UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Programa de Pós-Graduação em Artes – Mestrado GLOSSOLALIA INTENSIVA Como criar uma voz para o corpo sem órgãos (ou ecologia de práticas para uma esquizovocalidade) São Paulo 2020 RODRIGO REIS RODRIGUES GLOSSOLALIA INTENSIVA Como criar uma voz para o corpo sem órgãos (ou ecologia de práticas para uma esquizovocalidade) Dissertação apresentada ao Departamento de Pós- Graduação em Artes da UNESP como exigência parcial para a obtenção do título de Mestrado em Artes, para obtenção do título de Mestre em Artes. Orientador: Prof. Dr. Wladimir Farto Contesini de Mattos São Paulo 2020 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) R696g Rodrigues, Rodrigo Reis, 1976- Glossolalia intensiva : como criar uma voz para o corpo sem órgãos (ou ecologia de práticas para uma esquizovocalidade) / Rodrigo Reis Rodrigues. - São Paulo, 2020. 150 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Wladimir Farto Contesini de Mattos Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte moderna. 2. Artes cênicas. 3. Música na arte. 4. Criação (Literária, artística, etc.). I. Mattos, Wladimir Farto Contesini de. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792 À Wlad Mattos dedico esta dissertação. Por ter apostado antes mesmo de sua concepção, por acreditar, muitas vezes mais do que o próprio autor, pela generosidade de tempo, escuta e acolhimento sem limites, por caminhar junto abrindo picadas metódicas e metodológicas na trilha: ao invés do ‘deve ser assim’, um sincero ‘como você deseja em fazer?’ ao invés do ‘pense isso’, um curioso ‘quem você quer trazer pra perto?’ e quanta gente trouxemos pra compor um solo tão fértil! Por uma orientação que é um privilégio: que recusa a castração, a falta e investe no desejo, que não adoece, e sim potencializa, que não entristece, e sim prolifera alegria, assim mesmo como devem ser as alianças com a vida, ainda que seus contornos, por algum tempo, aconteçam numa porção de folhas de papel. AGRADECIMENTOS Ao orientador e às bancas de qualificação e defesa da dissertação: Wladimir de Mattos, Marília Velardi e Paulo Maron. Aos pilares do percurso: Margareth Chilemi, Anton Zackarkov, Celina Ramos, Rafael Speck, Felipe Kurschat, Marcelo Dalla Pria, Silvia e Rafael Reis e em especial a Roberta Reis, que se dedicou incansavelmente no trabalho de edição e diagramação. Aos que contribuíram diretamente com o trabalho escrito e áudio-visual: Marcelo Dalla Pria, Roberta Reis, Marta Catunda, Silvio Reis, Nathalia Leter, Tania Campos, Mathias Reis, John Armless Project Studio, Cecília Gobeth, José Maria Carvalho, Graziela Cardoso, Greice Arthuso, Virgínia Costabile, Carolina Callegaro, Marines Calori. Aos que consistiram o processo: Wladimir de Mattos (PPG Artes IA Unesp); Susana Oliveira Dias (Labjor IEL Unicamp); Regina Favre (Laboratório do Processo Formativo); Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek (Taanteatro Cia.); José Maria Carvalho (Viver Núcleo de Dança Pesquisa e Criação); Teresa de Toledo (Fundação Fazenda Santa Maria, Guaxupé-MG). Aos integrantes e colaboradores do Núcleo de Estudos sobre Metodologias de Pesquisa em Artes e dos seus Colóquios anuais: Mirian Steinberg, Marcio Marques, Marta Catunda, Wolfgang Pannek, Regina Favre, Sebastian Wiedemann, Alda Maria Abreu. Aos docentes pesquisadores e técnicos administrativos do PPG Artes do Instituto de Artes da Unesp. RESUMO Traçado um panorama histórico e conceitual sobre a glossolalia, esta pesquisa delimita o fazer glossolálico no âmbito das artes contemporâneas da cena. Conforme a Abordagem Articulatória proposta por Wladimir de Mattos, a Glossolalia Intensiva se inscreve na indissociação voz-corpo como uma qualidade treinável e aplicável aos processos composicionais na música estendidos aos processos criativos nas artes. A qualidade vocal intensiva da glossolalia se articula aos conceitos de corpo sem órgãos presente no Teatro da Crueldade de Antonin Artaud e de esquizopresença presente no Teatro Coreográfico de Tensões proposto pela Taanteatro Cia. Laboratórios de pesquisa-criação, compostos por uma ecologia de práticas, propõem experiências que podem fazer existir (devir) tal qualidade intensiva de presença voco-corpórea: a esquizovocalidade. Palavras-chaves: Glossolalia Intensiva. Abordagem articulatória. Processos composicionais e criativos. Ecologia de práticas. Esquizovocalidade. ABSTRACT Tracing a historical and conceptual panorama on glossolaly, this research delimits the glossolalic practice in the context of contemporary scene arts. According to the Articulatory Approach proposed by Wladimir de Mattos, Intensive Glossolaly is grounded in the voice- body indissociation as a trainable quality and applicable to the compositional processes in music extended to the creative processes in arts. The intensive vocal quality of glossolaly is linked to the concepts of body without organs present in Antonin Artaud's Theater of Cruelty and of schizopresence found in the Choreographic Theater of Tensions proposed by Taanteatro Cia. Research-creation laboratories, composed of an ecology of practices, propose experiences that can make exist (becoming) such an intensive quality of a body-voice presence: The Schizovocality. Keywords: Intensive Glossolaly. Articulatory Approach. Creative and compositional Processes. Ecology of Practices. Schizovocality. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Menino lambuzado de natureza ......................................................................................... . 22 Figura 2. Parâmetros vocais sob um ponto de vista não linear ..................................................... 62 Figura 3. Consoantes do português brasileiro na tabela do IPA .................................................. 69 Figura 4. Roteiro de conjunto de fonemas para explorar os pontos de articulação .................. 70 Figura 5. Roteiro de conjunto de fonemas para explorar os modos de articulação ................... 71 Figura 6. Roteiro de conjunto de fonemas relacionados à prática Estados da Matéria ............ 71 Figura 7. Envelope dinâmico de três fases .......................................................................................... 72 Figura 8. Roteiro de conjuntos de fonemas para explorar os pontos de articulação ................. 84 Figura 9. Roteiro de conjuntos de fonemas para explorar os modos de articulação ................. 87 Figura 10. Roteiro de conjuntos de fonemas relacionados à prática Estados da Matéria ........ 96 Figura 11. Savio Barbosa Txana .......................................................................................................... 109 Figura 12. Exposição Uma Shubu Hiwea .......................................................................................... 109 Figura 13. Desenho de Menegildo Paulino Kaxinawá Isaka ........................................................ 110 Figura 14. Registro da obra Floresta de Nathalia Leter ................................................................ 127 Figura 15. Registro da obra Floresta de Nathalia Leter ................................................................ 131 Figura 16. Casa sede fazenda Santa Maria ........................................................................................ 133 Figura 17. Água, Barro, Pedra; Ar ...................................................................................................... 134 Figura 18. Fogo; Caminhada ................................................................................................................ 135 Figura 19. Partitura Vésper ................................................................................................................. 136 Figura 20. Vésper fases 1 e 2 ............................................................................................................... 136 Figura 21. Vésper fase 3 ........................................................................................................................ 137 Figura 22. Fazenda Santa Maria......................................................................................................... 138 Figura 23. Mostra Ecoperformance................................................................................................... 138 Figura 24. Desvalo........... ..................................................................................................................... 139 Figura 25. Cair de Si........ ................................................................................................................... 140 Figura 26. Presságio............................................................................................................................ 140 Figura 27. Co-existo ........................................................................................................................... 141 Figura 28. Partilha.............................................................................................................................. . 141 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Registro da experiência dos pontos de articulação ................................................. 85 Tabela 2. Registro da experiência dos modos de articulação ................................................. 88 Tabela 3. Parâmetros do som e parâmetros da voz .................................................................. 95 Tabela 4. Exploração da Fonemática dos Estados da Matéria .............................................. 98 SUMÁRIO zɛɾʊ .............................................................................................................................................................. 19 pɛdɾɐ ............................................................................................................................................................ 27 Cartografia ................................................................................................................................................. 28 Ecosofia ...................................................................................................................................................... 29 Ecologia da subjetividade ……................................................................................................ 30 Ecologia das relações sociais …............................................................................................... 33 Ecologia do meio ambiente ……............................................................................................. 35 fogʊ .............................................................................................................................................................. 37 Glossolalia .............................................................................................................................. ................... 38 Glossolalia como pré-linguagem ............................................................................................ 43 Glossolalia como pós-linguagem ............................................................................................ 45 Glossolalia Intensiva .................................................................................................................. 47 Afecto e a potência de agir-pensar como gesto ..................................................................... 48 Intensidade ................................................................................................................................... 49 Corpo sem órgãos ....................................................................................................................... 51 Esquizopresença …..................................................................................................................... 56 aR ...…….................................................................................................................................................... 60 Abordagem Articulatória ....................................................................................................................... 61 Parâmetros da voz ...................................................................................................................... 61 Parâmetros Articulatórios ........................................................................................................ 65 Breve exposição do IPA ............................................................................................................ 67 Dinâmicas articulatórias na glossolalia intensiva ............................................................... 71 agwɐ ....……............................................................................................................................................... 74 Uma ecologia de práticas ....................................................................................................................... 75 Laboratórios de Glossolalia Intensiva ................................................................................................ 80 Panorama do processo ............................................................................................................... 80 Configuração do grupo .............................................................................................................. 80 Estrutura dos laboratórios ........................................................................................................ 81 Aquecimento corporal e respiratório ..................................................................................... 81 Ativação da escuta ...................................................................................................................... 81 Intervalo restaurador ................................................................................................................ 82 Cartografia e compartilhamento ............................................................................................. 82 Desaquecimento .......................................................................................................................... 82 Instruções gerais ......................................................................................................................... 82 Laboratório 1 ............................................................................................................................................. 83 Laboratório 2 ............................................................................................................................................. 84 Registro da experiência ............................................................................................................. 85 Laboratório 3 ............................................................................................................................................. 87 Laboratório 4 ............................................................................................................................................. 89 1. Instauração da Base, Forma e Força .................................................................................. 89 2. Instauração Estados da Matéria .......................................................................................... 91 3. Caminhada Estados da Matéria ........................................................................................... 92 Laboratório 5 ............................................................................................................................................. 94 1. Vogais e propriedades do som e da voz ............................................................................. 94 2. Fonemática dos Estados da Matéria .................................................................................. 96 Laboratório 6 ............................................................................................................................................. 99 1. Glossolalia não sonora ou uma voz que dança ................................................................. 99 2. Caminhada Palavra-Afecto ................................................................................................. 102 Laboratório 7 ........................................................................................................................................... 104 1. Percutir os ossos ................................................................................................................... 105 2. Estimulação voz tátil da pele timpânica .......................................................................... 106 3. Glossolalia Intensiva em deslocamento pelo espaço .....................................................106 4. Instalação Sonora ‘Coluna Vibroacústica’ ...................................................................... 107 Laboratório 8 .......................................................................................................................................... 112 baRʊ .......................................................................................................................................................... 113 Processos Criativos e Composicionais em Glossolalia Intensiva ............................................... 114 ECO Ode à Ecosofia, concerto ............................................................................................................ 114 Noção de Homem e de Fim .................................................................................................... 114 O homem-árvore ....................................................................................................................... 118 Vocalidade em ECO ................................................................................................................. 122 Formação de um grupo ........................................................................................................... 123 Processo criativo e composicional ........................................................................................ 123 Floresta ................................................................................................................................................... 127 FLORESTA uma de.composição para 6 vozes em devir florestal ............................................ 128 Ateliê Residência de Ecoperformance e Glossolalia Intensiva .................................................. 132 Mostra de Ecoperformance ................................................................................................... 137 zɛɾʊ ........................................................................................................................................................... 143 Referências ............................................................................................................................................. 146 Gostinho comum das nossas infâncias revivido com Maura Baiocchi na ocasião da orientação de performance que compõe este trabalho. Fonte: Autor (2020) Em 1983, numa escola pública do sul de MG, entre os 6 e os 7 anos de idade, fui alfabetizado no controverso método fônico, através da cartilha ‘Miloca, Teleco e Popoca’. Minha inclinação para a fonologia deve ter começado ali, ou talvez um pouco antes, mais perto dos 4 anos de idade, quando presenciava um tio – pelo qual tinha enorme admiração – que devido à gagueira, fazia exercícios fonoaudiológicos. Aquela repetição rítmica de sílabas e palavras e as vocalizações me fascinavam. Não tenho dúvidas que foi neste tempo que a pesquisa sobre glossolalia teve início, embora naquela época eu não soubesse disso. No entanto, o marco fundamental deste processo de pesquisa-criação foram os tiques nervosos vocais e motores que apareceram do nada, motivo de constrangimento pra mim e para os mais próximos. Diziam que era uma forma de “chamar a atenção”, como se fossem intencionais e passíveis de serem controlados. Fala recorrente do meu pai “vou te internar no manicômio e lá eles vão te dar uma injeção na testa, com uma agulha do tamanho de um parafuso de mata-burro”, o que não me intimidava, pois percebia o exagero da piada. Ainda assim, quanto mais me chamavam a atenção, mais ansioso ficava e, consequentemente, os tiques aumentavam. Com o tempo, todos se acostumaram, e eu também. Nunca fui uma criança ou adolescente ansioso, mas inquieto e ávido por experiências de vida, sempre fui muito excitado. Por volta dos 19 anos, tal curiosidade me levou a iniciar terapia por muitos outros sentidos diferentes dos tiques, foi quando tive contato e entendi a descrição diagnóstica da Síndrome de Tourette. O tique corresponde a uma vocalização (tique vocal) ou a um espasmo (tique motor), que se manifesta como som ou movimento súbito, inesperado, rápido, estereotipado e não ritmado, de forma repetitiva e recorrente. De acordo com o DSM-5 (2014), o tique ocorre de forma irresistível sendo exacerbado pela ansiedade ou tensão (stress) ou pela excitação. Com esforço, pode ser suprimido por um período de tempo variável. Diminui durante atividades que requerem grande concentração e desaparece durante o sono. É um traço neuropsíquico, especula-se que a causa seja hereditária, mas como não há confirmação, a origem é ainda desconhecida. Meu pai tem seis filhos; quatro dos seus filhos homens manifestam a Tourette. Os tiques podem ser simples ou complexos. Os primeiros são clônicos e envolvem contrações de grupos musculares funcionalmente relacionados, são abruptos, rápidos, repetidos e sem propósito, geralmente percebidos como involuntários. Os tiques complexos, geralmente em comorbidade com o TOC, são tônicos e envolvem grupos musculares não relacionados funcionalmente, mais lentos, podem parecer propositados e percebidos como voluntários e, por isso, muito embaraçosos para os pais. Meus tiques sempre foram do tipo simples, clônicos. Os tiques motores simples incluem piscar os olhos, fazer caretas, movimentos de pescoço, encolher os ombros, contrair os músculos abdominais, saltar, cheirar ou tocar com pressão objetos e superfícies. Os complexos incluem a ecocinese ou ecopraxia (imitação de gestos realizados por outrem) e a copropraxia (produção repetida e irresistível de gestos obscenos). Os tiques vocais simples são meros sons que incluem curtos gritos guturais ou hiper-agudos, coçar a garganta, ataques de glote, grunhidos, fungadas e tosses. Os complexos apresentam significado e incluem a ecolalia (repetição da última palavra ou sons do interlocutor), a palilalia (repetição involuntária das próprias palavras ou sons) e a coprolalia (dizer obscenidades ou palavras que ferem as convenções sociais). Os manuais psiquiátricos descrevem o tique distinguindo três quadros: a Síndrome de Tourette, o Tique Crônico e o Tique Transitório. A Síndrome de Tourette foi observada e descrita pela primeira vez em 1885, pelo francês Gilles de la Tourette. Conforme o DSM-5 (2014), o diagnóstico deve preencher os seguintes critérios: a. múltiplos tiques motores e um ou mais tiques vocais devem manifestar- se durante algum tempo, mas não necessariamente ao mesmo tempo; b. os tiques devem ocorrer diversas vezes por dia, quase todos os dias, ao longo de um ano ou de modo intermitente por períodos consecutivos de no mínimo três meses; c. o quadro deve começar antes dos 18 anos de idade. A Síndrome de Tourette (TEIXEIRA, 2011) é rara, pois sua incidência é menor que um caso a cada mil crianças entre 7 e 16 anos de idade. É três vezes mais frequente no sexo masculino e inicia entre 5 e 8 anos de idade. Geralmente, os tiques se manifestam inicialmente nos grupos musculares faciais e posteriormente seguem uma direção céfalo-caudal (pescoço, tronco, braços, mãos e, raramente, pernas). Tem um bom prognóstico, o que não significa que os tiques desapareçam por completo. O que acontece, é que as crianças e os adolescentes aprendem a conviver com os sintomas. O Tique Crônico se difere pela manifestação exclusiva de tiques motores ou vocais. No Tique Transitório, os tiques ocorrem por um período superior a quatro semanas e inferior a doze meses consecutivos. Os processos de vida continuaram. Em 2004 me impliquei com os estudos da filosofia da diferença, e durante a leitura de um trecho do volume 3 de Mil Platôs (1997) – no entorno dos conceitos ‘Corpo sem órgãos’ em Artaud e ‘Rostidade’ – tive uma epifania: Não me tirem a força de amar. Os romancistas ingleses americanos também sabem como é difícil atravessar o muro do significante. [...] Passar o muro, os chineses talvez, mas a que preço? Ao preço de um devir-animal, de um devir-flor ou rochedo, e, mais ainda, de um estranho devir-imperceptível, de um devir-duro que não é senão o mesmo que amar. É uma questão de velocidade, mesmo sem sair do lugar. É isso também desfazer o rosto ou, como dizia Miller, não mais olhar os olhos nem nos olhos, mas atravessá-los a nado, fechar seus próprios olhos, e fazer de seu corpo um raio de luz que se move a uma velocidade cada vez maior? Para isso são necessários, sem dúvida, todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade... Pois é pela escrita que nos tornamos animais, é pela cor que nos tornamos imperceptíveis, é pela música que nos tornamos duros e sem recordação, ao mesmo tempo animal e imperceptível: amoroso. Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida, isto é, todos esses devires reais, que não se produzem simplesmente na arte, todas essas fugas ativas, que não consistem em fugir na arte, em se refugiar na arte, essas desterritorializações positivas, que não irão se reterritorializar na arte, mas que irão, sobretudo, arrastá-la consigo para as regiões do a-significante, do a-subjetivo e do sem-rosto. Desfazer o rosto não é uma coisa à toa. Corre-se aí o risco da loucura: é por acaso que o esquizo perde ao mesmo tempo o sentido do rosto, de seu próprio rosto e do dos outros, o sentido da paisagem, o sentido da linguagem e de suas significações dominantes? É porque o rosto é uma organização forte. Pode-se dizer que o rosto assume em seu retângulo ou em seu círculo todo um conjunto de traços, traços de rostidade, que ele irá subsumir e colocar a serviço da significância e da subjetivação. Que é um tique? É precisamente a luta sempre recomeçada entre um traço de rostidade, que tenta escapar da organização soberana do rosto, e o próprio rosto que se fecha novamente nesse traço, recupera-o, barra sua linha de fuga, impõe-lhe novamente sua organização. (Na distinção médica entre o tique clônico ou convulsivo, e o tique tônico ou espasmódico, talvez seja necessário ver no primeiro caso o predomínio do traço de rostidade que tenta fugir; no segundo caso, o da organização de rosto que procura fechar novamente, imobilizar). Entretanto, se desfazer o rosto é um grande feito, é porque não é uma simples história de tiques, nem uma aventura de amador ou de esteta. Se o rosto é uma política, desfazer o rosto também o é, engajando devires reais, todo um devir-clandestino. Desfazer o rosto é o mesmo que atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da subjetividade. O programa, o slogan da esquizoanálise vem a ser este: procurem seus buracos negros e seus muros brancos, conheçam-nos, conheçam seus rostos, de outro modo vocês não os desfarão, de outro modo não traçarão suas linhas de fuga. É por isso que devemos, mais uma vez, multiplicar as prudências práticas. Primeiramente, nunca se trata de um retorno a... Não se trata de “voltar” às semióticas pré-significantes e pré-subjetivas dos primitivos. [...] ao contrário, por operar uma verdadeira “desrostificação”, libera de algum modo cabeças pesquisadoras que desfazem em sua passagem os estratos, que atravessam os muros de significância e iluminam buracos de subjetividade, abatem as árvores em prol de verdadeiros rizomas, e conduzem os fluxos em linhas de desterritorialização positiva ou de fuga criadora. Não há mais estratos organizados concentricamente, não há mais buracos negros em torno dos quais as linhas se enrolam para margeá-los, não há mais muros onde se agarram as dicotomias, as binariedades, os valores bipolares. [...] Abre-se um possível rizomático, operando uma potencialização do possível, contra o possível arborescente que marcava um fechamento, um impotência. Para além do rosto, uma inumanidade ainda completamente diferente: não mais a da cabeça primitiva, mas a das “cabeças pesquisadoras” onde os pontos de desterritorialização se tornam operatórios, as linhas de desterritorialização se tornam positivas absolutas, formando estranhos devires novos, novas polivocidades. Devir-clandestino, fazer rizoma por toda a parte, para a maravilha de uma vida não humana a ser criada. Rosto meu amor, mas enfim tornado cabeça pesquisadora... (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 57-61) Nesta leitura acontecimento, para além de entender e aceitar uma descrição diagnóstica, reconheci nos tiques suas potências expressivas. Passei a amá-los e torná-los uma forma de afirmação singular, tomando-os como materiais em processos de pesquisa e criação artística. Tomar o ‘defeito’, a ‘má formação’ do corpo e a neurodiversidade como material; tomar a deformação do rosto e da voz como traço estético. Assumir a tensão entre as forças dionisíacas e as formas apolíneas no próprio corpo e na própria voz. Exaltar as forças desconstrutivas das formas e das normas. De certo modo, tudo o que se segue nesta dissertação são desdobramentos radicais do tique que, a partir das práticas propostas, se tornam dispositivos possíveis para vocalizar, dançar e performar. D es en ho d e M en eg ild o P au lin o K ax in aw á Is ak a (F ot o: P ep e Sc he tt in o) 19 zɛɾʊ 20 Esta pesquisa é sobre a prática da Glossolalia Intensiva delimitada ao campo das artes da cena contemporânea, como uma qualidade vocal treinável e aplicável aos processos de criação e composição de performances artísticas. A motivação direta que me levou a aprofundar o tema da glossolalia e os laboratórios práticos relacionados a ela, parte do processo composicional do concerto ECO1 para ensemble e coro: trabalho de conclusão de curso de graduação em Composição que realizei no Instituto de Artes da UNESP em 2016. Durante cinco meses, o processo incluiu um laboratório de pesquisa-criação proposto para um coro de dezoito performers, utilizando como base uma ecologia de práticas que denominei Laboratórios de Glossolalia Intensiva. A pesquisa, a criação, os ensaios, a montagem, as apresentações e a gravação do concerto foram apresentados no TCC ‘ECO Processos Composicionais e Autopoiese’ (RODRIGUES, 2016). O conjunto da obra se destacou com premiação acadêmica e no ano seguinte com a produção e exibição do longa documental ‘ECO Cantos da Terra’2, dirigido pela documentarista Tania Campos (CAMPOS; RODRIGUES, 2017). Porém existem outras motivações indiretas que remontam à minha história pessoal, sobretudo no que tange meu desenvolvimento artístico. Desde os anos de 1990, com a mudança do interior do sul de Minas Gerais, para a capital São Paulo, me envolvi com aulas de dança e de técnicas corporais contemporâneas, sobretudo a técnica Klauss Vianna e a dança Butoh. Posteriormente, fiz uma formação em Biodiversidade Subjetiva3, curso oferecido pela filósofa e terapeuta corporal Regina Favre no Laboratório do Processo Formativo, cuja proposta se trata de desdobramentos da teoria da Anatomia Emocional do Stanley Keleman relacionados à filosofia da diferença. Porém, foi no contexto da cena butohista de São Paulo, que conheci a Taanteatro Cia. Muito identificado com as linguagens e as cenas da Cia., vinha acompanhando os trabalhos artísticos dos diretores Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek, quando em 2010 assisti o solo DAN – Devir Ancestral, onde a Taanteatro expõe o conceito de Ecoperformance e lança um olhar e uma proposta para vinculação das artes performativas com a ecologia. O espetáculo teria início a partir do anfiteatro do antigo Teatro de Dança, no subsolo do Edifício Itália. Ali, Maura Baiocchi, incorporada de uma entidade ancestral do cerrado, se posicionava com olhos fitos em frente a algumas pessoas da platéia. Ali, eu tive então um contato intensivo com a performer e a entidade que ela portava. Nesta troca de olhares fixos, uma explosão, uma 1 Ver em https://www.youtube.com/watch?v=oGYQmtC5B5E. 2 Ver em https://vimeo.com/244706359 3 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2010/12/trabalhando-pela-biodiversidade- subjetiva/ 21 captura, uma vertigem, que marcaria o início de uma aliança potente e fértil que se desdobra até o presente, sendo esta dissertação mais um entre tantos desdobramentos. A partir de 2011 promovi uma série de encontros em torno do conceito da Ecosofia de Félix Guattari que denominei ‘Compondo com Potências’4. Num destes encontros, que na época acontecia no espaço cultural Mundo Pensante, convidei Maura Baiocchi para falar sobre a Ecoperformance em sua pesquisa em DAN – Devir Ancestral. No ano seguinte, a Taanteatro me convidou para falar no 2º Fórum de Ecoperformance: meio ambiente e artes performativas – um desafio, e em 2013, no 3º Fórum de Ecoperformance. Em 2016, apresentei para Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek as investigações que vinha fazendo sobre sua técnica Abecedário Sonoro e o IPA e convidei Pannek para fazer uma intervenção pontual em um laboratório de criação do concerto ECO. Uma pista conceitual foi definitiva para a construção da dramaturgia do concerto: Wolfgang me apresenta a carta-poema de Antonin Artaud O Homem Árvore. Em 2017, participei da Ocupação Deleuze no Teatro da Aliança Francesa, onde ocorreu a estréia do documentário ECO Cantos da Terra. Nas edições de 2018 e 2019 do Colóquio sobre Novas Metodologias de Pesquisa em Artes que organizei no IA Unesp, convidei Wolfgang para compor o fórum, sendo que no último ano tivemos a apresentação do solo Artaud, Lê Momo com Maura Baiocchi na noite de abertura. Voltando um pouco no tempo, no ano de 2014 fiz a Oficina Residência que acontece anualmente, durante duas semanas, no sítio sede da Taanteatro Cia., e reúne artistas de vários países em torno de uma formação nas técnicas criadas pela Cia. Dali, alguns acontecimentos e encontros importantes se desdobram nesta dissertação. O primeiro tem relação com um rito de morte e renascimento que é comum no decurso da Oficina Residência: naquele ano o caráter propiciatório do rito se tratava do nascimento de um artista xamã contemporâneo. Na partitura do meu rito, morre o regente, nasce o compositor, embora naquele acontecimento, eu ainda não soubesse disso. Naquele ano, já estava avançado no curso de graduação em Regência no IA Unesp, mas com conflitos em relação a seguir por esta especialização. Neste ano deveria redefinir a escolha, o que aconteceu, de modo que conclui a graduação em composição. Tal processo rendeu, no ano seguinte, o solo performático Maestro Desconstructo, em que associei a função do regente às imagens dos Papas de Bacon, inspirado no livro Francis Bacon: Lógica da Sensação (Deleuze, 2007). O segundo acontecimento durante a Oficina Residência foi o encontro com uma técnica um tanto discreta, em meio a tantas técnicas propostas pela Taanteatro: trata-se do Abecedário Sonoro, criada por Pannek, cuja descrição foi publicada somente em 2018: 4 Uma cartografia destes encontros pode ser vista no artigo escrito em conjunto com Marta Catunda publicado em http://www.produccioncientificaluz.org/index.php/utopia/article/view/22960/22912 22 Dança da voz que faz uso das letras do alfabeto e opera como massagem vibratória do crânio e do rosto, ginástica facial e lubrificante do aparelho fonador. Explora ações e sensações, de maneira lúdica e inventiva, por meio da articulação de fonemas relacionados a letras, sílabas, palavras e glossolalias. Colabora para a conscientização e tonificação da dicção e para o aprimoramento da modulação da voz, sem vínculo obrigatório com possíveis significados linguísticos. Além disso, proporcionam uma percepção ampliada das possibilidades de coreografar movimentos e expressões faciais. (BAIOCCHI; PANNEK, 2018, p. 87) No mesmo contexto da Oficina Residência, fui dirigido por Maura Baiocchi no solo ‘Menino lambuzado de natureza’ (Figura 2), que estava desenvolvendo sobre dois poemas de Manoel de Barros. Num dado momento da direção, Baiocchi me chama a atenção para a performance do texto: “durante o texto, há só texto, durante o texto, é a voz que dança”. Esta intervenção bomba, e a técnica do Abecedário sonoro vieram ao encontro com todas as pesquisas que já havia feito no entorno da voz, dentre elas a glossolalia, e também com as ambições de compor para uma voz não cantada e não falada. Figura 1. Menino lambuzado de natureza. Solo performático dirigido por Maura Baiocchi. Fonte: Taanteatro Oficina Residência. Foto: Wolfgang Pannek (2014). 23 Seria correto afirmar que este trabalho se trata de levar a técnica do Abecedário Sonoro às últimas consequências, aprofundando e ampliando sua compreensão e uso? De certo modo sim. Porém, para que esta técnica venha a fazer sentido, todo o conjunto de técnicas e conceitos desenvolvido pela Taanteatro deve entrar em ação. Assim, além de fazer uma revisão das técnicas da Taanteatro no entorno da exploração da voz, foi necessário rever outras técnicas como a Caminhada, a Caligrafia Corporal e os Estados da Matéria, como veremos em Laboratórios de Glossolalia Intensiva nesta dissertação. No entanto, esta pesquisa que é composta por uma ecologia de práticas (Stengers, 2005), e que contem algumas das técnicas da Taanteatro, se presta a duas finalidades: a. desenvolver uma qualidade de presença vocal específica, para um fazer vocal específico; b. compor peças vocais que só podem acontecer a partir desta qualidade de presença vocal. Assim, todas as técnicas que compõem esta ecologia de práticas, são meios que consistem um treinamento voco-corpóreo inerente ao fazer que denomino Glossolalia Intensiva. A etimologia da palavra glossolalia advém de glossa: língua, idioma, linguagem; e lalia: lalação, tagarelice, balbucio, loquacidade, uma repetição de língua (ou de línguas). Não se trata de um idioma, mas de um ato de vocalizar. Em seu artigo Utopies Vocales: glossolalies, Michel de Certeau (1980), define a glossolalia como o ato de falar em línguas, língua estranha, língua bárbara, falar extático, neolíngua, o ato de forjar uma língua como se ela fosse nova ou desconhecida. Trata-se de um fenômeno universal e atemporal que se manifesta na forma de dom de línguas – como descrito no novo testamento e presente em cultos neo-pentecostais –, nos cultos religiosos oriundos das diásporas negras da África e no xamanismo indígena sul- americano; como fenômeno patológico está presente na descrição de transtornos psiquiátricos; parte deste fenômeno é experimentado de forma lúdica, quando crianças ou adultos brincam com os sons da língua. A partir do século XX, no âmbito das artes da cena, a glossolalia está presente no teatro, no clown, na performance art, nas artes plásticas, em instalações sonoras e na música contemporânea. Neste trabalho, as referências fundamentais em relação à glossolalia estão em Certeau (1980), Maliska (2010), Pozzo (2013) e, no contexto das artes performativas, a glossolalia se apresenta através da dissertação de Gil Roberto de Almeida (UnB, 2015). A qualidade ‘intensiva’ que, de forma inédita, impliquei à glossolalia, foi proposta a partir de um processo de pesquisa-criação de cinco meses, necessário para compor a seção vocal do concerto ECO. Tal qualidade se fundamenta nos conceitos de ‘corpo sem órgãos’, presente no Teatro da Crueldade de Antonin Artaud e no conceito de ‘Esquizopresença’, proposto por Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek no Teatro Coreográfico de Tensões. Tais conceitos apontaram os problemas que esta pesquisa pretende investigar, desenvolver e 24 formalizar à luz das referências teóricas, da abordagem articulatória (Mattos, 2014) e das práticas e reflexões que compreendem este trabalho. O corpo sem órgãos é plano de expressão do desejo. O plano de imanência que sustenta toda a produção do desejo, o próprio desejo, o próprio devir devindo. Corpo sem órgãos é o corpo pleno que permanece aberto às intensidades, é nele que devemos habitar para criar para nós mesmos um corpo sem órgãos. É sobre sua superfície móvel que encontramos a diferença, pululando, se fazendo, aparecendo, se diferenciando em si mesma. Ele é o espaço para o indeterminado. É a linha que desvia de uma produção mecânica e previsível. A Esquizopresença (Baiocchi e Pannek, 2016) é um neologismo de inspiração deleuze- guattariana, cujos conceitos ao conectarem entre si a poética artaudiana da crueldade com a filosofia de Nietzsche e a filosofia da diferença, entrelaçam tais pensamentos à afirmação trágica do devir em combinação com a necessidade de uma transformação da constituição humana e da condição de um verdadeiro começo do ato criativo artístico. Para seus criadores, o que diferencia a Esquizopresença da presença cênica comum é, antes de tudo, seu caráter revolucionário, pois esta não obedece a critérios ou juízos estéticos predeterminados; não representa nem interpreta, mas experimenta. A fundamentação teórica desta pesquisa se localiza no pensamento pós-estrutural, sobretudo na filosofia da diferença e no método da cartografia proposto por Deleuze e Guattari, na ecologia de práticas proposta por Isabelle Stengers (2018) e na abordagem articulatória aplicada à dicção proposta por Wladimir de Mattos (2014). A cartografia é um método aberto de pesquisa, com uma permeabilidade singular aos acontecimentos e mutações do pesquisador, do artista e de qualquer um que queira acompanhar o fluxo e os afectos de sua própria transformação em relação à experiência com o seu tempo e a sua produção. Mergulhado nas intensidades de seu tempo e atento às linguagens que encontra, é tarefa do cartógrafo dar expressão para afectos que pedem passagem, devorando os elementos possíveis para a composição de cartografias que se fazem necessárias. Tarefa que demanda a singularização dos processos e, ao mesmo tempo, uma cena singular para acontecer e para ganhar consistência na articulação de técnicas e práticas que tem algo de inevitável no instante de seu acontecer, onde só importa a emergência do novo. Os procedimentos empregados para investigar as questões desta pesquisa – o caráter intensivo da glossolalia instaurado em um estado de presença voco-corpóreo – se deram a partir de uma ecologia de práticas propostas nos laboratórios de pesquisa-criação descritos a seguir. 25 Em pɛdɾɐ, a proposta eco-ética-estética, como pedra fundamental e parâmetros gerais desta pesquisa-criação e suas práticas, é vinculada à Ecosofia que será apresentada por meio de uma resenha do ensaio As Três Ecologias de Felix Guattari (2001). Em fogʊ, será traçado um breve panorama histórico e conceitual sobre a glossolalia, agregando a esta a noção de intensidade articulada ao conceito de corpo sem órgãos a partir de sua gênese Artaudiana, passando por sua leitura deleuze-guattariana e culminando no seu desdobramento no Teatro Coreográfico de Tensões na forma de Esquizopresença. A diferença entre glossolalia, glossolalia extensiva e glossolalia intensiva serão apresentadas. Em aR, será apresentada a abordagem articulatória aplicada ao âmbito da dicção, como ferramenta instrumental para relacionar os parâmetros da voz, os parâmetros articulatórios e as dinâmicas articulatórias à glossolalia intensiva. Será feita uma breve exposição do Alfabeto Fonético Internacional, o IPA, que neste contexto é utilizado como um repositório que serve como suporte e roteiro para os laboratórios de pesquisa-criação. Em agwɐ, será apresentada a noção de ecologia de práticas (STENGERS, 2015), e a partir desta, serão sistematizados os Laboratórios de Glossolalia Intensiva. Vídeos foram editados para compor cada um dos oito laboratórios descritos nesta dissertação. Os registros foram realizados entre maio e junho de 2019 no Viver Núcleo de Dança Pesquisa e Criação, sob direção de José Maria Carvalho, voltado para dançarinos pesquisadores do projeto Dispositivos de Visão, contemplado pelo Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura. Durante os laboratórios será apresentado um plano de treinamento que, por meio de uma ecologia de práticas, irá demonstrar um processo metódico como dispositivo para instaurar um estado de presença voco-corpóreo capaz de produzir uma glossolalia intensiva. De modo prático, o quadro das consoantes do Alfabeto Fonético Internacional (IPA) será proposto como suporte expressivo e roteiro para uma ecologia de práticas voltadas à investigação fonoarticulatória. O termo suporte, aqui emprestado das artes plásticas, se refere a um plano e a uma superfície por onde determinados conjuntos de vocalizações, transitem por roteiros diversos de experimentações. No Laboratório 1 foram sugeridos conceitos, referências bibliográficas e audiovisuais, além de apresentados a proposta de experimentos e os procedimentos utilizados na pesquisa- criação. No Laboratório 2 foi utilizado o quadro das consoantes do IPA para percorrer os eixos horizontais da esquerda para a direita, de modo a investigar e perceber os ‘pontos de articulação’ envolvidos na produção de vocalizações. 26 No Laboratório 3 foi utilizado o quadro das consoantes do IPA para percorrer os eixos verticais de cima para baixo, para fins de investigar e perceber os ‘modos de articulação’ envolvidos na produção de vocalizações. No Laboratório 4 foi proposto o reconhecimento e exploração dos cinco níveis de intratensão muscular – os Estados da Matéria – uma técnica criada e proposta pela Taanteatro Cia. No Laboratório 5 foi proposta a investigação a partir de uma fonemática (conjunto de fonemas) dos Estados da Matéria. No Laboratório 6 a produção de glossolalia intensiva começa a acontecer a partir de duas práticas: a glossolalia intensiva não sonora e a caminhada palavra-afecto. No Laboratório 7 a glossolalia intensiva acontece por meio das práticas: estimulação voz tátil da pele timpânica; em deslocamentos no espaço; na instalação sonora ‘coluna vibro acústica’. No Laboratório 8 acontece a partilha dos registros e a cartografia das experiências entre os participantes, encerrando o processo ou instaurando uma fase criativa relacionada a um processo criativo e/ou composicional. Por fim, em baRʊ será descrita a cartografia de três processos criativos em que os laboratórios de glossolalia intensiva foram aplicados: o concerto ECO (2016); o solo vocal Floresta de Nathalia Leter (2019); os solos ecoperformáticos apresentados na mostra de Ecoperformance que aconteceu na Refazenda Santa Maria (2018). Até aqui, suprimi desta introdução dois termos conceitos muito importantes, justamente com o objetivo de destacá-los. Referem-se às descobertas que aconteceram no decorrer desta pesquisa: a ‘impedância’ e a ‘esquizovocalidade’. A impedância foi apontada por Wladimir de Mattos, logo nos primeiros experimentos dos laboratórios que aconteceram no Instituto de Artes. A noção de impedância – e seus princípios físicos de reatância e resistência – direcionou a investigação para o que será apresentado em aR, nos Parâmetros Articulatórios da Voz. A esquizovocalidade, termo conceito que brotou na fase final da escrita desta dissertação. Refere-se a um estado de presença voco-corpóreo consistido por uma ecologia de práticas. A esquizovocalidade, termo conceito concebido e gestado a partir da esquizopresença (Taanteatro) com a abordagem articulatória (Mattos), devirá por processos de pesquisa, criação e composição entre comuns que virão. 27 pɛdɾɐ 28 Cartografia A Ecosofia, proposta por Felix Guattari em seu ensaio As Três Ecologias vem pautando uma série de estudos, reflexões e ações desde 2003 quando iniciei o projeto Viagens Ecosóficas, que se tratava de uma residência com grupos em reservas ecológicas. Foi a Ecosofia que me levou ao estudo da filosofia da diferença e a me enveredar pelas trilhas da esquizoanálise, e deste modo acessar a cartografia. Desde o Anti-Édipo (2010), passando por Mil Platôs (1997), os autores só nos deixam pistas sobre a cartografia, pistas estas que vão se delineando à medida em que entramos em contato mais íntimo com suas obras. Até pouco tempo, o que tínhamos sobre Cartografia, para além das obras fundantes, girava em torno dos escritos da Suely Rolnik, especialmente o Micropolítica e Cartografias do Desejo (1999). Mais recentemente, duas publicações organizadas por Kastrup e Passos (2009; 2014), contribuíram para um aprofundamento do tema da Cartografia, principalmente no âmbito da saúde e sociedade. Nos dedicamos ao estudo destes livros no N’ME – Núcleo de Estudos sobre Metodologias de Pesquisa em Artes, coordenado pelo Wladimir de Mattos e criado inicialmente por mim e Mirian Steinberg no PPG Artes do IA Unesp. A cartografia é um método aberto de pesquisa com uma permeabilidade singular aos acontecimentos e mutações do pesquisador, do artista e de qualquer um que queira acompanhar o fluxo e os afectos de sua própria transformação em relação à experiência com o seu tempo e a sua produção. Mergulhado nas intensidades de seu tempo e atento às linguagens que encontra, é tarefa do cartógrafo dar expressão para afectos que pedem passagem, devorando os elementos possíveis para a composição de cartografias que se fazem necessárias. Tarefa que demanda a singularização dos processos e, ao mesmo tempo, uma cena singular para acontecer e para ganhar consistência na articulação de técnicas e práticas que tem algo de inevitável no instante de seu acontecer, onde só importa a emergência do novo. O trabalho com a cartografia tende a uma abertura incessante, um tanto vertiginosa, que contrasta com um delicado plano de organização na escrita, na transcrição dos acontecimentos, mas que na medida em que se formalizam, voltam a produzir mais acontecimentos, movimentar outros afectos, e produzir mais e mais diferença. Tornar as forças, no âmbito da imanência, formas, no âmbito da escrita, ou seja, produzir abstrações, instaura um vai e vem, uma ondulação dinâmica que é muito surpreendente. Esta tensão contínua entre estes planos, o das forças e o das formas, é extremamente fértil, e ascende um contínuo desejo de vida e de ir mais e mais além. Mas em dados momentos, é necessário cortar os fluxos. Faz parte do exercício cartográfico, suportar o tranco destes cortes... mas também saber do 29 inevitável: muitas outras linhas conectivas se farão, quase que imediatamente aos cortes. Afinal o rizoma não tem início ou fim, ele é só meio. Um meio que continuamente prolifera. Considero muito importante, incluir como a esta pesquisa-criação dissertação, a perspectiva cartográfica que se articula diretamente com o conceito de Ecosofia de Guattari, afinal este conceito perpassa a tudo, o fora, o dentro, os objetivos e as finalidades, mas sobretudo é o que se movimenta no cerne e no que consiste o cerne, compondo uma eco-ética- estética para este trabalho. Ecosofia Ao registrar as três ecologias – a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana, Guattari manifesta sua indignação perante um mundo que se deteriora lentamente. Mostra que o planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico- científicas, mas estas engendram fenômenos de desequilíbrios ecológicos que ameaçam a vida em sua superfície. Os modos de vida individuais e coletivos estão em progressiva deteriorização e as relações afetivas, familiares e sociais, cada vez mais padronizadas, estão reduzidas a sua mais pobre expressão. A relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica – se encontra num movimento de implosão e infantilização regressiva. Considera as formações políticas incapazes de lidar com esta problemática, uma vez que dimensionam ecologia enquanto danos industriais, de modo tecnocrático. Guattari aponta que só mesmo uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos, a ecosofia é que poderia esclarecer convenientemente tais questões. Diz que a verdadeira resposta à crise ecológica é uma “autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais”. Revolução “não só nas relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo” (2003, p. 9). Mesmo que sejamos levados a pensar que esta é uma fase de declínio, com todo o serialismo da mídia (mesmo ideal de status, modas, música), “por toda parte surgem reivindicações de singularidade” (2003, p. 12), como as ecológicas e a das chamadas minorias, das mulheres, dos jovens em relação à música, dos homossexuais, etc. Em todas as escalas individuais e coletivas, trata-se de “debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização 30 individual e/ou coletiva” (2003, p. 15), tanto da vida cotidiana, como na reinvenção da democracia. Disso decorrerá uma recomposição das práticas sociais e individuais que agrupo segundo três rubricas complementares – a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental – sob a égide ético-estética de uma ecosofia (GUATTARI, 2003, p. 23). Ecologia da subjetividade Guattari aponta para a necessidade de reinventar as nossas relações intrapessoais “com o corpo, com o fantasma (inconsciente), com o tempo que passa, com os ‘mistérios’ da vida e da morte”, procurando “antídotos para a uniformização midiática e telemática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens etc”. Deixa claro que a maneira de reinventar a singularidade está mais para a arte do que para a ciência quando afirma “os profissionais ‘psi’, [estão] sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade” (2003, p. 16). Em relação ao conjunto dos campos “psi”, afirma que este se “instaura no prolongamento e em interface aos campos estéticos” (2003, p. 21). Neste sentido “tudo deveria ser sempre reinventado, retomado do zero, do contrário os processos se congelam numa mortífera repetição” (2003, p. 22). Com tais cartografias deveria suceder como na pintura ou na literatura (...), inaugurar aberturas prospectivas, sem que seus autores possam se fazer valer de fundamentos teóricos assegurados pela autoridade de um grupo, de uma escola, de um conservatório ou de uma academia (GUATTARI, 2003, p. 22). Em relação à ética dos profissionais que lidam com a subjetividade, Guattari mostra ser “eticamente insustentável” que estes se abriguem “atrás de uma neutralidade transferencial pretensamente fundada (...) sobre um corpus científico” (2003, p. 21). Privilegia a subjetividade quando diz que “nada nesses domínios está sendo tratado em nome da história, em nome de determinismos infra estruturais!” (2003, p. 16). Guattari critica a forma como “aqueles que dela se ocupam na prática ou na teoria em geral só a abordam usando luvas, tomando infinitas precauções, cuidando para não a afastar demais dois paradigmas pseudocientíficos tomados de empréstimo, de preferência às ciências duras”. E esclarece que lhe parece “urgente desfazer-se 31 de todas as referências e metáforas cientistas para forjar novos paradigmas que serão, de preferência, de inspiração ético-estéticas” (2003, p. 18). Guattari considera importante que ao estabelecer seus pontos de referência cartográficos, “as três ecologias se desprendam dos paradigmas pseudocientíficos”, não só pelo grau de complexidade das entidades consideradas, mas fundamentalmente pelo fato de que “no estabelecimento de tais pontos de referência está implicada uma lógica diferente daquele a que rege a comunicação ordinária” (2003, p. 27). Justifica que (...) a lógica dos conjuntos discursivos se propõe limitar muito bem seus objetos, a lógica das intensidades, ou a eco-lógica, leva em conta apenas o movimento, a intensidade dos processos evolutivos. O processo, que aqui oponho ao sistema ou à estrutura, visa a existência em vias de, ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar. Esses processos de ‘se pôr a ser’ dizem respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a trabalhar por conta própria e a subjugar seus conjuntos referenciais para se manifestar a título de indícios existenciais, de linha de fuga processual (GUATTARI, 2003, p. 27). Guatarri também coloca em foco a dinâmica entre as três ecologias como vetores potenciais de subjetivação e singularização para promover, Em cada foco existencial parcial as práxis ecológicas se esforçarão por detectar os vetores potenciais de subjetivação e de singularização. (...) uma desterritorialização suave pode fazer evoluir os Agenciamentos de um modo processual construtivo (GUATTARI, 2003, p. 28). Especificamente sobre os agenciamentos de enunciação usados para modular nossa subjetividade, coloca a necessidade de “desenraizá-los de seus vínculos pré-estruturalistas com uma subjetividade totalmente ancorada no passado individual e coletivo”. Na ordem do dia coloca “o resgate de campos de virtualidade ‘futuristas’ e ‘construtivistas’”, dizendo que “o inconsciente permanece agarrado em fixações arcaicas apenas enquanto nenhum engajamento o faz projetar-se para o futuro”. Diferente de uma perspectiva clínica ou de laboratório diz que “essa tensão existencial operar-se-á por intermédio de temporalidades humanas e não- humanas”. E entende por estas últimas o delineamento, “o desdobramento de devires animais, vegetais, cósmicos, assim como de devires maquínicos” (2003, p. 20). 32 Acusa o estruturalismo e o pós-modernismo de acostumar-nos a uma passividade acrítica e “a uma visão de mundo que elimina a pertinência das intervenções humanas que se encarnam em políticas e micropolíticas concretas” (2003, p. 23-24). Incrimina “a cegueira quanto ao caráter falacioso da compartimentação de alguns domínios do real”, por injustamente “separar a ação sobre a psique daquela sobre o socius e o ambiente” (2003, p. 24). E é categórico ao afirmar que a recusa a olhar de frente as degradações desses três domínios, tal como isto é alimentado pela mídia, confina num empreendimento de infantilização da opinião e de neutralização destrutiva da democracia. Para se desintoxicar do discurso sedativo que as televisões em particular destilam, conviria, daqui para frente, apreender o mundo através dos três vasos comunicantes que constituem nossos três pontos de vista ecológicos (GUATTARI, 2003, p. 24). Gattari afirma que mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as interações entre ecossistemas, macanosfera e Universos de referência sociais e individuais. “Não somente as espécies desaparecem, mas também as palavras, as frases, os gestos de solidariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma camada de silêncio as lutas de emancipação”. (2003, p. 27) Para Guattari, “A questão da ecologia mental pode surgir a todo momento, em todos os lugares, para além dos conjuntos bem constituídos na ordem individual ou coletiva. (...)” (2003, p. 39) o princípio específico da ecologia mental reside no fato de que sua abordagem dos Territórios existenciais depende de uma lógica pré-objetal e pré-pessoal (...), o ‘processo primário’. Lógica que poderíamos dizer do ‘terceiro incluso’, onde o branco e o negro são indistintos, onde o belo coexiste com o feio, o dentro com o fora, o ‘bom objeto’ com o mau... No caso particular a ecologia do fantasma, o que se requer, a cada tentativa de levantamento cartográfico, é a elaboração de um suporte expressivo singular ou, mais exatamente, singularizado (GUATTARI, 2003, p. 38). “Tratar-se-á de dar conta dessas práticas menos em termos de verdade científica que em função de sua eficácia estético-existencial. (...) a partir dos quais algumas cadeias semióticas trabalharão a serviço de um efeito de auto referência existencial”. Diz isso de modo à “repensar 33 por outra via as diversas tentativas de modelização ´psi´, do mesmo modo que as práticas das seitas religiosas ou os ‘romances familiares’ neuróticos e os delírios psicóticos” (2003, p. 40). E finaliza que “outros objetos institucionais, arquiteturais, econômicos, cósmicos, se constituem tão legitimamente quanto, como suporte dessa mesma função de produção existencial.” (2003, p. 41) Ecologia das relações sociais Para Guattari, a ecosofia social consiste em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho etc. “A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo”. Não somente pelas intervenções ‘comunicacionais’ mas principalmente por “mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade”. Não se atendo às recomendações gerais, mas fazendo “funcionar práticas efetivas de experimentação tanto nos níveis microssociais quanto em escalas institucionais maiores” (2003, p. 16).Tecendo uma crítica ao sistema capitalista global, de modo inclusivo, ao mesmo tempo lúcido do poder que tem sobre a subjetividade, Guattari é duro A ecologia social deverá trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius. Ela jamais deverá perder de vista que o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, ao mesmo tempo em extensão – ampliando seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural do planeta – e em ‘intenção’ – infiltrando- se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. Assim sendo, não é possível pretender se opor a ele apenas de fora, através de práticas sindicais e políticas tradicionais. Tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no domínio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e de ética pessoal. Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência. A subjetividade capitalística, tal como é engendrada por operadores de qualquer natureza ou tamanho, está manufaturada de modo a premunir a existência contra toda intrusão de acontecimentos suscetíveis de atrapalhar e perturbar a opinião. Para esse tipo de subjetividade, toda singularidade deveria ou ser evitada, ou passar pelo crivo de aparelhos e quadros de referência especializados. Assim, a subjetividade capitalística se esforça por gerar o mundo da 34 infância, do amor, da arte, bem como tudo o que é da ordem da angústia, da loucura, da dor, da morte, do sentimento de estar perdido no cosmos... É a partir dos dados existenciais mais pessoais – deveríamos dizer mesmo infra-pessoais – que o capitalismo constitui seus agregados subjetivos maciços, agarrados à raça, à nação, ao corpo profissional, à competição esportiva, à virilidade dominadora, à star da mídia... Assegurando-se do poder sobre o máximo de ritornelos existenciais para controlá-los e neutralizá-los, a subjetividade capitalística se inebria, se anestesia e a si mesma, num sentimento coletivo de pseudo-eternidade (GUATTARI, 2003, p. 33-34). Afastando-se das dialéticas hegelianas e marxistas, e propondo a multiplicidade, diz que “a eco-lógica não mais impõe ‘resolver’ os contrários” (2003, p. 35). Insiste que a nova lógica ecosófica “se aparenta à (lógica) do artista que pode ser levado a remanejar sua obra a partir da intrusão de um detalhe acidental, de um acontecimento-incidente que repentinamente faz bifurcar seu projeto inicial, para fazê-lo derivar longe das perspectivas anteriores mais seguras”. (2003, p. 36) É extremamente humano ao afirmar que devemos “considerar os sintomas e incidentes fora das normas como índices de um trabalho potencial de subjetivação” (2003, p. 34-35). E coloca como essencial que se organizem novas práticas micropolíticas e macrossociais, novas solidariedades, uma nova suavidade juntamente com novas práticas estéticas e novas práticas analíticas das formações do inconsciente. (...) Convém deixar que se desenvolvam as culturas particulares inventando-se, ao mesmo tempo, outros contatos de cidadania. Convém fazer com que a singularidade, a exceção, a raridade funcionam junto com uma ordem estatal o menos pesada possível (GUATTARI, 2003, p. 35). Relaciona o sistema identificatório às semiologias da modelização icônica, possivelmente simbólicas e estruturalistas. Relaciona o processo diagramático às semióticas processuais. E justifica que o que caracteriza um traço diagramático, com relação a um ícone, é seu grau de desterritorialização, sua capacidade de sair de si mesmo para constituir cadeias discursivas conectadas com o referente. Por exemplo, podemos distinguir a imitação identificatória de um aluno pianista com relação a seu 35 mestre de uma transferência de estilo, suscetível de bifurcar numa via singular (GUATTARI, 2003, p. 45). Ao defender a democratização da mídia e das tecnologias de informação afirma ser primordial a ecologia social fazer transitar “essas sociedades capitalísticas da era da mídia em direção a uma era pós-mídia, assim entendida como uma reapropriação da mídia por uma multidão de grupos-sujeito, capazes de geri-la numa via de ressingularização” (2003, p. 46). Ecologia do meio ambiente Em seu ensaio, Guattari escreve pouco sobre a ecologia ambiental de modo direto, mas deixa claro que é da interface das três ecologias, que podem nascer ações políticas mais eficientes em relação ao meio ambiente. a ecologia ambiental, tal como existe hoje, não fez senão iniciar e prefigurar a ecologia generalizada que aqui preconizo e que terá por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique. (...) A conotação da ecologia deveria deixar de ser vinculada à imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados (GUATTARI, 2003, p. 36). É realista ao afirmar que “o princípio particular à ecologia ambiental é o de que tudo é possível, tanto as piores catástrofes quanto as evoluções flexíveis”. Acredita que “cada vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas”. (2003, p. 52). Sendo assim possível engendrar outros territórios de existências. Estes deveriam ser paulatinamente onde quando, a ecosofia que propôs como pratica ética-politica e estética propiciassem um engajamento por uma vida possível, especular outros modos de vida. Um movimento de múltiplas faces, capes de promover outra subjetividade, esta sim instauradora de outro socius, outro “phylum maquinico” e universos técnicos-científicos como referencia, também, outros mundos estéticos (GUATTARI, 2003, p. 53-55). O que Guattari nos apresenta nas Três Ecologias é a necessidade de conceber uma disciplina ético-estética, que de fato aponte para a heterogênese ou seja, a produção de um contínuo processo de ressingularização, onde e quando os indivíduos se tornem ao mesmo tempo solidários e cada vez mais diferentes entre si. 36 Para Guattari a subjetividade através de chaves transversais pode instaurar ao mesmo tempo no meio ambiente, nos grandes agenciamentos sociais e institucionais, e “simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas esferas do indivíduo”, a reconquista da autonomia criativa em muitos campos. Para Guattari essa reconquista da confiança da Humanidade em si mesma pode acontecer, paulatinamente através dos meios os mais minúsculos (GUATTARI, 2003, p. 55-56). 37 fogʊ 38 Glossolalia São escassos os estudos e as produções escritas em português referentes à glossolalia. Restringem-se a citações fragmentadas traduzidas de publicações estrangeiras. A maior parte da literatura, incluindo a estrangeira, é voltada para o fenômeno do falar em línguas da tradição cristã, a xenolalia. Quando o objeto é distinto desse, as pesquisas se direcionam para a área da comunicação com foco em aspectos linguísticos e semióticos da glossolalia e também ao contexto da psiquiatria moderna, que se apropria do termo para fazer registros nosográficos de transtornos mentais, o psitacismo. No entanto, é importante destacar a dissertação de mestrado do ator/pesquisador Gil Roberto de Almeida (UnB) como publicação em língua portuguesa exclusivamente voltada ao tema da glossolalia. Trata-se de uma ampla pesquisa bibliográfica, histórica e conceitual com ênfase na obra de Artaud e no contexto da performance vocal nas artes sobretudo da primeira metade no século XX. Desde 2016 em interlocução com Almeida, listei semelhanças entre nossas pesquisas: performance vocal, glossolalia, Artaud, filosofia da diferença. Mas no sentido de me afastar das semelhanças foi que listei as diferenças entre nossos traballhos: minha formação musical e corporal, o pensamento composicional, a relação com a voz fincada em sua fisiologia e na abordagem articulatória voltada para a dicção no canto (Mattos, 2014), sobretudo o bel canto, e, acima de tudo, o diálogo com a música e a dança, suas partituras e seus procedimentos. Em contraste com a produção de Almeida destaco: a formação do ator, o pensamento dramatúrgico, as técnicas vocais voltadas à oralidade em conexão com a textualidade e em diálogo com o teatro e seus procedimentos. Por fim, há uma diferença enfática: Almeida investe na pesquisa bibliográfica e nas experimentações livres; esta pesquisa é centrada na sistematização de laboratórios voco-corpóreos consistidos por uma ecologia de práticas. Nesta parte da dissertação, tomo o caminho trilhado e generosamente disposto por Almeida como um guia para compor uma noção geral sobre glossolalia. Comprometido com o bom uso criativo de seu material, procurei fazer rizoma, ampliar multiplicidades e potencializar a prática glossolálica, num diálogo que aumenta nossa potência de viver como artistas. Compartilho a sensação de que nossos trabalhos se complementam, o que me motiva a recomendar fortemente a leitura de ambos. A glossolalia é um terreno fértil de encontros para semear e fazer brotar nascimentos. No mais, para uma diferenciação terminológica entre inúmeros fenômenos vocálicos que se confundem com a glossolalia, indico o Glossolalium, que se encontra na dissertação de Almeida (2015, p. 87-101). Trata-se de um levantamento primoroso que resultou num 39 glossário de verbetes, onde destaco: lalíngua (lalação do bebê, num jogo onomatopeico ligado à figura materna, que media sua relação com a linguagem); lord chandos (falar possuído ou no lugar de um animal ou matilha); xenolalia (falar uma língua estranha, dom de línguas do novo testamento); zaoum (língua inventada por Velimir Khlébnikov, poeta vanguardista russo do século XX, a partir de unidades fundamentais do alfabeto como consoantes e vogais). Do grego, a palavra glossolalia advém de glossa (língua enquanto órgão fonador, dialeto, linguagem) + lalein (verbo falar, e daí lalação, tagarelice, balbucio, loquacidade). A origem de glossa é obscura e guarda imprecisões históricas e conceituais. Almeida (2015) se apoia nas considerações feitas por Alessandra Pozzo em seu livro tese de doutorado La glossolalie en Occident, e recorre também a Michel de Certeau, cuja reflexão deu fundamento a Pozzo para uma definição de glossolalia no contexto artístico. Pozzo analisa a evolução do termo glossa a partir de um estudo feito por Louis Holtz. Faço aqui uma síntese sobre suas considerações. Glossa, aparentemente e sem precisão temporal, teria sido derivada de glokes (barba de épi) ou ainda glokis (ponta), tendo o sentido de língua enquanto órgão da fonação, uma língua pontuda. "A forma glôssais lalein constituiria, verossimilmente, um sentido ligado à noção de glossa, mas transposto às formas orais específicas ao falar inspirado do início do cristianismo." (POZZO, 2013 apud ALMEIDA, 2015, p. 52). Segundo Almeida (2015) a glossolalia se liga a uma prática enunciativa que é marcada pela ininteligibilidade e pela necessidade de se explicar o desconhecido, sobretudo num contexto oral. Mais comumente, a glossolalia refere-se ao falar em línguas ou dom de línguas como prática oral nas igrejas pentecostais, na descida do Espírito Santo, como manifestação da voz de Deus. No entanto, a glossolalia não é um fenômeno religioso estritamente cristão, pois fazia parte de práticas pagãs, sobretudo em contextos marginais, como é o caso das práticas oraculares e outras liturgias na Grécia antiga. Devo acrescentar que é também associada às ritualísticas oriundas das diásporas africanas e presentes nas culturas dos povos originários do continente americano. Do mesmo modo os Inuit, os aborígenes, os povos asiáticos também produzem seus tipos de glossolalia. Esta língua não é o idioma, mas uma espécie de língua composta de neologismos, cujos vocábulos inarticulados entre si não portam valor de significação, mas pura sonoridade. Para Maurício Eugênio Maliska (2010, p. 252), “Na glossolalia, importa o ato de dizer – a enunciação – que se anuncia singularmente a cada instante, e não o que é dito, até porque o dito, em geral, na glossolalia, não comunica nada”. 40 Em seu artigo Utopies Vocales: glossolalies, Michel de Certeau (1980) define a glossolalia como o ato de falar em línguas, língua estranha, língua bárbara, falar extático, neolíngua, o ato de forjar uma língua como se ela fosse nova ou desconhecida. Mesmo como gesto espontâneo de conexão entre crianças e adultos quando brincam com os sons da língua; de forma lúdica quando explorada no contexto das artes, se trata de um “conjunto de sons articulados dentro de um determinado ritmo e cadência capaz de provocar nos seus praticantes transes de diversas ordens. [...] faz com que os sujeitos se entreguem a sonoridade e a musicalidade dessa língua de uma forma a serem conduzidos por ela”. (MALISKA, 2010, p. 249). Sobre o transe na glossolalia nos diz Almeida, Sua relação íntima com o transe, com estados incomuns de consciência, com o arrebatamento em liturgias e celebrações religiosas, com o furor do entusiasmo, ou mesmo com a incompreensão ante fenômenos relacionados a desequilíbrios psíquicos e distúrbios da linguagem, de uma forma ou de outra, remontam a um aspecto desagregador e liberador de experiências humanas ligadas ao som da voz. (ALMEIDA, 2015, p. 55). Maliska detém-se sobre a polifonia e polirritmia presentes na glossolalia como manifestação da voz, enquanto articulação entre som e ritmo. Afirma que A glossolalia é polifônica por produzir vocalizações que demonstram uma diversidade sonora, uma diversidade de vozes; também é polirrítmica, por produzir ritmos cadenciados em suas vocalizações, não se tratando, portanto, nem de um único som, tampouco de um único ritmo. (MALISKA, 2010, p. 250) Para Almeida (2015) em qualquer contexto, a glossolalia relaciona-se com uma instabilidade, seja do discurso, seja da vocalização, seja do texto escrito, sempre como transbordamento e excesso de um código, norma ou de uma estrutura. Alguns princípios são evidenciados em diversos contextos de práticas glossolálicas: a marginalidade, a desestabilização de contextos e uma noção de ininteligibilidade e estranhamento. Uma enunciação glossolálica é, antes de tudo, fazer vibrar pelo som, movimentar um corpo, tornando-o presente pela voz enquanto fenômeno da matéria, tornando a experiência uma singularidade vocal, pois um corpo que 41 fala é um corpo que vibra, (...) reencontro com uma fala ancestral, primeva. (ALMEIDA, 2015, p. 42). Almeida (2015) aponta que é justamente no sentido da instabilidade e da obscuridade dessas práticas que se apoiará uma noção de voz cujo excesso faz transbordar várias fissuras que situam-se entre estratos mais estáveis, pois seu caráter marginal a coloca na convergência de práticas que, durante toda sua história, ou melhor, suas histórias, investiram no nomadismo para além dos limites institucionais, desestabilizando o logos de uma visão de mundo, que têm no controle, na oficialidade e normatização, princípios que regulam as relações. Almeida chama a atenção para uma utopia vocal religiosa, como é o caso do dom de línguas, ao traduzir o texto de Certeau (2013 apud Almeida, 2015, p. 58), "A utopia é para o espaço social o que a glossolalia é para a comunicação oral, circunscrevendo-se em um simulacro linguístico tudo o que a voz realiza além da língua uma vez que ela a fala." Esta utopia se apoia na obrigação em relação ao sagrado e na credulidade. Em seguida ele menciona uma segunda utopia vocal, uma utopia poética diferente da religiosa e que se apoia na ausência de obrigação, pois há uma permissão de jogar com a língua. De maneira distinta, ela se apoia na incredulidade (um senso lúdico sobre a insensatez dos significados) mais que sobre uma crença na palavra. Seria um espaço utópico ofertado à voz pela criação artística, por exemplo. As glossolalias de Artaud, como uma ficção do dizer, se apoiam sobre um falar articulado, no caso a língua francesa, e procede a uma cirurgia nessa mesma língua, de forma a experimentar as virtualidades da voz. Dessa forma, ele possibilita uma utopia vocal poética na visão de Certeau. (ALMEIDA, 2015, p. 58). A poesia sonora, a música erudita contemporânea, as vanguardas europeias do início do século XX, a exemplo da poesia dadaísta, assim como a prática do grommelot e as experiências de Artaud são exemplos em que a linguagem dançou ao som de um delírio poético. Questão recorrente entre os estudiosos da glossolalia é a sua relação com o sentido e o significado. Pertinente a esta questão, é comum aos pensadores estruturalistas e da pós- modernidade tomarem a glossolalia como um regime de exceção referente a um regime de signos. Já os pensadores pós-estruturalistas com quem faço aliança neste trabalho, na medida em que ampliam seus interesses para além dos sistemas redutivos e totalizantes, tomam a glossolalia como acontecimento inerente ao viver, o que a conecta a um plano de variações infinitas. Por esta perspectiva, apostam em um campo de potencialidades para a criação 42 estética, em processos de ressingularização, na produção de diferença e na reinvenção dos modos de viver, como proposto por Félix Guattari em As Três Ecologias (1990). Michel de Certeau (1980, p. 30, tradução nossa)5 aponta que, ao longo da história, existiu uma tentativa de “trazer de volta esta delinqüência vocal a uma ordem de significado”, onde para dar sentido ao sem sentido, buscou-se formas de interpretação, de exegese e mesmo hermenêuticas psiquiátricas, religiosas, pedagógicas e filosóficas. A glossolalia não é uma língua, mas é uma condição para que haja línguas. Ela é a riqueza do dizer pelo simples dizer, é o ato enunciativo que não traz um enunciado nem performativo, nem constatativo, é uma pura enunciação. A tentação é a de buscar um sentido na glossolalia, buscar um querer dizer alguma coisa, como se a glossolalia tivesse um sentido escondido em alguma parte ainda não descoberta, mas que obrigatoriamente haveria um querer dizer algo. O que está em jogo nessa insistência pelo sentido é a recusa da castração, recusa em se deparar com o sem sentido. Para Maliska (2010, p. 248) “a voz é glossolálica; o sujeito, no seu balbucio vocal, emana uma enunciação sem enunciado, vocaliza na sua fala algo que não é discurso, algo que não está atrelado ao sentido e sim ao puro som e ritmo”. A glossolalia é a quebra do sentido para a emergência da voz enquanto corpo, ou melhor, um pedaço de corpo que dele se desprende para ganhar o sem sentido do som, onde “há uma relevância da voz em relação à fala, em que importa mais o som do dizer do que o próprio dizer” (MALISKA, 2010, p. 250). Vocalizes rítmicos perfilam “um jogo de forças cuja potência se mostra não por aquilo que se pode comunicar, mas por aquilo que se pode transmitir, em algo que está para além do sentido e que toca na voz como portadora dessa transmissão.” (MALISKA, 2010, p. 251). Deleuze e Guattari em Postulados da Linguística (2002, p. 13) vão dizer que toda a linguagem é discurso indireto, sobretudo discurso indireto livre: "Existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto.", assim, todos os ruídos e tudo aquilo que rumora para um aquém ou um além da linguagem, estaria numa virtualidade glossolálica. Algo na glossolalia ultrapassa a voz do indivíduo, ela é uma coletividade. Esta virtualidade é o que coloca a língua em estado de experimentação ou, como eles chamam, variação contínua, em operações de a-significância e dessubjetivação, visto que programa inverso a este será feito pelo discurso direto. 5 “ramener cette délinquance vocale à un ordre de signifiés” CERTEAU, 1980, p. 30. 43 A expressão atípica constitui um extremo de desterritorialização da língua, representa um tensor, isto é, faz com que a língua tenda em direção a um limite de seus elementos, formas ou noções, em direção a um aquém ou a um além da língua. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 44). Podemos agora aproximar a glossolalia, mas não fixá-la, a alguns conceitos psicanalíticos, referentes aos processos pré-linguísticos da voz. Glossolalia como pré-linguagem Lacan (1998, p. 238-324), em O inconsciente é estruturado como uma linguagem anuncia a lalangue (alíngua). Destaque para o artigo indefinido uma: Uma língua muito particular, em que não há tradução, por não haver compartilhamento de vocábulos e palavras, por esses serem completamente singulares. Trata-se de uma língua singular, aquela que é inscrita no sujeito, ao modo de uma tatuagem vocal, e que o deixa com uma marca ao mesmo tempo em que o marca, que o inscreve e o convoca como sujeito. É uma pura lalação, uma glossolalia, sem predicado, a voz da mãe que faz eco no sujeito, ou o canto materno que tem o poder de inscrever algo no sujeito por aquilo que ele veicula em termos de chamado, enquanto invocação e desejo. A ordem da lalangue, ou se quiserem, alíngua, ou ainda, lalíngua, não é também o sonoro ou o som, mas o que desse som há enquanto invocação, enquanto voz que procede a um chamado, algo capaz de despertar o sujeito, algo capaz de colocá-lo em movimento. (MALISKA, 2010, p. 249). Essa lalação oriunda da mãe é glossolálica. É dessa forma glossolálica que o sujeito é invocado, pois a invocação não se dá pelo sentido ou pelo significado da fala da mãe, mas sim por aquilo que ela transmite de seu desejo através dos vocalises que emite. A glossolalia na invocação não tem a ver com a semântica ou sintaxe da língua (idioma) da mãe, mas o quanto ela coloca o ser como objeto de seu desejo e o quanto invoca este objeto a se tornar sujeito através da invocação. A mãe não invoca falando através de uma língua ─ português, inglês, italiano ou qualquer outra ─ mas invoca e transmite algo de seu desejo falando em línguas, glossolando, falando em lalangue, esta língua singular que irá constituir o sujeito. A glossolalia também pode ser entendida como uma pré-linguagem, uma espécie de balbucio que posteriormente se manifesta no sujeito como um 44 resto vocal daquilo que permaneceu nele desse momento mítico que antecede a linguagem. Um resto que retorna na voz, não como um resquício, mas como aquilo que caracteriza a própria voz, o resto como aquilo que permanece. (MALISKA, 2010, p. 255). Segundo Certeau (1980, p. 34, tradução nossa)6 a glossolalia “[...] repete as fonações infantis, isto é, os primórdios da fala, mas com vistas a instaurar um teatro para futuras operações lingüísticas.” Peter Pal Pelbart, ao discorrer sobre as críticas que Artaud faz sobre a linguagem, traz uma visão psicanalítica: Trata-se aí do prazer fonatório, da experimentação da materialidade verbal, das pulsões libidinais investidas na linguagem. Como na criança, que em seus primeiros balbucios mobiliza todo o corpo numa gesticulação global: a linguagem é então vivida como puro dispêndio gestual, jubilação muscular, polifônica e rítmica. O sentido advém secundariamente, como diferenciação interna dessa atividade e como recalque progressivo de seus componentes somáticos e libidinais. Sabe-se que as crianças, (...) primeiro "falam" por intermédio da gestualidade pulmonar, glótica e labial, produzindo uma espécie de simulacro, para depois precisar e diferenciar os sentidos correspondentes à sua língua. "A lógica gestual do sistema fonemático prevalece sobre seu uso comunicativo", explica Michel Thévoz, acrescentando que mesmo depois de adquirida a linguagem materna, as crianças fazem constantemente a experiência libidinal do funcionamento vazio da linguagem. "Elas discorrem por discorrer, por pura euforia elocutória." Só com o tempo essa gestualidade, dinamismo e corporeidade da matéria sonora deve transladar-se para além da barra que em nossa cultura separa o significante do corpo fisiológico [...]” (PELBART, 1989, p. 148). A partir destas observações, fica clara a diferença entre a expressão fonoarticulatória como sentido e a expressão fonética como significado. Na filosofia da diferença, o sentido está ligado à imanência do acontecimento e não colado ao significado; este, paira sobre o acontecimento em ato, sendo apenas uma das linhas de expressão fonética. 6 “[...] ‘répète’ les phonations enfantines, c’est-à-dire les commencements du parler, mais en vue d’instaurer un théâtre pour des opérations linguistiques à venir.” Certeau (1980, p. 34) 45 Glossolalia como pós-linguagem Evocando novamente a noção de utopia vocal em Certeau, Almeida (2015) aponta que esta traz consigo as possibilidades de uma reflexão sobre uma glossolalia na arte, sobretudo, para a voz em performance. Em cada glossolalia combina-se algo de pré-linguagem, relativo a uma origem silenciosa ou ao 'ataque' da palavra falada, e algo de pós-linguagem, feito de excesso, de transbordamentos ou de resíduos de língua. Assim como o mito, estas ficções juntam o antes e o depois do dizer para construir o artefato em que ele se joga. (CERTEAU, 2013 apud ALMEIDA, 2015, p. 59, tradução do autor). Partindo destas reflexões de Certeau, Pozzo vai chamar de glossolalia lúdica, gênero distinto da glossolalia religiosa, práticas que abarcam a criação artística. O fundamento destas glossolalias seria a transgressão das normas linguísticas, efetuadas no campo da arte. Jogar e brincar com a língua constituiu um modo de operar um delírio, uma mudança de sentido, ou melhor, uma ampliação de sentidos. (ALMEIDA, 2013). Florence de Merèdieu, biógrafa de Artaud, comenta as investigações glossolálicas dele enquanto esteve internado: As cantilenas, os rituais e encantamentos fazem parte, desde o período de internação, desse pequeno teatro pessoal que Artaud construiu para si pouco a pouco, teatro afetivo, e muito físico, que lhe serve de proteção contra o mundo exterior. A oralidade tem, no seio desse dispositivo defensivo, papel primordial. Artaud canta, cantarola, uiva e salmodia estranhas canções. A origem dessas glossolalias é múltipla. Elas se enraízam, como vimos, na fascinação de Artaud por certas melopeias selvagens (como as dos índios mexicanos descobertas em Paris dos anos de 1930). Mas elas remetem também aos cantos religiosos de infância e (e de modo fantasmático e mítico) aos primeiros cantos da Igreja Cristã. As glossolalias são, enfim, o que ousaríamos chamar “um gênero psiquiátrico”, os médicos designando desse modo essas sílabas ou essa linguagem inventada, tão frequente entre os loucos. E Artaud, o louco e internado, no decorrer dos anos, passou a dominar perfeitamente as glossolalias. (MERÈDIEU, 2011 apud ALMEIDA, 2015, p. 63). 46 Em relação a esta citação, Almeida (2015) critica o reducionismo na leitura psiquiátrica da biógrafa acerca das expressões "proteção contra o mundo exterior", "dispositivo defensivo" ou ainda "gênero psiquiátrico", e argumenta que estes termos colaboram com uma visão mais restrita e generalista sobre esta produção de Artaud, o que minimiza a potência com que a obra desse período tem impactado produções contemporâneas na filosofia e nas artes. “De qualquer forma, havia uma confluência de fatores que evidenciavam o caráter fronteiriço de suas criações: elocuções de um louco ou uma prática lúcida da crueldade?” (ALMEIDA, 2015, p. 64). Por fim, retoma a crítica de Derrida: por que uma ou outra coisa? Para o próprio Artaud, para citar somente uma das suas críticas à linguagem, Não gosto dos poemas ou das linguagens de superfície e que respiram ócios felizes e êxitos do intelecto, mesmo que este se apoie no ânus, mas sem que se empenhe nisso a alma ou o coração. O ânus é sempre terror e não admito que percamos um excremento sem nos dilacerarmos com a possibilidade de que aí percamos também nossa alma. Podemos inventar nossa própria língua e fazer falar a língua pura com um sentido extra gramatical, mas é preciso que este sentido seja válido em si, isto é, que venha do pavor... (ARTAUD, "Carta a Henri Parisot", Lettres de Rodei, GLM, 1946 apud PELBART, 1989). A glossolalia, como prática marginal, diz Almeida (2015), tem uma relação com tudo aquilo que fere determinadas normas, apontando para uma incompreensão de significados e, muitas vezes, até mesmo de um sentido imediato. Também se relaciona com uma experiência fundadora da produção do som por meio do corpo, ou seja, enquanto vocalizo, reverbero e faço a matéria ressoar-me. Se consideramos a glossolalia como um limite ao qual não se chega nunca, pois trata-se de um devir da experiência vocal, sempre em algum tipo de processo fronteiriço, entre isto e aquilo, suas práticas se valem de segmentos e estratos para o delírio da voz. Trata-se de uma vocalização cujo excesso, o resto e a desmedida, agregam valores ruidosos, amorais, ininteligíveis e evoca as singularidades do desconhecido. A glossolalia, ao desenredar uma voz dos estratos da língua, confere potências a esta voz de modo a suplantar os territórios estabelecidos da prática vocal – bel canto, recitação, sprechgesang, recursos vocais empregados na música futurista e concreta, belting e modelos de cantos populares e mediatizados (COLI; VALENTE, 2012). 47 Após sucintas considerações sobre como a glossolalia é comumente entendida no âmbito da religião, da psiquiatria, da linguística e da psicanálise, pretendo contornar a glossolalia ao território da arte, especialmente no âmbito voco-corpóreo: a prática glossolálica como uma possibilidade de investigação, criação e expressão artística na indissociação voz- corpo. Por fim, a prática glossolálica transforma terrenos inóspitos, ininteligíveis, borrados e indiscerníveis em territórios sonoros prenhes de potencialidades. Nesta experiência, a vocalidade não tem como base a qualidade vocal comum ao processo de aprendizagem e condicionamento relativos às vocalidades próprias das práticas músicais relativas à música tonal do ocidente; saber desafinar é tão necessário quanto saber afinar; a voz estridente, instável ou fraca em projeção não é menos importante que a voz limpa, controlada e projetada; a incomunicabilidade torna-se mais potente que a comunicabilidade; um grito, sujeiras, impropérios e obscuridades vocais não são menos cativantes que melodias tonais claras e palatáveis. Antes disso, reflete-se sobre contextos e territórios que importam paletas vocais e elevam ao infinito as múltiplas possibilidades de experimentação que possam dar conta de uma performance e de uma cena performática contemporânea. Glossolalia Intensiva O quê pode conferir à glossolalia uma qualidade intensiva? Não seria intensiva toda glossolalia? Existe uma glossolalia extensiva? Para desenvolver estas questões, se faz necessário consistir um plano através de conceitos que, articulados entre si, podem definir uma qualidade intensiva para a glossolalia. Assim, em diálogo com a filosofia da diferença, apresento as noções de afecto e de intensidade. Em seguida, apresento uma noção de corpo sem órgãos forjado por Artaud, equivalente aos conceitos de plano de imanência e de grau zero em Deleuze. Por fim, apresento uma noção de esquizopresença, conceito de Maura Baiocchi que define um estado de presença que articula o corpo sem órgãos à intensidade. Tomei como interlocutores Deleuze e Guattari, especialmente as idéias presentes em Lógica do Sentido (2003), O Anti-Édipo (2010) e Mil platôs (1997). Tomei como guia para a apresentação destas noções, a tese de doutorado em filosofia de Cíntia Vieira da Silva (2013), publicada em livro pela Editora Unicamp, com o título Corpo e pensamento: alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. Por último, empresto dos livros da Taanteatro Cia (2016, 2018) as considerações sobre esquizopresença. 48 Afecto e a potência de agir-pensar como gesto O afecto, grafado deste modo em consonância com o uso técnico que Deleuze faz do termo Espinosista, “é o efeito do encontro entre corpos e, como tal, envolve aumento ou diminuição da potência de agir e da potência de afetar e ser afetado dos modos por ele implicados.” (SILVA, p. 21). Assim compreendido, a interioridade psicológica não é distinta da exterioridade corpórea, ou seja, os afectos são concebidos como uma modalidade de pensamento que não passa pela representação. Segundo Silva (2013, p. 24), os afectos são o registro mental dos efeitos das intensidades sobre o corpo. As intensidades são a primeira dimensão da individualidade segundo a leitura deleuziana de Espinosa. As intensidades são as diferenças ainda não qualificadas, ou aquilo que permite que venhamos a perceber as qualidades. O aumento da potência de agir do corpo constitui um afecto alegre, enquanto que sua diminuição, um afecto triste. Como estabelece Espinosa (2014, v. 4, p. 222) na proposição 28 da terceira parte da Ética “tudo o que imaginamos que conduz à alegria, esforçar-nos-emos por fazer de modo a que se produza; mas tudo o que imaginamos que lhe é contrário ou conduz à tristeza, esforçar-nos-emos por afastá-lo ou destruí-lo”. Tal proposição “recorre justamente à igualdade e à simultaneidade entre a potência de pensar da mente e a potência de agir do corpo.” (SILVA, 2013, p. 201). A quarta parte da Ética mostra que nosso corpo pode ser afetado de muitas maneiras ao mesmo tempo. Neste sentido, a capacidade de ser afetado relaciona-se à possibilidade de nos tornarmos ativos e livres. “Por outro lado, tal capacidade deixa-nos vulneráveis porque sujeitos as oscilações que dependem do acaso, da fortuidade dos encontros com corpos que podem ora nos afetar de alegria, ora de tristeza.” (SILVA, 2013, p. 201). A igualdade entre as potências de agir e pensar entretém uma relação com a diversidade. “Ambas as potências são iguais e se desenvolvem revelando uma igualdade de aptidões para exprimir toda a diversidade contida na natureza do corpo e da mente. Tal diversidade deriva do caráter compósito do corpo e da mente” (SILVA, 2013, p. 212), onde não há uma relação de causalidade recíproca entre mente e corpo. Os afectos manifestam de modo privilegiado a simultaneidade entre o que se passa no corpo e na