unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JOÃO MARCOS MATEUS KOGAWA SSSOOOBBBRRREEE AAA NNNOOOÇÇÇÃÃÃOOO DDDEEE PPPOOOLLLIIIFFFOOONNNIIIAAA EEEMMM BBBAAAKKKHHHTTTIIINNN ARARAQUARA – SÃO PAULO. 2008 JOÃO MARCOS MATEUS KOGAWA SSSOOOBBBRRREEE AAA NNNOOOÇÇÇÃÃÃOOO DDDEEE PPPOOOLLLIIIFFFOOONNNIIIAAA EEEMMM BBBAAAKKKHHHTTTIIINNN Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para qualificação ao título de Mestre em Lingüística. Linha de pesquisa: Estrutura, Organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientador: Profa. Dra. Renata M. F. Coelho Marchezan. Bolsa: CNPQ/Mestrado. ARARAQUARA – SÃO PAULO 2008 JOÃO MARCOS MATEUS KOGAWA SSSOOOBBBRRREEE AAA NNNOOOÇÇÇÃÃÃOOO DDDEEE PPPOOOLLLIIIFFFOOONNNIIIAAA EEEMMM BBBAAAKKKHHHTTTIIINNN Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para qualificação ao título de Mestre em Lingüística. Linha de pesquisa: Estrutura, Organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientador: Profa. Dra. Renata M. F. Coelho Marchezan. Bolsa: CNPQ/Mestrado Data de aprovação: 28/02/2008 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Renata Maria F. Coelho Marchezan Unesp – CAr. Membro Titular: Profa. Dra. Maria do Rosário F. V. Gregolin Unesp – CAr. Membro Titular: Prof. Dr. Gilberto de Castro UFPR – Curitiba. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico este trabalho aos amigos que fiz em Araraquara, mais especificamente, ao GEADA, grupo do qual participo e no qual tenho amigos inestimáveis. AGRADECIMENTOS Bem, temo que essa parte ocupe mais espaço do que a dissertação propriamente dita. Por isso, traçarei essas linhas com certo receio e com a preocupação de não gastar mais palavras do que as necessárias para lembrar de todos aqueles que me aturaram e fizeram com que fosse possível a realização deste trabalho. Ao CNPQ pela bolsa de estudos. À minha orientadora, Profa. Renata Marchezan, pela orientação/atenção/paciência e por ter me possibilitado a entrada no Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua Portuguesa. À minha ex-orientadora, hoje Dra. Luciane de Paula. Ao professor Gilberto de Castro pelos e-mails trocados. Aos colegas Herculano, Renato, Felipe, Alex e Elton por abrirem a República para minha estadia nos seis primeiros meses de mestrado. À Flávia Zanutto e ao Pedro Navarro pelo diálogo e companheirismo. À família Valencise/Gregolin. Ao Nilton Milanez pelas conversas sobre os textos de Jacqueline Authier- Revuz. À amiga Nildi pelas longas conversas tolerantes que teve comigo. Ao terceiro – parte dele – ano de letras da Unesp de Araraquara. Ao asilo (Borgato, Isaías e Felipe). À Dja Bai (Diogo, BH, Renan, Rafa e Du). À Tapera. Ao amigo Israel e sua família – pela qual tenho grande admiração – pelo apoio extraordinário. À minha família pela minha formação (Ydy, Guto, Ana Maria, e Wilson). Aos meus tios Maurício, Valéria e Rita. Às minhas primas Débora e Lívia. À minha amiga – quase avó – Ione. À Profa. Maria do Rosário pelos três éfes (3 Fs). À minha namorada Ana Márcia. “Como! Tantas palavras acumuladas, tantas marcas depositadas em tantas folhas de papel e oferecidas a inúmeros olhares, um zelo tão grande para mantê-las além do gesto que as articula, uma piedade tão profunda destinada a conservá-las e inscrevê-las na memória dos homens – tudo isso para que não reste nada da pobre mão que as traçou, da inquietude que nelas procurava acalmar-se, e da vida acabada que só tem a elas, daqui por diante, para sobreviver?” (FOUCAULT, 2004, p.235-236). RESUMO O pensamento de M. Bakhtin e seu círculo traz indagações importantes para o campo lingüístico e literário. Os conceitos que formam o universo teórico desse grupo russo permite-nos investigar diferentes tipos de discursos, especialmente, os discursos artístico e literário. Assim, propomos olhar para a forma com que o compositor Chico Buarque constitui seu mundo artístico a partir do conceito de polifonia, que Bakhtin desenvolve em seu texto Problemas da Poética de Dostoiévski. Analisamos o universo artístico buarqueano e percebemos certa dificuldade em caracterizá-lo como polifônico. Tal fato instiga-nos, então, a propor uma re-leitura sobre o conceito de polifonia a partir de sua “aplicação” em um tipo de discurso específico: algumas canções de Chico Buarque. Esse procedimento teórico e metodológico conduz-nos a relativizar algumas “máximas” teóricas como: “a consciência é polifônica” ou “todo discurso é polifônico”. A polifonia não se caracteriza apenas pela coexistência de várias vozes. Mais que isso, é a forma de coexistência das vozes que permite a Bakhtin concluir que Dostoiévski é um autor polifônico. Nesse sentido, o romance polifônico é um espaço discursivo em que as personagens compõem um conjunto de vozes que dialogam igualmente. Não há sobreposição de uma voz sobre outra, apesar de o autor ser o centro organizador da relação entre as personagens. Acreditamos, portanto, que é possível relativizar o conceito de polifonia a partir da análise de um universo discursivo não-polifônico, ou seja, caracterizamos a polifonia a partir do monológico. Palavras – chave: Polifonia. Círculo de Bakhtin. Chico Buarque. Monologia. Autor. RÉSUMÉ La pensée de M. Bakhtine et son cercle pose questions importantes sur le champ linguistique et littéraire. Les concepts qui forment l’univers théorique de ce groupe russe permettent de mettre en lumière différents types de discours, particulièrement, les discours artistiques et littéraires. Ainsi, nous proposons d’analyser la constitution du concept de polyphonie – développé dans le test Problèmes de la Poétique de Dostoièvski – comme une catégorie esthétique en relation avec la philosophie linguistique (nature dialogique) de Bakhtin. En analysant l’univers artistique de Chico Buarque – notre corpus et objet d’exemplification – nous rencontrons certaines difficultés à définir l’univers polyphonique. Notre procédure théorique et méthodologique conduit à relativiser quelques “maximes” théoriques comme: “la conscience est polyphonique” ou “tout le discours est polyphonique”. La polyphonie n’est pas seulement la coexistence de plusieurs voix. C’est la forme de coexistence des voix qui permettent à Bakhtine de conclure que Dostoièvski est un auteur polyphonique. Ainsi, la romance polyphonique est un espace discursive dont les personnages composent un ensemble de voix qui dialoguent équitablement. Il n’existe pas la superposition d’une voix sur l’autre, bien que l’auteur soit le centre organisateur de la relation entre les personnages. Nous croyons, donc, qu’il est possible de repenser le concept de polyphonie à partir de l’analyse d’un univers discursive non-polyphonique: la polyphonie à partir du monologique. Mots-clés: Polyphonie. Cercle de Bakhtine. Chico Buarque. Monologie. Auteur. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................. p.9 1 DOS CAMINHOS TEÓRICOS.................................................................................................................. p.20 1.1 Um Conceito Basilar: O Dialogismo..................................................................................................... p.20 1.1.1 Sobre a relação autor-herói em Bakhtin.............................................................................................. p.29 1.1.2 Por uma concepção de enunciado......................................................................................................... p.35 1.1.3 Polifonia?................................................................................................................................................. p.44 2 UM OLHAR SOBRE O QUADRO POLÍTICO....................................................................................... p.57 2.1 O Golpe Militar......................................................................................................................................... p.58 2.1.1 Tortura, contenção e omissão: dissenções entre o regime e o porão................................................. p.64 2.1.2 Um acontecimento marcante: a morte no calabouço.......................................................................... p.74 2.1.3 Entre a cruz e a espada: distensão política, movimentos de esquerda e indisciplina no porão................................................................................................................................................................. p.79 2.1.4 Outro acontecimento marcante: a morte de Vladimir Herzog.......................................................... p.87 3 O AUTOR E O HERÓI: SINGULARIDADES DO CONCEITO DE POLIFONIA............................. p.90 3.1 As Canções Como Lugar Dialógico Entre o Político-Econômico, o Social e o Religioso.................... p.92 3.1.1 O autor-criador e os heróis: crítica valorativa e monologia............................................................... p.114 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................................... p.122 REFERÊNCIAS.............................................................................................................................................. p.126 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA................................................................................................................ p.129 9 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo empreender uma leitura do conceito de polifonia em Bakhtin. Descrevemos alguns aspectos que tangem ao conceito bakhtiniano e, posteriormente, exemplificamos nossa discussão por meio de uma análise sucinta da relação autor-herói em algumas canções de Chico Buarque de Hollanda. Entendemos as canções selecionadas como discurso monológico, na medida em que as personagens centrais são constituídas, como imagens, pelo autor-criador. Não é marcada, na letra da canção, a voz da personagem principal e seu posicionamento axiológico diante do mundo que a circunda – o que nos incita a pensar na imagem do herói constituído por uma outra voz1. Sob esse prisma, existe uma distinção entre o polifônico e o monológico vinculada à arquitetônica de um universo artístico. Nesse sentido, a categoria de polifonia atende a certos requisitos, propostos por Bakhtin a partir de sua leitura dos romances de Dostoiévski. Polifonia e monologia assentam-se em posicionamentos autorais distintos e, portanto, imagens de heróis diferentes. Não se pode falar em texto polifônico sem considerar a relação estético-fundamental entre autor-criador e o herói, pois, a especificidade dessa relação é determinante para a categorização do mundo artístico. A análise das canções selecionadas vincula-se a uma reflexão sobre a relação que o autor-criador mantém com seus heróis2, para demonstrar que a organização discursiva que se apresenta é monológica. Chico é bastante singular em seu modo de compor canções nas décadas de 60/70. Ele recorre constantemente a tipos heróicos3 tais como: “Carolina”, “O Juca”, “Funeral de um lavrador”, entre outras4. Sant’Anna (2004, p.171) afirma que Na obra de Chico Buarque o problema do silêncio/fechamento, música abertura vincula-se não apenas à problemática da utopia; vincula-se também à descrição de uma série de personagens excluídos ou silenciados pelo cotidiano. Já no seu primeiro disco, numa música aparentemente 1 Se tomarmos como exemplo a canção “Geni e o Zepelim” (uma das canções selecionadas), de 1979, observamos que a imagem de Geni é construída a partir da voz de um outro (exotópico) e não da própria persona. 2 Geni (“Geni e o Zepelim”), Pedro (“Pedro, pedreiro”), o malandro (“O malandro nº 2”) e o herói anônimo de “Construção”. 3 A obra de Chico Buarque desse período tem um caráter de representação da margem, ou seja, sujeitos desprestigiados socialmente são heroificados pelo compositor. Esses heróis – por manterem uma relação com indivíduos historicamente constituídos – são intensamente delineados e é nesse sentido que os entendemos como tipos: é difícil olhar para “Pedro, pedreiro” sem relacionar o herói com a classe operária da construção civil, ou, para “Geni e o Zepelim”, sem entender o herói como prostituta, etc. 4 As três canções citadas não são objeto de análise. A referência a elas atende à finalidade de destacar a presença de tipos heróicos nas canções buarqueanas. 10 inconseqüente, ele reafirma a coerência de sua obra: Juca, por ser sambista, é tomado como um marginal diante do delegado. Por isso, acreditamos que tomar algumas canções suas como corpus é profícuo para entender o conceito de polifonia, uma vez que essa categoria não se desvincula da relação autor-herói. Bakhtin (2003, p.23) propõe que a obra estética se forma a partir da interação dialógica entre o olhar exotópico e o objeto a ser estilizado. De acordo com o teórico russo: Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. O olhar extraposto que conclui o herói coloca-nos uma questão relacionada ao posicionamento teórico-estético bakhtiniano concernente à diferença entre o romance polifônico – observado principalmente em Dostoiévski – e outras obras de caráter monológico como, por exemplo, os romances de Tolstói. Para analisarmos as canções de Chico Buarque elencadas é necessário refletir sobre as condições históricas que permitiram ao autor construir seu mundo artístico. Tanto quanto em Dostoiévski a evolução do capitalismo na Rússia – dentre outros fatores – foi crucial para a constituição de seu mundo literário, o contexto de ditadura militar e o compromisso com a crítica social, parecem fatores consideráveis para a constituição do universo artístico buarqueano. Não que a visão estética seja uma determinação lógica e simplista do momento histórico. Fosse assim, teriam surgido outros Chicos e outros Dostoiévskis. O que ressaltamos é o atravessamento histórico que não pode se desvincular do discurso, mais especificamente, do discurso estético. A relação autor-herói – concernente ao campo de visão estética de Bakhtin – fundamenta-se no princípio dialógico da linguagem – sobre o qual se solidifica a obra do Círculo de Bakhtin. O universo artístico buarqueano é pensado a partir de diálogos sócio- culturais com outros campos (político, econômico, social e religioso), ou seja, a partir do diálogo entre o discurso do compositor sobre seus heróis e o discurso que “outros campos” sociais constroem sobre esses heróis. A imagem do criador pode ser entendida a partir da relação que ele estabelece com suas personagens e, por sua vez, a imagem das personagens se forma a partir do ponto de vista extraposto que as conclui. 11 Não podemos nos esquecer, contudo, que o discurso de Chico – como todo discurso – reativa uma história cultural sem a qual a interpretação de possíveis sentidos presentes nas canções fica limitada – para não dizer impossível. Dessa forma, é necessário resgatar aspectos da história brasileira cantados por Chico: a existência de marginais (operários de construção civil, prostitutas, homossexuais e malandros) e a “situação” deles no contexto de ditadura militar. Tais aspectos históricos constituem o lugar do autor-criador (e o contexto do autor- contemplador5) e, por extensão, a relação deste com suas personagens. Para Bakhtin (2003, p.160), o “contexto do autor-contemplador” constitui um dos dois “contextos axiológicos assimilativos”: “2) o contexto do autor-contemplador, no qual todos esses elementos se tornam características do todo da personagem, adquire significado que determina e restringe a personagem (a vida resulta em um modo de vida).” Nas décadas de 60 e 70, a cultura músico-cancioneira toma grandes proporções políticas e sociais no contexto brasileiro. Ela se torna um instrumento de avaliação social com uma veiculação mais rápida e maior alcance. Por meio da canção, é possível “dizer à população” as dificuldades sociais daquele ambiente histórico. A obra musical representa um dos meios – em “progressão” naquela época – utilizados para questionar o regime político- econômico das décadas de 60 e 70 no Brasil. A veiculação de propostas críticas por meio da manifestação cancioneira atinge maior número de leitores-ouvintes. O processo de divulgação midiática populariza a canção em proporção maior que, por exemplo, livros e teatro. A canção, como espaço midiático possível da época, ocupa um lugar de destaque no interior das manifestações culturais e, especialmente por esse viés, constrói-se a crítica. Os tipos heróicos representam classes menos abastadas, como o malandro, a prostituta e o pedreiro. Ao evidenciar algumas experiências vivenciadas por seus heróis, Chico expõe também problemas sociais que põem o leitor/ouvinte em contato com as disparidades político-econômicas do país. Nesse processo, o excedente de visão estética constrói a imagem do leitor6, que se vê diante de uma intencionalidade crítica7 com a qual tem de conviver enquanto se encontra no espaço/tempo da canção. 5 Embora o autor-contemplador Chico Buarque não pertencesse à classe dos marginalizados, ele vivenciou situações como: levar cobertores para aqueles que dormiam na Estação da Luz, visitar presídios, etc (apud MENESES, 1982, p.22). 6 No momento de produção do discurso, o autor prevê a resposta do leitor. O discurso, nesse sentido, nasce como resposta e não como proposição inicial. Na mesma medida, ao prever a imagem de seu leitor, o autor constrói um lugar para ele, ou seja, a idéia que o autor faz do leitor subjaz à produção do discurso e se manifesta em sua materialidade. 7 Voltaremos à questão da intencionalidade na discussão sobre o conceito de enunciado. 12 Não desconsideramos que muitos brasileiros sequer tomaram conhecimento da obra musical de Chico Buarque. Contudo, se pensarmos em termos de divulgação por parte da mídia ou recepção popular acreditamos que a cultura musical é relativamente mais ampla do que a livresca – ainda que nas décadas de 60/70 houvesse maior comprometimento com a leitura que atualmente, especialmente a geração da década de 60. De acordo com Ventura (1988, p.51), “A geração de 68 talvez tenha sido a última geração literária do Brasil – pelo menos no sentido em que seu aprendizado intelectual e sua percepção estética foram forjados pela leitura. Foi criada lendo, pode-se dizer, mais do que vendo”. Ao pensarmos nas letras das canções de Chico Buarque, não podemos deixar passar despercebida a relação entre a imagem criadora instaurada no/pelo discurso do compositor e a militância política, ou seja, algumas de suas canções têm a função social específica de problematizar alguns valores que silenciam sujeitos, fabricam mentalidades e aprisionam consciências. Várias canções produzidas nesse momento (por Chico e por outros compositores) refletem os constantes embates políticos que estigmatizavam pessoas, por exemplo, a partir de seu posicionamento partidário. De acordo com Ventura (1988, p.63, grifo do autor), “Flávio8 sofreu muito nas assembléias porque, embora não fosse do partidão, fechava quase sempre com suas posições, em nome da sensatez e do realismo”. No interior desse ambiente de disputas políticas e de- marcações axiológicas, a manifestação cultural constitui-se como espaço midiático possível para os ideais revolucionários. Em “Geni e o Zepelim”, por exemplo, o prefeito, o bispo e o banqueiro colocam-se aos pés de uma prostituta. A canção de 79 re-vela certo “comprometimento” político-social na medida em que problematiza determinados valores morais e estabelece um tipo de provocação com o “brio” dos leitores-ouvintes. Em um período de ditadura, tal crítica é altamente inteligível e subversiva, uma vez que a inversão proposta poderia ser considerada por muitos (como ocorreu com os censores do DOPS a despeito de muitas canções de Chico e de outros compositores) como “esquerdista”. Nesse momento, a esquerda sofria sérias perseguições. Muitos esquerdistas desapareceram, foram presos e torturados. Alguns morreram no cárcere. Alguns compositores – dentre eles Chico Buarque – sofreram com o exílio. Sob essa perspectiva, entendemos que a criticidade das canções buarqueanas delineavam sua função de intelectual orgânico no interior da sociedade brasileira. O discurso 8 O autor faz referência a Flávio Rangel. 13 do compositor cumpria o papel de conferir unidade à esquerda que militava contra as imposições do regime militar. O organismo da esquerda era sustentado, dentre outros, pelo discurso de compositores como Chico, que cantavam contra as injustiças e propunham, como saída revolucionária, a união dos alijados do poder. Essa função intelectual visa à discursivização de uma virada no quadro político da época. Podemos citar canções como “Apesar de Você” que tinha como proposta uma revolução política em que o povo – e por que não dizer a esquerda? –, em um futuro próximo, tomaria as rédeas do Estado. Diante da massa revolucionária, o poder ditatorial teria que se curvar e aceitar a vontade da maioria. O discurso de Chico quase sempre constrói críticas ao Estado ditatorial, aos costumes tradicionalistas que visam à reprodução da estrutura político-ideológica e à religiosidade fingida e mascaradora dos interesses capitalistas. Essa crítica pode ser entendida como função da intelectualidade orgânica de Chico, que produz contra-discursos de cunho revolucionário e “perturbadores da ordem”. Talvez possamos estabelecer um paralelo entre o que Gramsci afirma com relação à intelectualidade russa e o que acontece no Brasil: No período histórico mais recente [...]: uma elite dentre as pessoas mais ativas, enérgicas, empreendedoras e disciplinadas vai para o exterior, assimila a cultura e as experiências históricas dos países mais desenvolvidos do Ocidente, sem com isso perder as características mais essenciais da própria nacionalidade, isto é, sem romper as ligações sentimentais e históricas com o próprio povo; feito assim seu aprendizado intelectual, retornam ao país, obrigando o povo a um despertar forçado, a uma marcha acelerada para frente, queimando as etapas (GRAMSCI, 2000, p.27). Interessante que a formação de Chico Buarque deu-se, em grande parte, em importantes países da Europa, tais como a Itália e a França. Em suas canções há marcas de diálogo com literaturas importantes no contexto europeu. É sintomática a relação entre “Geni e o Zepelim” e o conto “Bola de Sebo” de Maupassant. As canções de Chico Buarque “Construção” (1971), “Geni e o Zepelim” (1979), “Pedro, Pedreiro” (1966) e “O malandro nº 2” (1979) atendem a alguns critérios – dentre os quais destacamos a crítica político-social – que nos permitem elucidar o conceito de polifonia a partir do monológico. O período de produção desses discursos – décadas de 60 e 70 – compreende o momento em que a censura cultural e a ditadura militar vigoraram com maior intensidade no país. A canção buarqueana é discurso militante tanto política quanto 14 culturalmente, na medida em que se constitui como posicionamento crítico diante de determinados valores histórico-políticos. Existe uma relação entre pensar a crítica de Chico – como fator preponderante na construção de seus discursos – e a monologia de seus textos- canções. A intencionalidade crítica é mais “visível” do que a eqüipolência das vozes, uma vez que essa criticidade é uma espécie de função intelectual em Chico. Desse modo, a reflexão sobre o conceito de polifonia vai além do fato de um discurso trazer para seu interior outras vozes sociais e criar um sujeito ele-lá-então. Bakhtin elabora critérios para caracterizar um discurso como polifônico. Sob essa perspectiva, o campo de visão estético pode ser polifônico ou monológico, o que nos leva a pensar que há bem menos polifonia no mundo do que sonha nossa vã volitividade. Faraco (2003, p.75) afirma que, [...] pelos critérios de Bakhtin, só mesmo Dostoiévski foi um romancista polifônico. Tezza, em seu texto, aponta dois fatos bastante curiosos a esse respeito. Primeiro, Bakhtin, embora tenha escrito, nos anos seguintes ao livro sobre Dostoiévski, extensas teorizações sobre o romance, nunca voltou a utilizar ou discutir o termo. Segundo, ao fim da vida, quase cinqüenta anos depois de ter usado o termo, Bakhtin, numa entrevista a Zbigniew Podgórzec, deixa bastante claro que polifonia é fenômeno praticamente exclusivo de Dostoiévski. Dessa forma, partimos da idéia de que nem todo discurso é polifônico e a discussão sobre a natureza dos conceitos de polifonia e monologia é exemplificada por meio da análise sucinta de quatro canções de Chico Buarque. A diferença entre polifonia e monologia remete- nos principalmente ao campo de atividade estética e acentua a importância da relação autor- criador/personagem. Não podemos nos esquecer que Bakhtin criticava a estética de sua época na medida em que ela, muitas vezes, tendia, ora para o método biográfico, ora para o sociológico. Descartava-se, quase sempre, a relação basilar autor-herói. O conceito de monologia a que nos referimos pertence ao campo de visão estética de Bakhtin e é apontado por ele em vários momentos de Problemas da Poética de Dostoiévski. No entanto, esse tipo de relação encontra sua exceção – no campo literário – em Dostoiévski, autor que permite a Bakhtin encontrar, na literatura européia, o representante-criador de um possível novo gênero artístico-literário: o romance polifônico. Nesse sentido, o conceito emerge de um gênero específico: o romance; não de qualquer romance, mas o romance de Dostoiévski. Outros exemplos de escritores (dentre eles Camus) polifônicos são citados por Bakhtin, mas são escassos e restringem-se à filosofia. 15 A polifonia é menos uma categoria instrumental que um posicionamento filosófico utópico de renúncia à monologização da existência humana. O romance dostoievskiano é a manifestação artística dessa concepção filosófica. A presença de vozes eqüipolentes, que reproduzem um diálogo de consciências, instaura o efeito de não acabamento e de não redução da voz do herói à voz autoral, embora esse diálogo seja regido pelo autor: No fundo, a polifonia, além de ilustrativa da filosofia do ato de Bakhtin (como defende Tezza), pode ser vista também como a metáfora que recobre a sua utopia e que ele viu materializada no projeto artístico de Dostoiévski – um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas (FARACO, 2006, p.76). Nesses termos, a constituição do herói é um processo de interação entre o eu e o outro por meio do discurso. O sujeito não deve ser entendido e analisado como um “ser em si”, mas como uma consciência (portanto como um ser sócio-individual) a ser entendida a partir da interação discursiva. No discurso das canções elencadas há uma relação dialógica entre as personagens protagonistas e a voz que constrói o universo delas. O lugar do autor-criador se constitui a partir do seu discurso sobre as personagens e, por sua vez, as personagens ganham lugar na/pela voz criadora. O autor re-cria um espaço para as personagens, de acordo com a imagem que ele tem delas. Nesse processo de construção, não só os elementos intrínsecos ao texto são materializados, mas também aspectos exteriores, como a história que engloba a produção dos enunciados. Sob essa ótica, o autor-criador não se constitui como objeto de teoria, a menos que o reconstruamos como tal a partir da realidade das vozes de seu discurso. O autor passa de categoria meramente individual e idêntica a si a consciência social mantida pela relação interativo-dialógica com o discurso do outro. A multiplicidade é o que faz do discurso – e do sujeito – uma instância heteroglótica. Todo discurso é atravessado por outros discursos, diante dos quais adota uma posição responsiva de polêmica ou concordância. A heteroglossia, de acordo com Faraco (2006), marca a multiplicidade de línguas sociais. Não podemos equivaler – sem algumas ressalvas – o conceito de heteroglossia ao conceito de polifonia, que exige eqüipolência de vozes. A relação autor-herói não pode ser vista somente como polifônica. Bakhtin aponta, em “O autor e o herói na atividade estética”, para um tipo de relação monológica – como foi dito 16 acima – distinta da existente em Dostoiévski9. A monologia vincula-se à reificação do herói, encerrado pela consciência extraposta que tem a última palavra sobre sua criatura. A construção/apreensão dos possíveis sentidos da obra artística se dá a partir dessa relação estética basilar. A co-dependência confere às instâncias (autor-criador/herói) seu lugar e à obra seu caráter estético. As canções de Chico exemplificam a monologia, uma vez que a relação entre autor- criador e personagem se dá no sentido de conclusão desta por aquele em função de um propósito autoral: a crítica. Desse modo, a relação autor-herói monológica que se configura nas canções é profícua para a compreensão da polifonia em Bakhtin. As canções que exemplificam nosso esforço teórico foram selecionadas com base em três princípios: elas compreendem o período de ditadura militar, mais especificamente os anos de 1966, 1971 e 1979; além disso, traduzem um tipo de relação entre autor-criador e seus heróis; as quatro canções são protagonizadas por “heróis de terceira pessoa”, isto é, existe um autor-criador que fala de um outro; por último, os heróis das quatro canções são tipos sociais específicos, representantes de classes de pouco prestígio social (o malandro, a prostituta e o pedreiro – operário de construção civil). As canções escolhidas abrangem diferentes momentos do regime militar: seu início, seu entremeio e seu fim. Essa dispersão temporal leva-nos a refletir sobre a “permanência da crítica” – função orgânica de Chico Buarque – em diferentes momentos históricos – ainda que esses diferentes momentos componham um mesmo regime político. “Pedro, Pedreiro” é construída em um momento de “instauração” da Ditadura e de Chico Buarque no quadro cancioneiro-musical brasileiro; “Construção”, em um momento de intensificação das perseguições políticas; “Geni e o Zepelim” e “O Malandro nº 2” são compostas no final do regime. Em todos esses momentos da ditadura, a obra cancioneira de Chico sofre poucas mudanças no que concerne à crítica. Além disso, a crítica não é apenas uma função, mas um tipo de “exigência” do lugar ocupado por Chico Buarque na sociedade brasileira da época, ou seja, como representante da 9 E aqui cabe uma observação importante: não se trata, em Bakhtin, de uma análise valorativa em que o romance de Dostoiévski seria melhor que outros tipos de produção artístico-cultural. O que importa observarmos é que a relação autor-herói pode se dar de diferentes maneiras e que essas maneiras produzem universos artísticos distintos, particulares. Quando falamos em autor, não se trata do autor de “carne e osso” Chico Buarque, mas do lugar exotópico, construído no/pelo discurso, por meio do qual é possível observar e construir a imagem dos sujeitos e do cronotopo em que eles estão inseridos. O quadro teórico bakhtiniano não permite que analisemos as canções apenas nos termos de uma biografia e/ou uma psicologização. Esse tipo de análise (realizada – dentre outras – por correntes behavioristas) desconsideram o princípio estético basilar. 17 ideologia esquerdista – se não em um sentido partidário da esquerda, pelo menos em sentido de contrariedade ao regime – era preciso denunciar os abusos de poder. Nesse sentido, há espécie de monologia constitutiva do lugar ocupado por Chico, na medida em que seu discurso funciona como “unificador” dos ideários da esquerda brasileira. Isso, dentre outros fatores, está na base da produção discursiva buarqueana e não pode ser descartado como fator determinante na construção de seu discurso monológico. A questão dos “heróis de terceira pessoa” pareceu-nos importante porque traduz de forma mais clara o princípio exotópico bakhtiniano. Dessa forma, nas quatro canções analisadas, temos imagens bem definidas dos heróis a partir de um “lugar do lado de fora” que as objetiva. Esse critério de escolha das canções relaciona-se intrinsecamente com o terceiro, ou seja, se “visualizamos” nas canções tipos heróicos específicos, é devido ao acabamento conferido pelo autor-criador às personagens. Dessa maneira, as canções possibilitam-nos caracterizar o discurso monológico, pois, em todas elas, a imagem das personagens é afetada pela vontade crítica do autor-criador e, nesse sentido, tornam-se sua âncora. Os pontos comuns fundamentais à seleção das músicas guiam as análises referentes ao estatuto do conceito de polifonia na obra de Bakhtin. Apesar de os trabalhos do Círculo de Bakhtin não terem uma rigidez terminológica, uma reflexão nesse sentido é importante, pois, o fato de não haver um rigor científico – no sentido positivista de ciência – nos trabalhos bakhtinianos não significa que os conceitos não tenham sua especificidade. Nosso trabalho propõe-se a destacar a especificidade do conceito de polifonia – a partir da caracterização de algumas canções de Chico Buarque. Não é propósito dessa pesquisa propor uma verdade. Importa levantar um possível debate. Diante da falta de algumas respostas, contentamo-nos em levantar possíveis perguntas. Nosso texto divide-se em três seções – e suas respectivas subseções. A primeira (seção 1), “Dos caminhos teóricos”, discute alguns conceitos centrais do pensamento bakhtiniano que são importantes para as análises. Partimos do conceito mais geral, o dialogismo, para uma arquitetônica mais particular, qual seja, aquela em que o discurso literário permite a emergência de novas categorias. Sob esse aspecto, uma categoria ligada à filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin – o dialogismo – expande-se e constitui configurações teóricas menos gerais. Dentre essas, destacamos a constituição do autor-herói como “interação de consciências” – e o princípio exotópico que a possibilita; a materialização dessa interação no enunciado; e, por fim, o conceito de polifonia. 18 A segunda seção (seção 2), “Um olhar sobre o quadro político”, é um relato de alguns acontecimentos políticos importantes ocorridos no período ditatorial. Preocupamo-nos com a “não-heroicização” da figura de Chico Buarque e nos atemos mais especificamente aos acontecimentos e medidas de ordem política. Evitamos uma reconstrução histórica centrada na figura de Chico. Fazemos o caminho inverso e, nem sempre, os acontecimentos culminam com a “importância do compositor”. Acreditamos na importância de Chico naquele momento histórico, mas a história é maior que essa personagem. O fio condutor desse segundo capítulo é a indisciplina militar – grande “responsável” pelas torturas, prisões e mortes – que perpassou quase todos os momentos do período ditatorial e a maneira como os respectivos presidentes governaram, ora valendo-se dessa indisciplina, ora tentando contê-la. A terceira seção (seção 3), “O Autor e o Herói: Singularidades do Conceito de Polifonia”, traz as análises por meio das quais comprovamos a idéia de que o conceito de polifonia não se aplica às canções de Chico Buarque. Destacamos que, embora o discurso de Chico contenha várias vozes de diferentes campos sociais – religioso, econômico e social –, tal fato não basta para que possamos considerar esse universo artístico polifônico. Desse modo, as canções analisadas representam um discurso monológico, em que a voz do autor- criador determina as demais, fator que apaga a eqüipolência. Analisamos as canções do ponto de vista dos valores que se configuram nelas. Partimos do autor como centro valorativo e trabalhamos com o diálogo inter-valorativo que constitui as canções como “arena de vozes”. Não adotamos um procedimento lingüístico determinado. Destacamos algumas expressões e termos gramaticais na medida em que tais expressões constituem-se como enunciado que veicula valores. Procedemos dessa forma porque, embora Bakhtin não desconsidere a importância do material, não encontramos em sua obra um método de abordagem desse material no sentido de uma formalização de procedimentos ou “experimentação” de um modelo lingüístico. Os trabalhos do Círculo colocam questões relativas ao discurso, mas ainda assim, encontramos dificuldades em formalizar tais questões. Tomamos como base, então, a noção de enunciado – como materialidade valorativa – como ponto chave para o entendimento das questões bakhtinianas sobre o discurso. Procedemos, assim, por uma espécie de dialogização valorativa – materializada no enunciado – que sustenta a arquitetônica das canções. Em “Pedro, Pedreiro”, temos um herói que acredita em uma mudança futura que nunca acontece; em “Construção”, o herói é 19 mecanizado pelo “sistema capitalista” e também materializa uma espécie de alienação do trabalho – a fim de criticá-la; em “O Malandro nº 2”, o herói é desfigurado para representar uma crítica à “cotidianização da morte”, além de figurativizar a queda de um “tipo nacional”, o malandro; em “Geni e o Zepelim”, apreendemos uma configuração valorativa que comporta alguns valores como a moral religiosa sobre a sexualidade e a transformação do corpo em mercadoria. Assim, é a questão da configuração valorativa – e do posicionamento do autor- criador e do herói em relação a essa configuração – que tomamos como fio condutor. 20 1 DOS CAMINHOS TEÓRICOS O arcabouço teórico do Círculo de Bakhtin proporciona amplas reflexões no campo literário, filosófico e lingüístico – fator que nos levou a recortar algumas categorias em detrimento de outras. Valemo-nos apenas de algumas categorias presentes em alguns de seus textos, uma vez que sua obra é extensa e nossa pesquisa não possui amplitude que permita “aplicar” todos os conceitos do círculo de pensamento russo. O conceito de dialogismo pode ser considerado o pilar da concepção de linguagem bakhtiniana e, dessa forma, apresenta-se como fundamento para as demais categorias. Nesse sentido, há um fundamento filosófico na concepção bakhtiniana de linguagem que reflete uma preocupação ética, estendida à relação autor-herói e também à noção de polifonia. Tezza (1999, p.287) afirma: “Lembremos que Bakhtin apresenta as correntes teóricas das quais discorda [...] em que ele, afinal de contas, nos diz que é preciso admirar o outro, antes de mais nada; é como se a própria natureza dialógica da linguagem desse, ela própria, a chave de uma ética possível” Sob essa perspectiva, torna-se imprescindível – feitas algumas considerações sobre a noção de dialogismo – considerar a relação entre autor-herói. Por meio dela é possível falar em polifonia e monologia. Ao considerarmos as canções de Chico Buarque – por nós escolhidas para exemplificar a questão sobre a polifonia – monológicas, só o afirmamos porque a relação autor-herói não se dá de forma eqüipolente. O que vemos nas canções são imagens reificadas de heróis e não seu discurso – ainda que em alguns casos apareça o discurso direto10. Quase nada escapa à visão do autor-criador. Nesse sentido, partimos da idéia de que o discurso de Chico a ser analisado é monológico e isso implica desconsiderar a idéia de que todo discurso é polifônico; ou que o discurso é polifônico; ou ainda que a consciência é polifônica. Afirmar clichês como esses é, de certa forma, produzir uma série de deslocamentos no pensamento bakhtiniano que precisam ser re-pensados. 1.1 Um Conceito Basilar: O Dialogismo De início, é imprescindível apontar a profunda heterogeneidade – sem descartar a coerência – que constitui a obra do que ficou denominado como Círculo de Bakhtin. Em 21 primeiro lugar, os escritos bakhtinianos11 possuem uma diversidade conceitual que torna a obra extremamente rica para o estudo do texto. Essa complexidade exige de nós cuidadosas leituras e releituras que, ainda assim, não têm a pretensão de compreender a totalidade da obra, mas entender coerentemente os conceitos utilizados. Em segundo lugar, muitos textos bakhtinianos foram escritos num período de conturbação político-social. Na época em que foram produzidos, a Rússia vivia o clima das guerras, revoluções socialistas, do stalinismo e, conseqüentemente, das represálias políticas. A tese sobre Rabelais, por exemplo, de acordo com Tezza (2003, p.22) “[...] escrita em 1940 e defendida logo depois da Segunda Guerra sob a atmosfera viva de Stálin, não foi aprovada: Bakhtin mereceu apenas o título de ‘candidato a doutor’”. Deriva daí, o fato de alguns textos terem sido descobertos posteriormente ao contexto em que foram escritos, principalmente se considerarmos o ocidente. De acordo com Tezza (2003, p.21), “[...] considerando, digamos, o ano de 1975, teríamos um teórico literário que publicou dois livros em vida”. Assim, duas dificuldades principais se impõem: a complexidade inerente à obra devido às “múltiplas” posições teóricas adotadas pelo Círculo e a questão da não linearidade com que os textos foram publicados. Há diferentes campos de interesse para o círculo bakhtiniano. Se tomarmos o texto Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo – publicado sob o nome de Voloshinov em 1929 –, temos uma preocupação com a elaboração de uma teoria filosófica sobre a linguagem e sobre o signo. Mais que isso, um autor “atribulado” pela idéia de olhar para o pensamento marxista sob a égide de uma filosofia da linguagem e vice-versa. Em Estética da criação verbal, apreendemos – nos artigos que compõem a obra – uma profunda preocupação fenomenológica com a relação entre o interno e o externo na produção artística (e nas ciências humanas). Derivam desse ponto, por exemplo, a noção de exotopia, que norteia a produção artístico-discursiva. Mais que isso, a idéia de exotopia parece representar uma filosofia da experiência que já era apontada em Para uma filosofia do ato – um dos textos bakhtinianos mais antigos de que se tem notícia – no que tange ao que Bakhtin denomina “não-álibi”. Tezza (2003, p.181) afirma que: 10 Embora falar de discurso direto seja algo relacionado ao texto, o objeto a partir do qual propomos pensar a monologia é o discurso. A recorrência ao texto, portanto, é necessária devido à impossibilidade de se pensar o discurso sem o texto, mesmo que este não seja o objeto em questão. 11 Para evitar a repetição da expressão denominativa “Círculo de Bakhtin”, utilizaremos os nomes dos “autores” dos textos quando for necessário. Isso será feito não só para evitar repetições, mas também para designar quem “assinou” os textos por nós citados (Voloshinov, Bakhtin, Medvedev). No entanto, essa diferenciação não perde de vista a correlação teórica existente entre os textos, o que faz com que eles pertençam ao mesmo círculo epistemológico. 22 Entre essas categorias de origem, de certo modo andaimes de sua visão de mundo madura, mesmo quando não retrabalhadas explicitamente mais tarde, está o reconhecimento de que não temos “álibi” na existência, o nosso “não- álibi”, isto é, o fato de que não podemos “estar em outro lugar” (em cuja raiz se entrevê a desconfiança de Bakhtin com relação a toda abstração filosófica incapaz de incluir o sujeito); e a exotopia o “estar do lado de fora” como momento inseparável tanto do objeto estético quanto da própria constituição do sujeito, para ele inexistente fora de uma relação dialógica (só podemos ser “completados” de fora). Além disso, Tezza propõe – fato importante para pensar as “obras disputadas” e problematizar o pertencimento dos escritos bakhtinianos – que esse projeto inicial é de natureza estritamente filosófica e que, de certo modo, não corresponde aos ideários da filosofia marxista vigente na época. Nesse sentido, Bakhtin mantinha-se à margem do marxismo oficial de seu tempo e também das concepções lingüísticas dominantes na Rússia. O texto Marxismo e filosofia da linguagem apresenta uma dupla crítica com relação a duas correntes do pensamento filosófico-lingüístico que se instauravam no contexto russo e que, ao que nos parece, não se encontram – pelo menos com relação ao marxismo – nos escritos de Bakhtin ele mesmo. Uma das correntes criticadas trabalhava com a abstração do signo saussuriano – concepção que subjazia, de certa forma, aos trabalhos sobre poética de alguns formalistas russos. Essa idéia abstrata do signo – da pura formalidade como marca da literariedade – marca a concepção artística do grupo formalista. Em seus estudos sobre poética, muitos membros desse grupo consideravam que um estudo realmente literário devia se ater às particularidades formais de uma obra. Sob essa perspectiva, o método formal relega a segundo plano a história e a dialogicidade plurilíngüe da atividade estética. Chklovski (apud EIKHENBAUM, 1978, p.22) afirma que: “As formas artísticas se explicam por sua necessidade estética, e não por uma motivação exterior tomada emprestada da vida prática”. Voloshinov contrapõe-se à idéia de tomar a língua como um sistema abstrato, pois essa forma de olhar desconsidera sua “realidade viva”. O procedimento da lingüística saussuriana12 com relação ao signo é denominado por Voloshinov como “objetivismo abstrato”. Isso significa que o signo não deve ser entendido sob a forma abstrata da língua – fora do contexto e da “vida prática” – mas que ele precisa ser considerado em sua relação com os sujeitos e a história. Para o pensador russo: 12 Referimo-nos aqui ao Curso de lingüística geral (CLG) organizado pelos alunos de Saussure. 23 Do ponto de vista da segunda orientação (“objetivismo abstrato”)13 não se poderia falar de uma criação refletida da língua pelo sujeito falante. A língua opõe-se ao indivíduo enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar como tal. No caso em que o indivíduo não integrasse nenhuma forma lingüística enquanto norma peremptória, esta forma deixaria então de existir para ele como forma da língua para tornar-se simples potencial de seu aparelho psicofísico individual (VOLOSHINOV, 1999, p.78). Voloshinov contrapõe-se ao procedimento “objetivista abstrato” ao pensar a língua em um contexto mais amplo, qual seja, o da historicidade que possibilita as estratificações linguageiras. Assim, a língua não é vista somente como um sistema de possibilidades normativas a ser selecionado por um sujeito: [...]o sistema lingüístico, único e sincronicamente imutável, transforma-se, evolui no processo de evolução histórica de uma determinada comunidade lingüística, posto que a identidade normativa do fonema, tal qual nós a estabelecemos, é diferente nas diferentes épocas da evolução de uma língua. Em poucas palavras, a língua tem sua história. Como podemos pensar esta história do ponto de visa da segunda orientação? (VOLOSHINOV, 1999, p.79). A noção anti-histórica da visada objetivista sobre a concepção de sincronia é criticada na medida em que há uma insuficiência no olhar do “objetivismo abstrato” para a língua, uma vez que essa corrente toma como mote “o fosso que separa a história do sistema lingüístico em questão da abordagem não histórica, sincrônica” (VOLOSHINOV, 1999, p.79, grifo do autor). Tal procedimento, como já dissemos, reduz a “realidade viva” da língua por não considerar que, se existe um “fosso” que separa a língua de sua historicidade, esse “fosso” é dialético, ou seja, história e língua são elementos indissociáveis que se constroem mutuamente. A crítica voloshinoviana não pára no “objetivismo abstrato”. Outra corrente, denominada “subjetivismo idealista”, também é “alvo” das re-formulações de Voloshinov: O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação lingüística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem. Esclarecer o fenômeno lingüístico significa reduzi-lo a um ato significativo (por vezes menos racional) de criação individual. O restante da tarefa do lingüista não tem senão um caráter preliminar, construtivo, descritivo, classificatório, e limita- 13 O parêntese é nosso. 24 se simplesmente a preparar a explicação exaustiva do fato lingüístico proveniente de um ato de criação individual, ou então a servir a finalidades práticas de aquisição de uma língua dada. A língua é, deste ponto de vista, análoga às outras manifestações ideológicas, em particular às do domínio da arte e da estética (VOLOSHINOV, 1999, p.72). Dentre os principais nomes dessa corrente teórica, Voloshinov destaca Humboldt como “fundador” – ainda que a partir de re-leituras equivocadas – de tendências que se formam no campo teórico de seu tempo. No quadro teórico-lingüístico russo, Potebnia e seus discípulos – que compunham a escola de Kharkov – são importantes representantes desse modo de conceber a linguagem e o sentido. Ressaltamos aqui – para contextualizar um pouco as discussões existentes no campo epistemológico soviético – que Potebnia era uma das figuras a que os formalistas tinham que se opor devido à sua idéia de poesia imagética – pilar da concepção de poesia incorporada pelos simbolistas russos. Eikhenbaum (1978, p.11) afirma: “Desta forma, organizávamos o reexame da teoria geral de Potebnia construída sobre a afirmação de que a poesia é um pensamento por imagens”. Ao analisarmos a contraposição de Eikhenbaum – importante para a compreensão do posicionamento do próprio Voloshinov – apreendemos o caráter subjetivo da corrente de Potebnia – influenciado pelas concepções subjetivistas-idealistas. Esse subjetivismo reside no fato de que a literariedade estaria vinculada à imagem que o sujeito constrói a partir da leitura/interpretação do poema. O sentido da obra literária fica relegado à instância psicológica do leitor – idéia profundamente atacada pela corrente formalista e pelo Círculo. Voloshinov atribui essa tendência subjetivista a leituras feitas da obra de Humboldt. Contudo, ele propõe que, apesar de as concepções humboldtianas estarem presentes nos pressupostos teóricos subjetivo-idealistas, essas concepções perderam seu sentido “original”. Assim, “Os adeptos mais tardios da primeira tendência não atingiram, estes, a profundidade das idéias e a síntese filosófica de Humboldt” (VOLOSHINOV, 1999, p.74). Foge aos propósitos deste trabalho destacar as concepções humboldtianas. Lançamos mão da figura dele apenas para situar algumas leituras que se faziam, sob a perspectiva subjetivista-idealista, da sua obra. Nossa pesquisa também não visa a uma exaustividade dos trabalhos do Círculo bakhtiniano ou das concepções formalistas. Consideramos algumas questões relevantes para a compreensão do ponto que une o Círculo (as reflexões sobre a linguagem) e que dão sustentação para os conceitos de polifonia e monologia – interesse de nosso trabalho. 25 Há, portanto, uma maneira de pensar a linguagem que subjaz às pesquisas literárias de Bakhtin e às críticas voloshinovianas. Esse modo de conceber a linguagem não pode ser desvinculado do momento histórico vivenciado pelo Círculo. Destacamos aqui as polêmicas que o grupo de Bakhtin travava com os formalistas russos – contra os quais se posicionam muitos fundamentos bakhtinianos (principalmente a natureza dialógico-histórico-social da linguagem). Nesse sentido, o Círculo contrapunha-se à concepção formalista que empreende uma divisão entre uma linguagem do cotidiano e uma linguagem poética. A crítica pode ser percebida a partir de uma reflexão sobre a proposta feita por Voloshinov: A pura “sinalidade” não existe, mesmo nas primeiras fases da aquisição da linguagem. Até mesmo ali, a forma é orientada pelo contexto, já constitui um signo, embora o componente de “sinalidade” e de identificação que lhe é correlata seja real. Assim, o elemento que torna a forma lingüística um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo (VOLOSHINOV, 1999, p.94). Sob a égide do trecho supracitado, observamos que um dos pontos que separam o Círculo bakhtiniano do grupo formalista14 é a consideração, por parte dos formalistas, de que a linguagem poética deve ser “atingida” por um procedimento artístico que visa à “não automatização” da interpretação, ou seja, a arte literária deve ser vista como procedimento que “aumenta a dificuldade” de percepção do sentido por meio da “lapidação” formal. Do ponto de vista dessa corrente, o estudo da literariedade deve ser realizado nos termos da pura forma lingüística e, conseqüentemente, a história não deve interferir nos estudos poéticos. Não há, portanto, uma superação do material; pelo contrário, o estudo formalista propõe uma atenção especial ao sinal, que deve se fazer estranho ao leitor para, dessa forma, quebrar com o “automatismo perceptivo”. Se pensarmos no que diz Eikhenbaum (1978, p.14-15): A arte é compreendida como um meio de destruir o automatismo perceptivo, a imagem não procura nos facilitar a compreensão de seu sentido, mas criar uma percepção particular do objeto, busca a criação de sua visão e não de seu reconhecimento. Daqui deriva a ligação habitual da imagem com a singularização. 14 Dentre os formalistas, encontramos exceções como, por exemplo, Jakobson. 26 O que alguns membros do grupo formalista afirmam ser um procedimento para romper com “automatismo perceptivo” parece ser, na visão voloshinoviana, uma maneira de se ater ao sinal15 e, desse modo, abstrair a linguagem de sua forma viva. O que faz com que uma língua esteja viva é justamente a superação do sinal pelo signo e, a partir disso, a possibilidade de compreensão. A realidade viva da língua não deve “causar estranhamento” – como se estivéssemos diante de uma “língua estrangeira” – mas compreensão a partir da interação sígnico-cultural que gera sentido. Conforme assevera Voloshinov (1999, p.94): Na língua materna, isto é, precisamente para os membros de uma comunidade lingüística dada, o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados. No processo de assimilação de uma língua estrangeira, sente-se a “sinalidade” e o reconhecimento, que não foram ainda dominados: a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão. A compreensão, para o Círculo, não é uma apreensão passiva, por parte do ouvinte, de um significado proposto por um sujeito falante. Compreender, para Bakhtin, é a ação em que falante e ouvinte, inseridos em um contexto histórico, atualizam o grande diálogo social. O diálogo é mais que uma forma composicional. O dialogismo do Círculo de Bakhtin é o processo ativo em que os sujeitos marcam sua posição sócio-cultural plurilíngüe e fazem falar em seus discursos/interpretações, outras vozes16. Compreender, sob essa perspectiva, é um ato de resposta, é uma posição, muitas vezes, polêmica. O ouvinte não apenas lê (ouve, etc.) um enunciado, mas se posiciona concordatária ou polemicamente em relação aos valores veiculados por ele e apreendidos nele. O enunciado não é visto apenas como uma série lingüística, mas algo diante do qual se pode marcar uma posição axiológica. Voloshinov aproxima-se de Bakhtin com relação à idéia de que a língua se estratifica no momento em que passa a integrar a realidade social da interação verbal. É recorrente em Marxismo e filosofia da linguagem, a referência à utilização da língua por setores sociais diferentes. Nesse sentido, ainda que de maneira menos exaustiva, Voloshinov (1999, p.43) aproxima-se, em certa medida, da questão dos gêneros proposta por Bakhtin: 15 Não temos propriedade para comprovar se os estudos formalistas consideravam tão radicalmente o “sinal”, mas a crítica de Voloshinov parece bastante incisiva nesse sentido, talvez por uma questão de contra- posicionamento aos métodos formalistas de estudo poético. 16 No entanto, essa realidade plurilíngüe da língua não é suficiente para identificar esse conceito com a polifonia, que exige eqüipolência. 27 Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e do diálogo, abordaremos também o problema dos gêneros lingüísticos. A esse respeito faremos simplesmente a seguinte observação: cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo, relações entre colaboradores num contexto puramente técnico), a forma de enunciação (respostas “curtas” na “linguagem de negócios”) e enfim o tema, existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir. Reforçamos a preocupação teórica voloshinoviana em tratar a língua na sua materialidade histórico-social. Ele não desconsidera a existência da sinalidade, nem que são menos importantes os estudos que se voltam para a língua enquanto sistema abstrato. Não parece ser essa a questão, mas sim empreender um procedimento voltado para o estudo marxista da língua, no sentido de que ela tem suas formas e seus conteúdos definidos não em função de um sistema abstrato, mas em decorrência de sua utilização e da sua realidade histórica, ou seja, da infra-estrutura. Uma foice e um martelo, como instrumentos, nada significam além de meios que possibilitam a realização de determinadas tarefas como: cortar a relva ou bater em um prego. No entanto, tais instrumentos podem adquirir estatuto simbólico e, dessa forma, funcionar como emblema da União Soviética, traduzindo valores como o trabalho ou o socialismo. Bakhtin (1988) também critica os estudos literários de seu tempo com relação à concepção puramente abstrata da língua. A ausência de um estudo aprofundado sobre a prosa romanesca está ligada à concepção de que a arte deve se desprender da língua cotidiana – concepção que faz com que se estabeleça uma distinção entre linguagem poética (literária) e linguagem cotidiana (extraliterária). O romance constitui-se justamente como gênero que traduz as linguagens cotidianas, ou seja, a heteroglossia que possibilita a vida do discurso, até então “excluída” dos estudos literários formalistas. De acordo com Chklovski (1978, p.43): A idéia da economia de energia como lei e objetivo da criação é talvez verdadeira no caso particular da linguagem, ou seja, na língua quotidiana; estas mesmas idéias foram estendidas à língua poética, devido ao não reconhecimento da diferença que opõe as leis da língua quotidiana às da língua poética. O efeito que a fala de Chklovski nos causa é o de que a linguagem poética não integra o grande diálogo das línguas sociais, ou seja, que essa linguagem pode ser entendida por meio da suspensão das condições históricas. Como se a linguagem poética dispensasse a história 28 em favor do entendimento puro da forma. Assim, transmite-se a idéia de que o sentido da poesia deve ser aprendido independentemente de motivações sociais e históricas. Do ponto de vista bakhtiniano, o discurso (materializado na língua e integrante do grande diálogo sócio-histórico) não se dirige diretamente ao seu objeto, não porque há uma sinalidade indecifrável – típica de um aprendizado de língua estrangeira (idéia de estranhamento poético) –, mas porque sobre esse objeto falam outras vozes, outros discursos, ou seja, é impossível falar sobre um objeto sem passar pelo que já foi dito sobre esse mesmo objeto. A sinalidade obscurecedora abstrai a língua de sua realidade histórico-social, mata-a enquanto representação sócio-ideológica que nasce mais como resposta ao que foi dito que como ponto de vista único. A tentativa poética de se atingir um nível “puro” e imagético por meio do trabalho lingüístico, embora tenha méritos teóricos como o aprofundamento dos estudos fonológicos, etc., peca ao relegar a segundo plano a natureza histórico-ideológica do signo verbal que, fora do momento interativo da enunciação concreta, deixa de viver. Além disso, a tentativa de re- produção de uma imagem por um meio lingüístico, sonoro, rítmico, etc., também participa do processo dialógico plurilíngüe e faz parte do grande diálogo cultural. A re-criação imagética também é atravessada por leituras realizadas sobre a própria imagem que se quer representar, uma vez que o discurso interior também se materializa em signos sociais e históricos. A dialogicidade, que supera a pura sinalidade17 e coloca o discurso nas malhas da história, impossibilita a relação pura do sujeito com seu objeto, ou seja, para se constituir – e ser constituído – o discurso entra em uma rede de discursos com (contra) os quais concorda/polemiza e, a partir daí, marca seu lugar. De acordo com Bakhtin (1988, p.88), Mas, como dissemos, qualquer discurso da prosa extra-artística – de costumes, retórica, da ciência – não pode deixar de se orientar para o ‘já dito’, para o ‘conhecido’, para a ‘opinião pública’, etc. A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação dialógica do discurso alheio para o 17 Embora apontemos a crítica de Bakhtin e Voloshinov ao “privilégio da sinalidade” – objeto do método formal – não desconsideramos que eles consideram também a forma. Além disso, ressaltamos – ainda que essa não seja nossa questão central – que Chico Buarque explora a forma e essa exploração produz efeitos importantes em seu discurso. 29 objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se falar. A partir de um objeto, diferentes vozes sociais passam a falar, a interpretar, enfim, a construir leituras. Essas diferentes vozes se situam cotidianamente ou, para empregar uma idéia voloshinoviana, integram o discurso na vida. É importante ressaltarmos que essas vozes não se situam a esmo, mas integram a “vida institucional da linguagem”, ou seja, inserem-se nos diversos setores sócio-linguageiros a partir dos quais a língua se estratifica (nos comércios, nos prostíbulos, nas ruas, nos hospitais). Em meio a esses discursos cotidianos e das práticas sociais que eles atualizam, o discurso artístico passa a ocupar seu lugar histórico- social, ou seja, pode “incorporar” esse plurilingüismo e lhe conferir um lugar estético. O entrelaçamento de vozes presente nas canções a serem analisadas refletem justamente o caráter dialógico que a linguagem adquire em sua vida social e histórica. O discurso de Chico Buarque esteticiza18 a linguagem cotidiana e traz para seu interior vozes diferentes que estratificam a linguagem e imprimem suas marcas sociais nas formas lingüísticas – por meio das quais representam suas posições axiológicas. O diálogo bakhtiniano não pode ser entendido unicamente como uma forma composicional em que há uma alternância de falantes marcada por dois pontos e travessão. O diálogo, do ponto de vista do Círculo bakhtiniano, representa os diferentes posicionamentos axiológicos que se materializam no signo e na história. As formas lingüísticas e seus conteúdos integram uma realidade social plurilíngüe, ou seja, respondem às infra-estruturas historicamente constituídas. O discurso veicula valores que se formam a partir de outros valores fundamentados nas diferentes posições que o sujeito pode ocupar no processo de interação verbal. 1.1.1 Sobre a relação autor-herói em Bakhtin Após ter trabalhado o que parece ser a categoria fundamental para a arquitetônica do arcabouço bakhtiniano, consideramos outro ponto nodal para a reflexão sobre polifonia: a relação autor-herói. Colocamos essa relação no centro da cena, uma vez que é por meio dela que se pode caracterizar um universo artístico polifônico ou monológico. 18 Não desconsideramos que essa esteticização se dá por meio do arranjo formal. Contudo, não pretendemos analisar as canções nessa perspectiva. 30 Tezza afirma que, em uma leitura inicial do texto “O Autor e o Herói na Atividade Estética”, parece que Bakhtin surge com novas preocupações teóricas desvinculadas de suas preocupações anteriores. Essa aparente desvinculação pode ocorrer porque esse texto, além de ser inacabado, apresenta trechos obscuros e tópicos que seriam desenvolvidos mais tarde: “[...] os originais de Bakhtin lembram um conto fantástico de Jorge Luís Borges, com o narrador nos povoando de incertezas assim que se apresenta (TEZZA, 1999, p.276).” No entanto, esse texto, ainda de acordo com Tezza, reflete a envergadura teórica de Bakhtin devido às inter-relações construídas em seu interior de “O Autor e o Herói”. A dificuldade de leitura reside na reunião, em um mesmo texto, de um ponto de vista filosófico (que seria a visão de mundo de Bakhtin), um ponto de vista estético19 e um ponto de vista sobre a linguagem. Esse último aparece, contudo, como princípio para os demais, ou seja, é por meio da concepção dialógica da linguagem – fundamento de sua visão de mundo – que se constroem as demais categorias. A aparente “falta de lógica” de “O Autor e o Herói” está mais ligada a certa “irregularidade textual20” do que propriamente a uma ilogicidade temática. A diversidade temática existente nas concepções do Círculo é um fato. Contudo, não podemos perder de vista a inter-relação existente entre os temas bakhtinianos, que encontram seu ponto comum na dialogicidade lingüística21 e, a partir daí, na dialogicidade que fundamenta a visão de mundo ético-filosófica e estético-filosófica de Bakhtin. O primeiro ponto que nos possibilita refletir sobre a relação basilar entre autor e herói na atividade estética é o conceito de exotopia, por meio do qual Bakhtin propõe que o “estar do lado de fora22” enquanto consciência criadora é o “pontapé inicial” para uma relação artístico-construtiva. Bakhtin propõe uma reflexão não apenas no campo estético, mas também no da “vida”, ou seja, em nossa existência social (e “real”) somos marcados 19 Parece-nos que filosofia e estética estão imbricadas na construção do que poderia ser considerado uma filosofia estética, ou seja, uma iniciativa bakhtiniana para se contrapor ao método formalista de estudo da arte. 20 Referimo-nos aos trechos re-cortados, às afirmações tópicas que aparentemente são desligadas da obra global do teórico russo. 21 Não estritamente mas, também lingüística. 22 Ressaltamos que “estar do lado de fora” é a condição necessária inicial. Após “estar do lado de fora”, é necessário que o autor-criador aproxime-se de seu “objeto”. Por fim, a consciência extraposta – após ter vivenciado o ambiente de seu herói – retorna ao seu “lado de fora” para construir a obra estética. Trata-se de duas operações a partir de uma condição inicial. 31 individualmente23 pelo lugar que ocupamos fora do outro e esse extra-lugar constitui a nossa consciência interior assim como permite ao outro constituir sua própria. Em uma das instigantes passagens do longo escrito sobre “O Autor e o Herói”, Bakhtin (2003, p.22) propõe que “A contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência”. Reforçamos a idéia de que há uma ligação, no texto sobre “O Autor e o Herói”, entre uma visão estética e uma “filosofia do ato humano” já apontada no texto inacabado da década de 20: Por Uma filosofia do ato. Sintomática a utilização do termo “ato” na citação acima (“ato ético” e posteriormente o “ato” relacionado “à singularidade concreta” do lugar de fora). Para retomarmos uma idéia considerada por Tezza, a envergadura teórica de Bakhtin articula, dentre outros campos, o filosófico, o lingüístico e o literário – o que dificulta e enriquece a leitura dos textos do Círculo. Sob esse ponto de vista é possível lançar olhos sobre as categorias evocadas – nesse momento específico sobre a exotopia – pelo russo em “O Autor e o Herói”. Bakhtin (2003, p. 23) afirma que [...] o que nos importa são apenas os atos de contemplação-ação – pois a contemplação é ativa e eficaz –, os quais não ultrapassam o âmbito do dado do outro e apenas unificam e ordenam esse dado; as ações de contemplação, que decorrem do excedente de visão externa e interna do outro indivíduo, também são ações puramente estéticas. Nesse trecho, Bakhtin problematiza a idéia de contemplação como “visualização passiva” diante de um acontecimento. Para ele, contemplar é agir na medida em que esse ato conclui o outro enquanto ser observável e, é essa relação de in-acabamento que permite ao autor criar seu mundo de visão artística. Estar do lado de fora pressupõe ação conclusiva, ou seja, existir é agir, assim como criar uma obra artística é empreender uma iniciativa conclusiva – ainda que não definitiva – sobre determinado objeto-acontecimento24. A compreensão, e por sua vez o lugar do observador, singulariza-se em Bakhtin, pois ele considera a compreensão como ação e não apenas como “decodificação”. Sob esse prisma, extraposição é um conceito que implica dois pontos imprescindíveis: um relacionado ao valor, ou, ao ponto de vista axiológico; e outro vinculado à 23 Não existe individualidade pura, uma vez que a consciência é social, mas – se é que é possível pensar assim – parece-nos que há certa visão topológica quando pensamos a individualidade enquanto ponto de vista extraposto a partir do qual se constrói um centro axiológico sobre o outro. 24 Utilizamos a expressão “objeto-acontecimento” para não pensar o objeto em sentido estrito, mas como algo sobre o qual se pode construir um ponto de vista. 32 responsabilidade (ou respondibilidade). Com relação ao primeiro ponto, não existe neutralidade, ou seja, qualquer relação intersubjetiva constitui-se como tomada de posição emotivo-volitiva diante do outro. De acordo com Tezza25 (2003, p.191), Bakhtin problematiza “[...] o fato central de que a estética material não é capaz de fundamentar a forma artística (porque ao extrair do material o seu ‘momento axiológico’ ficamos apenas com um ‘puro fato psíquico, isolado e extracultural’)”. No que tange ao segundo ponto, estar do lado de fora pressupõe que o eu se direcione sempre para o outro, ou seja, que o eu esteja em constante relação dialógica com o outro. Aqui, marcamos novamente a relação entre o diálogo em seu caráter lingüístico – o dialogismo – e sua importância na fundamentação do campo estético. Tezza (2003, p.181) propõe que Entre essas categorias de origem, de certo modo andaimes de sua visão de mundo madura, mesmo quando não retrabalhadas explicitamente mais tarde, está o reconhecimento de que não temos “álibi” na existência, o nosso “não- álibi”, isto é, o fato de que não podemos “estar em outro lugar” (em cuja raiz se entrevê a desconfiança de Bakhtin com relação a toda abstração filosófica incapaz de incluir o sujeito); e a exotopia, o ‘estar do lado de fora’ como momento inseparável tanto do objeto estético quanto da própria constituição do sujeito, para ele inexistente fora de uma relação dialógica (só podemos ser ‘completados’ de fora). Ao pensarmos nas canções de Chico Buarque enquanto discurso, não podemos desvinculá-las dos valores histórico-sociais. Esses valores, por sua vez, não são construtos formados ex nihilo, mas conjuntos axiológicos constituídos no entremeio das relações sócio- individuais. Mais que isso, os centros de valores representam as relações discursivas que se formam no ambiente social, uma vez que o sujeito – do ponto de vista de Bakhtin – não pode ser entendido fora das vozes que ele enuncia. Para Bakhtin exotopia implica, ao mesmo tempo, relação e posição axiológica, ou seja, há uma idéia de ativismo e de movimento subjacente ao processo de compreensão e construção: Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de 25 Embora, nesse trecho, Tezza tenha destacado a importância da “superação do material”, ele mostra que Bakhtin não negligencia a diferença forma/material/conteúdo. 33 visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2003, p.23). É possível pensar “O Autor e o Herói [...]” sob a égide de uma topologia, ou seja, o que possibilita a relação autor-herói – e por sua vez a construção da obra estética – é justamente o lugar que cada um ocupa no processo de criação estética. A maneira com que o autor-criador se relaciona com seus heróis – a partir desse lugar extraposto – é o que leva Bakhtin a pensar, por exemplo, em mundo artístico polifônico – como o de Dostoiévski – e mundos “monoliticamente monológicos” – como os de Tolstói e Púchkin. No entanto, é preciso pensar – sem esquecer a idéia de exotopia e da dialogicidade valorativa que esse conceito implica – que o conceito de autor em Bakhtin não coincide com a idéia de “pessoa de carne e osso” nem com a noção estruturalista (por vezes gramatical) de narrador. Não é a partir da biografia do autor – enquanto ser humano concreto no mundo do ato – o foco principal na análise estético-filosófico-verbal, mas a relação basilar entre autor- herói. Mais que isso, o autor é pensado como lugar, ou, como consciência extraposta que se constitui no tempo histórico. Esse lugar não está fora do texto, pois, é por meio dele que se pode apreender a posição de “autor-criador”. Contudo, o autor não é algo necessariamente diagnosticado formalmente, mas, é algo que deve ser pensado como exterioridade constitutiva do discurso, a voz por meio da qual conhecemos as outras. Sob esse prisma, não é apenas por meio de uma exaustiva descrição/interpretação da vida de Chico Buarque que será possível entender sua obra. Pelo menos não dentro de uma proposta analítico-discursiva fundamentada em Bakhtin. Mais que isso, deve-se compreender como se constroem as relações entre os centros de valores no interior das canções para que possamos pensar o campo de visão artístico do compositor. Não que as vivências de Chico não tenham sido importantes para a constituição de seu mundo artístico. Pelo contrário, Bakhtin considera as condições históricas que perpassam a produção de uma obra. Contudo, temos em mente que são níveis diferentes de análise, além do que, Bakhtin parece se dedicar mais ao acontecimento da obra do que a aspectos estritamente históricos. Talvez porque ele quisesse marcar certa distância de estudos que tendem a uma especulação biográfico-autoral presente na história da literatura: O autor deve ser entendido, antes de tudo, a partir do acontecimento da obra como participante dela, como orientador autorizado do leitor. Compreender 34 o autor no universo histórico de sua época, no seu lugar no grupo social, a sua posição de classe. Aqui saímos do âmbito do acontecimento da obra e entramos no campo da história; um exame puramente histórico não pode omitir todos esses momentos. A metodologia da história da literatura está fora do âmbito do nosso estudo. No interior da obra, o autor é para o leitor o conjunto dos princípios criativos que devem ser realizados, a unidade dos elementos transgredientes da visão, que podem ser ativamente vinculados à personagem e ao seu mundo. Sua individuação como homem já é um ato criador secundário do leitor, do crítico, do historiador, independentemente do autor como princípio ativo da visão – um ato que o torna pessoalmente passivo (BAKHTIN, 2003, p.191-192). O autor é a consciência que dá “acabamento” à obra estética. Nesse sentido, o enunciado é “resultado” de uma elaboração por meio da qual a consciência autoral engloba a consciência da personagem e, dessa forma, constitui seu mundo artístico e valorativo. Ressaltamos que o lugar de autor não é o lugar de uma consciência meramente individual, psicologista e subjetivista. O sujeito bakhtiniano não coincide consigo mesmo, mas está sempre em relação com o outro sócio-historicamente constituído. Para empregarmos um ponto apontado por Tezza (1999, p.282-283), “O autor dá ao herói o que é inacessível ao próprio herói: sua imagem externa. Isto é, para fazer o paralelo na própria vida: o autor é para o herói o que o outro é para mim; é o ponto de vista do outro que me dá acabamento”. Em “O Problema do Autor”, Bakhtin resume/sintetiza algumas idéias dos capítulos anteriores sobre o autor e a personagem. Ele parte de uma “filosofia do ato” vinculada a noções fenomenológicas26. Ele considera o existir como acontecimento e aponta para uma noção fenomenológica do que seria – em estágio embrionário – a noção filosófica fundamental de autor (e, por sua vez, da relação desse autor com sua personagem). O acontecimento é entendido de forma fenomenológica na medida em que se evidencia o fato de a relação autor-herói vincular-se à idéia do vivenciamento experimental intersubjetivo, ou seja, o ato manifesto da comunicação. De acordo com o texto bakhtiniano: [...] viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologicamente. Em seguida efetuamos uma descrição fenomenológica da consciência axiológica que tenho de mim mesmo e da que tenho do outro no acontecimento do existir (acontecimento do existir é um conceito fenomenológico, pois a existência se apresenta à consciência viva como acontecimento e nela se orienta e vive eficazmente como acontecimento), e verificamos que só o outro como tal pode ser o centro axiológico da visão artística e, consequentemente, também o herói de 26 Não é objetivo desta dissertação aprofundar o estudo sobre a filosofia fenomenológica existente no texto de Bakhtin. 35 uma obra, que só ele pode ser essencialmente enformado e concluído, pois todos os elementos do acabamento axiológico – do espaço, do tempo, do sentido – são axiologicamente transgredientes à consciência ativa, estão fora da linha de uma relação axiológica consigo mesmos: continuando eu mesmo para mim, não posso ser ativo em um espaço e um tempo esteticamente significativos e condensados, neles não existo axiologicamente para mim, neles não me crio, não me enformo e não me determino; (BAKHTIN, 2003, p.174, grifo do autor). Embasados no que foi dito anteriormente, é relevante refletir sobre uma categoria extremamente importante em Bakhtin: o acontecimento. O ponto de partida para essa noção (acontecimento discursivo) é a dialogicidade advinda de sua filosofia da linguagem. Tal fato significa que a noção de acontecimento discursivo bakhtiniana parte da idéia de exotopia vinculada tanto à produção estética quanto ao mundo do ato. A obra estética torna-se acontecimento na medida em que é construída por meio da interação entre o autor e o objeto vivenciado, ou seja, a obra se dá a partir de um movimento ativo do autor em direção ao objeto a ser constituído em discurso artístico. O autor e a personagem participam de uma filosofia geral da estética. A relação indissolúvel entre as duas protagonistas do acontecimento estético integra uma ampla visão do diálogo como acontecimento crucial para a comunicação humana, isto é, para a construção/escrita da história. No interior desse quadro geral da filosofia estética bakhtiniana, a polifonia ocupa a posição de máximo exercício de uma dialogicidade desprovida de hierarquias, isto é, de uma igualdade entre consciências. 1.1.2 Por uma concepção de enunciado Para Bakhtin, a noção de enunciado atrela-se aos gêneros do discurso, tal como está escrito em “Os gêneros do discurso27”. A existência de gêneros (entidades relativamente estáveis que permitem ao sujeito produzir enunciados) marca a natureza social da produção discursiva a partir da qual emerge a sócio-individualidade materializada no/pelo enunciado. Ao mesmo tempo que os gêneros discursivos “moldam” e, de certa forma, condicionam a existência dos enunciados, eles não podem ser apreendidos fora dessa última instância, ou seja, um gênero jamais se apresenta em sua totalidade, mas a partir de manifestações sócio- particulares do discurso-enunciado. 27 Não é por acaso que o conceito de enunciado aparece justamente no capítulo sobre “Os gêneros do discurso”. 36 Ressalvamos que não se trata diretamente, neste trabalho, de estudar um gênero (canção). O foco aqui é a análise da relação-autor herói, por meio da qual caracterizamos o conceito de polifonia. No entanto, pontuamos que os enunciados ganham realidade semântica na medida em que integram uma rede de possibilidades discursivas relativamente estáveis. A materialidade, formalidade e discursividade do enunciado não ganham sentido para o leitor/ouvinte – e também para o falante – se não participarem de um campo reconhecível. As canções de Chico – entendidas como discurso monológico – são enunciados de natureza verbal – uma vez que a música não será analisada – que participam de um campo da atividade humana comum, nas décadas de 60/70, no Brasil. A monologia constitui-se pela maneira como se organiza, no discurso estético, a relação autor-herói. A relação autor-herói, por sua vez, é definida materialmente pelo modo como estão dispostos os enunciados. Os enunciados-canções analisados têm suas particularidades enquanto participantes de um gênero como, por exemplo, a reprodução das canções em festivais de MPB (hoje não mais existentes como antes, pelo menos no que concerne à representatividade no quadro nacional); ou ainda, a criticidade inerente a algumas canções que visavam o questionamento do sistema ditatorial e correspondiam à função orgânica de Chico. Além disso, a influência da censura – entendida como receptor – exercia uma função de controle na construção dos enunciados. Tal receptor tinha influência capital na produção sócio-cultural da época, o que significa implicações na produção buarqueana28. Ao pensarmos na proposta de “análise lingüística” bakhtiniana, entendemos que o objeto considerado por ele como relevante é o enunciado, ou seja, uma unidade da comunicação discursiva. Essa concepção marca alguns distanciamentos que merecem nossa atenção29. Determinadas concepções de língua – uma ligada ao pensamento de Saussure e outra a Humboldt e Vossler – são reducionistas do ponto de vista de Bakhtin. No início do texto sobre “O Enunciado como Unidade da Comunicação Discursiva” Bakhtin parece tecer a mesma crítica feita por Voloshinov em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1999). Contudo, há algumas nuances interessantes. Uma delas é a não denominação das duas correntes em “objetivismo abstrato” e “subjetivismo idealista”. Além 28 Esses fatores são importantes para o entendimento das canções, mas um estudo aprofundado do gênero canção não é o foco do nosso trabalho. Não que isso não seja importante, mas acreditamos também na importância de se delimitar o campo de pesquisa. 29 Mais uma vez encontramos Bakhtin no entremeio de duas tendências correntes em sua época: Humboldt – apontado também em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1999) – e, novamente, a recorrente figura de Saussure. 37 dessa pequena diferença terminológica, é possível pensar em um ponto divergente com relação a Saussure que nos parece pouco explorado em Marxismo e Filosofia da Linguagem, qual seja, a questão da recepção passiva. Nesse sentido, enquanto o ponto nodal da crítica feita no texto de 1929 é o exacerbado “formalismo” subjacente às teses saussurianas, em “Os Gêneros do Discurso”, a crítica volta-se mais diretamente para o modelo de comunicação postulado por Saussure (ou pelo menos possibilitado a partir do CLG). Bakhtin critica a idéia de que o ouvinte seria alguém passivo, ou seja, um decodificador. Ao contrário, o receptor em Bakhtin é uma das instâncias que determina a produção discursiva. Isto é, no momento de produção do enunciado, o sujeito já antevê seu receptor, ou seja, o processo de construção do discurso não é individual, mas já encerra a relação entre o eu e o outro. Sob essa ótica se, por um lado, o enunciador não produz “por si mesmo”, mas já antevê o receptor, por outro lado, o receptor não apenas aceita passivamente o que lhe é dito, mas, no momento de apreensão do sentido, constrói – ativamente – sua leitura a respeito do que está sendo dito e, a partir disso, toma uma atitude responsiva diante do que lhe é enunciado. A comunicação não é uma via de mão única em que o dizer se direciona ao ouvinte passivo, mas uma via de mão dupla em que o enunciado se torna aquilo ao qual se responde. De acordo com Bakhtin (2003, p.271): Até hoje ainda existem na lingüística ficções como o “ouvinte” e o “entendedor” (parceiros do “falante”, do “fluxo único da fala”, etc.). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. Nos cursos de lingüística geral (inclusive em alguns tão sérios quanto o de Saussure), aparecem com freqüência representações evidentemente esquemáticas dos dois parceiros da comunicação discursiva – o falante e o ouvinte (o receptor do discurso); sugere-se um esquema de processos ativos de discurso no falante e de respectivos processos passivos de recepção e compreensão do discurso no ouvinte. Se retomamos a idéia de que a censura era um dos receptores (pra não dizer o primeiro receptor) das canções de Chico, temos um exemplo bem claro da atividade do receptor ativo de que fala Bakhtin. Talvez tenhamos até um exemplo extremo do que Bakhtin propõe como “ouvinte ativo”. Isso porque esse receptor agia no sentido de impossibilitar a circulação de certos enunciados. A canção “Construção”, por exemplo, foi censurada e impedida de circular mesmo depois de gravada e lançada – sob a forma de LP – no mercado. 38 Ainda com relação aos distanciamentos bakhtinianos, percebemos outros dois nomes citados por ele e que também representam concepções reducionistas da língua. Trata-se de Vossler e Humboldt. Bakhtin critica a idéia de que o ato de produção discursiva é algo individual e contraria a noção de “função expressiva”. O problema se dá na medida em que pensar como Vossler implica considerar que a língua atende às necessidades do homem de “auto-expressar-se” ou de “objetificar-se”. A essência da linguagem restringe-se à “criação espiritual do indivíduo”. Mais uma vez, Bakhtin problematiza a desconsideração da natureza comunicativa da linguagem. No caso de Humboldt, Bakhtin questiona a consideração da linguagem como elemento formador do pensamento. Nesse sentido, temos a questão central da “função comunicativa da linguagem” em detrimento da função “subjetivista”: A essência da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz à criação espiritual do indivíduo. Propunham-se e ainda se propõem variações um tanto diferentes das funções da linguagem, mas permanece característico, senão o pleno desconhecimento, ao menos a subestimação da função comunicativa da linguagem; a linguagem é considerada do ponto de vista do falante, como que de um falante sem a relação necessária com outros participantes da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2003, p.270, grifo do autor). Bakhtin faz confrontar, de forma dialética, duas importantes correntes lingüísticas e não faz parte de nenhuma delas. Tal posicionamento se deve ao objeto considerado por ele como relevante para uma concepção de linguagem: o enunciado. Isso significa que sua concepção de linguagem implica comunicação, ou seja, a presença de no mínimo dois indivíduos que interagem na história (um enunciado não nasce sozinho). Nenhum ato de produção discursiva deve ser entendido como puramente individual – como queriam os “subjetivistas” – nem puramente passivo – como queriam os “formalistas”. O enunciado não é uma unidade convencional “criada” pelo lingüista para uma abstração teórica, mas unidade real da comunicação enquanto instância vinculada ao momento de enunciação dialogizado. Ele integra um jogo de respostas veiculadoras de valores e posicionamentos sócio-históricos. Obviamente, Bakhtin não descarta o caráter material do enunciado. Contudo, um procedimento de “dissecação lingüística” não é o caminho percorrido por ele para estudar a linguagem, mas uma abordagem dos valores e respostas 39 dialogadas que ela suscita na medida em que se alternam os falantes na produção dos enunciados: O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o ‘dixi’ percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou (BAKHTIN, 2003, p.275). Bakhtin distingue oração e enunciado, uma vez que as duas categorias suscitam diferentes formas de abordagem. As canções de Chico Buarque, nesse sentido, não são entendidas como amontoado de versos ou orações, mas como enunciados que respondem a determinadas “perguntas” de seu tempo histórico-cultural. Ao pensar a distinção oração/enunciado, parte-se da idéia de que a oração nunca é determinada pela alternância dos sujeitos falantes. Ela é um “enunciado pleno”, ou seja, o contexto oracional é o mesmo do sujeito que fala. Não há abertura para resposta, mas uma pausa para que o próprio sujeito passe a seu próximo pensamento “individualizado”. A oração não se relaciona com o contexto extraverbal que a cerceia e “nem com as enunciações de outros falantes”. A oração é regida por critérios gramaticais e, por isso, não integra o campo das unidades de comunicação discursiva. De acordo com Bakhtin (2003, p.278): A oração enquanto unidade da língua carece de todas essas propriedades: não é delimitada de ambos os lados pela alternância dos sujeitos do discurso, não tem contato imediato com a realidade (com a situação extraverbal) nem relação imediata com enunciados alheios, não dispõe de plenitude semântica nem capacidade de determinar imediatamente a posição responsiva do outro falante, isto é, de suscitar resposta. O enunciado, por sua vez, contraria (ainda que não descarte a materialidade) todos os critérios de determinação da oração enquanto unidade estritamente lingüística. As pausas suscitadas pelo enunciado não atendem a uma necessidade do próprio falante enunciador de passar ao próximo pensamento. Elas não são marcadas gramaticalmente. Mais que isso, o enunciado pausa para que o outro entre no diálogo e responda às perguntas levantadas, ou seja, para que se alternem os sujeitos do discurso. É como unidade da comunicação que Bakhtin entende a instância do enunciado, enquanto a oração atende ao campo das unidades lingüísticas. 40 As obras que integram gêneros secundários (canção, romance, texto científico) também são unidades da comunicação discursiva e são delimitadas pela alternância dos sujeitos falantes. Uma obra adquire sua individualidade a partir do modo como o autor desse enunciado lida com as outras vozes que integram seu discurso e a partir das perguntas que esse enunciado pretende responder/levantar. A obra, enquanto integrante da réplica dialogizada, constitui-se como elemento diante do qual se deve posicionar. Ela suscita resposta assim como levanta perguntas dentro de determinado espaço da comunicação discursiva. As canções de Chico Buarque, enquanto enunciados, levantam questionamentos relativos à desigualdade e preconceitos sociais. Personagens como Geni, Pedro, o malandro, etc., não são produções do acaso, mas perguntas/respostas possibilitadas por um regime histórico-político de produção discursiva. Enquanto o Brasil vivia o “milagre econômico”, o “fim do comunismo” e o alto crescimento da construção civil, circulavam nas sombras personagens que, de certa forma, sustentavam esses “avanços” (Pedros pedreiros de construções que muitas vezes caiam de andaimes) e outros que eram “criados” por esse mesmo sistema (Genis, malandros). Enunciados como “Geni e o Zepelim” e “Pedro, pedreiro”, não são neutros, mas constituem-se como perguntas a certos indivíduos e a certas instituições, assim como respondem criticamente ao regime sócio-político instalado no Brasil nas décadas de 60/70. Uma citação do texto bakhtiniano possibilita ampla reflexão sobre a questão da obra enquanto réplica não-neutra do diálogo social: A obra, como a réplica do diálogo, está disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir diferentes formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores; ela determina as posições responsivas dos outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um dado campo da cultura. A obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras – enunciados: com aquelas às quais ela responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do discurso (BAKHTIN, 2003p.279). Sob a perspectiva de que os enunciados são delimitados, dentre outras formas, pela alternância dos sujeitos falantes, é imprescindível considerar que os lugares de enunciabilidade são centros de re-produção valorativa sócio-historicamente constituídos. Não há enunciado neutro, mas pontos de vista a respeito do mundo tal qual é percebido pelo 41 sujeito falante. O enunciado é o ponto material de intercambialidade, ou seja, é na materialidade dos enunciados que se encontram as diferentes vozes que circulam em determinado meio sócio-histórico. Os enunciados constituem o quadro da comunicação cultural na medida em que representam o ponto de vista de diferentes lugares subjetivos e, dessa forma, diferentes lugares de construção discursiva. Sob esse prisma, Bakhtin transpõe a idéia de diálogo real para o vasto campo da comunicação cultural constituída discursivamente. Talvez o que nos permita refletir sobre a amplitude dessa transposição seja o alargamento do domínio de memória suscitado por essa nova concepção de diálogo como intercambialidade dos enunciados em determinada sociedade em determinado momento histórico. Ao realizar tal paralelo, não podemos nos ater apenas à concepção de diálogo como interação entre dois sujeitos num mesmo tempo/espaço em que um fala enquanto o outro assimila e vice-versa. O dialogismo bakhtiniano propõe-nos uma ativação de memória que permita estabelecer domínios de correlação entre certos enunciados. Essa atualização da memória parece ser um dos pontos cruciais para que os sujeitos posicionem-se diante dos enunciados e re