membro Titular: Profa Dra Fabiana Cristina Komesu Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho UNESP – São José do Rio Preto ____________________________________________________________ Membro Titular: Profa Dra Joyce Elaine de Almeida Baronas Universidade Estadual de Londrina Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 A Deus. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que contribuíram de alguma forma para a realização deste trabalho. À dedicação da minha orientadora, Profa Dra. Rosane de Andrade Berlinck, que me guiou com firmeza e sapiência durante estes quase quatro anos de estudo e pesquisa, me apoiando, me iluminando, me dando força e motivação para perseverar nos momentos mais difíceis; Aos meus pais, Agenor Almeida (in memorian) e Iadine, por todos os sacrifícios feitos para que eu pudesse estudar, sempre me apoiando e incentivando; A minha esposa, Clêis, que, ao meu lado, soube compreender minhas dificuldades e aflições, incentivando-me a seguir em frente; Aos meus filhos, Bianca e Diego, que souberam compreender a ausência do pai, respeitando a minha vontade de perseverar em minhas pesquisas; Às verdadeiras amizades, muitas vezes sacrificadas diante de nossas atribuições cotidianas, em especial a Márcia Rostas, Honorina Simões, Niguelme, Linda Maria, Vilma Diniz, Suzana, Joelina e Auxiliadora. Companheiros que sempre me “socorreram” e muito me ajudaram durante o curso de doutorado; A todos os demais colegas do Doutorado, que persistiram na busca do conhecimento e desta importante conquista pessoal. Aos Professores da Faculdade de Ciências e Letras dos quais fui aluno e que deram grandes contribuições para o desenvolvimento deste trabalho, bem como aos integrantes da Coordenação do Curso, nas pessoas das Professoras Doutoras Rosário Gregolim e Márcia Manír. 7 Aos Funcionários do Departamento de Linguística e da Seção de Pós-Graduação que, sempre prestativos, me ajudaram nas dúvidas e atenderam minhas solicitações, em especial ao James, à Rita, à Carolina e ao Domingos. A um grande número de amigos que tiveram participação ativa na coleta de dados, envio ou participação nas conversas entre internautas ou em outra etapa não menos importante. Enfim, constituíram parte significativa desta obra, senão vejamos: Alanildo, Alberes, Aline Rodrigues, Álvaro Targino, Ana Beatriz, Ana Clara, Ângela, Camilla Helena, Carlos Magno, Carol Ribeiro, Ciro, Clarissa, Cristiane Jacinto, Eliane (DETEC), Eliúde, Ernane, Graça Sampaio, Guilherme Rostas, Ilza Galvão, Internautas Anônimos, Laércio Diniz, Leandro, Leonilson, Lucas, Lucielle, Luis Jorge, Maria José (Zezé), Marília Costa, Nilzenir, Raimundo Lobato, Rayssa Almeida, Valdir Mariano, Vera Pacheco, Wilson Pedro, Zuleica e a todos os outros que a memória não conseguiu resgatar. 8 A relação entre o pensamento da palavra é um processo vivo; o pensamento nasce através das palavras. Uma palavra vazia de pensamento é uma coisa morta. E um pensamento despido de palavras permanece uma sombra. A conexão entre ambos não é, no entanto, algo de constante e já formado: emerge no decurso do desenvolvimento e modifica-se também ela própria. L.S. Vygotsky 9 RESUMO A fala e a escrita constituem duas formas de comunicação entre os homens. Na intersecção de ambas, encontramos as salas digitais de bate-papo disponíveis na rede da internet. Nesse ciberespaço, a conversa on-line ocorre sob a forma escrita, exceto aos casos em que se utilizam o microfone. Nesse contexto, o objetivo desta tese é analisar se as formas escritas usadas nas salas de bate-papo por internautas falantes do Português Brasileiro de capitais das cinco regiões brasileiras (Florianópolis, região Sul; São Paulo, região Sudeste; São Luis, região Nordeste; Belém, região Norte; e Brasília, região Centro-Oeste) se assemelham ou se distanciam. A nossa hipótese é de que a escrita usada nesse contexto traz uniformidade na comunicação. Assim, quais são as convergências e divergências em relação à norma escrita nos textos de internautas, considerando-se as variáveis extralinguísticas? Para o questionamento, catalogamos formas divergentes e convergentes (focalizando processos como a acentuação, a abreviação, a onomatopeia, etc.) encontradas nas salas de bate-papo frequentadas por internautas de diferentes regiões do país, adolescentes e adultos, com e sem curso superior, de ambos os sexos. Neste trabalho, buscamos analisar as formas divergentes das salas de bate-papo adotando a noção de língua com base em Marcuschi (2008). O suporte teórico e metodológico é o da Sociolinguística. Com o corpus de pesquisa escrita em salas virtuais de conversas (chats), os resultados obtidos apontam que: 1) considerando as variáveis sexo e cidade, no que se refere aos adolescentes, verificamos uma equivalência entre o número de ocorrências verificadas em ambos os sexos. 2) considerando as variáveis sexo e cidade, no que se refere aos adultos, verificamos contrastes apresentados nas cidades de São Paulo e São Luis, em ambos os sexos; 3) na frequência de ocorrências por grau de escolaridade dos adultos, observamos que os paulistanos, os ludovicenses e belenenses com menor escolaridade recorrem muito menos ao uso dos processos divergentes em comparação aos informantes com nível superior; 4) nos textos produzidos pelos adolescentes são destacados dois recursos principais de uso: a) a abreviação, destaque no sexo feminino para maior ocorrência em Florianópolis, e para o sexo masculino, o destaque em Belém; e b) a onomatopeia como uso geral em todas as cidades pesquisadas; 5) nos textos produzidos pelos adultos, observamos um uso expressivo do recurso abreviativo, em geral, com altos índices pelos paulistanos, ludovicenses e brasilienses. Diante disso, é possível identificar um perfil dialetológico nesse meio de comunicação por tratarmos de falas regionais com maior emprego de um recurso e não de outro, com determinadas características como apresentadas nos dados e ocorrências desta pesquisa (conforme capítulo 4). Os recursos utilizados, por sua vez, de formas diferentes entre os sexos e as localizações geográficas do Brasil, demonstram singularidades geográfico-dialetais todavia apresentam uniformidade na forma escrita comunicativa pelo fluxo rápido que impõe a prática linguageira dos chats. Palavras-chave: Fala, Escrita, Ciberespaço, Comunicação, Sociolinguística. 10 RÉSUMÉ Parole et l'écriture sont deux formes de communication entre les hommes. À l'intersection des deux, on trouve le théâtre numérique chat disponibles sur le réseau Internet. Dans le cyberespace, la conversation en ligne se présente sous forme écrite, sauf dans les cas que l'utilisation du microphone. Dans ce contexte, l'objectif de cette thèse est d'examiner si les formes écrites utilisées dans les bavardoirs pour les internautes brésiliens capital de langue portugaise des cinq régions du Brésil (Florianópolis, région du sud, São Paulo, la région du Sud-Est, San Luis, Nord-Est; Bethléem, du Nord, et à Brasilia, le Midwest) sont similaires ou plus lointain. Notre hypothèse est que le script utilisé dans ce contexte apporte une uniformité dans les rapports. Alors, quelles sont les similitudes et les différences de la norme dans les textes écrits des utilisateurs d'Internet, compte tenu des variables extra-linguistiques? Pour la remise en cause, les moyens divergents et convergents catalogués (mise au point des procédés tels que le stress, l'abréviation, onomatopées, etc.) Trouvés à forums de discussion fréquentés par les internautes de différentes régions du pays, les adolescents et les adultes, avec ou sans diplôme d'études collégiales des deux sexes. Dans cet article, nous analysons les formes divergentes des salles de chat en adoptant la notion de langage à base de Marcuschi (2008). Le théoriques et méthodologiques de la sociolinguistique. Avec le corpus écrit dans les conversations des classes virtuelles (chats), les résultats indiquent que: 1) compte tenu du sexe et les variables de la ville, dans le cas des adolescents, nous avons trouvé un nombre similaire d'événements qui se produisent dans les deux sexes . 2) considérer le sexe des variables et de la ville, dans le cas des adultes, nous avons trouvé des contrastes présentés dans les villes de Sao Paulo et Sao Luis, dans les deux sexes, et 3) la fréquence d'occurrence selon le niveau d'éducation des adultes, nous avons observé que les Brésiliens le Belenenses ludovicense avec moins d'éducation et moins encore recourir à l'utilisation de procédures différentes par rapport aux répondants de l'enseignement supérieur, 4) dans les textes produits par des adolescents, deux caractéristiques principales sont indiquées pour l'utilisation: a) l'abréviation, en particulier chez les femelles fréquence plus élevée à Florianopolis, et pour les hommes, l'accent à Bethléem, et b) que l'onomatopée d'usage général dans toutes les villes étudiées, 5) dans les textes écrits par des adultes, nous avons observé une utilisation expressive de la court-métrage, en général, avec de hauts indices par São Paulo, Brasilia et ludovicense. Par conséquent, il est possible d'identifier un profil de dialectologie ce moyen de communication par les lignes de traitement régional avec une plus grande utilisation d'une ressource et non un autre, avec certaines caractéristiques, telles que présentées dans les données et les événements de cette recherche (le chapitre 4). Les ressources utilisées à leur tour de différentes manières les sexes et entre les différentes régions du Brésil, montrent des particularités géographiques et dialectal, cependant, montrent une uniformité dans la communication écrite en exigeant l'écoulement rapide des chats lingageira pratique. Mots-clés: parole, l'écriture, le cyberespace, communication, sociolinguistique. 11 LISTA DE QUADROS Quadro 1: fala versus escrita 57 Quadro 2: cultura oral versus cultura escrita 59 Quadro 3: fala e escrita apresentam... 60 Quadro 4: fala e escrita apresentam... 61 Quadro 5: Emotions 79 Quadro 6: Expressões com maior incidência na amostra 102 Quadro 7: Ocorrências Florianópolis 110 Quadro 8: Ocorrências São Paulo 113 Quadro 9: Ocorrências Brasília 115 Quadro 10: Ocorrências Belém 117 Quadro 11: Ocorrências São Paulo 119 Quadro 12: Divergentes – cidades/idade/sexo 121 Quadro 13: Divergentes – cidades/idade 123 Quadro 14: Divergentes – cidade/sexo 124 Quadro 15: Divergentes –média resultados cidades 124 Quadro 16: mensagem instantânea do chat 129 Quadro 17: Universo de ocorrências na amostra 131 Quadro 18: Distribuição de ocorrências considerando as variáveis sexo e cidade (Adolescentes). 135 Quadro 19: Distribuição de ocorrências considerando as variáveis sexo e cidade (Adultos). 136 Quadro 20: Distribuição de ocorrências considerando a variável Grau de Escolaridade (Adultos). 137 Quadro 21: Número de ocorrências por cidade /internautas adolescentes 138 Quadro 22: Número de ocorrências por cidade /internautas adultos 139 Quadro 23: Exemplos de formas de escrita divergentes com eliminação de vogais e/ou consoantes encontradas nos textos dos internautas adolescentes de ambos os sexos, de cidades das cinco regiões brasileiras 147 Quadro 24: Exemplos de formas de escrita divergentes com repetição de vogais e/ou consoantes encontradas nos textos dos internautas adolescentes e 153 12 adultos de ambos os sexos de cidades das cinco regiões brasileiras Quadro 25: Exemplos de onomatopeias encontradas nos textos dos internautas adolescentes de cidades das cinco regiões brasileiras de ambos os sexos 155 Quadro 26: Exemplos de eliminações de acento gráfico ou marcação alternativa do acento gráfico encontradas nos textos dos internautas adolescentes de cidades das cinco regiões brasileiras de ambos os sexos. 156 Quadro 27: Exemplos de trocas de letras encontradas nos textos dos internautas adolescentes, de cidades das cinco regiões brasileiras, de ambos os sexos. 157 Quadro 28: Exemplos de registros da oralidade encontrados nos textos dos internautas adolescentes de ambos os sexos de cidades das cinco regiões brasileiras 159 Quadro 29: Exemplos de rebus, símbolos, uso de maiúscula e sinais de pontuação 161 13 LISTA DE FIGURAS Figura 1: A explosão criativa dos quadrinhos de M. Cirne 93 Figura 2: Popeye de Segar e Sagendorf 93 Figura 3: Onomatopeias 94 Figura 4: Mapa indicativo-demonstrativo – cidades/ocorrências 109 14 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Variedades socioculturais ou diastráticas 52 Gráfico 2: Dados de ocorrências divergentes em adultos/adolescentes – Florianópolis 112 Gráfico 3: Dados de ocorrências divergentes em adultos/adolescentes – São Paulo 115 Gráfico 4: Dados de ocorrências divergentes em adultos/adolescentes – São Luís 117 Gráfico 5: Dados de ocorrências divergentes em adultos/adolescentes – Belém 119 Gráfico 6: Dados de ocorrências divergentes em adultos/adolescentes – São Luís 121 Gráfico 7: incidência de ocorrências das formas escritas divergentes encontradas no corpus/adolescentes 133 Gráfico 8: incidência de ocorrências das formas escritas divergentes encontradas no corpus/adultos. 134 15 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 17 2 RELAÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA ....................................................... 21 2.1 Oralidade, escrita e história ........................................................................ 21 2.2 As práticas de oralidade e letramento ........................................................ 26 2.3 Letramento e Alfabetização ........................................................................ 28 2.3.1 Concepções de letramento ............................................................. 29 2.3.2 Letramento não é alfabetização ...................................................... 33 2.3.3 As práticas de letramento e o objetivo do ensino de língua materna ................................................................................................................. 34 2.3.4 O Letramento Digital ....................................................................... 37 2.4 Ortografia ................................................................................................... 41 3. A COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL: PERSPECTIVAS TEÓRICAS .......... 48 3.1 Sociolinguística: o estudo da relação Língua-Sociedade ........................... 48 3.2 Em busca de uma identidade modal da fala e da escrita ........................... 56 4. O CIBERESPAÇO COMO UM NOVO ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO ....... 65 4.1 A comunicação na era da tecnologia digital ............................................... 65 4.2 Os gêneros textuais no/do Ciberespaço..................................................... 67 4.3 Os chats e suas implicações na fala e na escrita ....................................... 72 4.4 A escrita no Ciberespaço ........................................................................... 74 4.4.1 Abreviação ...................................................................................... 82 4.4.2 Onomatopeia .................................................................................. 89 5. O COMPORTAMENTO DA ESCRITA NO CIBERESPAÇO: divergências e convergências à norma padrão nas salas de bate papo ................................ 103 5.1 Contextualização do universo da pesquisa e coleta do Corpus ............... 105 5.2 Análise dos dados .................................................................................... 111 5.2.1 O papel dos fatores extralingüísticos ............................................ 111 16 5.2.1.1 Análise dos dados coletados em Florianópolis .......................... 111 5.2.1.2 Análise dos dados coletados em São Paulo .............................. 114 5.2.1.3 Análise dos dados coletados em Brasília................................... 116 5.2.1.4 Análise dos dados coletados em Belém .................................... 119 5.2.1.5 Análise dos dados coletados em São Luís ................................ 120 5.2.1.6 Considerações gerais acerca dos resultados obtidos ................ 122 5.2.2 Caracterização das formas escritas divergentes .......................... 127 5.2.2.1 Análise da Frequência de Ocorrências Divergentes na Escrita dos Adolescentes ......................................................................................... 142 5.2.2.2 Análise da Frequência de Ocorrências Divergentes na Escrita dos Adultos ................................................................................................... 144 5.3 Categorias mais recorrentes: a análise dos processos ............................ 147 5.3.1. Abreviação: ................................................................................. 148 5.3.1.1 Eliminação de vogais e consoantes: .......................................... 148 5.3.1.2. Repetição de vogais e consoantes ........................................... 154 5.3.1.3 Onomatopeias ............................................................................ 156 5.3.1.4. Eliminação de acento gráfico ou marcação alternativa do acento gráfico .................................................................................................... 157 5.3.1.5 . Substituição de consoantes e/ou vogais: ................................. 158 5.3.1.6 . Registro da oralidade: .............................................................. 160 5.3.1.7. Rebus, símbolos, uso de maiúsculas e sinais de pontuação .... 162 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 165 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 169 17 INTRODUÇÃO A homogeneidade linguística em um país é ilusória e muitas diferenças de pronúncia, gramática e vocabulário são observáveis entre os seus habitantes. Essas diferenças, como as formas de falar, são variantes linguísticas e podem ser típicas de certa região, faixa etária, de um determinado nível social e escolar, por exemplo. Assim, existe variabilidade linguística regional e/ou social. Se, por um lado, a fala tende à heterogeneidade, a escrita tende a ser mais homogênea e funciona como uma forma de neutralizar as diferenças encontradas na fala. A forma escrita, de acordo com Cagliari (1989), neutraliza as diferentes realizações de uma palavra oralmente, durante a leitura, de diferentes formas a depender da região, da faixa etária, da escolaridade de quem a lê. Apesar de possuírem características bem próprias, a fala e a escrita constituem duas formas de comunicação entre os homens (no último caso, somente para as culturas não ágrafas). A depender do contexto social em que estão inseridas, essas duas práticas encontram-se em extremos opostos ou podem aproximar-se a ponto de observarmos características de uma presente na outra. É nessa intersecção de fala e escrita que encontramos as salas de bate-papo. Em sua essência, são lugares virtuais nos quais pessoas de várias localidades, crenças, costumes se encontram para conversar. Diferentemente de um encontro entre amigos em uma praça, por exemplo, essa conversa, no ciberespaço, não ocorre sob a forma oral, mas sim sob a forma escrita (isso para os casos em que não se utiliza o microfone). Então, as conversas em salas de bate-papo possuem a dinamicidade de uma conversa real, mas com a particularidade de se realizarem por meio da digitação, o que torna essa escrita também particular. 18 Espera-se que, em uma conversa de sala de bate-papo, à semelhança de uma conversa real, peculiaridades linguísticas da região de origem do internauta, de seu nível de formação ou de seu sexo possam emergir. No entanto, é preciso perguntar o quanto dessas peculiaridades realmente emerge nesse contexto comunicativo, visto que a realização da conversa se dá pela forma escrita. Apesar de apresentar especificidades nesse meio de comunicação, a forma escrita tenderia a se manter relativamente uniforme entre as diferentes regiões do país, classes sociais e sexo, pois assim é o sistema de escrita do português, bem como de qualquer outra língua, e base dessa atividade. Diante dessas reflexões, esta pesquisa reflete sobre a escrita que está presente nas salas de bate-papo, visando evidenciar possíveis diferenças linguísticas regionais, devidas à faixa etária, ao nível de escolaridade e ao sexo do internauta. É possível identificar um perfil dialetológico nesse meio de comunicação? Apesar das salas de bate-papo constituírem um lugar virtual de atividade dialógica muito próxima da conversa oral, que revela particularidades linguísticas de seus atores, a hipótese do trabalho é de que a escrita usada nesse contexto (embora apresente características que lhe são muito próprias) traz certa uniformidade. Desse modo, os internautas, de diferentes partes do país, de diferentes idades e escolaridades, comunicar-se-iam perfeitamente. A nossa hipótese é, portanto, que essa comunicação só é possível justamente em função da uniformidade de escrita no ciberespaço. Para testar a nossa hipótese foram catalogadas formas divergentes e convergentes à grafia do Português Brasileiro (focalizando processos como a acentuação, a abreviação, a onomatopeia, etc.) encontradas nas salas de bate- papo frequentadas por internautas de cinco regiões do país, representadas por suas capitais, adolescentes e adultos, com ou sem curso superior, de ambos os sexos. Com esse procedimento metodológico, será possível contrastar as características da escrita de internautas com perfis regionais e sociais definidos e avaliar as possíveis diferenças e semelhanças entre essas formas escritas. 19 Neste trabalho, buscaremos analisar as formas divergentes à norma padrão do Português Brasileiro no ambiente das salas de bate-papo adotando a noção de língua com base em Marcuschi (2008). O autor assume que a língua é um sistema simbólico (ela é sistemática e constitui-se de um conjunto de símbolos ordenados), contudo ela é tomada como uma atividade sociointerativa desenvolvida em contextos comunicativos historicamente situados. Assim, “a língua é vista como uma atividade, isto é uma prática sociointerativa de base cognitiva e histórica.” (MARCUSCHI, 2008, p. 61) Partimos da consideração de que: a) marcas dialetais caracterizam falares de regiões diversas e falares diversos podem estar atrelados a diferenças de sexo, faixas etárias e graus de escolaridade; b) a língua se manifesta nas modalidades falada e escrita e a fala e a escrita possuem fortes relações entre si; c) o sistema de escrita do Português do Brasil (PB) é comum a todas as regiões brasileiras; e d) o internetês possui tanto aspectos da modalidade oral quanto da modalidade escrita. Tendo em vista os pressupostos citados acima esta tese irá investigar se há semelhança da língua oral com a forma escrita usada nas salas de bate-papo. Desta forma buscou-se apresentar características que sejam particulares a internautas de regiões diferentes, a determinada faixa etária, graus de escolaridade e sexo, quais são as convergências e divergências na escrita de internautas, considerando-se essas variáveis extralinguísticas. Para chegar a responder essa questão geral, organizamos essa tese em quatro seções. A primeira trata da relação fala e escrita, atentando-se para oralidade, letramento e letramento digital. Na segunda seção, discutimos a comunicação interpessoal sob perspectivas teóricas, destacando pressupostos da Sociolinguística e a busca de uma identidade modal da fala e da escrita. Na seção 3, enfocamos o espaço digital – o ciberespaço – como um novo espaço de comunicação, o chat como gênero (hiper-)textual, e as implicações do ciberespaço na fala e na escrita, com destaque maior para a 20 escrita. Na última seção, a quarta, apresentamos os dados da pesquisa para discutirmos o comportamento da escrita no ciberespaço, observando ocorrências de formas escritas de adolescentes e de adultos de cinco capitais brasileiras. Coletamos dados produzidos por meio de processos, como, por exemplo, uso de abreviação, onomatopeia, acento gráfico, marcas de oralidade, rebus, símbolos, letras maiúsculas, sinais de pontuação, entre outros. 21 2 RELAÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA Nesta seção, tratamos de dois aspectos importantes para esta tese, quais sejam: (i) oralidade e letramento e (ii) ortografia. Na primeira parte, focaremos a relação entre oralidade, escrita e história, a fim de destacar a língua na operacionalização da história, pela memória. Também focaremos a interação verbal por meio da fala, tópico em que a história encontra o seu lugar. Ainda, ressaltamos algumas diferenças entre letramento e alfabetização, focando, em princípio, em duas abordagens do letramento: modelo autônomo e modelo ideológico. Na segunda parte, discutimos questões da ortografia em uma visão da escrita como tentativa de representação da fala. 2.1 Oralidade, escrita e história Segundo Benjamin (1994, p. 224), a verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixar fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecida. Esse é um conceito de história que se concebe enquanto algo que se mostra rapidamente, por isso o autor usa a metáfora do relâmpago. Ela é uma aparição inesperada e veloz que os olhos apreendem somente se estiverem fixos na direção do seu surgimento, ficando perceptível somente uma imagem passageira, ou seja, que foi e não é mais, um movimento dinâmico irreversível. Dessa forma, a história para Benjamin não é um fenômeno imutável, mas dinâmico. Um movimento novo a cada instante. Diante das considerações, pergunta-se: qual é a relação entre a história e a língua? Língua e história estão intimamente relacionadas, uma vez que os homens que falam são os mesmos que produzem história. Pode-se dizer que a relação é de reciprocidade, pois língua e história se implicam mutuamente. Para pensar essa relação, seria fundamental recorrer ao conceito de memória, que se constitui enquanto representação coletiva da realidade, inserida em dois planos: o da conservação e o do esquecimento. É na memória 22 que as imagens são construídas e retidas, e é nela que essas mesmas imagens se revelam e se ocultam. A construção e a representação da história só é possível diante da capacidade do homem de criar linguagem e, por conseguinte, poder construir um sistema linguístico, estruturado em códigos e regras de funcionamento que sejam compreensíveis e operacionalizáveis pelos seus construtores/ usuários. Sendo assim, torna-se possível a interação verbal e social entre os sujeitos históricos, isto é, a ocorrência dos fatos históricos, sua construção e representação. É, portanto, a língua que operacionaliza a memória, condicionando a produção de imagens. A história, por sua vez, fornece as condições necessárias para a língua apropriar-se de significados e operacionalizá-los na própria história. E é assim que as imagens (representações) sobre a história e a língua vão surgindo e se ocultando, num jogo de memória e esquecimento. Cabe saber, agora, a relação entre a história e as modalidades da língua: a fala e a escrita. Numa relação de primazia, pode-se afirmar que a fala é a “amiga mais velha” da história, o que não desmerece, de forma alguma, o valor da escrita na produção e na conservação da memória histórica. São outros os problemas que aí se manifestam (MARCUSCHI, 2007). Antes de o homem passar a escrever, ele falou. Era só a fala. A fala constitui(u)-se num elemento fundamental no desenvolvimento da história. Ela é interativa, ou seja, sua natureza constitutiva fundamenta-se no diálogo. Não se pode pensar em fala numa perspectiva individualista, levando em consideração um único indivíduo desconectado do contexto social. Falar é interagir, é relacionar-se. Alguém poderia objetar argumentando que o monólogo é uma fala isolada, não social, e, portanto, haveria fala com um único indivíduo. Isso seria uma leitura apressada. 23 Como bem afirma Mikhail Bakhtin (1988, p.88): A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 1988, p. 88). Se Adão é a origem da espécie humana, como professa a fé cristã, Bakhtin o apregoa como origem “da primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado” (BAKHTIN, 1988, p. 88), assim, sendo ele, inicialmente, o único de toda a humanidade, ausente da relação dialógica alheia de todo o discurso. Com isso, falar pressupõe o eu e o outro, dois ou mais. Ao monologar, o indivíduo cria um outro “eu”, com quem ele interage. Tanto o “eu” como o “outro” encontram-se no mesmo indivíduo, mas não simultaneamente. Quando o “eu” fala, o “outro” desempenha a função de ouvinte, e vice-versa. Em outras palavras, o indivíduo desempenha uma dupla função: a de locutor e a de interlocutor. O monólogo só se torna possível pela criação de um interlocutor, que é visto como uma entidade linguística que substitui a presença físico-social de um interlocutor concreto. Sem essa criação abstrata que se realiza no próprio locutor, não seria possível o monólogo. Portanto, falar sempre exige a presença do “eu” e do “outro”, mesmo que o outro seja projeção do próprio eu, como é o caso do monólogo. E mais, a fala é adquirida socialmente, isto é, no contato com outras pessoas. Logo, o falante, ao monologar, está expressando uma forma e um conteúdo social. É na interação verbal – por meio da fala – que a história encontra seu lugar fértil para se realizar, pois a história é social por natureza. Mesmo 24 que se fale na história de um único indivíduo, ela não seria possível sem a atuação de outros sujeitos. Uma das principais referências que se pode fazer da relação entre fala e história é a epopéia, a qual se constituiu em um gênero eminentemente oral, isto é, fundado sobre a base da língua em sua modalidade falada. O Aedos grego contava a história do seu povo de forma magistral e encantadora, por meio da comunicação oral. Para garantir o êxito da narrativa, eram empregados todos os recursos possíveis. As técnicas da rima e da métrica, analisadas posteriormente na Arte Poética de Aristóteles, devido à sua cadência e sonoridade, associadas ao contar com entonação adequada, fluência, voz firme e agradável, garantiam a apreensão da “imagem” da história mítica da Héllade, e sua reprodução. A memória era indispensável. Benjamin (1994, p. 210) diz que a “memória é a mais épica de todas as faculdades”, em virtude de sua relação com a história e com a língua em sua modalidade oral. Por isso, Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era a musa da poesia épica. Para Le Goff (1990 [1924], p.130-131) a criação da escrita traz grandes inovações: a história passa a ser registrada em documentos (entendidos como os diversos meios e/ou materiais de registros escritos históricos), podendo ser conservada por mais tempo e reproduzida de um meio para outro. Conservação e reprodução, eis aí as duas grandes novidades que vão trazer sérias implicações sociais. A conservação escrita dos fatos históricos foi associada à ideia de objetividade histórica; enquanto a memória oral ficou associada à subjetividade e, portanto, à compreensão de falseamento da verdade, entendida sob a perspectiva da objetividade científica. Por isso, a escrita adquiriu um status de superioridade na história social e a narrativa oral ficou marginalizada. Segundo Ramos (2010, p.14-16), durante a Idade Média, por exemplo, a escrita era restrita à elite. Assim, o conhecimento histórico chegava ao povo apenas por meio da oralidade. A fala era acessível a qualquer 25 indivíduo, logo ele podia ter acesso à cultura, à história, ao conhecimento de seu povo e ao mundo por meio da narrativa oral. Nesse sentido, enquanto a escrita era privilégio de poucos, a fala democratizava o conhecimento histórico. O autor enfatiza que, no entanto, a possibilidade de reprodução de informações (maximizada pela invenção da imprensa) criou condições para uma progressiva expansão do acesso ao acervo cultural da humanidade e, sobretudo, para que um maior número de pessoas tivesse acesso ao texto escrito. Le Goff (1990 [1924], p.145) adianta que, mais tarde, no século XVIII, com o advento da industrialização, uma das metas era possibilitar o acesso da massa trabalhadora a procedimentos e técnicas de escrita. No entanto, tal massa se restringiu ao automatismo e à repetição das atividades, para atender às demandas do desenvolvimento do mundo do trabalho, sem a necessária reflexão sobre a escrita – procedimentos e técnicas – e sem refletir quais seriam as implicações e consequências de se aprender a escrever. Atualmente, uma das implicações na relação história, fala e escrita não se encontra no acesso à escrita ou na perda da memória oral, mas, sim no terreno ideológico. Segundo Bakhtin (1997, p. 96), “a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida”. Em outras palavras, a grande questão centra-se no terreno do discurso, isto é, o que está sendo veiculado pela tradição escrita e pela oral, quem está falando este discurso, de onde e por quê. Entender o que se fala (a partir dos temas de bate-papos), quem fala (jovens e adultos), e ainda o lugar de onde se fala (amigo(a), irmã(ao), desconhecido de quem fala, etc.) poderá possibilitar a compreensão da linguagem utilizada, considerando a relação que se estabelece entre língua e sociedade, e que não se resume a práticas tais como codificação/decodificação. 26 Também é necessário entender o como se fala e em que medida particularidades e semelhanças linguísticas refletem características do lugar social de quem fala. As práticas linguísticas observadas nas salas de bate- papo incluem, por exemplo, o uso recorrente de onomatopeias e abreviações; torna-se, assim, necessário levar em conta esses e outros aspectos. Discorremos sobre o assunto na seção 4. 2.2 As práticas de oralidade e letramento Investigar a relação entre fala e escrita perpassa por dois conceitos a elas associados: a oralidade e o letramento. Muitas são as discussões realizadas sobre essas duas temáticas. No entanto, pode-se colocar como questão central a discussão abordada pelos dois modelos de compreensão da relação entre oralidade e letramento: o modelo autônomo e o modelo ideológico descritos por Heath (1993) e Street (1984). O modelo autônomo de compreensão da relação entre oralidade e letramento é desenvolvido entre os anos 50 e 80 por sociólogos, antropólogos, psicólogos sociais. Esse modelo baseia-se na superioridade da escrita em relação à fala. A modalidade escrita da língua representa uma instância nova e mais evoluída na forma de organização do pensamento e da cultura da humanidade. O modelo autônomo, portanto, baseia-se numa perspectiva culturalista. Essa proposta entende a escrita como uma forma de ordenação simbólica do mundo independente da fala, e que se diferencia dela em sua estrutura, capacidade de percepção do mundo (cognição) e uso. Está evidente, portanto, uma visão dicotômica da relação entre letramento e oralidade. Letramento nessa compreensão confunde-se com alfabetização, decodificação. A abordagem da realização é de caráter eminentemente linguístico, uma vez que é entendido como letrado o indivíduo que sabe operacionalizar os códigos da língua; isto é, apropriar-se deles de forma a codificar e decodificar os signos verbais, realizando a leitura do sistema como 27 um todo, executando uma leitura exclusivamente intralinguística, uma leitura de caráter imanente. A codificação/decodificação, comprovação da alfabetização, é a prática de letramento. A oralidade, por sua vez, é concebida como a operacionalização do sistema fonológico e auditivo de modo a construir e compreender fonemas de uma dada língua. Há, aqui, também, o processo de codificação/decodificação, porém o nível é diferente do letramento. Este é exclusivamente visual, privilegiando a sensorialidade da visão, representado de forma gráfica, materializado pela escrita; enquanto que na oralidade o processo operacionaliza-se na materialidade do som, privilegiando o sistema fonador e o sistema auditivo, o processo de codificação/decodificação é exclusivamente acústico. A prática da oralidade é a realização da leitura de fonemas do ponto de vista da codificação/decodificação. O modelo ideológico de compreensão da relação oralidade e letramento, por sua vez, vai além da compreensão do modelo autônomo: enquanto o modelo autônomo funda-se em uma abordagem estritamente imanente da língua – concebendo a oralidade e o letramento enquanto práticas eminentemente intralinguísticas – o modelo ideológico, pelo contrário, extrapola o âmbito estruturalista da língua, relacionando oralidade e letramento com a dimensão social. Marcuschi (2001, p. 27) diz que, em contraposição com o modelo autônomo, Street (1984) propõe um “modelo ideológico”, que sugere a inserção dos estudos da relação fala e escrita no contexto das práticas de letramento e nas relações de poder que imperam em qualquer sociedade. Street (1984) trabalha o conceito de ideologia como um lugar de tensão, onde se encontram de um lado autoridade e poder, e do outro, resistência e criatividade. O autor se distancia do conceito mais frequentemente abordado pelos estudiosos, o marxista, no qual ideologia é compreendida como mascaramento da realidade ou falsa consciência. Para 28 Street, o estado de tensão se manifesta na língua em suas modalidades oral e escrita. A questão da relação entre oralidade e letramento sai do campo linguístico para ser discutida em um terreno mais amplo, o social. O que vai determinar a prática da oralidade e da escrita não é o processo de codificação/decodificação, e sim a leitura de mundo, a compreensão da ideologia materializada no texto escrito e oral. Saber operacionalizar oralidade e letramento é compreender o lugar de tensão, o locus onde se realiza a ação sócio-política; é saber atuar através dessas duas práticas sociais no mundo de modo a transformá-lo por meio dos discursos e das ações sociais. Portanto, oralidade e letramento não são simples processos de caráter linguístico, mas, sim, atividades que se fundamentam na relação entre língua e sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer que as marcas linguísticas no espaço de salas de bate-papo, na rede de computadores, são manifestações que resultam da relação língua e sociedade. São manifestações sociais materializadas por práticas de linguagem subsidiadas pela realidade, pelas intervenções pessoais, políticas. Ao optar por um código, um sinal, um grafema, no momento de digitação no ambiente virtual da sala de papo, a ação inscreve marcas que veiculam sensações, estados, momentos, ou seja, sentidos. 2.3 Letramento e Alfabetização A seguir, apresentamos alguns pontos teóricos sobre letramento e alfabetização, conforme autores renomados na área. Tratamos das duas noções enfocando o ensino de língua materna e a modernização digital. 29 2.3.1 Concepções de letramento De acordo com Neves (2003, p. 59-88), a sociedade contemporânea está fundamentada no processo de simbolização do mundo por meio da representação escrita. Sendo assim, saber ler e escrever são capacidades imprescindíveis para sobreviver em um mundo capitalista. A partir deste entendimento de Neves (2003), podemos questionar, diante dessa realidade que força o homem a assimilar os processos de escrita e leitura, o que significa ser um cidadão letrado. É o mesmo que ser alfabetizado? Conhecer os signos representantes da realidade externa ao homem basta, ou é necessário saber utilizá-los em situações reais de comunicação? Macedo (2000, p.84-99) enfatiza que existem várias abordagens de compreensão da concepção de letramento, a saber: abordagem acadêmica, utilitária, do desenvolvimento cognitivo, romântica e emancipadora. Para o autor, a abordagem acadêmica baseia-se na idéia de uma classe exclusiva de pessoas que detém o poder das letras. Estas são tidas como as capazes de ler e interpretar os cânones literários. Essa é uma visão elitista da capacidade de letramento, segundo a qual somente alguns podem ser letrados, os demais não tem essa capacidade, e, portanto, devem desenvolver outras capacidades, como a do trabalho manual. Há, aqui, o pressuposto da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Os trabalhadores manuais (operários) não são, não podem e nem devem ser letrados, ficando essa capacidade restrita aos segundos; estes vivenciam a realidade acadêmica, lendo, escrevendo, interpretando, analisando as letras e os números. No que se refere à abordagem utilitária, Macedo (2000) afirma ainda que essa se fundamenta no uso da língua para atender necessidades da sociedade. Desta forma podemos inferir que, neste sentido, letrado não é aquele que assimila os códigos da escrita, mas aquele que, após assimilá-los, pode atuar com esses códigos para atender necessidades na sociedade em 30 que vive. Portanto, o indivíduo letrado é aquele que aprende o código escrito para comunicar-se por intermédio da escrita, e ainda saber ler e compreender o que está escrito é o feedback deste mecanismo. Um exemplo usado pelo autor é o de escrever uma carta à mãe que mora distante e depois compreender através da leitura a sua resposta por meio de uma carta-resposta. Outro exemplo de uma pessoa letrada, segundo o mesmo autor, seria o caso do sujeito que sabe ler um mapa para se localizar numa cidade que desconhece. Em suma, podemos então perceber que, nessa abordagem, ser letrado é ser um indivíduo que compreende o mundo em que vive através do código escrito da linguagem. Já a abordagem do desenvolvimento cognitivo, segundo Mateus (2006), investiga o modo como os leitores constroem significados. O desenvolvimento da capacidade de leitura é entendido por essa abordagem como um processo puramente intelectual, cognitivo; pressupostos de ordem cultural não são investigados. Sendo assim, nesta abordagem, o processo de letramento não é uma prática sociocultural, mas uma elaboração mental do indivíduo. Desta forma, aprender a ler e escrever independe de fatores culturais, tais como o grupo social ao qual pertence o indivíduo, a interação social, dentre outros. Mateus (2006, p.56) enfatiza que basta apenas o indivíduo ter uma estrutura cognitiva que possibilite a realização da operação mental e desenvolverá, por etapas, a capacidade de letramento. Observamos, nesta forma de compreender o processo de letramento, que o indivíduo é isolado do mundo que o cerca. Ele nasce, e a partir daí, pela capacidade inata que provém de sua estrutura cognitiva, ele desenvolverá esta habilidade, na qual a inquirição constituída por perguntas e respostas seria o disparador de um gatilho para que viessem à tona estruturas cognitivas inatas já presentes, enquanto propensões e potências ativas, as quais são propriedades geneticamente determinadas do ser humano. Tal pensamento é distinto do que esperamos com relação ao processo estudado 31 nesta tese, uma vez que acreditamos que exista uma (inter)relação entre os sujeitos dentro do ambiente virtual. A quarta abordagem citada por Macedo (2000) é a romântica, que tem como fundamento básico a afetividade. O processo de letramento desenvolve-se numa atmosfera de carinho, amor, bondade. Basta ter esse clima de afetividade que o indivíduo conseguirá aprender a ler e escrever. Fatores cognitivos, sociais e culturais não são abordados. Desta forma, esta abordagem também não se configura como elemento que interage com os elementos desta pesquisa. Podemos afirmar que, independente do processo de afetividade, atmosfera de amor, carinho, bondade, o indivíduo que utiliza as salas de bate papo, se comunica de um modo igualmente eficiente. Por fim, a abordagem do letramento segundo uma perspectiva emancipadora, de acordo com Freire (2007, p. 35-36), é aquela que encoraja a reflexão crítica dos leitores sobre a ordem social. Freire (2007, p 56) afirma que: A estrutura capitalista da sociedade contemporânea condiciona a marginalização e exclusão dos indivíduos, produzida por uma avassaladora má distribuição de renda, o que leva ao processo de empobrecimento, mendicidade, desemprego, falta de moradia etc. A abordagem emancipadora do letramento fundamenta-se na crítica a essa (des)ordem social. Neste sentido, podemos afirmar que ser letrado não significa dominar os códigos escritos ou saber usá-los em necessidades cotidianas, mas saber usá-los para atuar como sujeito social e crítico na sociedade, compreendendo os processos político-sociais e agindo criticamente sobre eles como cidadão. Ser letrado nessa perspectiva é atuar politicamente como cidadão. Marcuschi (2007, p.21) define letramento como: um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas, ou seja, letramentos. 32 Ele adota, portanto, uma concepção de letramento emancipadora, como faz Freire (2002), uma vez que o autor relaciona o processo aos usos que dele podem ser feitos para atender a necessidades sociais. Para Marcuschi (2007, p.25) o letramento é um processo de aprendizagem, isto é, é um processo que precisa ser assimilado/construído pelo sujeito. Neste sentido, acreditamos que seja necessário um ambiente que forneça as condições necessárias a este processo de aprendizagem, em que a interação entre os sujeitos seja condição de possibilidades para a construção da prática de letramento. Para Soares (2004), o ambiente é fator de estímulo à prática de letramento. O sujeito inserido em uma realidade que possibilite a interação da exterioridade com a sua subjetividade poderá assimilar e construir mecanismos de leitura e escrita no âmbito cognitivo e social, ou seja, assimilar os signos linguísticos e usá-los nos mais diversos contextos. A interação do sujeito com o ambiente social pode influenciar as informações de que ele dispõe – isto em termos de acesso – e influenciar no processo de letramento antes que este sujeito venha frequentar um ambiente formal de letramento. Este fator é muito importante, uma vez que não é só a escola, enquanto uma instituição que formaliza a prática do letramento, que cria condições de assimilação e uso da escrita, mas muitos outros espaços, incluindo ai as salas de bate-papo. Ousa-se afirmar que, neste espaço, o indivíduo troque inúmeras informações, enriqueça seu vocabulário, estabeleça processos novos de elaboração formal da escrita que atendam a este espaço diferenciado de comunicação. Marcuschi (2007) também destaca, como vimos, a natureza social e histórica do letramento. Não se pode desvincular esta prática do contexto sócio-histórico em que ela está inserida e no qual é operada. Segundo o autor: 33 A prática do letramento está presente nos mais diversos contextos sociais em que se usa a língua escrita e falada como processo de comunicação e interação social, como, por exemplo, na família, escola, trabalho, sindicato, faculdade etc. Cada um desses ambientes exige do falante uma capacidade de uso da língua falada e/ou escrita para comunicar-se com o outro num processo de compreensão e interação social. No ambiente familiar, o indivíduo precisa da capacidade de letramento para ler e escrever um bilhete ou recado, ler jornal e revista, fazer uma lista de compras etc.; são inúmeras as atividades em que o sujeito faz uso das práticas de letramento, e isso em virtude de essas práticas serem um processo social que não se desenvolve somente em ambientes sociais formais (tribunais, fóruns, academias, imprensa jornalística, emissoras etc.), mas também em ambientes informais (ler um recado preso na geladeira). (MARCUSCHI, 2007, p.29) 2.3.2 Letramento não é alfabetização A alfabetização é um processo de aquisição da escrita que ficou atrelado ideologicamente à escola, condicionando o pensamento social à ideia de que não há alfabetização fora do âmbito escolar. Quando o indivíduo pensa em aprender a ler e a escrever, associado a essa ideia vem a representação espacial da sala de aula e a figura do professor. No entanto, podemos recorrer ao pensamento de Jung (2007, p. 78- 79) quando afirma que a prática de alfabetização como processo restrito e ambientado na escola não é uma verdade histórica e social, uma vez que ela pode ser desenvolvida em outros espaços sociais e com outros atores sociais, como, por exemplo, na família, em que o filho torna-se o alfabetizando e a mãe ou pai o alfabetizador. Segundo a autora, essa prática, por exemplo, ocorreu na Suécia, onde no final do século XVIII, 100% da sua população foi alfabetizada no ambiente familiar, motivada por fatores de ordem religiosa e questões relacionadas à cidadania. Ainda segundo Jung (2007, p. 80): como a alfabetização, a partir do século XX, passa a ser realizada exclusivamente pela escola, essa concepção de ser letrado está diretamente relacionada com o nível de escolaridade do indivíduo. 34 Assim, em conformidade com o pensamento da autora, a construção do ambiente formal de educação, no caso a escola, condiciona o pensamento à ideia de que letrado e alfabetizado é a mesma coisa. E que o letramento, bem como a alfabetização, só se dá por meio da escola. Nessa concepção, letrado, portanto, é aquele que aprende o código linguístico em um espaço formal destinado a esse fim. Neste sentido, quanto mais escolarizado é o indivíduo, mais letrado também o será. Para Soares (2004, p. 89), atualmente, para além da aprendizagem das habilidades básicas de leitura e de escrita, o letramento envolve o desenvolvimento, por todo e qualquer indivíduo, de “habilidades, conhecimentos e atitudes necessárias ao uso efetivo e competente da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita.” O processo de letramento, desse modo, pode alcançar níveis de situações cotidianas (planejar o que comprar nas férias, fazendo o orçamento, operando a relação custo-benefício) até situações que exijam níveis mais especializados da fala e da escrita (produção de um livro, apresentação de um projeto em uma empresa). Por conseguinte, a prática de letramento não está associada à alfabetização; sendo ou não alfabetizado, o sujeito pode ser letrado. É por esse motivo que Marcushi (2007, p. 25) diz que “letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz uso formal da escrita”. 2.3.3 As práticas de letramento e o objetivo do ensino de língua materna A escola, enquanto instituição social que visa desenvolver habilidades e capacidades no aluno durante o processo de ensino- aprendizagem, tem como principais objetivos saber o que se deve ensinar e como ensinar. A primeira questão detém-se no âmbito dos conteúdos, enquanto que a segunda, no âmbito da metodologia. Os conteúdos devem ser ensinados numa perspectiva contextualizada e significativa, isto é, devem ser selecionados de forma que 35 não fiquem isolados da realidade do aluno, devem ter relevância e poder contribuir para desenvolver as capacidades especificadas. Neste sentido, devem-se evitar os reducionismos, o que significa dizer que os conteúdos devem ser ensinados, mas não devem ser o foco do processo de ensino- aprendizagem. A metodologia consiste na forma como devem ser transmitidos os conteúdos de modo a serem assimilados ou construídos com eficácia. Método é o caminho para se chegar a um fim determinado, portanto, o método pode ser múltiplo, desde que alcance o seu objetivo. Neste contexto institucional escolar, em que se faz necessário pensar o ensino da língua materna, levando em consideração conteúdos e metodologia, é necessário que se pergunte: qual deve ser o objetivo do ensino da língua? Conteúdos e metodologias devem estar subordinados ao objetivo definido para se atingir quando se ensina uma língua ao aluno. Ao pensar nestes objetivos, o professor tem que estar ciente das novas modalidades e formas de relação do aluno com a linguagem, isto é, deve-se pensar também na linguagem virtual, no ciberespaço, no internetês. Neste contexto, as práticas de letramentos devem permear todo o processo de desenvolvimento da capacidade de uso da leitura e escrita que envolve os domínios tradicionais da língua e os novos domínios derivados do advento da informática. Segundo Bagno (2002, p. 52), deve-se propor, então, um ensino de língua que tenha o objetivo de direcionar o aluno a adquirir um grau de letramento cada vez mais elevado, isto é, desenvolver nele um conjunto de habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam o maior e mais eficiente uso possível das capacidades técnicas de ler e escrever. O ensino de língua na contemporaneidade não pode mais se respaldar somente no ensino de gramática, pois este paradigma já foi rompido com o desenvolvimento dos estudos pragmáticos da língua. O paradigma atual 36 é a língua em uso, ou seja, a análise linguística deve focar seus estudos na língua em funcionamento, considerando a apropriação que o falante faz do sistema linguístico e da forma como ele utiliza esse sistema na sua interação social em contextos reais de comunicação. O conceito de letramento como prática de uso da leitura e escrita se justifica na nova forma de se pensar o ensino da língua, que visa ao uso social da linguagem em situação real de comunicação. Sendo, desta forma, a concepção adotada para as análises neste trabalho: O que se quer afirmar é o fato de a linguagem se realizar em qualquer espaço e suporte, embora, o contexto, o espaço, o suporte sejam importantes para o funcionamento linguístico. Uma situação que exija um grau maior de formalidade, mais tensa, requer uma prática de letramento para esse ambiente social. Em contrapartida, o contexto menos formal e menos tenso já exigirá outra prática de letramento. O importante é desenvolver as capacidades e habilidades de leitura e escrita para uso em diferentes contextos sócio-comunicativos. Os conteúdos devem estar subordinados aos objetivos do ensino que tem como base o desenvolvimento das capacidades e habilidades de ler e escrever, isto é, as práticas de letramento em contextos reais. Por isso, não se admite que as seleções dos conteúdos levem apenas em consideração as teorias gramaticais tradicionais que apregoavam que o ensino da língua devia se basear nos conteúdos das gramáticas normativas. Com isso, não se está afirmando que o ensino da gramática normativa é inútil, mas que precisa ser revisado de forma que se articule com as situações comunicativas reais. Os conteúdos devem ser pensados também em uma perspectiva pragmática, isto é, devem ser selecionados tendo como critério contextos diversificados de uso da língua, fato que descarta o conteúdo de ensino da língua na perspectiva formal como o único meio válido e que, portanto, deve ser ensinado nas escolas. 37 Conteúdos de situações informais de comunicação social devem também ser aproveitados pela escola, uma vez que o letramento não é delimitado exclusivamente em ambientes formais, mas está presente nos informais. Por isso, devem-se utilizar/abordar conteúdos como linguagem coloquial, diferenças dialetais, gírias, lexias regionais. Nesse contexto, os chats são veículos de comunicação possíveis e válidos de trabalhar em sala de aula para explorar questões linguísticas que envolvem práticas de escrita dos alunos. O ambiente escolar precisa valorizar e trazer para efeito de benefícios na aprendizagem a realidade do aluno moderno. Sabemos que mesmo aqueles que não tem acesso a um computador em casa, podem encontrar na escola espaços para a utilização dessa mídia. No que tange à metodologia aplicada ao ensino de língua que visa ao desenvolvimento de práticas de letramentos, ela tem que viabilizar o processo de uso da língua em contextos reais de produção. Neste sentido, a interação social em sala de aula entre docente e discente adquire uma importância fundamental, pois permite que o aluno utilize a fala e a escrita para dialogar e expressar sua opinião e construir, na discussão, sua concepção de mundo e sua postura sociopolítica em relação à realidade. Portanto, a metodologia deve pautar-se no uso efetivo da língua em práticas de letramento que possibilitem o desenvolvimento de comportamentos sociolinguísticos diversificados para contextos diferentes. 2.3.4 O Letramento Digital Do que foi exposto nas seções anteriores, ressalta-se que é adotada neste estudo a concepção de letramento enquanto prática social de uso da leitura e da escrita. Acrescenta-se a essa visão a ideia de que no ambiente virtual é construída uma nova forma de uso da língua. Tendo esses dois pontos em vista, chega-se à necessidade de pensar a relação entre práticas de letramento e a leitura, assim como o uso da escrita em ambiente virtual. 38 As práticas de letramento devem levar em consideração as novas formas de interação com a língua e os novos espaços em que ela opera. Com o desenvolvimento da tecnologia informatizada, a linguagem sofreu várias modificações em sua forma, conteúdo, veículo e uso. Um novo espaço formou- se, definido em um plano imaterial, que denominamos neste estudo “ciberespaço". O ciberespaço é um novo lugar no qual a língua é utilizada para a comunicação, de forma dinâmica, ultrapassando barreiras físicas, distâncias geográficas e temporais. Nesse novo contexto de comunicação, o internauta busca reproduzir a velocidade da conversação fazendo uso de diversos recursos linguísticos, caracterizados por uma forma mais dinâmica, abreviada dos itens lexicais, por diferentes construções , apropriando-se de siglas, onomatopeias, abreviaturas etc... no corpo do texto. Bagno (2002, p. 55-56) reporta-se a este fenômeno diferenciado de comunicação ao afirmar que a tela do computador se tornou em novo portador de textos (e de hipertextos), suscitando novos gêneros, novos comportamentos sociais referentes às práticas de uso da língua oral e escrita. Desta forma, podemos afirmar que o uso do computador possibilitou ao homem novas formas de se comunicar e romper barreiras espaciais, um mundo que não é concreto no sentido de ser sensível, palpável, mas o é, por ser a concretização da comunicação. Embora o ciberespaço se constitua a partir de uma estrutura virtual, isso não significa dizer que o ambiente onde se processa a linguagem entre os internautas, neste caso, falantes nativos de sua língua materna e até de uma segunda língua, seja uma ilusão. A virtualidade, longe de ser uma ilusão, é real: é um mundo “desmaterializado”, no sentido de que não existe um território concreto, geográfico, palpável em que as informações são veiculadas. É neste espaço virtual que o processo de interação linguística vai ocorrer, e onde os falantes e a linguagem transformam-se em entes virtuais. 39 Intenta-se através desta exposição a respeito deste espaço esclarecer que, embora o ambiente seja diferenciado, o processo de comunicação entre os falantes usuários das salas de bate papo concretiza-se, e isso é real. Podemos até afirmar que alguns usuários destas salas de bate-papo podem projetar avatares que representem quem eles gostariam de ser. Trata- se de uma forma diferente de se apresentar a amigos de grupos distintos e ser aceito a partir de qualidades e comportamentos que não possuem. Esse fenômeno é interessante e fundamental para compreender as interações no ciberespaço. Determinado falante pode conversar com outro em uma sala de bate papo, ambos possuem um nome, características, nacionalidade, preferências, que os identificam, porém nada comprova a veracidade desses falantes no mundo real; eles podem não existir empiricamente, sendo uma criação virtual de um indivíduo real. Todavia ressaltamos que este espaço é comumente usado também por pessoas que se conhecem, e este meio de comunicação pode se configurar somente em mais uma forma de manter contato independentemente de espaço físico. O texto que é produzido em um ambiente virtual dentro das salas de bate-papo é a projeção da fala. Por ser um espaço descontraído e que oportuniza de alguma forma a troca de informação com a interação de ambos os falantes, diferentemente de um e-mail, um texto escrito é produzido por alguém que escreve e recebido por outra pessoa quase que imediatamente. Esta forma de comunicação se dá em tempo real, situação que se configura como se sujeitos de produção escrita estivessem sentados lado a lado ao amigo, batendo papo. Nessa prática virtual, eles não usam o som da fala, mas o representam no texto escrito. Sendo assim, a “fala virtual” utilizada nas conversações constitui-se em um texto misto que possui características da fala e da escrita. Esse é um fenômeno distinto na história: um texto que mescle fala e escrita simultaneamente. A “fala virtual” se materializa em um texto escrito, porque se organiza estruturalmente na forma escrita, utilizando-se do código alfabético 40 escrito e suas regras de combinação para formar sequências de signos, que darão origem aos enunciados, textos e discursos. E é um texto falado porque se utiliza da estrutura da fala, uma vez que se representam as palavras da forma coloquial, utilizando-se de gírias, onomatopeias; porque é marcado pela espontaneidade, pela sincronia. Neste sentido, a “fala virtual” não pode ser definida como a modalidade escrita da língua, porque possui características da fala, porém não pode ser definida como modalidade da fala, porque possui características da escrita; estamos diante de uma nova forma de pensar as modalidades da língua como atuantes na criação de um novo gênero, de natureza virtual (LIMA; SANTIAGO, 2009, p.950) As práticas de letramento não devem deixar de lado o mundo tecnológico e digital; antes devem participar ativamente desse novo espaço de interação que se ambienta no ciberespaço. Os conteúdos e metodologias devem ser elaborados tendo em vista a linguagem virtual. O hipertexto, os links, as homepages, as hipermídias podem ser materiais e objetos de estudo para viabilizar um ensino de língua que atenda às transformações sociais e tecnológicas. Os indivíduos devem desenvolver práticas de letramento que visem ao uso do internetês nos mais diferentes microespaços virtuais, tais como Orkut, Facebook, MSN, Skype, e-mail, bate-papos, sites, programas e ferramentas, etc. O desenvolvimento das capacidades e habilidades de uso da língua no meio virtual é atualmente uma necessidade social; portanto, faz-se necessário que, durante o processo de ensino-aprendizagem, ensinem-se práticas de letramentos que visem à construção de comportamentos linguísticos que atendam ao contexto virtual, como, por exemplo, saber utilizar um site para preencher um currículo padrão de uma empresa e pleitear a uma vaga nesse estabelecimento empresarial. 41 2.4 Ortografia Segundo Dubois et al (2004, p. 445-446): O conceito de ortografia implica o reconhecimento de uma norma escrita com relação à qual se julga a adequação das normas que realizam os indivíduos que escrevem uma língua; a ortografia supõe que se distinguem formas corretas e formas incorretas numa língua escrita, contrariamente à grafia, que não implica a referência a uma norma gramatical. Em princípio, na escrita de referência fonológica tenta-se representar a língua oral. Se esta última fosse representada fielmente por uma sequência unívoca de signos alfabéticos, não haveria senão problema de grafia, de transcrição, e não problemas de ortografia. Desta forma, poderíamos afirmar que a ortografia consiste no sistema correto de escrever as palavras de uma língua definida a partir de um conjunto de regras que estabelecem o uso adequado de letras e outros símbolos escritos. Porém, como bem retratado pela citação acima, “na escrita de referência fonológica tenta-se representar a língua oral”; acreditamos que seja esta a abordagem mais relevante para as discussões que motivam este estudo: o “embate” entre as normas ortográficas e uma visão da escrita como tentativa de representação da fala. A base da ortografia está composta por uma série de convenções estabelecidas de antemão por uma comunidade linguística com o objetivo de manter e "respeitar" através do tempo a unidade da língua escrita. A razão pela qual a ortografia resulta do estabelecimento de convenções está alicerçada no fato de que não há sempre uma correspondência unívoca entre o som e a grafia de um termo. Por outro lado, parte-se da ideia de que desde sempre existiu uma quantidade importante de línguas no mundo inteiro e que os critérios utilizados para fixar estas convenções não são os mesmos para cada língua; ou seja, cada uma observará suas próprias convenções. Em línguas, como o caso do Inglês, em que não há autoridade máxima para mudar as regras (embora dicionários como o Oxford tenham 42 grande influência sobre o uso geral), a ortografia reflete um critério etimológico, de modo que a pronúncia fica cada vez mais separada da representação gráfica. Segundo Cagliari (1999), o objetivo em se estabelecer a ortografia das línguas é neutralizar as variantes linguísticas e evitar que cada sujeito escreva da forma que fala e vice-versa. O autor afirma que, ao universalizar e padronizar o conhecimento da escrita, a ortografia evita o preconceito linguístico e abre “caminho para a leitura em qualquer variedade dialetal” (CAGLIARI, 1994, p. 558). Para Cagliari (1999), embora a ortografia surja para amenizar os problemas da “variação linguística” entre os usuários da escrita de diversas regiões, a nossa sociedade tem a crença de que a ortografia das palavras refletirá na sua pronúncia correta. Com a ortografia, a presença das variantes da fala na escrita foi reduzida e as relações entre letras e sons passaram a ser definidas pela ortografia, e não pelo princípio alfabético ou acrofônico1. O surgimento de novas tecnologias, especialmente a Internet, tem afetado todas as áreas da vida. A web está neste hiato entre o presente e o futuro, um espaço rico em assuntos e recursos, sendo que tal fato não pode ser desprezado em qualquer estudo que seja. Ao tomarmos uma amostra de anúncios, notas, intervenções em fóruns, etc., onde se pode analisar a linguagem espontânea usada na internet, observam-se desvios ortográficos unidos a abreviaturas da linguagem, 1 Acrofonia – princípio de transcrição segundo o qual a constituição de uma escrita silábica ( que nota a sílaba por um único sinal gráfico) foi feita a partir da escrita ideográfica (na qual o sinal gráfico representa uma palavra), atribuindo-se ao ideograma o valor fônico da primeira sílaba da palavra por ele representada (DUBOIS et al, 2004, p. 18). 43 ausência de concordância e, por vezes, supressão de sinais de pontuação. Estes exemplos fazem com que muitos textos sejam verdadeiros exercícios de interpretação da língua. No conceito de Castilho (2000, p.42): língua é um sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam, permitindo que expressemos uma idéia, uma emoção, uma ordem, um apelo, enfim, um enunciado de sentido completo que estabelece comunicação. Portanto, baseado nas ideias de Castilho (2000), a língua, pelo que ela representa, é o objeto principal deste estudo. Não pela discussão em torno da possível emergência de uma nova língua, que venha a existir a partir do uso do ciberespaço como ambiente de comunicação. Como já afirmamos anteriormente, essa é uma questão complexa, que não abordaremos diretamente. A língua é o objeto primeiro deste estudo, fundamentalmente, por aquela que acreditamos ser sua função primordial e razão de sua existência – permitir a interação e, por meio dela, a comunicação. A escrita impulsionou mudanças na época da sua criação que permanecem até os dias atuais. Hoje, grandes avanços em várias esferas da sociedade se dão principalmente devido às tecnologias de informação e comunicação. A era da tecnologia digital implica em novas formas de agir na sociedade, as relações se ampliaram; no passado, as interações eram basicamente face a face, no presente, a interação ocorre também através do computador. A conexão simultânea dos atores de comunicação a uma rede traz uma relação nova que implica em novas formas de ler, escrever, pensar e aprender. As mensagens eletrônicas instantâneas têm sido de grande importância para a comunicação humana. Este instrumento surge na tentativa de produzir uma conversação "face a face" com a outra pessoa; no entanto, 44 mesmo com ajuda de teclado e outros elementos como a web cam, tal desejo constitui-se difícil de realizar. Relacionando essas questões ao nosso estudo, as mensagens instantâneas representam um complicador para um ensino pautado na gramática normativa e na norma ortográfica. A simplificação da palavra escrita, a adição de ícones, os novos sentidos dados às palavras, todas essas características acabaram por fazer parte das "distorções" das manifestações linguísticas presentes nesse tipo de mensagem. As redes sociais também se tornaram cúmplices neste fenômeno, pois os usuários querem sentir confiança, falar coloquialmente, sem um atrelamento à norma padrão. O uso destas ferramentas é tão grande que as expressões são deixadas à vontade dos usuários, incluindo na escrita o seu modo de falar. Eles intencionalmente escrevem com "k" ou "z" para se destacar dos outros e fazer da escrita algo pessoal e divertido ou até mesmo fazer uso da representação fônica com finalidade de imputar brevidade à comunicação, à semelhança da fala, pela economia de letras, sem no entanto abrir mão do som. Hoje, se torna cada vez mais comum o diálogo virtual; a comunicação mediada por computador “virou mania” entre a população que tem acesso à Internet, pois é um meio muito eficaz, rápido, com um menor custo que um telefonema, por exemplo, e, também, agradável de se comunicar. Esses meios são adotados especialmente pelos jovens e adolescentes, por conta do grande grau de interatividade. A conversa em tempo real com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo tornou-se um novo mundo de possibilidades e acesso a outros olhares da vida. Segundo Amaral (2003, p. 41): A linguagem adotada no mundo virtual requer habilidades de escrita rápida para esta geração net, o que cria uma solução intermediaria [entre fala e escrita] de comunicação, provocando muita preocupação aos estudiosos da linguagem. 45 A forma de escrita no ciberespaço é um modo bastante irreverente, pouco formal, sendo muito mais próxima à usada na forma oral com uma forte semelhança com as conversas telefônicas ou com as interações verbais diretas. O chat torna-se, então, veículo de expressões subjetivas. A respeito disso, Othero (2002) nos afirma que: Por ter um alto caráter de interatividade, as salas de bate-papo (os chamados chat rooms ou somente chats) logo se tornaram uma verdadeira mania na Internet. Através desses chats, é que se tornou possível ´conversar´, em tempo real, com uma pessoa em qualquer parte do planeta através do computador. Um meio de comunicação no qual o discurso empregado revela um processo de subjetivação (OTHERO, 2002, p. 53) A grafia utilizada nas salas de bate papo tem aparência mais econômica e chamativa; uma maneira mais moderna e heterogênea de refletir a visão de mundo do escritor (ou teclante) em suas expressões coloquiais. Contudo, para outros, uma realização repugnante e violadora da norma culta. Embora haja divergências contundentes acerca do uso ou não da linguagem das salas de bate papo, devemos perceber que esta é uma ferramenta capaz de adaptar-se a ambientes diferentes de comunicação. Ou seja, as vantagens da prática linguística no espaço virtual são a independência de distintos dispositivos (Skype, Orkut, Facebook, Quepassa, Badoo, Skoob), o rápido fluxo de comunicação e a circulação de informações. As salas de bate-papo constituem oportunidades para o usuário mesclar marcas da oralidade na escrita. O ambiente de comunicação sincrônica é como uma teia em que o locutor está interagindo com vários interlocutores como no encontro face a face. A escrita virtual e a escrita informal não podem ser vistas de forma separada, como se ambas existissem em contextos totalmente isolados. Assim como a fala está atrelada geralmente a escrita no que tange a sua 46 representação, os diferentes recursos utilizados para escrita se articulam e (inter)relacionam. Na internet, embora o texto seja escrito, traduz uma linguagem da oralidade, que na atualidade, tem um papel no ensino de língua. Este fato pode ser identificado no texto integral dos Parâmetros Curriculares Nacionais quando afirmam que: a questão não é falar certo ou errado e sim saber que forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa (BRASIL, 1997, p.27). Portanto, aprimorar essa capacidade é uma forma de ampliar o relacionamento com o mundo, e a língua portuguesa, falada ou escrita, é sempre um elemento fundamental deste intercâmbio de experiências. Assim, fala e escrita não constituem efetivamente espelhos uma da outra e a relação entre elas está longe de ser unívoca e transparente. A depender da prática social em que a atividade de escrita está inserida, pode estar bem próxima da língua falada, como acontece com os bilhetes escritos entre amigos ou ainda com as mensagens trocadas nas salas de bate-papo. Por outro lado, uma conversa formal entre duas pessoas importantes socialmente pode apresentar um formalismo exacerbado que só se encontra em textos escritos no padrão formal. Mas a diferença que existe entre a língua escrita e a língua falada pode ser compreendida se se considerar, entre outros aspectos, a principal função da ortografia, que, de acordo com Cagliari (1998), é neutralizar a variação linguística no nível da pronuncia. Além disso, não se pode esquecer que, sendo um bem público, a escrita é objeto de controle social; já a fala, como um bem particular, está mais suscetível a sofrer mudanças por aqueles que dela se utilizam (TERRA, 1997). 47 Considerando que todas as línguas apresentam variações dialetais, escrever a mesma palavra de diferentes formas, visando construir uma perfeita sincronia com a fala, tornaria a modalidade escrita bastante complexa, o que poderia dificultar o processamento dos textos escritos e, consequentemente, o próprio processo de comunicação. Assim, cabe à ortografia neutralizar todas essas variações dialetais no nível da pronúncia da palavra e apresentar uma única forma de escrita, que deverá ser lida pelo leitor de acordo com o seu dialeto (CAGLIARI, 1998; MATEUS, 2006). De acordo com Cagliari (1998), é impraticável achar que existe uma ortografia fonética. A variação linguística é neutralizada pela ortografia, que esconde a real pronúncia da palavra. Não podemos ignorar, contudo, que dados de aquisição da escrita mostram perfeitamente uma forte influência da fala. Em fases iniciais de aquisição da escrita, a criança, por ainda desconhecer as regras ortográficas, escreve orientada pela forma como ela fala. Assim, temos, nessa fase do processo, formas escritas que constituem verdadeiras transcrições fonéticas como, por exemplo, eraumaveiz, dirrepente, caza. (MATEUS, 2006). No entanto, o processo de letramento levará o aprendiz a rever essas formas, e substituí-las por aquelas autorizadas pela norma ortográfica. Assim, em síntese, pode-se afirmar que a escrita não tem um compromisso de registrar tudo o que é dito pelo falante. Ela não tem, pois, um objetivo fonético. Caberá a ela registrar aquelas realizações que são de fato distintivas para a língua. Realizações orais que não contribuem para a efetiva organização do sistema fonológico não são contempladas. 48 3. A COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL: PERSPECTIVAS TEÓRICAS A principal forma de comunicação entre os homens se dá pela língua que se materializa via fala. Além da comunicação oral, algumas sociedades contam com outra forma de comunicação: a escrita, produto da evolução cultural (MARCUSCHI, 1997). O que se pode afirmar, portanto, é que a comunicação humana pode ocorrer de duas formas: pela modalidade falada ou pela modalidade escrita. A depender do uso de cada uma delas, ambas podem apresentar características e usos que as colocam em extremos opostos ou em uma relação em que se confunde fala e escrita. Tendo em vista que fala e escrita estão estreitamente relacionadas ao uso na prática social, faz-se necessário empreender uma discussão sobre a Sociolinguística, área da Linguística que tem por foco as relações entre língua e sociedade. 3.1 Sociolinguística: o estudo da relação Língua-Sociedade A primeira consideração a ser feita é que o uso do termo “Sociolinguística” é, de certo modo, redundante, uma vez que, no entendimento dos sociolinguistas, não existe língua dissociada de sociedade. Quando se emprega o termo Linguística já se está falando de uma língua que se relaciona inerentemente à sociedade. Foi mantido o termo Sociolinguística, em virtude do seu uso corrente por parte dos teóricos, mas sob a ressalva de que sendo a língua um fenômeno social, a Linguística e a Sociolinguística devem ser consideradas como termos sinônimos de uma mesma ciência que estuda a língua sem desconectá-la da sociedade (LABOV, 2008). Preti (2003, p. 12) afirma que: entendida como manifestação da vida em sociedade, o estudo da língua pode ligar-se à sociologia, abrindo-se, a partir daí, campos novos de pesquisa, em especial o da sociolinguística. 49 Para o estabelecimento da Sociolinguística, enquanto disciplina, foi necessária a sua articulação com a Sociologia. Antoine Meillet foi o precursor dessa concepção, articulando as ideias linguísticas com as teorias do sociólogo Émile Durkheim, introduzindo, por conseguinte, o conceito de língua enquanto fato social. Portanto, é essa abertura que a Linguística faz para possibilitar uma relação interdisciplinar com as ciências sociais (sociologia, antropologia, etnologia, etc.) que condiciona o surgimento de uma nova concepção de língua, entendida por um prisma social. Neste contexto de rompimento do núcleo duro (estrutural) da língua, entendida por muitos teóricos enquanto estrutura imanente, o movimento de saída em direção à exterioridade linguística, por meio de uma abertura interdisciplinar, é que surge a sociolinguística enquanto uma epistemologia que relaciona língua e sociedade (ROBINS, 1981, p.38-40). De acordo com Lucchesi (2004, p. 50): Essa contradição entre plano social da língua e o plano do indivíduo falante (abstraído de suas relações sociais) se perpetuará ao longo do desenvolvimento do estruturalismo linguístico, constituindo um dos pontos cruciais a ser atacado pela ruptura epistemológica implementada pelo modelo teórico da sociolinguística variacionista, na década de 1960. Segundo esse modelo teórico, longe de aceitar passivamente a estrutura da língua, o indivíduo atua sobre essa estrutura, consoante à maneira como está inserido no contexto social. Assim, pautada no princípio de que a língua não pode ser dissociada da sua dimensão social, uma vez que ela é usada por indivíduos que não vivem isolados no mundo, mas sim mantêm uma relação de interdependência social entre si, a Sociolinguística Variacionista promove uma ruptura com a corrente estruturalista saussuriana. Não se objetiva negar a relevância do modelo teórico de Saussure, que compreende a língua enquanto sistema. A língua é, de fato, um sistema em que os componentes estão inter-relacionados numa relação de solidariedade linguística. Todavia a língua não se isola na sua estrutura interna 50 ou intralinguística, ela transfere-se para a estrutura extralinguística, isto é, a dimensão social. Deve-se pensar, segundo Lucchesi (2004), em uma relação dialética entre língua e sociedade. Alguns podem pensar que a língua sofre uma ação passiva na sua relação com a sociedade, entretanto isso seria um engano. Existe entre ambas uma relação dialética, isto é, elas se implicam mutuamente. A língua sofre ação da sociedade, em virtude de mudanças na conjuntura histórico-político-cultural, mas, também, age sobre ela como instrumento ativo de transformação. O processo é um movimento em que língua e sociedade se constroem mutuamente numa dialética constante. Segundo Mollica (2004, p. 9), a Sociolinguística é: uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos linguísticos e sociais. Esta ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em especial os de caráter heterogêneo. A Sociolinguística relaciona os aspectos linguísticos aos aspectos sociais para compreender quais são as implicações nessa relação. Neste tipo de abordagem, o dinamismo social é visto como fator condicionante das variações e transformações na estrutura da língua. A língua deve ser estudada nessa perspectiva não como um objeto “em si e por si”, todavia como resultado da interação entre língua e sociedade; logo as variações e transformações que ocorrem no sistema linguístico têm condicionantes de caráter linguístico e social. O objeto de investigação da Sociolinguística não é a língua enquanto entidade ou instituição abstrata que existe só ao nível do pensamento, mas a língua enquanto realidade concreta, usada nos seio das comunidades de fala. Então, o que deve ser observado, estudado e descrito é a língua em sua realização empírica pelos usuários concretos que a operam em suas ações sociais; em outras palavras, é a fala – a parole nas palavras de Saussure (1970 51 [1916]) –, suas variações e transformações que são objeto de estudo da Sociolinguística, quer sejam em nível diatópico (ou geográfico), diastrático (ou social), diafásico (ou situacional), diacrônico (ou histórico). Como afirma Mollica (2004, p.10), a Sociolinguística considera em especial como objeto de estudo exatamente a variação, entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser descrita e analisada cientificamente. Essa área focaliza, portanto, os seus estudos na variação linguística, pois entende a língua como sistema heterogêneo. Apesar de não existir uma correlação direta entre extensão territorial e diversidade linguística, há que se considerar relevante o fato de o Brasil possuir grande extensão territorial, com área de 8.500.000 km2. Em função disso, há que se evidenciar a possibilidade da existência de aspectos associados à variação e à heterogeneidade linguísticas. Em cada região as transformações linguísticas se sucederam de uma forma, tomando configurações diferentes e formando variações de natureza geográfica, histórica e social. Constituem-se, portanto, objeto de investigação sociolinguística. Segundo Tarallo (2005, p. 6), a Sociolinguística constitui-se “de um modelo teórico-metodológico que assume o suposto ‘caos’ linguístico como objeto de estudo”. Tarallo está denominando de “caos” linguístico o fenômeno de heterogeneidade da língua, que lhe é inerente. A linguística estruturalista entende a língua como um fenômeno homogêneo, como uma realidade que não possui variação em sua constituição, sendo que os elementos que a compõem são universais e regulares. A fala, que é a realização concreta da língua, é vista pelo estruturalismo como um caos, isto é, uma atividade sem regras, normas e regulamentos próprios. Ao contrário dessa visão, Tarallo (2005) defende que: A cada situação de fala em que nos inserimos e da qual participamos, notamos que a língua falada é, a um só tempo, heterogênea e diversificada. E é precisamente essa situação de heterogeneidade que deve ser sistematizada.” (TARALLO, 2005, p. 6) 52 A Sociolinguística fornece um modelo teórico-metodológico para explicar a realização concreta da língua, aquilo que é entendido pela linguística imanente como ‘caos’. O sociolingüista desenvolve instrumentos para demonstrar que o caos é apenas aparente, pois as realizações efetivas da língua não se dão de forma desordenada, obedecem a determinadas regras de uso dentro de uma comunidade linguística. Ele observa como as regularidades ocorrem na heterogeneidade e diversidade linguísticas, e descreve essas ocorrências, buscando explicações para a realização dos eventos, contemplando sempre a relação indissociável entre língua e sociedade. Segundo Preti (2003, p. 24), “poderíamos subordinar o estudo do problema da variedade linguística a dois amplos campos”. A saber, variedades geográficas ou diatópicas e variedades socioculturais ou diastráticas. De acordo com Mollica (2004, p. 12) “no primeiro [variedades diatópicas] as alternâncias se expressam regionalmente, considerando-se os limites físico- geográficos; no segundo [variedades diastráticas], elas se manifestam de acordo com os diferentes estratos sociais.” As variedades geográficas ou diatópicas são as que ocorrem num espaço geográfico determinado, onde se localiza uma comunidade linguística, ocasionando os regionalismos, dialetos ou falares locais. O eixo definidor dessa variedade é horizontal. As variedades socioculturais ou diastráticas são as que ocorrem no seio de uma comunidade linguística, em virtude do comportamento social, cultural e histórico dessa comunidade na sua relação com o todo social. O seu eixo definidor é vertical. O gráfico abaixo representa essas manifestações, conforme estudos de Preti (2003, p.25). 53 Estratos sociais Extensão territorial Gráfico 1: Variedades socioculturais ou diastráticas Ainda segundo Preti (2003, p. 26): As variações socioculturais podem ser influenciadas por fatores ligados diretamente ao falante (ou ao grupo a que pertence), ou à situação ou a ambos simultaneamente. São eles: a) fatores ligados aos falantes (ou ao grupo a que pertencem), como idade, sexo, etnia (cultura), profissão, posição social, grau de escolaridade, local em que reside; e b) fatores ligados à situação como, por exemplo, ambiente, tema, estado emocional do falante e grau de intimidade entre os falantes. A Sociolinguística deve investigar o grau de estabilidade ou mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis, a fim de encontrar regularidades em sua ocorrência, descobrir a ordem no “caos” aparente. (MOLLICA, 2004, p. 11) Para execução dessa investigação, empreendimento que exige grande esforço metodológico e rigor científico , o sociolinguista faz uso dos conceitos de variação, variável e variante. Variedades diastráticas Variedades diatópicas 54 A variação é um fenômeno geral, universal: “A variação linguística constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de formas alternativas denominadas variantes”. (MOLLICA, 2004, p. 10) Por variável entende-se um subconjunto da variação. “O termo ‘variável’ pode significar fenômeno em variação e grupo de fatores” (MOLLICA, 2004, p. 10) Por variante entendem-se as diversas possibilidades de realização da variável: “ diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade” (TARALLO, 2005, p. 8). Tarallo (2005, p. 8) cita um exemplo para compreensão desses conceitos: a marcação de plural no sintagma nominal no português brasileiro é um caso de variação. A realização da marcação do plural no sintagma nominal é uma variável. As variantes são as duas possibilidades de realização dessa marcação de plural: a marcação do plural com o segmento fônico / s / e a não marcação do plural indicada pela ausência do segmento fônico / s /. Outras distinções relevantes apresentadas por Tarallo (2005, p. 11) dizem respeito às dicotomias variantes padrão/não-padrão, conservadora/não- conservadora, estigmatizada/prestígio. Geralmente, a variante padrão é a mais conservadora e a que usufrui de maior prestígio social. Entretanto, ela não é uma correlação absoluta, pois podemos ter uma variante inovadora e prestigiada. E o processo inverso ocorre com as variantes não-padrão. No exemplo acima, a marcação do plural no sintagma nominal é a variante padrão segundo a gramática normativa da língua portuguesa e, por conseguinte, é a variante conservadora e a que tem o maior prestígio social. Por outro lado, a variante que não marca o plural no sintagma nominal é tida como não-padrão e, por conseguinte, não-conservadora, sendo, também, estigmatizada socialmente. 55 As variáveis que são objeto de estudo da Sociolinguística manifestam-se em dois níveis: um de natureza interna, outro de natureza externa. As variáveis internas ocorrem no plano da estrutura interna da língua: léxico, fonética, morfologia, sintaxe e semântica. Já as variáveis externas ou extralinguísticas são aquelas que ocorrem no plano externo à estrutura da língua, ou seja, no plano social, as quais podem ser: inerentes ao indivíduo (etnia, sexo); propriamente sociais (escolaridade, nível socioeconômico, profissão, classe social) e contextuais (o discurso empregado dependendo da situação comunicativa) (MOLLICA, 2004, p. 12). A Sociolinguística relaciona os fatores intralinguísticos com os fatores extralinguísticos, atribuindo-lhes uma relação de implicação, considerando as variáveis sociais condicionadoras das transformações internas do sistema estrutural da língua nos planos léxico-fono-morfo-sintático- semânticos. No entanto, há de se considerar, como já mencionamos, que a língua, muito embora seja condicionada pelos fatores sociais, não sofre uma ação passiva da estrutura social; ela também atua sobre essa estrutura. Nas palavras de Lucchesi (2004, p. 61): “Existe um movimento dialético na estrutura da língua entre a sua organização interna (o seu modo estrutural) e sua relação externa com a estrutura social.” Os estudos no campo da variação linguística – considerando as variedades geográficas e socioculturais – possibilitarão compreender os fenômenos convergentes e divergentes no uso da língua no universo da internet, a partir de variáveis ligadas ao falante/navegador (faixa etária, sexo, grau de escolaridade, local em que nasceu) e a fatores ligados à situação de “fala”/escrita no ambiente da rede de computadores. Entende-se que uma teoria adequada à investigação do grau de convergência e divergência das formas em relação à língua padrão permitirá compreender melhor um possível perfil dialetológico do internetês dos falantes 56 das diferentes regiões brasileiras, a fim de que se compreenda, também, se é possível, ou não, falar-se em uma identidade linguística desses falantes no âmbito do ciberespaço. 3.2 Em busca de uma identidade modal da fala e da escrita Compreender um dado fenômeno não é uma tarefa fácil, principalmente quando esse fenômeno é variável no tempo e no espaço, constantemente suscetível a mudanças, como é o caso da língua, que passa por processos ininterruptos de transformações. A língua, por sua própria natureza, é mutável, isto é, faz parte inerente de seu ser a mudança; logo os modos como essa língua se manifesta também são mutáveis e, por conseguinte, as modalidades oral e escrita obedecem a esse processo natural de mutabilidade linguística. Visto que os modos de materialização da língua (fala e escrita) estão em contínua transformação, a tarefa de investigação de uma identidade, isto é, compreender o que é fala e o que é escrita, deve ser norteado tendo em vista esse processo. Compreender a relação fala e escrita, visando delimitar a sua natureza constitutiva, é perceber esses dois modos de uso da língua como um processo dinâmico, em constante transformação, e não como algo estático que não se movimenta na história, ficando cristalizado no tempo, tal como vêem os gramáticos normativistas. Outra questão a ser considerada, ao se tentar definir o que é fala e o que é escrita, é o fato dos limites entre uma e outra não serem intransponíveis, sendo que os traços que tradicionalmente caracterizam uma dessas modalidades podem se encontrar na outra. Portanto, a definição de uma identidade modal da fala e da escrita deve contemplar uma relação de imbricamento entre ambas. Em termos gerais, a modalidade escrita é compreendida como mais tratada, cuidada, tensa e formal, assumindo uma característica mais conservadora, isto é, mais resistente às mudanças da língua. A fala, em 57 contrapartida, é concebida como despreocupada, espontânea, distensa e informal e, portanto, menos conservadora, sendo mais suscetível às transformações. No entanto, essa forma de compreensão é questionável, uma vez que apresenta uma série de lacunas a ser preenchida. Por exemplo, a fala é tida como informal, entretanto numa apresentação de um telejornal, que se dá no nível da oralidade, ela se manifesta como uma linguagem formal derivada de uma escrita formal. Fenômeno semelhante a esse pode ser visto em uma palestra, em um pronunciamento político, em uma defesa no tribunal etc. Quando da produção de uma obra literária (romance, novela), por exemplo, a fala dos personagens será apresentada com vocábulos e construções próprias da oralidade, mas em um gênero da escrita. Já em uma entrevista oral feita por um repórter e depois transcrita para uma revista ou jornal, a tendência de tom mais formal constitui-se produto da transposição da fala para a escrita. Situações como as apresentadas acima mostram que não é fácil determinar a área de atuação específica da fala e da escrita, uma vez que uma está implicada na outra. Em consequência disso, surgem maneiras variadas de explicar essa relação entre esses dois planos da língua. Marcuschi (2007, p. 27) denomina essas diferentes visões de a perspectiva dicotômica, a tendência fenomenológica de caráter culturalista, a perspectiva variacionista, e a perspectiva sociointeracionista. Linguistas como Bernstein (1971) e Ochs (1979) são representantes da perspectiva dicotômica, que polariza a