UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RENAN BRANCO RUIZ “O NOVO RUMO PARA A MÚSICA POPULAR”: a Vanguarda Paulista Instrumental entre as permanências e rupturas do jazz no Brasil (1920 – 1980) Franca 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RENAN BRANCO RUIZ “O NOVO RUMO PARA A MÚSICA POPULAR”: a Vanguarda Paulista Instrumental entre as permanências e rupturas do jazz no Brasil (1920 – 1980) Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca – como requisito para obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. Orientador: José Adriano Fenerick Co-orientador: Pedro Cravinho Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Código de Financiamento 001. Franca 2023 R934" Ruiz, Renan Branco "O novo rumo para a música popular" : a Vanguarda Paulista Instrumental entre as permanências e rupturas do jazz no Brasil (1920 – 1980) / Renan Branco Ruiz. -- Franca, 2023 485 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: José Adriano Fenerick Coorientador: Pedro Cravinho 1. Música Popular. 2. Jazz. 3. Modernismo. 4. Ditadura Militar. 5. Cultura Brasileira. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. RENAN BRANCO RUIZ “O NOVO RUMO PARA A MÚSICA POPULAR”: a Vanguarda Paulista Instrumental entre as permanências e rupturas do jazz no Brasil (1920 – 1980) Aprovada em: 01/11/2023 Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca – como requisito para obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. José Adriano Fenerick Universidade Estadual Paulista (Orientador) _____________________________________ Prof. Dr. André Acastro Egg Universidade Estadual do Paraná/Universidade Federal do Paraná _____________________________________ Prof. Dr. Adélcio Camilo Machado Universidade Federal de São Carlos _____________________________________ Profa. Dra. Márcia Tosta Dias Universidade Federal de São Paulo _____________________________________ Prof. Dr. Petrônio José Domingues Universidade Federal de Sergipe AGRADECIMENTOS Este trabalho não seria possível sem a ajuda de muitas pessoas, grupos e instituições. A meus pais, por me proporcionarem (a partir de um trabalho árduo e do incentivo aos estudos) trilhar e sonhar com caminhos que eles não tiveram a chance. A Isabella Andrade, companheira de vida, pelo amor, paciência, força e compreensão nos momentos mais difíceis. Te amo! Ao Prof. Dr. José Adriano Fenerick, pelo grande incentivo e carinho desde o primeiro contato. E pela grande amizade criada em nossa longa parceria acadêmica, desde a graduação até o encerramento do doutorado. Ao Prof. Dr. Pedro Cravinho (Birmigham City University), pelo carinho, atenção, incentivo e confiança no meu trabalho e em nossas empreitadas. Aos professores Dr. André Egg (UNESPAR/ UFPR) e Dr. Gustavo Pedroso (UNESP-Franca) pelas valiosas considerações durante a banca de qualificação da tese. Aos professores (as) Dr. Adélcio Camilo Machado (UFSCAR), Márcia Tosta Dias (UNIFESP), Petrônio Domingues (UFS) e André Acastro Egg (UNESPAR/UFPR) pela contribuição e presença na banca de defesa da tese. Aos membros do GECU (Grupo de Estudos Culturais-UNESP, Franca) – Vanessa Pironato, Ricardo Arruda, Marco Abraão Conte, José Cesar Fernandes, entre outros – e ao GEJAZZBR (Grupo de estudos Jazz no Brasil) – Marília Giller, Nicolau Clarindo, Laurisabel de Ana da Silva, Thiago Santiago e Luis Sérgio. Aos músicos entrevistados: Rodolfo Stroeter, Bocato, Caito Marcondes, Homero Lotito, Teco Cardoso, Lino Simão e Zé Eduardo Nazário, por cederem seu tempo e suas memórias para a realização deste trabalho. A Tonny Araújo (PPGHis – UFMA), grande parceiro de estudos e escrita de artigos, pela revisão cuidadosa e pelas conversas infinitas que foram o estímulo primordial para a existência deste trabalho. Ansioso pelos nossos projetos em andamento! À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento (Código 001) que tornou este trabalho possível. Aos membros do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Franca, especialmente à Maísa, pelo profissionalismo, dedicação e atenção com os pesquisadores. Ao universo de atividades em torno da UNESP-Franca, pelas experiências vivenciadas durante os anos residindo na cidade, especialmente, aos queridos amigos Vinicius Oliveira (Kirby), André Pimenta, Carlos Manoel (Biscoito), Pedro Giaretta, Carlos Gomes, Leonardo Stockler e Adrian Gonzales por compartilharem, em diferentes ciclos, um lar em comum entre os anos de 2017 e 2021. Durante a longa trajetória de desenvolvimento desta tese, muitos momentos de intensas dificuldades se sobressaíram. Dentre eles, a situação política e social do Brasil durante o governo Bolsonaro (ampliada pelo contexto pandemia) somado as problemáticas de tratar um tema incipiente e muitas vezes negado na produção acadêmica recente, gerou um ambiente de grandes incertezas e indefinições durante quase todo o contexto de produção deste trabalho. Por esses e outros motivos, os mencionados acima tiveram papel fundamental, me incentivando a continuar durante os períodos desfavoráveis deste percurso. Muito obrigado! RESUMO A Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) desponta como objeto de estudo capaz de fornecer indícios sobre as transformações ocorridas no desenvolvimento do jazz no Brasil, durante o final dos anos 1970 e início dos 1980. Formada pelas bandas Meta- lurgia, Pé Ante Pé, Divina Increnca, Pau Brasil e Grupo Um, a VPI incorporou novas concepções ao universo da música popular, baseando suas propostas no experimen- talismo das diásporas jazzísticas daquele período (principalmente o fusion jazz) em atrito constante com uma forte intenção de brasilidade. Essa relação ambígua é o cerne das sonoridades e das retóricas em torno da VPI, constituindo o primeiro eixo da tese. Além dessas questões, relativas às décadas de 1970 e 1980, a VPI também explicita um problema recorrente na relação entre jazz e música popular no Brasil: a presença de um conteúdo nacionalista, gestado no início do longo modernismo brasileiro (1920 – 1980), que impôs barreiras ao desenvolvimento artístico e à aceitação simbólica do jazz como parte da cultura musical brasileira. Desse modo, esta tese se propôs a es- tudar não somente a VPI, mas analisar, também, o engendramento dessa problemá- tica (intenção de brasilidade vs ímpeto experimental diaspórico relacionado ao jazz) na formação da cultura musical brasileira durante o longo modernismo. Durante o período de atividade da VPI, inserido na ditadura militar (1964 – 1985), essa questão condutora foi remodelada com o autoritarismo do regime: tratando-se do ter- ceiro eixo fundamental da pesquisa. Logo após o Ato Institucional 5 (AI-5), houve um período de grandes dificuldades para os instrumentistas. De 1976 em diante, a VPI e o jazz brasileiro viabilizaram formas alternativas de se inserir no mercado fonográfico, a partir das soluções encontradas somente via produção musical independente. Tratando de temas ainda pouco explorados pela historiografia (música instrumental, jazz, ditadura militar, produção independente, entre outros), a presente tese realiza um balanço histórico e bibliográfico sobre a presença do jazz na cultura musical bra- sileira, a partir da complexa relação entre a intenção de brasilidade e o ímpeto trans- nacional, manifestada na trajetória da Vanguarda Paulista Instrumental (1975 – 1986) e no longo modernismo nacional (1920 – 1980). Para tanto, recorreu-se a uma orga- nização específica das temporalidades – de acordo com os objetivos, problemas e o recorte proposto – e a um corpus documental formado principalmente por: periódicos impressos, entrevistas e discografia selecionada, além de uma extensa pesquisa bi- bliográfica. Ao longo dessa investigação foi possível perceber como a VPI e o jazz no Brasil foram formados não somente pelos problemas em torno da brasilidade, como também fica- ram circunscritos e subdimensionados, na memória e na historiografia, pela consoli- dação da MPB e da canção durante o período ditatorial. Palavras-chave: modernismo, ditadura militar (1964 – 1985), jazz, música popular, Vanguarda Paulista Instrumental (VPI). ABSTRACT The Vanguarda Paulista Instrumental (São Paulo’s Instrumental Avant-Garde; VPI) emerges as an object of study capable of providing evidence about the transformations that occurred in the development of jazz in Brazil during the late 1970s and early 1980s. Formed by bands such as Metalurgia, Pé Ante Pé, Divina Increnca, Pau Brasil, and Grupo Um, the VPI combined new concepts into the universe of Brazilian popular music, aligned with jazz diasporas experimentalist proposals of that period (predominantly jazz fusion) in constant friction with a solid intention of Brazilianness. This ambiguous relationship is the thesis’s first axis at the core of the VPI’s sounds and rhetoric surroundings. In addition to these issues, relating to 1970s and 1980s, the VPI also explains a recurring problem in the relationship between jazz and popular music in Brazil: a nationalist presence created at the beginning of the lengthy Brazilian modernism (1920 – 1980), which imposed barriers to artistic development and the symbolic acceptance of jazz as part of Brazilian musical culture. Thus, this thesis proposed to study not only the VPI but also to explore the engendering of this problem: the intention of Brazilianness versus jazz diasporic experimental impetus in forming Brazilian musical culture in the long period of its modernism. During the period of VPI activity, part of the military dictatorship (1964 – 1985), this guiding question was remodeled with the authoritarianism of the regime: this is the third fundamental axis of the research. Soon after Institutional Act 5 (AI-5), there was a period of great difficulties for instrumentalists. From 1976 onwards, VPI and Brazilian jazz enabled alternative ways of entering the phonographic market, based on solutions found only through independent musical production. Dealing with themes still little explored by historiography (instrumental music, jazz, military dictatorship, independent production, among others), this thesis makes a historical and bibliographical assessment of the presence of jazz in Brazilian musical culture, based on the complex relationship between the intention of Brazilianness and the transnational impetus, manifested in the trajectory of the Vanguarda Paulista Instrumental (1975 – 1986) and in the long national modernism (1920 – 1980). To this end, a specific organization of temporalities was used – according to the objectives, problems and the proposed cut – and a documentary corpus formed mainly by: printed periodicals, interviews and selected discography, in addition to an extensive bibliographic research. Throughout this investigation it was possible to perceive how VPI and jazz in Brazil were formed not only by the problems surrounding Brazilianness, but also became circumscribed and undersized, in memory and historiography, by the consolidation of MPB and song during the dictatorial period. Keywords: modernism, military dictatorship (1964 – 1985), jazz, popular music, Vanguarda Paulista Instrumental (VPI). RESUMEN La Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) se destaca como un objeto de estudio capaz de brindar evidencia sobre las transformaciones ocurridas en el desarrollo del jazz en Brasil, desde finales de los años 1970 hasta principios de los 1980. Formada por las bandas Metalurgia, Pé Ante Pé, Divina Increnca, Pau Brasil y Grupo Um, la VPI incorporó nuevos conceptos al universo de la música popular, basando sus propuestas en el experimentalismo de las diásporas jazzísticas de ese período (principalmente jazz fusión) en constante conflicto con una fuerte intención de brasilidad. Esta relación ambigua es el núcleo de los sonidos y la retórica que rodean a la VPI, constituyendo el primer eje de la tesis. Además de estas cuestiones, relativas a las décadas de 1970 y 1980, el VPI también manifiesta un problema recurrente en la relación entre el jazz y la música popular en Brasil: la presencia de un contenido nacionalista, creado al inicio del largo modernismo brasileño (1920 – 1980), que impuso barreras al desarrollo artístico y a la aceptación simbólica del jazz como parte de la cultura musical brasileña. Así, esta tesis se propuso estudiar no sólo la VPI, sino también analizar la generación de este problema (intención de brasilidad versus ímpetu experimental diaspórico relacionado con el jazz) en la formación de la cultura musical brasileña durante el largo período del modernismo. Durante el período de actividad de la VPI, en el contexto de la dictadura militar (1964 – 1985), esta cuestión rectora fue remodelada con el autoritarismo del régimen: este es el tercer eje fundamental de la investigación. Poco después del Acto Institucional 5 (AI-5), hubo un período de grandes dificultades para los instrumentistas. A partir de 1976, la VPI y el jazz brasileño permitieron vías alternativas de ingreso al mercado fonográfico, basadas en soluciones encontradas sólo a través de la producción musical independiente. Abordando temas aún poco explorados por la historiografía brasileña (música instrumental, jazz, dictadura militar, producción independiente, entre otros), esta tesis hace un balance histórico y bibliográfico de la presencia del jazz en la cultura musical brasileña, a partir de la compleja relación entre la intención de brasilidad y el impulso transnacional, manifestado en la trayectoria de la Vanguarda Paulista Instrumental (1975 – 1986) y en el largo modernismo nacional (1920 – 1980). Para ello se utilizó una organización específica de temporalidades – según los objetivos, problemáticas y el corte propuesto – y un corpus documental formado principalmente por: publicaciones periódicas impresas, entrevistas y discografía seleccionada, además de una extensa investigación bibliográfica. A lo largo de esta investigación fue posible ver cómo la VPI y el jazz en Brasil se formaron no sólo por los problemas de la brasilidad, sino que también quedaron circunscritos y subdimensionados, en la memoria y la historiografía, por la consolidación de la MPB y de la canción durante el período dictatorial. Palabras clave: modernismo, dictadura militar (1964 – 1985), jazz, música popular, Vanguarda Paulita Instrumental (VPI). LISTA DE FIGURAS Figura 1: Capa do LP Pau Brasil, 1983...................................................... 42 Figura 2: Capa do LP Pindorama, 1986..................................................... 47 Figura 3: Capa do LP Divina Increnca, 1980.............................................. 56 Figura 4: Capa do LP Pé Ante Pé, 1980..................................................... 68 Figura 5: Capa do LP Imagens do Inconsciente, 1982.............................. 72 Figura 6: Capa do LP Banda Metalurgia, 1982.......................................... 83 Figura 7: Capa do LP Marcha sobre a cidade, 1979.................................. 92 Figura 8: Capa do LP Reflexões sobre a crise do desejo, 1981................ 97 Figura 9: Capa do LP A Flor de Plástico Incinerada, 1982......................... 100 Figura 10: Hermeto Pascoal e Grupo Vice Versa. Disco Viajando Com O Som (The Lost ‘76 Vice-Versa Studio Session), 2017................ 102 Figura 11: Capa do LP Starting Point, Far Out Recordings, 1975............... 106 Figura 12: Jazz Band do Cipó...................................................................... 144 Figura 13: Duduka da Fonseca, Alfredo Cardim, Guilherme Vergueiro, Zé Eduardo Nazário, Edison Machado, Pete Wooley e Ricardo Santos na Chácara Flora, 1971.................................................. 260 Figura 14: Cartaz oficial do 1º Festival Internacional de Jazz São Paulo – Montreaux................................................................................... 297 Figura 15: Cartaz oficial do 2º Festival Internacional de Jazz São Paulo – Montreaux................................................................................... 304 LISTA DE SIGLAS AI – Ato Institucional BN – Bossa Nova CAMJA – Clube de Amigos do Jazz CCSP – Centro Cultural São Paulo CD – Compact Disc CDB – Conservatório Dramático Brasileiro CFC – Conselho Federal de Cultura CLAM – Centro Livre de Aprendizagem Musical DCDP – Departamento de Censura de Diversões Públicas DFSP – Departamento Federal de Segurança Pública DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda DOPS – Departamento de Ordem Política e Social DPF – Departamento de Polícia Federal EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes EUA – Estados Unidos da América FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo FUNARTE – Fundação Nacional das Artes IEB – Instituto de Estudos Brasileiro – Universidade de São Paulo INC – Instituto Nacional do Cinema LP – Long Play MASP – Museu de Arte de São Paulo MDB – Movimento Democrático Brasileiro MEC – Ministério da Educação MIS-SP – Museu da Imagem e do Som – São Paulo MPB – Música Popular Brasileira MPBC – Música Popular Brasileira Contemporânea MPBI – Música Popular Brasileira Instrumental MPIB – Música Popular Instrumental Brasileira MPM – Música Popular Moderna NJS – New Jazz Studies OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo PUC – SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo RMP – Revista de Música Popular SCDP – Serviço de Censura de Diversões Públicas SESC – Serviço Social do Comércio SJ – Samba-Jazz TCDP – Turmas de Censura de Diversões Públicas TV – Televisão UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas USP – Universidade de São Paulo VPI – Vanguarda Paulista Instrumental SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1: SONORIDADES ENTRELAÇADAS: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E ESTÉTICOS NA DISCOGRAFIA DA VANGUARDA PAULISTA INSTRUMENTAL (1975 – 1986) ............................................................................................................ 31 1.1 Diálogos entre história e musicologia: a performance na música gravada e os processos de audição crítica ............................................................................ 31 1.2 “Os pilares da música nacional”: Pau Brasil .................................................. 38 1.3 “O som independente”: A Divina Increnca ..................................................... 53 1.4 “A ótima surpresa da música instrumental”: Pé Ante Pé .............................. 64 1.5 “Som novo e sem preconceitos”: banda Metalurgia ..................................... 78 1.6 “A música de vanguarda”: Grupo Um ............................................................. 90 1.7 Considerações: a Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) ........................... 106 CAPÍTULO 2: AMIGO INDESEJADO: MODERNISMO E JAZZ NO BRASIL (1920 – 1980) ....................................................................................................................... 116 2.1 Origens do modernismo e suas apropriações no Brasil ............................. 117 2.2 Jazz no Brasil: controvérsias de uma história possível .............................. 127 2.3 Convite Para o Baile: as jazz-bands e big-bands (1920 – 1950) .................. 129 2.4 É Samba Novo: a bossa-nova e o samba-jazz (1950 – 1960) ....................... 156 2.5 Brasil Universo: a produção musical independente e a revalorização do choro (1970 – 1980) ............................................................................................... 183 2.6 Considerações: a dialética do jazz no Brasil ................................................ 211 CAPÍTULO 3: PELAS MARGENS DO AUTORITARISMO: O JAZZ NO BRASIL DURANTE A DITADURA MILITAR (1964 – 1985) ................................................. 218 3.1 Jazz e ditaduras: um debate à luz do New Jazz Studies .............................. 218 3.2 Mudanças, continuidades e adaptações da cultura e das artes no regime militar ..................................................................................................................... 219 3.3 No Embalo: a circulação do samba-jazz do golpe ao AI-5 (1964 – 1968) ... 243 3.4 Via Brazil: hegemonia da canção e autoexílio dos instrumentistas (1968 – 1976) ....................................................................................................................... 254 3.5 Imagens do Inconsciente: “abertura política”, liberdade estética? (1976 – 1985) ....................................................................................................................... 282 3.6 Considerações: resistência prosaica e música instrumental ..................... 323 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM NOVO RUMO PARA A MÚSICA POPULAR ..... 325 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 327 APÊNDICES ........................................................................................................... 366 13 INTRODUÇÃO No final dos anos 1970, uma publicação ampla, de página inteira, no Caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo, afirmava categoricamente em seu título: “O novo rumo para música popular: os instrumentistas brasileiros saem do fundo do palco para sacudir a letargia da MPB e revolucionar a cultura de massa”. Assinada por Dirceu Soares e publicada no dia 18 de agosto de 1978, a matéria reconhecia as conquistas da música instrumental e do jazz no Brasil, além de apontar para um futuro inédito, baseado em novas logísticas de produção musical. Entretanto, ao realizar esse diagnóstico, também atentava para uma característica primordial: a intensa dificuldade do instrumentista brasileiro frente ao predomínio da canção no reconhecimento da música popular em território nacional. Conforme o autor destaca: Sem que ninguém perceba – porque as rádios não tocam e as gravadoras estão lançando discos de modo tão discreto que parecem não acreditarem no produto – está surgindo agora no Brasil um novo tipo de música popular de altíssima qualidade, coisa que só se fazia nos países culturalmente adiantados. Comumente este novo tipo começa a ser chamado de “música instrumental” o que é óbvio, mas, ele não é apenas isso: os jovens músicos que, finalmente estão tendo oportunidade de gravar trabalhos individuais, não estão apenas tocando música, estão, sim, construindo música, tamanha é a sua criatividade e segurança com que ocupam espaço [...]” (Soares, 1978, p. 41). Esse artigo de imprensa constitui um indício revelador de um contexto mais abrangente: a transição do lugar social das práticas jazzísticas e da música instrumental no escopo da música popular brasileira. Além disso, também sinaliza para aspectos da formação da produção musical independente como uma possibilidade viável para inserção de novos artistas e sonoridades no mercado nacional e internacional de música gravada. Antes de continuarmos, é necessário apontar que, conforme demonstram Bahiana (1979) e Muller (2005), durante as décadas de 1970 e 1980, o termo música instrumental foi amplamente compreendido como sinônimo das novas propostas jazzísticas praticadas no Brasil. Para além disso, nas décadas seguintes tal correlação vocabular se solidifica em boa parte dos escritos e análises sobre jazz no Brasil (Ruiz, 2021b). Retornando ao artigo de Dirceu Soares (1978), nota-se que a matéria salienta 14 cinco artistas, a partir do lançamento de novos discos estrelados por músicos “de muito gabarito”. Esses instrumentistas, apesar da vasta carreira fonográfica ao lado de compositores e intérpretes da MPB, quase nunca tinham tido a oportunidade, até aquele momento, de gravar suas próprias músicas (no viés instrumental) em formato de álbum próprio, são eles: Nelson Ayres (1947-), Djalma Corrêa (1942 – 2022), Marcos Resende (1947 – 2020), Nivaldo Ornelas (1941-) e Wagner Tiso (1945-). É justamente a partir de algumas questões em torno do disco de Nelson Ayres1 que a publicação sinaliza para a Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) (1975 – 1986), formada pelas bandas Pau Brasil, Pé Ante Pé, Grupo Um, Metalurgia e A Divina Increnca (Ruiz, 2021a). Aliás, o álbum de Ayres é de especial importância porque foi gravado num contexto em que, segundo os membros do Grupo Pau Brasil, a banda já existia, mas não com esse nome (Calado, 2012). A matéria destaca exatamente esse tema quando cita os participantes da gravação, salientando que o pianista “estava sem sua banda”, e por isso “não teve a oportunidade de mostrar todo seu potencial”. A obra em questão fez parte de uma série especial de discos produzidos pela gravadora Phonogram, intitulada Música Popular Brasileira Contemporânea (MPBC), um projeto voltado especialmente para artistas de jazz e música instrumental que não tinham oportunidades no mercado, segundo a própria empresa. A série apresenta um projeto gráfico especial, com papel texturizado, lançando 11 (onze) artistas entre 1978 – 1981. Na contracapa de todos os discos da iniciativa, inclusive o de Nelson Ayres, de 1978, expressava-se o seguinte: Através da série M.P.B.C. – Música Popular Brasileira Contemporânea, a Phonogram se propõe a mostrar a gama diversificada de tendências hoje reveladas na música instrumental feita no Brasil, por profissionais, instrumentistas, compositores e arranjadores, dispostos a encontrar o seu espaço dentro da música popular brasileira, ampliando o seu campo de ação e reconhecimento. Coube à Phonogram criar condições para a realização desse projeto, sem, entretanto, limitar ou interferir na concepção musical de cada um dos participantes. 1 Membro fundador do Grupo Pau Brasil, Nelson Ayres é um pianista, compositor e maestro brasileiro. Atuou como regente e diretor artístico da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, regendo também inúmeras orquestras no Brasil e no exterior, incluindo a prestigiosa Orquestra Filarmônica de Israel. Como pianista e arranjador trabalhou com Toots Thielemans, Benny Carter, Airto Moreira, Milton Nascimento, Ivan Lins, Chico Buarque, Toquinho, Simone, Mônica Salmaso, Zizi Possi e Edu Lobo entre outros. Foi apresentador do programa ‘Jazz & Cia.’ da TV Cultura e presidente do Juri do Prêmio Visa de Música Brasileira. 15 Contrariando diametralmente a retórica da gravadora na contracapa do próprio disco, Nelson Ayres afirmou em entrevista à Folha de São Paulo, em 1982: “cheguei a pagar do meu bolso mais de Cr$ 200.000,00 de horas de estúdio, pois a Polygram disse que estourei injustamente as sessenta horas a que tinha direito. Por isso prefiro batalhar no espaço alternativo” (Coelho, 1982a, p. 60). Oito anos depois, em entrevista ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), em 28 de março de 1990, Ayres destaca: “era uma série meio esquisita. Pois a gente gravou o disco e sacava que não acontecia nada, sabe? A gente queria fazer show, queria ir pra televisão e gravadora não tava nem aí” (Ayres, 1990)2. Tal problemática acerca do álbum de Nelson Ayres nos permite refletir sobre alguns pontos fundamentais na formação da Vanguarda Paulista Instrumental, nesse mesmo contexto. O primeiro deles se refere à intensa dificuldade de inserção dos instrumentistas no mercado fonográfico com trabalhos autorais/composicionais. Tanto que as soluções de produção musical alternativa às majors – a produção musical independente (Dias, 2000; Fenerick, 2007; Ruiz, 2017) – e as práticas Do It Yourself (Bennet; Guerra, 2019) são marcas registradas dessa geração vinculada ao jazz e à música instrumental. Como uma espécie de resposta coletiva e não premeditada, as bandas e grupos compartilharam um mesmo conjunto de práticas de gestão, apresentaram-se em locais em comum e retroalimentaram-se no cenário de jazz paulistano dos últimos anos da década de 1970 e primeira metade dos anos 1980. Além disso, vale ressaltar, existe um traço de informalidade muito forte que permeia boa parte das produções artísticas relacionadas a VPI e outros artistas do jazz e da música instrumental nesse período. Inclusive, mesmo informações básicas como fichas técnicas de álbuns e o nome dos músicos participantes das gravações são extremamente difíceis de serem encontradas, mesmo nos discos em que gravaram acompanhando alguns ícones da MPB. Essa relação de tensão entre música instrumental/jazz, de um lado, e a canção/MPB, de outro, também é explicitada na matéria de Dirceu Soares (1978). No discurso do jornalista, é possível identificar tal ambiguidade, resultado de um texto que claramente pretende fortalecer e dar vazão à produção dos instrumentistas, enquanto, 2 Inserido no projeto “Músico Brasileiro”, realizado pelo Museu da Imagem do Som de São Paulo (MIS- SP), com participação de Carlos Calado e Rodolfo Stroeter como entrevistadores. Coordenação por Sônia Maria de Freitas e Técnico de Som Marco Antônio Felix. Disponível em: https://acervo.mis- sp.org.br/audio/entrevista-de-nelson-ayres-parte-13-0. Acesso em: 04 maio 2021. https://acervo.mis-sp.org.br/audio/entrevista-de-nelson-ayres-parte-13-0 https://acervo.mis-sp.org.br/audio/entrevista-de-nelson-ayres-parte-13-0 16 ao mesmo tempo, demonstra seu forte receio quanto ao interesse efetivo do mercado brasileiro na música instrumental e no jazz. Por exemplo, após resenhar os discos e tecer comentários sobre a situação da indústria fonográfica em prol da canção, ele finaliza a matéria com uma frase destacada em negrito e com fontes maiores: “Depois do ciclo dos grandes compositores e intérpretes, chegou a vez dos músicos!”, deixando evidente sua perspectiva positiva em relação ao futuro próximo do instrumentista e da música instrumental no Brasil. Todavia, um pouco antes, revela: Uma coisa é certa: ainda que este tipo de música dure pouco, que as gravadoras não invistam mais neles, que amanhã tenham ficado apenas no campo da experiência, não interessa. O importante é que estes cinco discos lançados até agora valeram a pena. Até que enfim aparece um rumo para a música popular brasileira, tão perdida e confusa em toda a década, desde o grande boom de criatividade que marcou os anos 1960 (Soares, 1978b, p.41, grifos nossos). Ao mesmo tempo em que projeta um novo ciclo para os instrumentistas, é notável no discurso do autor suas dúvidas quanto às possibilidades de sobrevivência dessa categoria (“música instrumental”) no cenário musical nacional, quando comenta, por exemplo, “ainda que este tipo de música dure pouco”. E, de fato, a música instrumental vinculada às práticas jazzísticas teve pouquíssimas possibilidades de produção durante a ditadura militar (1964 – 1985), mesmo no período reconhecido, em um primeiro momento, como “abertura política” (1974 – 1985), alocando-se, em sua grande maioria, na produção musical independente ou em gravadoras fora do Brasil, conforme veremos no capítulo três. Outrossim, é possível afirmar que a canção ocupa um lugar privilegiado na memória coletiva da sociedade brasileira, com ampla circulação social em diversos nichos e mídias, sendo constantemente reiterada como atributo primordial da nossa identidade. Além disso, ao menos em termos historiográficos, enquanto a canção mantém uma quantidade enorme de trabalhos e pesquisas, além de ser mote de resistência ao regime, a música instrumental de caráter jazzístico é geralmente escanteada do debate, mesmo apresentando novas, diversas e distintas propostas estéticas a um mesmo período social, cultural e político. Essa questão revela um problema ainda mais profundo: a música instrumental e o jazz em solo nacional foram tratados por muitos anos como se não fossem objetos e fontes capazes de produzir e ampliar o conhecimento histórico sobre a música 17 popular do e no Brasil. Dada a ausência de letra, a inteligibilidade investigativa desse viés musical ficou deixada de lado por muitos anos, mesmo que o jazz e as composições instrumentais acompanhem toda história da “linha evolutiva”3 da nossa música popular: desde as nuances das jazz-bands entre a formação do samba nos anos 1920 e 1930; passando pela bossa-nova e pelo samba-jazz dos anos 1950 e 1960; até a constituição do jazz brasileiro dos anos 1970 e 1980, em contraste com a institucionalização da MPB. É claro que existem trabalhos e pesquisas na área (focados no jazz e na música instrumental), mas ainda são pouco expressivos se comparados aos estudos da canção, geralmente provenientes dos programas de (etno)musicologia e produzidos recentemente (no século XXI, principalmente após 2010)4. A Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) Nesse cenário, a Vanguarda Paulista Instrumental, uma vez problematizada com nossas ferramentas de análise, demonstrou ser um objeto de estudo riquíssimo, com enorme potencial para esta pesquisa, pois pôde nos auxiliar a revelar traços reincidentes da relação problemática e contraditória entre jazz e identidade brasileira. A análise da formação sócio-histórica da VPI permitiu um duplo acesso investigativo: primeiro, possibilitou um estudo aprofundado sobre a presença do jazz e da música instrumental no mercado nacional durante a ditadura militar (1964-1985). Nesse período, as possibilidades de atuação da VPI estavam totalmente circunscritas aos atritos e disputas ao redor do processo de consolidação da canção na indústria fonográfica. Em segundo, a análise sobre as contradições que regem a VPI possibilitou, também, acessar algumas camadas de interpretações e discursos sedimentados na cultura nacional sobre a presença controversa do jazz na história da música brasileira, ao longo do século XX. A característica fundamental que permeia toda a produção e a circulação da 3 A partir da argumentação de Caetano Veloso durante entrevista para a Revista Civilização Brasileira, em maio de 1966, diversos pesquisadores e artistas debateram, construíram e criticaram a ideia de “linha evolutiva” da MPB. Algumas análises esclarecedoras sobre o tema podem ser encontradas em Napolitano (2007), Moreira (2016, p. 36 – 38) e Granato (2018, p. 62; 117 – 119). 4 Dentre alguns exemplos, podemos citar: Piedade (2003, 2005), Giller (2013), Silva (2014), Ruiz (2017), Ribeiro Jr. (2018), entre outros. A bibliografia e a historiografia do jazz no Brasil serão amplamente esmiuçadas no capítulo 2. 18 VPI é a forte presença da intenção de brasilidade. Seja no título das faixas5, no discurso dos próprios artistas e produtores envolvidos nas gravações, ou até mesmo no nome das próprias bandas (como no caso da Pau Brasil, de Nelson Ayres), existe uma forte necessidade de demonstrar nitidamente, para o público e a crítica, elementos que possam facilmente ser identificados com a cultura brasileira. Tal procedimento ocorre de forma interna e externa às obras dessas bandas, quer dizer, tanto no conteúdo propriamente musical como nas narrativas construídas pelos instrumentistas, gestores dos álbuns e imprensa. Por exemplo, a intenção de brasilidade é perceptível na própria sonoridade dos grupos, com a ampla utilização de diversos ritmos inerentemente vinculados ao território brasileiro (como o samba, baião, maracatu, entre muitos outros), incorporados em boa parte das composições, improvisos e faixas dos álbuns. Além disso, outra via de acesso à intenção de brasilidade se dá por meio dos instrumentos de percussão, utilizados nas gravações do Divina Increnca, Pé Ante Pé e, principalmente, Grupo Um6; e em algumas apresentações ao vivo das outras bandas da VPI. Durante os anos 1970 e início dos 1980, a percussão funcionava como um componente de ligação com as diásporas do jazz daquele período, a partir da presença de alguns percussionistas brasileiros – como Airto Moreira (1941-) e Dom Um Romão (1925 – 2005), por exemplo – nas gravações e shows dos principais discos da formação do estilo fusion (Miles Davis, Return to Forever, Weather Report). A busca por referências ao Brasil presente na sonoridade da VPI também se expressa na retórica dos próprios artistas. Existe uma posição claramente definida pelos personagens envolvidos nesse contexto: a de valorizar em sua retórica a presença da música e da cultura brasileira perante os elementos do jazz. A respeito disso, Rodolfo Stroeter (baixista do Grupo Um, Pau Brasil e Divina Increnca) 5 Como, por exemplo: “Samba do Anhangabaú”, do Pé Ante Pé; “Frevo do Cheiro”, da Divina Increnca; “Samba de volta” ao Bernô, da Metalurgia; “Pindorama”, “Jongo” e “Frevo” do Pastochia, do Pau Brasil; “Sangue de Negro”, do Grupo Um; entre muitos outros. Além disso, referências específicas à nossa cultura, flora e fauna (como em “Saguairu” e “Araponga”, do Pé Ante Pé) também são ressaltados em diversos títulos das faixas e álbuns dos artistas da VPI. 6 Dentre algumas faixas em que se destacam os instrumentos de percussão, podemos citar, no caso do Pé Ante Pé, por exemplo: “Iguana”, do primeiro álbum, homônimo (1980, Independente) e “Embrio” do segundo (Imagens do Inconsciente, 1982, Lira Paulistana Instrumental). No que se refere a Divina Increnca, um bom exemplo é “Ainda bem que não flalta fauta” (sic), do único disco (homônimo, 1980, Independente). No que se refere ao Grupo Um, todos os três álbuns têm uma música com a percussão como cerne: “Sangue de Negro” (em Marcha Sobre a Cidade, de 1979), “Vida” (em Reflexões Sobre a Crise do Desejo, de 1981) e “ZEN” (em A Flor de Plástico Incinerada, de 1982). 19 expressou ao jornalista Carlos Calado (2012, p. 20) que “procurar um repertório mais autoral e brasileiro era uma coisa natural naquela época, um impulso geracional”. No mesmo teor, Bocato (trombonista da Metalurgia), destaca: “a coisa brasileira realmente está na gente. [...] foi muito natural a Metalurgia. Não era uma forçação (sic) de barra como muita gente andou fazendo. Era natural o ritmo brasileiro” (Bocato, 2019). O caso de Bocato é ainda mais revelador, pois na mesma resposta ele afirma que atualmente não se utilizaria dos discursos em torno da brasilidade: “Mas como tava na moda, eu embarquei um pouco nessa onda de ‘musicalidade brasileira’, ‘brasilidade’. Eu acho que a música é mundial e a música brasileira taí pra servir a música mundial, entende? [Atualmente] eu fujo dessas coisas de 1922.” (Bocato, 2019). Ao desvincular-se, hoje em dia, das retóricas em torno da intenção de brasilidade, Bocato sinaliza inconscientemente para a intensidade dessas narrativas especificamente naquele contexto, no período final da ditadura militar. Em consonância, Caito Marcondes, baterista e percussionista do Pé Ante Pé revela: “vivenciei com mais envolvimento os anos de 1976 em diante, quando os músicos de minha geração estavam fortemente decididos a criar uma música com mais sotaque brasileiro e plena de experimentações” (Marcondes, 2022). Teco Cardoso, saxofonista e flautista que tocou e gravou com o Pau Brasil (atual), Pé Ante Pé e Grupo Um, salienta: “acredito que o Pau Brasil tinha a antropofagia em seu gene inicial e sempre esteve mais comprometido com uma brasilidade mais pura, mas revisitada e modernizada” (Cardoso, 2020/2022). A própria utilização do termo “música instrumental” ou “música popular instrumental brasileira” (MPIB), também denota, em muitos casos, a recusa por parte dos envolvidos em vincular a produção musical daquele período com o jazz. Quanto a isso, em entrevista concedida a Ruiz (2017, p. 206), Chico Pardal (1954-), gestor do Lira Paulista (selo, espaço de eventos e produtora da VPI), afirmou categoricamente: “Naquela época a gente não estava produzindo o jazz. Aquilo que o Lira apresentava não era jazz. Aquilo era música instrumental brasileira”. A imprensa do período também dava sinais de preocupação com a necessidade de que a músicas produzida pelas bandas da Vanguarda Paulista Instrumental fossem 'genuinamente brasileiras’. Além da matéria de Dirceu Soares (1978), já citada, outras publicações demonstram o mesmo foco: a necessidade de ressaltar aspectos inerentemente vinculados à cultura nacional na sonoridade e na proposta dessas 20 bandas. Por exemplo, em matéria não assinada, publicada no dia 02 de junho de 1982 no jornal Folha de São Paulo, o autor destaca que o Grupo Um realizará “um ganancioso projeto, incluindo viagens por todo o Brasil na colheita de sons”7. Essa publicação é ainda mais interessante pois, além da semelhança com as “viagens modernistas” (Kaminski, 2018), o próprio Lelo Nazário (2017), pianista e principal compositor da banda, desmentiu a realização dessa empreitada em entrevista, demonstrando que a própria imprensa da época também buscava traços da intenção de brasilidade no projeto artístico da VPI, como uma espécie de característica normatizadora do movimento. Nesse sentido, a Vanguarda Paulista Instrumental (VPI) (1975 – 1986) é constituída por uma distensão fundamental que a caracteriza. Conforme destacado acima, todas as bandas que formam a VPI atuam incessantemente sob uma forte intenção de brasilidade, alicerce musical e argumentativo daquela geração. Todavia, vale observar que, uma vez que responde fortemente ao ímpeto transnacional – de vetor experimental, caracterizadas pelas diásporas do jazz dos anos 1970 –, tal aspecto/padrão só faz sentido a partir do free e do fusion jazz, sendo uma particularidade marcadamente estabelecida/incorporada por músicos brasileiros residindo no país e no exterior. Desse modo, a Vanguarda Paulista Instrumental utiliza o jazz como recurso que interliga várias referências distintas, desde as diversas interpretações e incorporações da música popular brasileira até os elementos da música contemporânea de vanguarda, entre outros. Indubitavelmente, a música produzida pela VPI apresenta fortes ligações com o desenvolvimento do jazz em outras geografias durante o mesmo período. Essa correlação se dá principalmente a partir do fusion jazz (Fellezs, 2011; Kernfeld, 2003; Balzarano, 2014) como subsídio mediador. No conteúdo musical, as bandas da VPI congregam a instrumentação característica do fusion: com bateria, percussão, pianos elétricos, contrabaixo, guitarra e instrumentos de sopro. Dependendo das propostas e possibilidades, essa instrumentação base é organizada de forma distinta em cada banda, podendo ou não adicionar outros instrumentos. O fusion jazz também permite o acesso aos procedimentos da música experimental, a partir da ampla utilização de ruídos, gravações eletroacústicas e 7 GRUPO UM e Rumo fazem shows hoje. Folha De São Paulo. São Paulo, 02 jun. 1982, Ilustrada, p. 36. 21 improvisos coletivos nas composições da VPI. Esse fenômeno já havia sido iniciado pelo free jazz e foi incorporado pelo fusion com diferentes formas de inclusão dessas técnicas, principalmente na representação escrita das obras e na limitação temporal desses aspectos na composição. Os próprios instrumentistas, ao serem indagados sobre suas principais referências, citam alguns dos principais nomes relacionados ao desenvolvimento do fusion jazz a nível mundial. Quase todos fazem alusão à Miles Davis (1926 – 1991), principal nome do estilo. Além disso, Lelo Nazário (2017), que integra o Grupo Um e o Pau Brasil, menciona Chick Corea (1941 – 2021), Keith Jarret (1945) e Herbie Hancock (1940-), justamente os principais nomes do seu instrumento (teclado e piano) no fusion jazz. No mesmo sentido, Bocato (2019), fala sobre John Coltrane (1926 – 1967), Joe Zawinul (1932 – 2007) e Weather Report, entre outros exemplos, todos inerentemente vinculados à história do fusion jazz a nível global. Rodolfo Stroeter, atuante em diversas bandas da VPI, afirmou: “eu acho que tanto o Pau Brasil como a Divina Increnca tinham aspectos de fusion. Mas de uma maneira muito diversa. Ouso te responder dizendo o seguinte: dentre os grupos de que fiz parte, o que me parece mais ligado a palavra fusion seria o Grupo Um” (Stroeter, 2019). E, de fato, o primeiro álbum do Grupo Um, Marcha Sobre a Cidade (1979/1980, Independente/Lira Paulistana Instrumental) pode ser considerado uma espécie de “manifesto” do fusion jazz no Brasil (Ruiz, 2021c), catalisando diversas transformações nas sonoridades do jazz praticado em solo nacional durante a década de 1970. Marcha Sobre a Cidade também funciona como estímulo geracional para a VPI de forma mais abrangente, pois foi o primeiro disco da parceria entre as bandas que formam a VPI e o selo Lira Paulistana Instrumental. Em termos mercadológicos, o fusion representava naquele contexto um novo subsídio comercial para a música instrumental e para o jazz nas Américas e na Europa durante as décadas de 1970 e 1980, sendo a categoria musical que fomentava e tornava inteligível as propostas musicais da Vanguarda Paulista Instrumental dentro e fora do Brasil. Enfim, o fusion jazz constituiu-se como um dos principais caminhos para as diásporas do jazz nos anos 1970, sendo uma parte fundamental do impulso experimental global percebido e praticado no Brasil durante essa década e, principalmente, no início dos anos 1980. Dessa forma, a VPI e o jazz no Brasil durante as décadas de 1970 e 1980 são regidos por uma situação ambígua, imanentemente manifestada na produção 22 discográfica e discursiva desse período. De um lado, um amplo projeto de brasilidade, amparando-se em formas musicais e retóricas para vincular-se inevitavelmente à tradição cultural e artística nacional. De outro, um espaço de experiências totalmente voltado para a inclusão das mais recentes tendências jazzísticas na música popular brasileira. Em outros termos, a VPI engendra uma tensão entre identidade nacional e transnacionalidade, entre tradição e modernidade que circunscreve toda sua produção e circulação social. Tal paradoxo é baseado no movimento de aproximação e afastamento do jazz como interlocutor de suas práticas musicais. Assim, estão em disputa, também, as formas de representação e os projetos de Brasil por meio da música instrumental, fundamentado em diálogos com o jazz em seu momento de intensas experimentações harmônicas, melódicas e rítmicas, mediados pelas novas tecnologias características do estilo fusion. Base teórica e conceitual A presente tese não expõe seus resultados de maneira cronológica. Em vez disso, a proposta foi apresentar uma organização específica das temporalidades de acordo com um dos objetivos principais da pesquisa: analisar como se dá a relação entre a intenção de brasilidade e o ímpeto transnacional em três conjunturas temporais distintas, de curta (1975 – 1986), média (1964 – 1985) e longa (1920 – 1980) duração8. Para conceber uma análise pormenorizada sobre a Vanguarda Paulista Instrumental (1975 – 1986), foi necessário realizar na pesquisa, e evidenciar na escrita, um jogo de escalas (Ginzburg, 2007) e temporalidades (Koselleck, 2006), verificando a presença do debate condutor da tese na formação da cultura modernista nacional, em diálogo com as experiências jazzísticas realizadas no Brasil (1920 – 1980). Não somente, foi imprescindível verificar como tal paradoxo formador interferiu no mercado brasileiro durante a ditadura militar (1964 – 1985). Tal perspectiva nos permite perceber como esse debate geral circunscreveu, com diferentes apropriações e roupagens, a história do jazz no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1980. 8 É importante lembrar rapidamente: nos estudos de história contemporânea, especificamente sobre o século XX, a longa duração não remete ao tempo geográfico de Braudel (1978) para analisar outros períodos históricos. A proximidade com o tempo presente e a quantidade de fontes e obras à disposição modificam e dimensionam as possibilidades de recorte temporal delimitadas para cada ciclo (curta, média e longa duração), de acordo com os objetivos específicos de cada pesquisa. 23 A alternância de temporalidades tem como objetivo ampliar as perspectivas de análise, haja vista que a variação na escala de observação proporciona ao historiador aprofundar a sua rede de informações e fenômenos interrelacionados ao objeto de estudo. Dessa forma, nenhuma temporalidade tem preferência sobre a outra, é justamente o princípio de variação que possibilita o engendramento de novos indícios, sinais e rastros sociais, necessários para construir uma trama que dê conta da complexidade relacional da sociedade estudada (Ginzburg, 20079; Koselleck, 200610). Especificamente sobre a noção de jazz, é necessário destacar: nos últimos anos, novas perspectivas teóricas e metodológicas têm se articulado em torno das abordagens do New Jazz Studies11. Um dos principais eixos passou a ser a reflexão sobre as diásporas que tornaram possível a formação do jazz e sua intensa proliferação pelo mundo. Dessa maneira, o jazz passou a ser compreendido não apenas a partir de uma perspectiva norte-americana, mas, principalmente, como um dado cultural engendrado pelos contatos erigidos nas rotas portuárias transatlânticas, com seus diversos desdobramentos. Sem negar a importância do desenvolvimento jazzístico em solo estado-unidense, a potencialidade desta ótica fomentou diversas pesquisas sobre a sua circulação nos mais variados países, auxiliando na criação de um novo campo de estudos. Não somente, a análise da presença contraditória do jazz em diferentes locais também proporcionou a revisão acadêmica de alguns aspectos arraigados nas diferentes concepções nacionais sobre a noção de música popular em diversos territórios do globo. Em sintonia com tal movimento, o presente trabalho de doutoramento pretende contribuir com o desenvolvimento dos estudos de jazz no Brasil. Tal campo possibilita, também, a ampliação do escopo de personagens, problemáticas, movimentos musicais e fontes distintas para produção acadêmica do conhecimento sobre a música popular do e no Brasil. Em vista disso, é muito importante ressaltar novamente: os estudos acadêmicos sobre música popular em território nacional constituem uma tradição (ao menos desde os anos 1980) intimamente atrelada ao universo da canção 9 Para Ginzburg (2007, p. 277), a variação de escalas constitui, ao mesmo tempo: “a maior dificuldade e o maior potencial” dessa perspectiva. 10 “As sequências estatísticas temporais nutrem-se de eventos concretos e individuais, dotados de um tempo próprio, mas que só adquirem significação por força de uma perspectiva estrutural de longo prazo [...] Por outro lado estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo, são condições de possibilidade para os eventos (Koselleck, 2006, p. 137 – 138). 11 Dentre alguns autores: Kubik (2017), Cravinho (2018, 2022), Gebhardt; Rustin-Pascal; Whyton (2019), Johnson (2019, 2020), entre outros. 24 e dos intérpretes. Todavia, a música instrumental jazzística, em suas mais variadas vertentes, foi intensamente presente nas gravações e apresentações ao vivo, na crítica periódica e no debate público, isto é, na produção fonográfica, editorial e no mercado de música nacional, sendo um aspecto a ser explorado em novas pesquisas. Nesse cenário, alinhado ao New Jazz Studies (NJS), a presente tese pretende contribuir justamente para colmatar essa lacuna, refletindo sobre a presença problemática da música instrumental e do jazz no desenvolvimento das noções e práticas ao redor da música popular brasileira. Desse modo, nesta tese, o uso do termo “jazz brasileiro”, entre aspas, se remete às atividades jazzísticas relacionadas a qualquer um dos períodos históricos apresentados no decorrer do trabalho, dependendo do uso (ou negação) realizado pelos atores sociais envolvidos em cada ciclo. Diferentemente, jazz brasileiro, em itálico, se refere especificamente às sonoridades dos anos 1970 e 1980, a partir do vínculo indubitável ocorrido nesse período com outra expressão igualmente problemática: “música instrumental” (Bahiana, 1979; Muller, 2005 e Ruiz, 2021b). As nuances e disputas ao redor dessas noções, durante o século XX, também são focos de análise ao longo dos capítulos. Assim, preferimos, tanto quanto for possível, utilizar a expressão “jazz no Brasil”, pensando nas práticas, sonoridades, disputas e contradições dessa história centenária em território brasileiro. Em vista disso, o conceito de cultural translation (Buden, et al., 2009) é fundamental: nos permite refletir sobre os processos de incorporação de símbolos e práticas provenientes de outros culturas, a partir das trocas artísticas engendradas por diferentes territórios, bem como suas adaptações nacionalizantes em determinados contextos. Esses câmbios semânticos auxiliam no processo de construção das identidades, com diferentes formulações em disputa, mais ou menos aceitas pelos indivíduos e grupos da sociedade e/ou grupo social em questão. Além disso, o conceito pode auxiliar tanto a “organizar relações entre diferentes culturas” como também “subverter a própria ideia de uma identidade cultural original”, muito utilizada pelos “essencialistas” (Buden, et al., 2009, p. 198, tradução nossa). Outro conceito fundamental para esta tese é o de mediação (Williams, 1979). No intuito de se distanciar das armadilhas inerentes à perspectiva de que a arte, de alguma forma, ‘reflete’ e/ou é ‘determinada’ pela sociedade, o conceito de mediação nos oferece uma visão mais abrangente, permitindo conceber o campo cultural e 25 artístico como vetores que constituem o mundo social, bem como a política, a economia, a religião etc., em um movimento dialético de pressões, disputas e concessões entre as esferas que compõem determinado contexto histórico. Por fim, é necessário destacar a noção de intenção de brasilidade, pois alguns apontamentos iniciais foram esboçados em artigo publicado em 202112. Ampliando tais possibilidades, a proposta desse conceito é formulada a partir do engendramento realizado no decorrer dos capítulos desta tese. Fontes e métodos Basicamente, o corpus documental da pesquisa está sustentado em registros de pelo menos três naturezas distintas: 1) Discografia: os aspectos musicais (sonoridades) registrados nos LPs são compreendidos como fontes de mesma legitimidade investigativa para o campo epistêmico da História, assim como os documentos escritos; 2) Impressos em formato de periódicos; 3) Entrevistas e testemunhos; Referente à discografia, cabe sublinhar que ela é primordial no primeiro capítulo: seção em que uma pequena introdução teórico-metodológica debate as aproximações e distanciamentos entre História e Música, no intuito de pensar as possibilidades e problemáticas para o teor da “música instrumental”. Apesar da proeminência no capítulo um, focado exclusivamente na Vanguarda Paulista Instrumental, a discografia sobre outros períodos do jazz no Brasil também é fundamental nos capítulos seguintes, na medida em que expressam (e, em alguns casos, intitulam) os problemas que serão discutidos durante cada temporalidade específica. Para auxiliar o leitor na escuta e análise do conteúdo musical foram feitas algumas playlists concernentes aos ciclos analisados durante a tese13. No que tange às fontes impressas em formato de periódico, a proposta foi problematizar o nível de inserção da VPI em matérias e artigos presentes nos jornais 12 “A intenção de brasilidade, no universo do jazz brasileiro das décadas de 1970 e 1980, representa o objetivo claro e marcante de demarcar um espaço fundamental, reservado e permanente para elementos que possam remeter diretamente à identidade brasileira” (Ruiz, 2021a, p. 12). 13 O link das playlists está incluído no início de cada (sub)capítulo e na bibliografia da tese, no subitem das fontes. 26 de maior alcance do estado de São Paulo e do Rio de Janeiro daquele momento, além de perceber a amplitude da circulação da VPI pelo Brasil (com publicações sobre as bandas em jornais de quase todas as regiões do país). Além disso, tais documentos nos auxiliam em vários aspectos, por exemplo, na confirmação de dados biográficos das bandas da VPI; na possibilidade de reconstituição parcial do histórico de shows e da biografia dos próprios instrumentistas envolvidos; na confirmação de algumas datas e períodos que nem mesmo os próprios músicos tinham acesso ou se lembravam; na constatação da recorrência do debate em torno da produção independente como solução para o contexto da música instrumental; entre outras possibilidades heurísticas. Ainda sobre os periódicos, também se encontram indícios da conjuntura do fusion jazz no Brasil e da música popular instrumental no quadro geral da indústria da música e da sociedade brasileira na virada da década de 1970. Para tanto, foram elencados matérias e artigos nos periódicos que estão listados na bibliografia desta tese. Nos jornais de menor circulação, analisamos também o jornal “independente” do Lira Paulistana14, especialmente a penúltima edição, dedicada ao tema da música instrumental e do jazz. Vale ressaltar que o foco não é analisar os jornais e revistas em si, nem mesmo sua história e/ou rede de relações editoriais. De acordo com os objetivos deste trabalho, o foco recai sobre o conteúdo das críticas musicais e textos sobre a Vanguarda Paulista Instrumental e o jazz no Brasil presentes nas diversas publicações em geral. Outra esfera documental utilizada foram as entrevistas com os integrantes da VPI. Como os trabalhos acadêmicos sobre jazz no Brasil são extremamente incipientes – ainda mais raros aqueles sobre o período da ditadura militar – as memórias individuais dos instrumentistas também constituem uma fonte extremamente importante, de muitas particularidades. As entrevistas que compõem a presente tese são formadas pelos testemunhos de Rodolfo Stroeter (1958-), baixista e único integrante a percorrer toda a trajetória do grupo Pau Brasil, desde os anos 1980 até os dias atuais, além de gravar o único disco do Divina Increnca e os dois últimos do Grupo Um; Caito Marcondes (1954-), baterista e percussionista do Pé Ante 14 O jornal do Lira Paulistana foi um dos empreendimentos gestados pelo espaço. Teve apenas doze edições, entre outubro de 1981 e fevereiro de 1982. A constante dificuldade de o projeto se manter por si mesmo, sem a ajuda financeira de outras atividades do Lira, foi a principal responsável por sua vida curta. 27 Pé; Itacy Bocato Júnior (1960-), trombonista e espécie de “líder” do grupo Metalurgia; Homero Lotito (1959-), pianista, produtor e principal compositor do Pé Ante Pé; Lino Simão (1956-), saxofonista do grupo Metalurgia; e Teco Cardoso (1960-), saxofonista e flautista que participou do Grupo Um, Pau Brasil e Pé Ante Pé. Somam-se a essas fontes as entrevistas realizadas durante o mestrado com irmãos Zé Eduardo (1952-) e Lelo Nazário (1956-), respectivamente, baterista e tecladista do Grupo Um, além de Chico Pardal, Wilson Souto Jr. (1952-) e Riba de Castro (1956-) (gestores do teatro e selo musical Lira Paulistana) publicadas na dissertação (Cf. Ruiz, 2017, p. 158 – 212), que também compõem o leque de testemunhos como documentos memoriais desta pesquisa. Durante o período de doutoramento, uma nova entrevista foi realizada com Zé Eduardo16. Na análise de fontes orais a principal orientação metodológica foi aquela que reitera o intenso e necessário cuidado para não incorporar a perspectiva do entrevistado como uma ‘verdade’ sobre o contexto analisado e/ou como retórica reproduzida pelo próprio pesquisador. Assim as entrevistas estão circunscritas como uma interpretação realizada no presente, arraigada a distorções, seletividades e reconstruções inerentes ao resgate memorial (Seixas, 2001) feito pelo narrador em sua visão retrospectiva (Meneses, 1992). Testemunhos individuais são fontes de grande capacidade heurística, ao mesmo tempo em que carregam muitas incertezas por constituírem uma visão/interpretação bastante particular, resgatada pelas questões específicas do presente, sendo o entrevistado, geralmente, participante ativo do contexto histórico em questão, tendendo a superdimensionar suas próprias realizações. Mesmo assim, a perspectiva dos envolvidos nesse momento da música popular instrumental brasileira constitui uma importante esfera documental, auxiliando na constituição do cenário de intensas transformações do jazz no Brasil e na ideia de jazz brasileiro, em São Paulo, no final dos anos 1970 e início de 1980, período da “abertura política”, isto é, nos últimos anos do governo militar. As entrevistas realizadas durante o período de doutoramento estão disponibilizadas nos apêndices da tese, no intuito de incentivar novas interpretações e pesquisas sobre a VPI, jazz, música instrumental, ditadura 16 As entrevistas foram realizadas entre 2019 e 2023. No entanto, quase todas ocorreram em 2020, durante a pandemia. Em sua maioria, foram respondidos os questionários enviados por e-mail. No caso de Bocato exclusivamente por áudios de WhatsApp, posteriormente transcritos. E no caso de Rodolfo Stroeter, tanto por e-mail quanto por áudios, também transcritos nos apêndices desta tese. 28 militar, “música independente” e outras temáticas conectadas aos depoimentos. Com base na integração dessas fontes de diferentes naturezas, o presente trabalho objetivou formar um quadro de análise plural e heterogêneo a partir de duas diretrizes que se complementam e fornecem subsídios importantes para a pesquisa do historiador: a articulação entre texto (os elementos internos da obra, representados pelas sonoridades presentes na discografia da VPI) e contexto (elementos externos à obra e suas mediações, representados pelas entrevistas, fontes impressas em periódicos, além da bagagem bibliográfica sobre os temas relacionados). Outras considerações teórico-metodológicas e conceituas são desenvolvidas no primeiro subitem de cada capítulo. Problemática geral e estrutura da tese Com esse arcabouço teórico-metodológico e, tendo em mente a problemática geral do trabalho – a relação contraditória entre a intenção de brasilidade e o ímpeto transnacional que fundamenta não só a VPI, como também o desenvolvimento do jazz e da música instrumental no Brasil, durante o longo modernismo (1920 – 1980) e, especificamente, na ditadura militar (1964 – 1985) – a presente tese se divide nos três capítulos seguintes. O primeiro capítulo – intitulado “Sonoridades entrelaçadas: aspectos biográficos e estéticos na discografia da Vanguarda Paulista Instrumental (1975 – 1986)” – analisa como o paradoxo entre brasilidade e transnacionalidade permeou a formação da trajetória e do projeto sonoro das bandas que compõe a VPI. Essa parte apresenta uma breve biografia dos grupos em diálogo com as sonoridades articuladas pelos seus discos entre 1975 – 1986, lugar central de onde emerge a ambiguidade condutora da VPI. Essa problemática, vale salientar, não é um privilégio histórico da Vanguarda Paulista Instrumental, muito pelo contrário, é intensamente recorrente na formação da cultura brasileira. Desde pelo menos o início da década de 1920, até meados dos anos 1980, o debate musical é permeado pelas retóricas em torno dos polos: nacional vs internacional, conservador vs experimental, particular vs universal e tradição vs modernidade (fundamentos da VPI), constituindo uma característica reincidente no debate artístico nacional ao longo de boa parte do século XX. Nesse sentido, esta tese 29 não se propôs a estudar somente a VPI, mas analisar, também, como tal problema condutor é frequentemente acessado na formação na cultura musical brasileira durante o desenvolvimento do longo modernismo (1920 – 1980) (Napolitano, 2014b; 2022) em diálogo com as experiências jazzísticas realizadas no Brasil desse período – tema do segundo capítulo do trabalho, intitulado: “Amigo indesejado: Modernismo e jazz no Brasil (1920 – 1980)”. Jazz e modernidade sempre tiveram uma relação extremamente conturbada e contraditória no devir da música brasileira do século XX. Nos anos 1980, essas questões continuaram sem solução no âmbito da produção musical. Se em alguns momentos o jazz foi visto como ‘elemento modernizador’, em outros, era compreendido como danoso ao desenvolvimento da “autêntica” música nacional. Assim, o capítulo 2 analisa a trajetória do jazz no Brasil como interlocutor das contradições do longo modernismo (1920 – 1980), culminando em um ponto bastante específico durante a ditadura militar (tema do capítulo 3). Haja vista que a história centenária do jazz no Brasil ainda é um tema incipiente na bibliografia, a estrutura e o objetivo do segundo capítulo também é mapear e propor um balanço historiográfico sobre a presença do jazz na cultura brasileira. O terceiro e último capítulo – intitulado: “Pelas margens do autoritarismo: o jazz no Brasil durante a ditadura militar (1964 – 1985)” – examina como a problemática primordial da tese chega até o período da ditadura militar brasileira (1964 – 1985) e da atuação da VPI, sendo ressignificada pelas bandas em questão, transformando em muitos sentidos o lugar do jazz no Brasil em meio ao período histórico reconhecido como “abertura política” (1974-1985). Com esse objetivo, também se apresenta um debate sobre a censura indireta no âmbito do jazz e da música instrumental, o suposto abrandamento do regime e a possibilidade de inovações estéticas instrumentais almejadas pela VPI e pelos músicos integrados aos campos da música popular brasileira e da MPB. Esse capítulo também contempla o aprofundamento de algumas questões em relação às conexões fusion jazz, ditadura militar e experimentalismo e “música independente”, tendo nos festivais de jazz um importante ponto aglutinador. Dessa forma, o presente trabalho analisa a relação entre a intenção de brasilidade com o ímpeto transnacional, a partir de três focos distintos: aspectos biográficos da VPI (capítulo 1), elementos históricos da cultura brasileira (capítulo 2) e, por fim, do ponto de vista dos processos relacionados ao jazz durante a ditadura militar (capítulo 30 3). Em todos eles, as sonoridades registradas nas gravações comerciais são fundamentais. 31 CAPÍTULO 1: SONORIDADES ENTRELAÇADAS: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E ESTÉTICOS NA DISCOGRAFIA DA VANGUARDA PAULISTA INSTRUMENTAL (1975 – 1986)17 Esse capítulo analisa a trajetória artística das bandas da Vanguarda Paulista Instrumental, baseado na discografia, testemunhos, entrevistas e numa ampla pesquisa em periódicos da época. As composições e a organização interna das faixas e dos álbuns selecionados para representar a VPI também foram pensadas como elemento primordial para compreender as semelhanças e diferenças entre elas. As sonoridades exploradas pelos grupos Um, Pé Ante Pé, Metalurgia, Divina Increnca e Pau Brasil explicitam uma variedade enorme de propostas musicais distintas e bastante diferenciadas. No entanto, apesar disso, o atrito entre a intenção de brasilidade e o ímpeto transnacional estrutura o paradigma estético e social que permeia a obra da VPI e do jazz no Brasil durante os anos 1970 e 1980. Nesse sentido, em toda produção fonográfica da VPI é possível perceber uma tensão imanente: lançam-se ao experimentalismo musical levando em conta o contato com o fusion jazz (incorporando algumas técnicas musicais das vanguardas históricas e do free jazz), ao mesmo tempo, buscam incessantemente meios para representar possíveis particularidades musicais estritamente brasileiras. As diferentes bandas que formam a VPI formularam múltiplas respostas e exploraram diversos caminhos para tal questão, conforme veremos neste capítulo. Para refletir sobre tal problemática são necessárias algumas breves considerações sobre as formas de intersecção entre os arcabouços teórico-metodológicos da História e da Musicologia no seio da academia brasileira. 1.1 Diálogos entre história e musicologia: a performance na música gravada e os processos de audição crítica A relação epistemológica entre História e Musicologia é permeada por algumas 17 Playlist com a discografia da Vanguarda Paulista Instrumental (VPI): https://youtube.com/playlist?list=PL1hBUv31AYpdcVhd4icugTrHBJ8w3DpSA. https://youtube.com/playlist?list=PL1hBUv31AYpdcVhd4icugTrHBJ8w3DpSA 32 dificuldades. A análise musical, por exemplo, figura como um problema basilar. Os obstáculos para essa questão são ainda mais robustos no caso da música instrumental, não por acaso, os historiadores de formação tendem a utilizar as letras das canções como fontes primordiais para auxiliar nesse processo. Afinal, o caráter textual (relativo à escrita) de determinada obra musical fornece subsídios importantes para tal tipo de investigação. Por outro lado, a música instrumental ‘obriga’ o historiador a se confrontar com o conteúdo propriamente musical (sem letra) do seu objeto de estudo. Além disso, a História, como disciplina específica, tem um vasto arcabouço teórico-metodológico para a análise dos documentos visuais (textuais ou não), fruto de um longo período de desenvolvimento (de Heródoto até sua configuração disciplinar desde do século XIX), além de ser formada por diversas tradições distintas de pensamento. De outro modo, o estudo da música gravada surge apenas na contemporaneidade, a partir da invenção do fonograma. Dessa maneira, as intersecções entre História e jazz, até recentemente, foram mediadas por um tipo de documento fundamental: o disco, desde os primeiros formatos até o advento do Compact Disc (CD). Como fonte para a pesquisa histórica, especialmente no caso do jazz, a gravação permite ao pesquisador acessar camadas de historicidades sedimentadas nos projetos estéticos dos álbuns. Conforme argumenta Gunther Schuller18: A despeito das limitações da notação musical, uma pauta [partitura] de Beethoven ou Schoenberg é um documento definitivo, um mapa da qual várias interpretações ligeiramente diferentes podem ser derivadas. O registro de uma execução [performance, no original] improvisada de jazz, por outro lado, é a expressão de um único momento, em muitos casos, o único, e por conseguinte, a versão “definitiva” de algo que jamais se quis definitivo. [...] O historiador do jazz é forçado a examinar criticamente o único meio que dispõe: a gravação (Schuller, 1970, p. 12, grifos nossos). A partir deste apontamento, é muito importante destacar que não se trata somente dos aspectos musicais veiculados pelo fonograma, mas também de suas condições sociais de realização. Tal perspectiva se mostra muito pertinente no contexto brasileiro de produção musical independente, quando o barateamento dos 18 Gunther Schuller (1925 – 2015) foi um músico norte-americano de origem alemã com formação clássica que explorou o universo jazzístico, contribuindo para a formação da chamada Third Stream. Também escreveu obras seminais sobre o jazz, entre elas: O velho jazz (1970) e The Swing Era (1989). 33 estúdios nacionais e sua ampliação fora das grandes gravadoras (Vicente, 2014, p. 124) permitiu a criação de novas possibilidades para os instrumentistas da Vanguarda Paulista Instrumental e do jazz no Brasil19. Dessa forma, realizamos um procedimento que pode ser descrito como um tipo de investigação sobre performance na música gravada: pensando o LP como uma forma artístico-cultural mediada por uma variedade de elementos cristalizados pela gravação e pela circulação do álbum na esfera pública. Nessa perspectiva, o conceito de performance não se refere a ideia de uma arte relacionada ao happening (Glusberg, 2013) e/ou como linguagem artística específica (Cohen, 2009) mas para a análise dos processos sociais constituintes da execução na gravação musical, especificamente nas práticas jazzísticas (Cook, 2006, 2007). Assim, tal noção permite ao historiador examinar alguns aspectos do conteúdo artístico/formal das obras alicerçado em uma audição crítica do material sonoro, em consonância com as pistas fornecidas pelas fichas técnicas dos encartes dos lançamentos em LP e relançamentos em CD. Reconhecendo a importância do domínio técnico da partitura e dos sistemas simbólicos de representação musical que potencializam o processo de análise da performance na música gravada, a ausência destes não impede que o historiador inclua e utilize as sonoridades como fontes de natureza prosaica no seu ofício. Os próprios compositores e etnomusicólogos têm feito muitos apontamentos nesse teor. Henri Barraud, por exemplo, afirma, “a música pode ser explicada a qualquer um, sem que em nenhum momento seja preciso pronunciar ou escrever o menor termo que não pertença ao vocabulário de todos” (2012, p. 14). Na mesma empreitada, Philip Tagg (1982, 2001), Nicholas Cook (1987), Sara Cohen (1993), Thomas Turino (2008), Georgina Born, Eric Lewis e Will Straw (2017) apresentam perspectivas diferentes e complementares, pensando a análise musical não somente como mera investigação da escrita e/ou da técnica musical em si, mas como arcabouço de procedimentos pautados no campo da escuta e suas formas de interação social (na produção e circulação das obras). 19 Nesse período, alguns casos da VPI são especialmente elucidativos, aqueles em que a gravação foi realizada ao vivo, tocada e captada de forma concomitante por todos os músicos e instrumentistas: Marcha Sobre a Cidade (1979) do Grupo Um, e Divina Increnca (1980), único álbum da banda homônima. Este último ainda é mais específico: os instrumentos de gravação do estúdio JV foram levados até a sala Guiomar Novaes, da Funarte em São Paulo para realização do álbum, em poucos dias (Divina Increnca, 2007, Encarte). 34 Um trabalho fundamental nesse debate é o livro de Jonathan Sterne (2003). Ressaltando que o universo social da escuta foi diametralmente alterado com a incorporação das tecnologias de reprodução sonora, Sterne demonstra que o som é um fenômeno passível de análise como uma experiência historicamente determinada. Até o advento das tecnologias de reprodução, a escuta musical era uma prática essencialmente coletiva, baseada na experiência in loco da execução musical. Na virada do século XIX para o XX, as novidades tecnológicas engendraram um novo escopo de experiências, possibilitando a escuta individual das reproduções (“cópias”) da versão “original”. Essas e outras mudanças formaram um novo paradigma da escuta e da audição como fundamento da(s) modernidade(s) ocidental(ais). Com um estudo minucioso sobre a natureza do som e os processos acústicos de vibração sonora, Sterne (2003, p. 11 – 13) destaca que o som não é algo “natural”, mas inteligível a partir do sentido construído via interpretação humana: O som é uma percepção muito particular das vibrações. Você pode retirar o som do ser humano, mas retirar o que é humano do som é possível somente através de um exercício de imaginação. [...] Meu ponto é que os seres humanos estão no centro de qualquer definição de som. [...] a história do som é, necessariamente, um esforço externalista e contextualista. O som é um artefato da desordenada e política esfera humana20. Isto é, tanto os sentidos atribuídos à obra sonora no período de sua produção e circulação, quanto a análise científica sobre a música gravada não são experiências atemporais (e/ou trans-históricas) de escuta, mas sim possibilidades circunscritas às conjunturas políticas, econômicas e culturais do meio social em que o som é veiculado. Dessa forma, a investigação sobre as sonoridades não trata necessariamente de uma tradução da linguagem musical via partituras, mas da incorporação do som como fonte passível de dialogar e fornecer pistas sobre os problemas específicos de cada pesquisa. No caso desta tese, as sonoridades da VPI fornecem informações primordiais para pensar o contínuo processo de aproximação e afastamento do jazz como componente antagônico à intenção de brasilidade musical e retórica. 20 No original: “Sound is a very particular perception of vibrations. You can take the sound out of the human, but you can take the human out of the sound only through an exercise in imagination. […] My point is that human beings reside at the center of any meaninful definition of sound. […] the hystory of sound is of necessity an externalist and contextualist endeavor. Sound is an antifact of the messy and political human sphere”. 35 Os historiadores também têm trabalhado no sentido de pensar a linguagem musical não como um campo “interior”, “autônomo”, separado das práticas prosaicas da sociedade; mas como um dado fundamentalmente social, coletivo. O filósofo francês Rancière, por exemplo, destaca que “a interioridade musical nunca é definida como a esfera objetiva de um ‘propriamente musical’ […] Ela é definida como uma partilha do exterior, do possível e do impossível que é sempre único e que vai além da música” (2021, p. 17). Inspirado em François Hartog, Rancière salienta ainda que as formas de construção e diagnóstico dos regimes de historicidade21 podem auxiliar o historiador a “elaborar este ou aquele pensamento sobre música” (2021, p. 26). De caráter central para organização metodológica desse capítulo (e do trabalho como um todo) é o apontamento de José Geraldo Vinci de Moraes (2000, p. 210): mesmo não sendo músico ou musicólogo com formação apropriada e específica, o historiador pode compreender aspectos gerais da linguagem musical e criar seus próprios critérios, balizas e limites na manipulação da documentação (como ocorrem, por exemplo, com a linguagem cinematográfica, iconográfica e até no tratamento da documentação mais comum) […]. Certamente esse é um problema sério [a linguagem musical], não o único, mas que deve ser superado. Essa dificuldade não pode ser impeditiva para o historiador interessado nos assuntos relacionados à cultura popular, como não foram, por exemplo, as línguas desconhecidas, as representações religiosas, mitos e histórias e os códigos pictóricos. Na realidade, essas linguagens não fazem parte de fato do universo direto e imediato do historiador, mas nenhuma delas impediu que esses materiais fossem utilizados como fonte histórica para desvendar e mapear zonas obscuras da história. O historiador destaca ainda que a linguagem musical é um problema inerente ao diálogo entre História e Musicologia, sendo um desafio constituinte dessa relação. Todavia, dessa dificuldade apriorística surge uma possibilidade de superação, realizada pelos historiadores em fontes de outras naturezas: a criação de critérios próprios para explorar o material documental, a partir de problemas, metodologias e soluções distintas em contato com as especificidades de cada objeto. A sistematização das recorrências sonoras apoiada na audição atenta e crítica do material musical, mesmo por aqueles sem a devida formação técnica, se faz um 21 Segundo Hartog (2013), o conceito “regimes de historicidade” é uma ferramenta heurística que permite ao historiador analisar as modalidades do tempo que regem determinada sociedade, indivíduo ou grupo social, pensando as formas de tratamento das categorias de passado, presente e futuro. Vale ressaltar, nesse sentido, a proximidade inerente entre história e música em relação à questão temporal: a análise do tempo figura como uma ferramenta-chave tanto na análise musical (tempo compartilhado pelos instrumentistas) quanto na análise histórica (temporalidade experienciada pelo sujeito). 36 trabalho primordial para as pesquisas que se utilizam da música (em uma área epistemológica institucionalmente “fora” da musicologia) seja como fonte e/ou objeto de trabalho. Assim, esse capítulo é dedicado à decupagem, faixa a faixa, do material musical da Vanguarda Paulista Instrumental, situação na qual o problema condutor da pesquisa e da VPI emerge fortemente: as nuances entre experimentalismo x tradição; estrangeiro x nacional; ímpeto transnacional x intenção de brasilidade. O objetivo é perceber como as bandas que formaram a VPI geraram projetos sonoros e argumentativos distintos para essa problemática geral que as engloba, a partir do contato com o jazz. A proposta é apresentar algumas características recorrentes na sonoridade da VPI, pensando suas particularidades em torno da noção de jazz brasileiro, que emergia na mesma época como um sinônimo de música popular instrumental brasileira, ou somente música instrumental. Também busca-se demonstrar as especificidades (musicais e biográficas) de cada banda, além dos diferentes caminhos estéticos percorridos pelos grupos em torno das representações de Brasil como vetor primordial. Para tanto, a dimensão musical (sons) e tecnológica (suporte) da discografia da VPI é analisada levando em consideração, também, algumas questões e procedimentos, tais como: a materialidade do LP como forma artística (Mammì, 2014), o estúdio como instrumento musical (Molina, 2014), a organização e ambientação das faixas pelos lados do disco como constituintes (ou não) de uma retórica conceitual (Dias, 2012), a duração das composições, a inclusão (ou não) do ruído como elemento musical, a incidência de improvisos e ‘solos’, a autoria das faixas (releitura ou composta por algum membro da banda), a instrumentação utilizada, o repertório do disco, a estrutura do fonograma, entre outros aspectos. Alguns trabalhos de estúdio da Vanguarda Paulista Instrumental foram relançados em CD, com faixas bônus e, às vezes, mudanças na ordem das composições. Não obstante, os processos de escuta foram realizados pensando a organização das faixas segundo a lógica interna dos LPs lançados entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, focando na historicidade das obras em diálogo com as conjunturas bastante específicas da música instrumental e do jazz no Brasil daquele momento (períodos finais da ditadura militar, 1964 – 1985). Os álbuns 37 selecionados para representar a discografia da VPI estão listados na tabela abaixo: Tabela – Discografia selecionada da Vanguarda Paulista Instrumental ARTISTA ÁLBUM ANO (Formato, Gravadora) Pau Brasil Pau Brasil 1983 (LP, Lira Paulistana/Conti- nental) 2012 (CD, Pau Brasil Music) Pau Brasil Pindorama 1986 (LP, Copacabana) 2012 (CD, Pau Brasil Music) A Divina Increnca A Divina Increnca 1980 (LP, Independente) 2007 (CD, Editio Princeps) Pé Ante Pé Pé Ante Pé 1980 (LP Independente) 2005 (CD, Editio Princeps) Pé Ante Pé Imagens do Inconsciente 1982 (LP, Lira Paulistana) 2005 (CD, Editio Princeps) Metalurgia Metalurgia 1982 (LP, Som da Gente) Grupo Um Marcha Sobre a Cidade 1979 (LP, Independente) 1980 (LP, Lira Paulistana) 2002 (CD, Editio Princeps) Grupo Um Reflexões sobre a Crise do Desejo 1981 (LP, Independente) 2005 (CD, Editio Princeps) Grupo Um A Flor de Plástico Incinerada 1982 (LP, Lira Paulistana/Conti- nental) 2010 (CD, Editio Princeps) Hermeto Pascoal e o Grupo Vice-Versa Viajando com o Som 2017 (Álbum Digital, CD e LP; Far Out Records) [1976] Grupo Um Starting Point 2023 (Álbum Digital, CD e LP; Far Out Records) [1975] 38 1.2 “Os pilares da música nacional”22: Pau Brasil Das bandas que compõem a Vanguarda Paulista Instrumental, o grupo Pau Brasil é aquele que mais faz uso da intenção de brasilidade, tanto na retórica quanto nas propostas musicais, conforme o próprio nome do grupo já evidencia. A data exata de sua formação é nebulosa, pois alguns de seus primeiros músicos integravam projetos musicais em comum de forma concomitante e tocavam com o ‘Nelson Ayres Trio’ desde 1978. Vale ressaltar que, nesse momento, isto é, no final dos anos 1970, Nelson Ayres já era um músico consideravelmente experiente no conturbado cenário do jazz e da música instrumental em São Paulo. Ainda na década de 1960, em 1969, foi para os EUA estudar na hoje reconhecida Berklee School of Music. Segundo Ayres, após o AI- 5, a universidade em que estava entrou em greve23. Ele aproveitou o tempo longe das aulas e decidiu focar na carreira musical, conseguindo viabilizar sua ida para estudar em Boston. O pianista havia ganhado uma passagem em um evento promocional no Camja24: espaço para shows, jam sessions, eventos e palestras relacionados ao jazz na cidade de São Paulo. Sobre sua chegada na Berklee, Ayres ressalta que foi um dos primeiros brasileiros a estudar no local: poucos dias antes, o saxofonista carioca Victor Assis Brasil (1945 – 1981) também havia se matriculado na mesma instituição, mas nunca ia nas aulas, ressalta o pianista. Além da experiência na instituição de ensino, Nelson Ayres tocou em diversos bares, casas de shows e strip-tease, restaurantes; montou grupos de música instrumental (inclusive, com Victor Assis Brasil); teve aula também com Margaret Chaloff25, tocou e gravou com Airto Moreira, entre outras experiências (Ayres, 1990). Quando voltou dos EUA, em 1972, formou a Nelson Ayres Big Band na qual atuou por oito anos, antes de se aventurar em outras propostas musicais que, mais tarde, iriam culminar no nascimento do Grupo Pau Brasil, em 1979, segundo a data 22 Parte do título da matéria escrita por Vianna (2016) no jornal Folha de São Paulo para se referir à banda Pau Brasil. 23 Ayres fazia graduação em Administração de empresas na Mackenzie. No caso dos pormenores do contexto cultural do Brasil e suas conexões com o jazz durante a ditadura militar, são questões que serão discutidas no terceiro capítulo da tese. 24 Clube dos Amigos do Jazz (Camja): uma importante casa de shows e eventos relacionados ao jazz da cidade de São Paulo. 25 Reconhecida, também, pelas aulas dadas aos pianistas ícones do fusion jazz: Chick Corea e Herbie Hancock, entre outros alunos e atividades. 39 indicada pela própria banda. Em entrevista ao MIS, em 1990, o pianista comenta sobre esse projeto. Logo após chegar ao Brasil, alguns músicos estavam interessados no conteúdo apreendido nos EUA e Nelson começou a lecionar: Então, eu dava umas aulas na ProArte, para uns amigos. Um workshop para moçada, na verdade. E a coisa começou a ficar legal, a turma começou a ficar unida. E surgiu a ideia de formar a banda para tocar os arranjos que a gente fazia nas aulas. E aí fizemos essa banda, que eram os melhores músicos de São Paulo. Na época tinha a OPUS 2004 ali na Consolação [São Paulo/SP], e começamos a juntar o pessoal para tocar lá na segunda feira. Mas a ideia era não ter que fazer publicidade, nem ter muito público, não era para virar um evento, assim, era mais pra gente tocar mesmo. Na primeira vez só tinha os músicos. Da segunda vez os músicos e os amigos deles. Da terceira vez estava lotada a casa. Pois era a única coisa de música instrumental que acontecia na cidade de São Paulo. E era uma superbanda. Acho que era entre 1973 e 1974. (Ayres, 1990). Ayres ressalta ainda as dificuldades em manter uma big-band com cerca de catorze ou quinze músicos (sua banda fez shows com até 18 pessoas). No que se refere à toda logística de instrumentos, viagens, partituras, relacionamentos pessoais, era algo de extenso trabalho e que começou a “pesar” demais, argumenta o compositor. Segundo Ayres, naquele momento de sua carreira “em vez de continuar tocando com profissionais mais velhos, tive a ideia de pegar uns moleques que ainda estavam começando na profissão, mas que tivessem garra, todo o tempo do mundo para ensaiar e que trouxessem informações novas” (Calado, 2012, p. 15), foi quando ele se juntou a Azael Rodrigues na bateria e Rodolfo Stroeter no baixo (que já formavam o Divina Increnca). Logo em seguida, o experiente Roberto Sion26 (saxofonista) se une ao trio, constituindo boa parte da primeira formação do Pau Brasil, antes de ter esse nome. Na matéria intitulada “Roberto Sion, o som e o improviso brasileiro”, publicada em 1981 na Folha de São Paulo, o jornalista Miguel de Almeida 26 Saxofonista, flautista e clarinetista. Nasceu em Santos/SP, em 1946. Atuou como arranjador, compositor e maestro. Começou a estudar música no piano, aos 5 anos de idade. Aos 13 anos, passou a estudar saxofone, clarineta, solfejo, harmonia e canto coral no Conservatório Lavignac – Santos. Antes de estudar composição em Boston, formou-se em Psicologia pela UNICAMP, aos 25 anos de idade. Estudou saxofone com Joseph Viola, Ryo Noda, Lee Konitz e Joe Allard na Berklee School of Music. Aperfeiçoou sua carreira de compositor e arranjador e de análise e composição com Damiano Cozzella, Olivier Toni, Willy C. Oliveira e H. J. Koellreutter. Participou, também, da banda Mandala, ao lado de Nelson Ayres, Zé Eduardo Nazário, Zeca Assumpção e Luiz Roberto Oliveira. Em parceria com Nelson Ayres, lançou, em 1983, o LP Roberto Sion e Nelson Ayres (Eldorado). Ainda nos anos 1980, fez parte do conjunto Pau Brasil, com o qual lançou os LPs Pau Brasil (1983), Pindorama (1986) e Cenas brasileiras (1987). Foi professor de saxofone na Escola Municipal de Música e no Centro de Estudos Tom Jobim, de 1994 a 2000. De 2001 até 2013, Sion foi regente titular e diretor artístico da Orquestra Jovem Tom Jobim. 40 afirmou que “Sion tem procurado desenvolver, sozinho ou em grupo, uma maneira brasileira de interpretar o saxofone” (Almeida, 1981, p. 23, grifos nossos), demonstrando, também em parte da imprensa, a retórica acerca da intenção de brasilidade na música instrumental e no jazz produzidos no sudeste do país (conforme veremos em diversos exemplos no decorrer deste capítulo). Nesse mesmo período, por volta do início de 1981, o argentino Hector Costita foi convidado para integrar a banda, mas ficou por pouco tempo, pois logo saiu para dirigir outro trabalho artístico. Nesse ínterim, Paulo Bellinati27 retorna da Suíça após anos de estudo (entre 1975 – 1981), e se aproxima dos integrantes do Pau Brasil (que já existia com esse nome). No início, Bellinati tocava apenas substituindo Hector Costita de forma temporária e, logo em seguida, integrou-se definitivamente a banda: a primeira formação de estúdio do Pau Brasil está completa. Segundo o próprio violonista brasileiro: “eu ainda era bem jazzista quanto retornei ao país. Minha guitarra estava em ponto de bala, mas, com o tempo, eu e o Rodolfo, principalmente, fomos puxando o grupo para mais do Brasil” (Bellinati, 2012, p. 22), mostrando um pouco das disputas internas da banda na busca pela brasilidade, bem no início de sua formação. O primeiro disco só seria gravado em 1983, mas, antes disso, boa parte de seus integrantes tocaram juntos muitas vezes como Pau Brasil ou mesmo outros diversos trabalhos e álbuns ‘solo’, como as gravações pela Som da Gente28 de Nelson Ayres (Mantiqueira, 1981) e Roberto Sion (homônimo, 1981), por exemplo. Na longa trajetória musical do Pau Brasil, um fato marcante já no início desse percurso é a turnê na Europa em 1982, realizada mesmo antes da gravação do 27 Nascido em São Paulo, capital, em 1950, Paulo Bellinati é um importante violonista brasileiro, que também trabalha como guitarrista e arranjador. Tem ampla atuação no cenário nacional e internacional, sendo formado pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Morou na Suíça entre 1975 e 1980, onde formou-se, também, pelo Conservatório de Genebra e lecionou no Conservatório de Lausanne. Gravou uma dezena de discos solo e participou de shows e gravações ao lado de artistas como Steve Swallow, Carla Bley, Edu Lobo, Chico Buarque, César Camargo Mariano, Leila Pinheiro e Gal Costa, com a qual ganhou o “Prêmio Sharp 94” de melhor arranjador. Sua peça Jongo, ganhou o 1º prêmio no Festival da Martinica e já conta com mais de 50 gravações em todo mundo, inclusive do violonista John Williams (1996-), referência geral do instrumento. Seu “Concerto para Dois Violões e Orquestra” estreou em 2012, com os solistas do Brasil Guitar Duo à frente da OSESP regida pelo Maestro Giancarlo Guerrero. Além de violão e guitarra, também toca cavaquinho e viola na extensa discografia do Pau Brasil. 28 Som da Gente, ativa de 1981 a 1992. Foi criada e administrada pelo casal Walter Santos e Teresa Souza, trabalhava com o lançamento de discos exclusivamente instrumentais. Dentre alguns artistas que lançaram pelo selo: Hermeto Pascoal (1936-), Heraldo do Monte (1935-), Grupos D’alma, Medusa e Cama de Gato. Sobre a gravadora, ver: Muller (2005). 41 primeiro álbum. Com apresentações no Paris Jazz Festival (ao lado dos grupos instrumentais brasileiros D’Alma e Medusa) também alguns clubes de jazz em Paris e em Toulouse, bem como na sede da Association Pour La Musique de Recherche, em Genebra. Tal fato demonstra tanto uma certa visibilidade da música instrumental e do jazz produzido no Brasil no contexto internacional daquele período, quanto a rede considerável de contatos em torno de Nelson Ayres (pois foi o intermediário com o produtor responsável pela viagem, André Francis da Radio France)29. A banda viajaria muitas vezes para a Europa e diversos locais do mundo durante sua trajetória. Finalmente, em 1983, o Pau Brasil estreia no mercado fonográfico com o álbum homônimo30 (figura 01) contendo seis faixas: duas compostas por Nelson Ayres (uma delas em parceria com Azael Rodrigues), duas por Paulo Bellinati e uma por Roberto Sion. Nesse disco, apenas uma composição (das seis) não é de nenhum integrante do Pau Brasil: trata-se da segunda faixa, “Na Baixa do Sapateiro” (1938), de Ary Barroso. A escolha de “Na Baixa do Sapateiro” não se deu por acaso, ela teve muitas versões: Carmem Miranda (1938), Dorival Caymmi (1958), João Gilberto (1973), Wando (1975), Banda Black Rio (1977), Elis Regina (1979)31, Gal Costa (1980), Caetano Veloso (1997) (esta última, posterior à versão do Pau Brasil) e até mesmo um dos grandes nomes do jazz norte-americano, Jonh Coltrane (1965)32. Não obstante, também foi tema do episódio do desenho produzido pela Walt Disney em 1944/45 quando o Pato Donald vai à Bahia com Zé Carioca, demonstrando de forma idealizada um Brasil pautado pelos clichês de alegria do povo e das belezas naturais como fonte inesgotável de uma felicidade que supera as mazelas do dia a dia. Tal produção contribuiu para circulação desta composição de Ary Barroso e da música brasileira no exterior, principalmente nos EUA. 29 Nelson Ayres teve uma curta passagem (1981) como gestor do selo independente exclusivamente de jazz e música instrumental Som da Gente. Segundo o pianista, uma experiência da qual se arrepende profundamente. Trabalhando pelo selo, conheceu André Francis para tentar produzir e vender no Brasil alguns discos gravados na França e, também, exportar para lá alguns discos gravados pela Som da Gente. Nesse contexto, André Francis convidou Nelson Ayres para tocar em um festival na França, com seu LP Mantiqueira (1981, Som da Gente). Todavia, ao receber o convite, Ayres ressaltou “olha, o grupo que toca o disco é o Pau Brasil”, e eles fizeram a turnê utilizando o nome banda, em 1982 (Ayres, 1990). 30 PAU BRASIL. Pau Brasil. São Paulo: Lira Paulistana/Continental, 1983. Disco de vinil, 33 rpm. 31 Apresentação ao vivo no Montreaux Jazz Festival, 1979. 32 Gravada de 1958, mas lançada apenas em 1965 com o nome de “Bahia”, em álbum homônimo (Prestige Records). 42 Dessa forma, o grupo Pau Brasil intenta se aproximar da forte ‘noção de Brasil’ que está inscrita na representação internacional dessa música, cujo título fora daqui é simplesmente “Bahia”. Outra forma de apelo simbólico ao Brasil se dá pela própria capa do disco, reinterpretando a bandeira do país. Figura 1: Capa do LP Pau Brasil, 1983. Fonte: Discogs.com Retomando os aspectos da sonoridade do álbum, mesmo que contenha uma sonoridade bastante diferente da versão de John Coltrane, a leitura do Pau Brasil de “Na Baixa do Sapateiro” se aproxima daquela realizada pelo reconhecido saxofonista norte-americano pelo caráter instrumental, pelo tempo de duração mais alongado e pelo foco nos improvisos. Entretanto, uma diferença nítida entre as duas releituras é a presença marcante da guitarra de Paulo Bellinati, não só compondo a harmonia, mas também improvisando do minuto 3’ 44” até 5’ 05”. Segundo Gomes (2016, p. 57) “a composição de Ary Barroso foi adaptada pelo saxofonista [Coltrane], sendo utilizada como veículo de novas explorações, o que viria a ser denominado jazz modal”. As técnicas modais são utilizadas em momentos pontuais da versão do Pau Brasil, apenas em algumas partes do solo de saxofone de Roberto Sion (de 5’ 27” até 7’ 10”) mas não são o motivo central da composição como no caso de Coltrane. No que se refere às músicas de autoria dos próprios membros da banda, a faixa que abre o álbum é “Azas nos Ayres”, com duração de 4’ 28”. Esta é a única música LADO A A1 – Azas nos Ayres (Azael Rodrigues e Nelson Ayres A2 – Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso. Arranjo de Nelson Ayres) A3 – Europa (Roberto Sion) LADO B B1 – Frevo do Pastochia (Paulo Bellinati) B2 – Jongo (Paulo Bellinati) B3 – Pau Brasil (Nelson Ayres) 43 do disco cuja compo