1 TATIANE PATRICIA CINTRA O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA FUNDAÇÃO CASA DE RIBEIRÃO PRETO FRANCA-2010 2 TATIANE PATRICIA CINTRA O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA FUNDAÇÃO CASA DE RIBEIRÃO PRETO Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de História, Direito, Serviço Social e Relações Internacionais, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva FRANCA-SP 2010 3 TATIANE PATRICIA CINTRA O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA FUNDAÇÃO CASA DE RIBEIRÃO PRETO Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de História, Direito, Serviço Social e Relações Internacionais, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e Sociedade. BANCA EXAMINADORA Presidente: _______________________________________________________________ Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva 1º. Examinador: _______________________________________________________________ 2º. Examinador: _______________________________________________________________ Franca, 27 de maio de 2010. 4 Dedico, primeiramente, esse trabalho a Deus, porque sem ele nada conseguiria. Em seguida, dedico a todos os amigos e familiares, sem exceção e dedico especialmente ao meu amigo e professor José Fernando Siqueira da Silva, pessoa que não tenho nem palavras para definir o quão importante ele é em minha vida. 5 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva, orientador, amigo, incentivador, conselheiro, confidente e grande referência profissional. A todos os professores, a todos mesmo, desde aqueles que estiveram comigo no maternal, aos três anos de idade, pois foram, sem sombra de dúvida, pessoas que me ensinaram não apenas um conteúdo didático formal, mas me auxiliaram também no meu crescimento pessoal. A toda categoria dos Assistentes Sociais: profissão amada, da qual vivo intensamente, dia e noite (risos!). A todos os sujeitos e colaboradores deste estudo. Aos meus pais, meus grandes amores, orgulho e base do meu viver. Aos meus familiares por fazerem parte de minha vida. Ao meu único irmão, Raphael, a minha cunhada, Sâmara, e a minha sobrinha encantadora, Júlia Beatriz. Aos colegas de trabalho, tanto da Fundação CASA como os do Hospital das Clinicas – Unidade de Emergência. Pessoas queridas que só acrescentam, a cada dia mais, experiências e alegrias em minha vida. A todos os amigos sem exceção. Ao Vinicius (anjo) e aos seus familiares, que também são acima de tudo amigos e pessoas maravilhosas a quem Deus me deu a oportunidade de conhecer e tê-los ao meu lado nessa caminhada. Ao Marcio, companheiro de grande parte de minha trajetória, de quem a própria trajetória me separou. Agradeço, de maneira geral e já finalizando, a todos que passaram pela minha vida nesses 26 anos e que deixaram um pedaço de si dentro de mim. Amo todos vocês!!! 6 “Sonho com aquilo que quero. Sou o que quero ser, porque possuo apenas uma vida e nela só tenho uma chance de fazer aquilo que quero. Tenho felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas. O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido. Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do passado. A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma eternidade.” A descoberta do mundo” - Clarice Lispector 7 CINTRA, Tatiane Patrícia. O trabalho profissional do assistente social na Fundação CASA de Ribeirão Preto. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de História, Direito, Serviço Social e Relações Internacionais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2010. RESUMO O presente estudo tem por objetivo apresentar e refletir acerca da atuação profissional do Assistente Social na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), tendo como referencia espacial neste estudo o Complexo de Unidades de Ribeirão Preto-SP, que agrega três Unidades com características distintas, não apenas físico-estrutural, mas o próprio público alvo a que se destina: UIP- “Ouro Verde”, UI- “Rio Pardo“ e UI- “Ribeirão Preto”. A primeira Unidade se destina a atender o disposto no art. 108 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) (Internação provisória); a segunda, UI- “Rio Pardo” atende ao artigo 122 do ECA, cuja elegibilidade é adolescentes primários com idade entre 12 a 21 anos; por fim, a UI- “Ribeirão Preto” também atende ao artigo 122 do ECA (Internação) e tem como perfil de atendimento os adolescentes autores de ato infracional reincidentes e primários graves. Cabe ressaltar no estudo as alterações legais ocorridas a partir de 2006, entre elas a própria alteração de nomenclatura: de FEBEM para Fundação CASA (lei n. 12.469 de 22 de dezembro de 2006), a construção do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socieducativa), do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo entre outros documentos que buscam orientar e normatizar as ações realizadas junto aos adolescentes e atender ao preconizado no ECA. Neste sentido, faz-se importante refletir os possíveis reflexos destes na atuação profissional do assistente social. A pesquisa adota a abordagem sócio-histórica, priorizando as produções na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas que tratam do tema. Além do aspecto legal, para pensar na atuação desse profissional fez-se necessário apreender o contexto macro e micro tanto institucional como dos sujeitos atendidos; elucidar e refletir sobre as dimensões da profissão inseridas no cotidiano da Fundação CASA: ético-político, teórico-metodológico, e técnico-prático; bem como a discussão de outros assuntos relevantes e que permeiam a atuação do Serviço Social neste órgão. Para tanto, utilizou-se da abordagem qualitativa em pesquisa por meio de entrevistas semi-estruturadas com profissionais que compõem a equipe psicossocial e a direção institucional, sendo cinco Analistas Técnicos/Assistentes Sociais, bem como a realização de entrevistas semi-estruturadas com estes (em um total de cinco) e outros profissionais como os Analistas técnicos/Psicólogos (três profissionais) que compõem a equipe psicossocial e a direção institucional. Também entrevistou-se três adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação e ainda um representante da família e um representante do sistema de direito da criança e adolescente da Comarca de Ribeirão Preto (Juiz), visando analisar a importância do papel desempenhado pela profissão nesta instituição sob os vários olhares. Palavras chaves: Fundação CASA, trabalho profissional e Assistente Social 8 CINTRA, Tatiane Patrícia. El trabajo profesional del trabajador social em la Fundación CASA de Ribeirão Preto. Disertación (Maestria en Trabajo Social) – Faculdad de Historia, Derecho, Trabajo Social y Relaciones Sociales, Universidad Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2010. RESUMEN El presente estudio tiene por finalidad presentar y reflexionar la actuación de profesional del trabajador social en la Fundación CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). La referencia espacial en este estudio son los centros de atención de la Fundación CASA en la ciudad de Ribeirão Preto/SP: son tres centros, con aspectos diferentes tanto en la estructura como la población atendida: “UIP Ouro Verde”, “UI Rio Pardo” y “UI Ribeirão Preto”. Los tres centros tienen por finalidad la atención para adolescentes que están en conflicto con la ley penal, siendo que el primer centro “UIP Ouro Verde”, atiende en conformidad con el artículo 108 del ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). El según centro atiende en conformidad con el artículo 122 del ECA siendo adolescentes que cumplen por la primera vez una medida socioeducativa de privación de la libertad, con edad entre 12 y 21 años; por fin, el centro “UI Ribeirão Preto” que también atiende en conformidad con el artículo 122 del ECA, pero atiende adolescentes que cumplen por la segunda o mas veces medida socioeducativa de privación de la libertad o que están por la primera vez mas por actividad delictiva grave. En este estudio es importante destacar también las alteraciones en las leyes, que ocurrirán a partir del año de 2006, entre ellas, la alteración del nombre de la institución de FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor) para Fundação CASA (Ley no. 12469 de 22 de Dezembro de 2006), la construcción del SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), del “Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo” y otros documentos que tienen como finalidad orientar y regular las acciones con los adolescentes, en conformidad con el ECA. Así, es importante reflexionar si existen reflejos de esas alteraciones en la actuación profesional del trabajador social. Tiene como referencia la teoría Socio-Histórica con prioridad para las producciones en Ciencias Humanas y Sociales Aplicadas que estudian esta temática. Para reflexionar sobre al actuación del trabajador social fue necesario entender los aspectos legales, el macro y micro de la institución y de los sujetos; las dimensiones del profesión: ético-político, teórico-metodológico e técnico-práctico, entre otros temas relevantes que están presentes en la actuación del Trabajo Social en el instituto. En la encuesta fue utilizada la metodología cualitativa, realizada por medio de la observación del cotidiano de trabajo de los profesionales, la realización de entrevistas semiestructuradas con 5 Trabajadores sociales, 3 psicólogos, 1 representante de la directoria institucional, 3 adolescentes que cumplen medida de internación, 1 representante de las familias y 1 representante del sistema de garantía de derechos de niños y adolescentes de la comarca de Ribeirão Preto/SP, con el objetivo de analizar la importancia del trabajo profesional en esta institución a partir de diferentes maneras de entender el tema. Palabras-llave: Fundación CASA, trabajo profesional y Trabajador Social 9 LISTA DE SIGLAS UTILIZADAS ABEP Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa ABEPSS Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida AMAR Associação de Mães e Adolescentes em Situação de Risco CAD Conselho de Avaliação Disciplinar CASA Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA) CEI Centro de Educação Infantil CFESS Conselho Federal de Serviço Social CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FA Famílias Amorfas FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FC Família Convivente FCO Famílias Conviventes FEBEM Fundação Estadual do Bem Estar do Menor FGA Família de Genitores Ausentes FH Família Homoafetiva FNC Família Nuclear Reconstituída FNCA Família Nuclear com Crianças Agregadas FU Família Unipessoal FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor FUNAP Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso GADA Grupo de Apoio ao Doente com AIDS IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MFE Família Monoparental Feminina Extensa MFS Família Monoparental Feminina Simples MM Família Monoparental Masculina – Simples ou extensa NAISA Núcleo de Assistência Integral a Saúde do Adolescente NE Família Nuclear Extensa NS Família Nuclear Simples ONGs Organizações Não-Governamentais 10 ONU Organização das Nações Unidas PIA Plano Individual de Atendimento PNBEM Política Nacional do Bem-Estar do Menor SAM Serviço de Assistência ao Menor SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo U.E. Unidade Educacional UI Unidade de Internação UIP Unidade de Internação Provisória USP Universidade de São Paulo 11 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Quadro comparativo: doutrina da situação irregular e doutrina da proteção integral .............................................................. 52 Tabela 2 Configurações familiares ....................................................... 97 Tabela 3 IBGE – Pessoa de referência na família (1993 a 2007) ........ 99 Tabela 4 Critérios Renda familiar por classes ...................................... 100 Tabela 5 Legenda Classe/renda familiar média percentual ................ 101 Tabela 6 Legenda perfil dos adolescentes/idade ................................. 103 Tabela 7 Legenda perfil dos adolescentes/grau infracional ................ 104 Tabela 8 Legenda perfil dos adolescentes/que possuem filhos ......... 104 Tabela 9 Legenda perfil dos adolescentes/escolaridade ...................... 106 Tabela 10 Legenda perfil dos adolescentes/ato infracional .................... 107 Tabela 11 Legenda perfil dos adolescentes/município de origem ......... 108 Tabela 12 Capacitações do Assistente Social Contemporâneo ............. 161 12 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Configurações de Família – Numérico.................................. 98 Gráfico 2 Configurações de Família – Percentual .............................. 98 Gráfico 3 Renda familiar por classes – Numérico................................. 100 Gráfico 4 Renda familiar por classes – Percentual ............................... 100 Gráfico 5 Numérico por idade ............................................................... 103 Gráfico 6 Numérico grau infracional .................................................... 104 Gráfico 7 Percentual grau infracional.................................................... 104 Gráfico 8 Numérico de adolescentes que possuem filhos.................... 105 Gráfico 9 Percentual de adolescentes que possuem filhos.................. 105 Gráfico 10 Numérico de escolaridade .................................................... 106 Gráfico 11 Percentual de escolaridade................................................... 106 Gráfico 12 Numérico de tipos de infrações ............................................ 107 Gráfico 13 Percentual de tipos de infrações........................................... 107 Gráfico 14 Interação do Adolescente segundo os principais delitos praticados (Brasil) ................................................................. 108 Gráfico 16 Interação do Adolescente segundo os principais delitos praticados (São Paulo).......................................................... 108 Gráfico 17 Numérico da relação de municípios dos adolescentes ........ 109 Gráfico 18 Percentual da relação de municípios dos adolescentes........ 109 13 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Esquematização do funcionamento do SINASE.................. 65 Figura 2 Imagem reproduzida do trabalho de CINTRA, 2006............. 90 14 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS: SITUANDO O TEMA E A PESQUISA REALIZADA ......................................................................................................15 1 A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA E O PROCESSO DE INSTITUCIONALI- ZAÇÃO NO BRASIL ........................................................................................27 1.1 Situando sócio-historicamente o debate ...............................................28 1.2 A medida de internação e sua base legal: do Código Mello Mattos ao SINASE .....................................................................................................45 1.3 De FEBEM para Fundação CASA............................................................72 1.4 As Unidades do “Complexo” de Ribeirão Preto ...................................82 1.5 Os adolescentes atendidos na Fundação CASA e suas famílias........85 1.5.1 Caracterização das Famílias...................................................................85 1.5.2 Caracterização dos usuários..................................................................101 2 O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA FUNDAÇÃO CASA ..............................................................................................................111 2.1 Trabalho e Serviço Social.......................................................................112 2.2 O Serviço Social e sua inserção sócio-ocupacional em instituições de atendimento a adolescentes em conflito com a lei ....................................120 2.3 O trabalho profissional realizado pelo “Analista Técnico/Assistente Social” na Fundação CASA..........................................................................126 2.3.1 O cotidiano de trabalho do assistente social da Fundação CASA e suas dimensões.......................................................................................................126 2.3.1.1 A dimensão ético-política ...................................................................130 2.3.1.2 A dimensão teórico-metodológica......................................................134 2.3.1.3 A dimensão técnico-operativa............................................................136 2.3.2 A interdisciplinaridade no contexto da Fundação CASA......................148 2.3.3 Formação e capacitação profissional...................................................156 2.3.3.1 A necessidade da capacitação contínua...........................................156 2.3.3.2 Necessidades e dificuldades para a capacitação profissional do assistente social: o contexto da Fundação CASA........................................162 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 169 REFERÊNCIAS.......................................................................................... 178 APÊNDICES ............................................................................................... 191 15 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS: SITUANDO O TEMA E A PESQUISA REALIZADA Foto da pesquisadora em campo na “Escola de Formação-CPDOC” da Fundação CASA 16 O Serviço Social, reconhecido e reafirmado por estudiosos, pesquisadores e profissionais da categoria, enquanto profissão inserida na divisão sócio-técnica do trabalho tem uma inserção histórica na área do atendimento aos adolescentes em conflito com a lei. Esta profissão sempre acompanhou as mudanças legais institucionais que permearam o atendimento desde o Código de Menores de 1927 – o “Código Mello Matos” com o surgimento das primeiras instituições para os chamados “menores” – até a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente e as recentes mudanças ocorridas com a Fundação CASA no Estado de São Paulo. Desta forma, as alterações ocorridas com a categoria profissional dos assistentes sociais, nas dimensões teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo, podem ser visualizadas de forma particular na ação dos profissionais “Analistas Técnicos/Assistentes Sociais” (hoje assim denominados na Fundação CASA) em sua inserção histórica ao longo do processo da formação e consolidação de Instituições para a contenção dos chamados “menores”. A atuação destes profissionais tem particularidades que decorrem do contexto macrossocial (a própria sociedade) e das particularidades da profissão, dos usuários e da instituição. A questão social tem se intensificado ao passo em que o processo capitalista se faz presente nas dimensões não apenas econômica, mas também política, social e até cultural. Ao mesmo tempo, é imprescindível situar a profissão, os usuários e a própria instituição, apontando características, mudanças e particularidades dessas dimensões. Assim, pensando nesta inserção histórica, já apontada por pesquisadores em estudos anteriores e reafirmada por esta pesquisadora, e situando a profissão sob o inerente espaço da contradição, com alguns limites e dificuldades, a discussão desta não deixa de ser fundamental. Discuti-la com maior rigor e propriedade frente ao novo contexto da Fundação CASA, apontando e refletindo sobre as suas particularidades é a proposta dessa pesquisa. A inserção da pesquisadora nesta temática faz parte de um instigante processo de aproximação iniciado na graduação ainda enquanto estudo teórico. Posteriormente houve a inserção teórico-prática por meio do estágio supervisionado no “MOSAICO”, instituição que desenvolvia no município de Franca as medidas socioeducativas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. Na seqüência, desenvolveu-se uma pesquisa que culminou no Trabalho de Conclusão de Curso “VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA: o grupo AMAR na luta pela efetivação dos 17 direitos do adolescente autor de ato infracional” em 2006 (com apoio da FAPESP). Outro importante fator que impulsionou o interesse pela pesquisa foi a obtenção do primeiro lugar na classificação do Concurso Público para o cargo de Analista Técnico/Assistente Social na Fundação CASA. Esse fato trouxe a expectativa de inserção profissional neste campo, que já era bastante almejado pela pesquisadora. Assim, interesses pessoais e profissionais impulsionaram a construção deste estudo. Ressalta-se também que a escolha do cenário, o complexo de Unidades em Ribeirão Preto formado por três Unidades: UIP “Ouro Verde” (Unidade de Internação Provisória); UI “Rio Pardo” (Unidade de Internação - primários) e UI “Ribeirão Preto” (Unidade de Internação – reincidentes e primários graves), cada qual com suas especificidades, se deu devido à proximidade da residência da pesquisadora e por ser também o espaço de atuação profissional. A dissertação ora apresentada se propõe a apontar e refletir sobre a atuação profissional do Assistente Social, ou melhor, do Analista Técnico/Assistente Social na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), tendo como referência espacial o Complexo de Unidades de Ribeirão Preto-SP, que agrega três Unidades com características distintas, não apenas físico-estrutural, mas o próprio público alvo a que se destina: UIP- “Ouro Verde”, UI- “Rio Pardo“ e UI- “Ribeirão Preto”. Para a compreensão da profissão hoje fez-se necessário sua apreensão histórica. O objeto das Ciências Sociais é histórico. Isto significa que as sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configuração são especificas. Assim [...] o objeto de estudos das Ciências Sociais possui consciência histórica. (MINAYO, 1994, p. 13-14) Buscamos compreender nosso objeto de estudo, a atuação profissional do Analista Técnico/Assistente Social, por meio do movimento dialético da realidade, apreendendo as mediações necessárias para uma análise de totalidade. Com isso, foi necessário se aproximar da complexa formação da profissão e dos profissionais no espaço institucional da Fundação CASA. Dessa forma, procurou-se reconstruir os caminhos percorridos pela profissão e as dimensões que envolvem sua atuação. Contudo, ainda que o interesse pelo tema se faça presente, a realização da presente pesquisa é apenas uma aproximação com o amplo universo que permeia o 18 trabalho profissional, sendo que não esgota a totalidade do tema. É preciso considerar que o conhecimento construído sobre a realidade observada é sempre aproximado e provisório e que faz parte da construção/reconstrução da própria dinâmica da realidade. Este estudo se propôs a desenvolver uma pesquisa social, que é bastante importante como prática investigativa na reconstrução do movimento da realidade. Segundo Minayo (1994, p.17) a pesquisa é: “[...] a atividade básica de ciência na sua indagação e construção da realidade. É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à realidade do mundo”. A metodologia, por sua vez, é um modo de conduzir a pesquisa. É o controle detalhado de cada técnica utilizada na pesquisa. Segundo Thiollent (1986), [...] a metodologia pode ser vista como conhecimento geral e habilidade que são necessários ao pesquisador para se orientar no processo de investigação, tomar decisões oportunas, selecionar conceitos, hipóteses, técnicas e dados adequados. O estudo da metodologia auxilia o pesquisador na aquisição desta capacidade. (THIOLLENT, 1986, p.25) Para Minayo (1994) a metodologia pode ser compreendida como uma articulação entre conteúdos, pensamentos e existência. Entendemos por metodologia o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. Neste sentido, a metodologia ocupa um lugar central no interior das teorias e está sempre referida a elas. (MINAYO, 1994, p. 16) Segue-se, aqui, a linha de pesquisa qualitativa que, segundo esta mesma autora, se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado como crenças, valores e significados. Trata-se de um caminho utilizado nas ciências sociais, que lida com a realidade, a vida de seres sociais. É, portanto, dinâmica e possui uma riqueza imensurável que não se enquadra em nenhuma fórmula. A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994, p. 21 e 22) 19 Essa pesquisa se inspira no método dialético para a compreensão da profissão, inserida em um contexto contraditório que permeia as relações da sociedade e, de maneira particular, o cenário da própria Fundação CASA. Por esse caminho foi possível reconstruir o processo histórico que marca a construção das instituições de abrigamento e contenção dos chamados “menores” e, nessas, a inserção do profissional e sua trajetória de amadurecimento profissional e especialização das ações desenvolvidas no cotidiano. Nosso ciclo de pesquisa - que não é e não deve ser um ciclo fechado e mecânico, mas uma maneira didática de descrever e ordenar a realidade - teve início com a etapa denominada por Minayo (1994) de “fase exploratória da pesquisa”. [...] tempo dedicado a interrogar-nos preliminarmente sobre o objeto, os pressupostos, as teorias pertinentes, a metodologia apropriada e as questões operacionais para levar a cabo o trabalho de campo. Seu foco fundamental é a construção do projeto de investigação. (1994, p. 26) Segundo Minayo (1994, p.32-33) a pesquisa exploratória compreende as seguintes fases: 1) de pesquisa bibliográfica disciplinada, crítica e ampla: a) disciplinada porque devemos ter uma prática sistemática – os fichamentos são um bom procedimento; b) critica porque devemos estabelecer um diálogo reflexivo entre a teoria e o objeto de investigação por nós escolhido; c) ampla porque deve dar conta do “estado” do conhecimento atual sobre o problema; 2) de articulação criativa, seja na delimitação do objeto de pesquisa, seja na aplicação de conceitos; 3) de humildade, ou seja, reconhecendo que todo conhecimento cientifico tem um caráter: a) aproximado, isto é, se faz sempre a partir de outros conhecimentos sobre os quais se questiona, se aprofunda ou se critica; b) provisório; c) inacessível em relação à totalidade do objeto, isto é, as idéias ou explicações que fazemos da realidade estudada são sempre mais imprecisas do que a própria realidade; d) vinculada à vida real - a rigor, um problema intelectual surge a partir de sua existência na vida real e não “espontaneamente”; e) condicionado historicamente. 20 Depois de definido o tema estabeleceu-se contato com servidores da Fundação CASA para apresentar o projeto de pesquisa18. No entanto a pesquisadora foi orientada sobre a necessidade de seguir um protocolo para a aprovação deste estudo. Assim, enviou-se o projeto de pesquisa, juntamente com Ofício declarando a inserção no Programa de Pós-Graduação – Mestrado – e a constatação do professor-orientador quanto à pesquisa, além do Curriculum Lattes do professor-orientador. Na seqüência, após autorização da Fundação CASA foi solicitada uma autorização para a realização de pesquisa com adolescentes para o Juiz da Infância e Juventude da Comarca de Ribeirão Preto, Dr. Paulo César Gentili, que também autorizou a sua realização. Outro importante passo para a pesquisa foi o contato com profissionais da Escola de Formação da Fundação CASA em São Paulo/SP visando a permissão e agendamento da visita para coleta de dados de fontes documentais-históricas sobre a instituição e a profissão. Assim teve início a pesquisa de campo, que foi seguida e realizada paralelamente às reflexões teóricas. Esta também realizada por meio da observação direta e atuante, já que a pesquisadora é também profissional do campo e da área em que se situa a pesquisa. De acordo com Minayo (1994) através dessa técnica compreende-se melhor a dinâmica do grupo, sua importância e seu caminhar: A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. A importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que observados diretamente na própria realidade transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real. (MINAYO, 1994, p. 59-60) Ao passo que essa observação auxilia a captação mais próxima da dinâmica da realidade, também favorece a análise qualitativa sustentada em um marco teórico presente em todo o processo. Assim, através dessa análise, 18 Uma primeira solicitação foi feita em 08/01/2007. Como a pesquisadora ainda não estava inscrita no programa de pós-graduação, esta não foi aceita. Contudo, a partir do segundo semestre de 2007 a pesquisadora estabeleceu contatos com a direção estadual da Fundação, obtendo resposta favorável a sua pesquisa em 5/4/2008. 21 [...] é possível estudar dinamicamente os problemas, decisões, ações, negociações, conflitos e tomadas de consciência que ocorrem entre os agentes durante o processo de transformação da situação. (THIOLLENT, 1986, p. 19) Assim, a vivência prática na realidade pesquisada, ao passo que contribuiu para o estudo também trouxe dificuldades para este. Foram grandes os desafios enfrentados para lidar com certo distanciamento necessário entre ser pesquisador e ator da realidade que se busca apreender. O instrumento básico utilizado na coleta dos dados primários foi a entrevista semi-estruturada, preparada a partir de um roteiro prévio (Apêndices a e b). A utilização desse roteiro se deu a princípio por meio de um pré-teste realizado com duas Assistentes Sociais e uma Psicóloga. Mais tarde, se deu a completa realização das entrevistas, realizadas com os seguintes atores: - 5 Assistentes Sociais; - 3 Psicólogas; - 3 Adolescentes; - 1 Diretor de Unidade; -1 Juiz da Infância e Juventude; - 1 Familiar. Este roteiro norteou os pontos essenciais da pesquisa e procurou captar uma expressão livre dos entrevistados, contribuindo para a percepção de sentimentos, valores e pensamentos expressados. Através da entrevista, o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores sociais. Ela não significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objetos da pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que esta sendo focalizada (MINAYO, 1994, p. 57). A partir desse instrumento foi possível acrescentar e reformular as perguntas no decorrer das mesmas, de acordo com a necessidade e a especificidade de cada informante. O roteiro de entrevistas foi elaborado em conjunto com o orientador, sendo este roteiro específico a cada categoria de informante. Como se trata de uma entrevista semi-estruturada e de uma pesquisa qualitativa, as perguntas contaram apenas com uma intervenção pontual da pesquisadora para esclarecer dúvidas necessárias. 22 As entrevistas foram gravadas com recurso tecnológico de áudio - MP4 - por meio da autorização prévia dos sujeitos entrevistados, segundo assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice c), posteriormente transcritas e analisadas. Este recurso permitiu à pesquisadora relatar de maneira fidedigna a fala dos entrevistados. O trabalho intelectual não é feito ao acaso, não é uma escolha aleatória, mas sim uma tentativa de construção do real em movimento articulado às bases, princípios e fundamentos teóricos que nos é indicado pelo objeto de estudo. Os seres humanos e suas relações com o concreto são os alicerces para este estudo. Assim sendo, há de se destacar que a fundamentação teórica faz-se importante para a compreensão e análise do real que está sendo pesquisado. É preciso que tenhamos uma base teórica para podermos olhar os dados dentro de um quadro de referências que nos permite ir além do que simplesmente nos está sendo mostrado (MINAYO, 1994, p. 61). Essa dimensão teórico-metodológica contribui para que o pesquisador deixe de ser apenas um tecnicista ou somente um teórico e busque a fusão desses dois elementos excepcionais à compreensão do nosso objeto de pesquisa. Dessa forma: “Nessa dinâmica investigativa, podemos nos tornar agentes de mediação entre a análise e a produção de informações, entendidas como elos fundamentais” (MINAYO, 1994, p. 62, grifo da autora). Nesse sentido, o arcabouço teórico utilizado vem sendo construído desde 2007 por meio de pesquisa bibliográfica tanto de livros, sites da internet, revistas, artigos, e demais publicações, Legislações - como o ECA, a Constituição Federal de 1988 e outras referências normativas pertinentes, assim como monografias, dissertações e teses. Objetivou-se, com isso, uma melhor aproximação do tema, sobretudo quanto ao processo histórico que acompanha a profissão e a trajetória da Instituição, não se esquecendo da complexidade dos temas transversais que complementam a análise principal da pesquisa. A pesquisa documental de fontes históricas da Fundação CASA, colhidas na Escola de Formação da própria Fundação, representaram um riquíssimo instrumento para a fundamentação do estudo. Quanto à pesquisa bibliográfica, a biblioteca da Faculdade de História, Direito e Serviço Social (FHDSS) da UNESP campus de Franca foi o espaço prioritário para a aquisição de fontes bibliográficas. As leituras 23 desse material bibliográfico e documental foram sistematizadas em forma de fichamento o que facilitou o processo de construção teórica. Sobre a pesquisa teórica, Minayo (1994, p. 18-19) aponta-nos que: “A teoria é construída para explicar ou compreender um fenômeno, um processo ou um conjunto de fenômenos e processos”. Teorias, portanto, são explicações parciais da realidade. Cumprem funções muito importantes: a) colaboram para esclarecer melhor o objeto de investigação; b) ajudam a levantar as questões, o problema, as perguntas e/ou as hipóteses com mais propriedade; c) permitem maior clareza na organização dos dados; d) e também iluminam a análise dos dados organizados, embora não possam direcionar totalmente essa atividade, sob pena de anulação da originalidade da pergunta inicial (MINAYO, 1994, p. 18 e 19). O trabalho de campo apresenta como possibilidades não só a aproximação com aquilo que se deseja conhecer e estudar, mas também a criação de conhecimentos partindo da realidade presente no campo. Para tanto, a indicação dos informantes é de grande relevância. A qualidade do material obtido depende da qualidade do informante escolhido, em função do que se pretende desvendar. Esta circunstância postula a existência de um conhecimento prévio do informante, por parte do pesquisador; quanto mais conhecido aquele, mais seguro estará o pesquisador de que obterá um relato interessante e apropriado ao que está buscando; quando menos conhecido, maior o peso do acaso ou da contingência, isto é, da possibilidade tanto de se obter quanto de não se obter as informações requeridas (QUEIROZ M., 1991, p.75). Quanto à escolha dos informantes, ela se deu de forma planejada devido aos objetivos pretendidos nesta pesquisa: a prática profissional, considerando o período de transição da FEBEM à Fundação CASA. Assim, os critérios de escolha priorizaram aqueles informantes mais significativos para o estudo do objeto da pesquisa, especificamente aqueles informantes que atuaram (no caso dos profissionais e direção) e aqueles que estiveram internados (adolescentes e família) neste período de transição. Dentre os profissionais Analistas Técnicos/Assistentes Sociais, sendo um total de 6 (seis), que se encaixavam ao perfil da pesquisa, ou seja, que atuavam antes e durante a mudança para Fundação CASA, foram realizadas entrevistas com 5 24 (cinco) devido ao afastamento de um dos profissionais por questões de saúde. O mesmo ocorreu com a escolha dos adolescentes, pouco localizados frente a esse perfil cronológico, pois, em alguns casos, após a escolha do informante, ocorreu a sua desinternação. Quanto às famílias apenas um dos adolescentes possuía (selecionados segundo o critério de maior período a partir de 2006), por isso, a entrevista foi realizada com apenas um representante desta família. Conforme apontado nos próximos capítulos a mãe é uma presença importante para os adolescentes privados de liberdade e inevitavelmente acabou sendo realizada a entrevista com uma mãe. Por fim, o Juiz da Vara da Infância e Juventude foi uma escolha da pesquisadora dentre os atores envolvidos no sistema de garantia de direitos, e o diretor uma opção frente ao longo período de atuação no presente cargo. Durante a coleta das autorizações para a entrevista verificou-se divergências quanto a aceitação ou não de expor a própria identidade. Assim, optou-se por suprimir a real identidade e situar apenas o nome da categoria a que pertence, por exemplo: adolescente A, Assistente Social B, e assim por diante. Para a realização das entrevistas utilizou-se (como já citado anteriormente) o roteiro semi-estruturado e individualizado – específico a cada grupo de entrevistados com alguns pontos em comum, de acordo com uma formulação categórica preliminar. Buscou-se dessa maneira, captar informações acerca do trabalho profissional do Analista Técnico/Assistente Social sob o olhar dos vários atores situados no contexto da Fundação CASA. A aproximação com os informantes ocorreu, a princípio, como profissional da própria Fundação, para depois apresentar-se como pesquisadora. Houve para cada informante um primeiro contato, quando foi exposto o conteúdo da pesquisa e seus objetivos, para assim estabelecer o convite, aceitação (que teve a recusa de um representante de direção) e agendamento aos respectivos sujeitos. Alguns desafios se deram na execução das entrevistas, como a dificuldade em agendar a realização desta com alguns informantes. Uma profissional, inclusive, teve dificuldades pessoais para terminar a entrevista (mesmo após duas tentativas), alegando bloqueio pessoal e outras dificuldades. A devolutiva da pesquisa aos entrevistados bem como à Fundação é, além de um compromisso pessoal da pesquisadora, uma determinação da própria Fundação por meio da Escola de Formação Profissional. 25 Vale destacar que após esse processo foi possível indicar as principais categorias de análise não como uma imposição da pesquisadora, mas sim da própria dinâmica do real. Assim, estas foram se apresentando no decorrer da pesquisa empírica, no processo de aprendizagem profissional e na aproximação com o cotidiano institucional. As questões mais latentes expostas pelos entrevistados foi sendo inserido e analisado ao longo dos capítulos “A infância e adolescência e o processo de institucionalização no Brasil” e “O trabalho profissional do Assistente Social na Fundação CASA” As finalidades dessa fase de análise são apresentadas por Minayo (1994, p. 69) como sendo uma forma de [...] estabelecer uma compreensão dos dados coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando-o ao contexto cultural do qual faz parte (MINAYO, 1994, p. 69). A análise dos dados segue o método hermenêutico-dialético já indicado por esta autora. Este representa uma análise crítica da pesquisa de campo (da realidade), em que as falas dos entrevistados são situadas dentro de um contexto sócio-histórico e de uma conjuntura sócio-econômica e política que perpassa a instituição, a sociedade e a profissão. Assim se deu uma articulação entre a pesquisa empírica e o referencial teórico. Diante dessa articulação, as categorias de análise foram dispostas ao longo do estudo, não ficando restritas e limitadas a um capítulo específico, mas dispersas na análise apresentada nos dois capítulos que se seguem. Na primeira parte “Trajetória Histórica: as bases legais e a inserção profissional do Assistente Social em instituições para adolescentes em conflito com a Lei” são lançadas as bases para a compreensão do surgimento das primeiras instituições para crianças e adolescentes em situação de risco e/ou em conflito com a lei; situa-se a origem e a regulamentação da profissão do Serviço Social no Brasil, no contexto da segregação deste público, como um lócus importante para exercício profissional. Buscou-se, nesse capítulo, situar alguns aspectos importantes do contexto sócio-político-econômico e cultural do Brasil que perpassam a temática ora estudada. Dentro desse recorte cabe destacar a explanação das principais legislações recorrentes ao objeto de estudo e também sob estes determinantes 26 macrossocietários. Ao situar neste capítulo as bases para a profissão se caracterizou o cenário da pesquisa: o complexo de Unidades da Fundação CASA em Ribeirão, situando características do município em que abriga esta Instituição. Também foram caracterizados os usuários da prática profissional do analista Técnico/Assistente social: adolescentes e suas famílias. A segunda parte desse estudo, denominada “O trabalho do Assistente Social na Fundação CASA”, tem o objetivo de apresentar a atuação dos assistentes sociais na Fundação CASA. Para tanto foram apontados elementos para a discussão da categoria trabalho, situando o profissional no processo de compra e venda de sua força de trabalho, apresentando o objeto e o produto final deste trabalho: os adolescentes e o pleno/efetivo cumprimento da medida socioeducativa. Foram trabalhadas ainda, as dimensões que compõem a profissão: o ético-político, o teórico-metodológico e o técnico-operativo, com apresentação dessas dimensões no cotidiano do profissional. O fechamento do capítulo expõe os principais instrumentais que incidem na prática dos profissionais - Analistas Técnicos/Assistentes Sociais na execução da medida socioeducativa de internação, referendada pelos próprios profissionais: visita domiciliar, entrevistas, relatório técnico, estudo social, entre outros. Por fim, nas considerações finais, refletindo sobre os conteúdos abordados, visando uma espécie de “amarração” ao objetivo principal da pesquisa, destaca-se basicamente a importância do profissional neste cenário e a necessidade de um olhar constante dos profissionais para o seu exercício profissional, se reconhecendo na profissão e nela atuando de maneira sólida e coerente em todas as dimensões que a compõe. 27 FEBEM – FUNDAÇÃO DO BEM ESTAR DO MENOR – (Lei estadual nº 985, de 26 de abril de 1976.) Logotipo da FEBEM 1 (www.febem.sp.gov.br) CAPÍTULO I: A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA E O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL FUNDAÇÃO CASA – (Lei estadual nº 12469 DE 22/12/2006) Logotipo da Fundação CASA 1 (www.casa.sp.gov.br) 28 1 A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA E O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL 1.1. Situando sócio-historicamente o debate Os primeiros apontamentos para a questão da criança e adolescente no Brasil datam do período colonial, mais especificamente ao final da escravatura. Nesse momento, a sociedade dividida funcionalmente entre brancos e negros, sofre alterações importantes. Os negros deixaram de ser propriedade de um senhor e passaram a ser senhores de suas vidas, sem, contudo, disporem de condições básicas para sua sobrevivência. São eles, a partir de então, donos da sua força de trabalho apenas e condicionados a vendê-la. Sejam crianças, adolescentes, adultos do sexo feminino e/ou masculino, todos buscaram formas de sobrevivência. Assim, neste cenário, têm-se já expressivos resultados para a infância, como as situações de abandono, miséria, violências de todas as ordens e outras mazelas que vão dar origem também ao jovem em conflito com a lei que era classificado como fora das normas legais e morais instituídas) e a criação de instituições de abrigamento, contentoras e de afastamento destes jovens da sociedade. A abolição da escravatura, em 1888, causou um grande crescimento do número de abandonados e infratores. Em 1894, o jurista Candido Mota propôs a criação de uma instituição específica para crianças e adolescentes que, até então, ficavam em prisões comuns (BRASIL. Fundação casa, 20010, on line). Ao se refletir sobre a construção das primeiras Unidades de internação destinadas a crianças e adolescentes classificados por “menores” cabe, primeiramente, repensar a função da contenção e do afastamento destes da sociedade, segundo os princípios que servem de base para a legitimação das prisões. As prisões no século XIX foram construídas objetivando a retirada da liberdade e o isolamento do sujeito considerado uma ameaça à sociedade. Estruturadas basicamente sob regras/normas de disciplina e controle que, quando não cumpridas acarretavam punições, representavam um novo modelo de aplicação de pena nas então chamadas sociedades civilizada, em substituição das punições ao corpo da época medieval. Foucault (1987) em sua obra “Vigiar e Punir: historia da violência nas prisões” 29 faz um profundo estudo sobre as prisões, enquanto modelo de instituição total, apontando alguns de seus fundamentos, sendo o maior o controle e a punição. É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente; é preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles. O tema do Panóptico – ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber, individualização e totalização, isolamento e transparência – encontrou na prisão o seu local privilegiado de realização. (FOUCAULT,1987, p. 221). A princípio, a necessidade de construção das prisões estava intimamente ligada ao interesse do Estado em impor seu domínio sem oposição e afastando interesses antagônicos, se legitimando enquanto soberano. O Estado, nos moldes do neoliberalismo, enquanto mediador dos conflitos de classe utilizou-se intensamente das prisões para proteção da propriedade privada e dos meios de produção, assumindo o papel de mantenedor da ordem vigente. Assim, tais instituições privativas de liberdade se consolidaram sob os princípios de formação, de repressão e de controle dos indivíduos: Na função de formar, a instituição molda o indivíduo através do processo educativo ideológico, onde são criados o normal e o desviante (estigmas). Juntamente com esta função aparece o controle, que a completa, uma vez que significa a criação de mecanismos que transformam os indivíduos em dóceis e submissos às regras institucionais. Nesta ordem, a função repressiva, por sua vez, tem uma maior abrangência na sociedade, pois traz em si a conotação do exemplo a ser dado. Toda a instituição tem seu lado repreensivo, mesmo que sutil, pois responde a contenção do desvio institucional, é o momento da punição. (SOUZA, 1982 apud MONTANARI, 2000, p. 81) Os estudos sobre a infância tiveram início (pelo menos os estudos os quais se teve acesso e que se mostraram mais intensos) a partir do final do século XIX, com base no movimento sanitarista, com o posicionamento de médicos contra os chamados “depósitos de crianças” (roda dos expostos, abrigos e asilos, entre outros mecanisnos). O debate se intensificou no século XX, influenciado pelas transformações societárias dos grandes centros urbanos e, conseqüentemente, pelo agravamento da Questão Social incidindo diretamente na vida de crianças e adolescente. Diante dos alarmantes índices de mortalidade infantil e de outras problemáticas, o Estado e a sociedade foram chamados a intervir. E a resposta a 30 essa questão se deu de forma equivocada e simplista com a construção de instituições de internação, uma forma de afastar o “mal social” das vistas da sociedade. A preocupação da sociedade, especialmente a preocupação da elite brasileira, era a contenção da marginalidade, a preocupação com a ordem, com a manutenção da propriedade privada e com a reprodução do proletariado. Assim, as duas primeiras décadas do século XX se caracterizaram pelo debate em torno da Assistência, Proteção e Justiça para a infância e adolescência, com foco, é claro, para a infância pobre, pois havia uma preocupação latente com a questão do aumento da criminalidade infanto-juvenil. A exemplo disso tem-se a aprovação em 1923 do Juízo de Menores, sendo o magistrado Candido Albuquerque Mello Mattos seu primeiro juiz. Essas reflexões se intensificaram recentemente no Brasil. A década de 1980 (década da consolidação da Constituição Federal em 1988) revelou essa tendência, sobretudo, por meio dos movimentos populares de luta por direitos de crianças e adolescentes, que ergueram suas bandeiras e saíram às ruas. Estes movimentos atuaram expressivamente para a elaboração e para a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990). Quanto à construção de instituições privativas de liberdade para crianças e adolescentes no Brasil destaca-se o estudo de Roberto da Silva (1997) que categorizou a construção destas em cinco (5) modelos ideológicos e cronológicos: Filantrópica (de 1500 a 1874); Filantropica-higienista (de 1874 a 1922); Assistencial (de 1924 a 1964); Institucional pós 64 (de 1964 a 1990); e desinstitucionalização (a partir de 1990)19. [...] a cada fase do desenvolvimento do pensamento assistencial sempre correspondeu uma postura político - cientifica e filosófica, que se traduziu, por sua vez, na edição de leis que estabeleceram alguns parâmetros para o tratamento e assistência à infância. (SILVA, 1997, p. 34) As instituições para abrigamento de jovens não aceitos pela sociedade, considerados patologias sociais e tutelados pelo Estado, se ergueram nos moldes 19 Além do trabalho de Roberto da Silva (1997) que apresenta de maneira profunda estas fases, a compreensão das instituições construídas segundo os modelos apresentados brevemente acima, são pontuados de maneira didática na pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso de Cintra (2006). 31 da 2ª fase “filantrópico-higienista”, marcadamente de cunho sanitarista como classificado por Silva (1997). Entre elas cita-se o Instituto Disciplinar criado pela Lei n. 844 em 10 de dezembro de 1902 que abriu caminho a outras. Os jovens eram categorizados e classificados segundo as três classes citadas abaixo: - Carentes: é aquele, cuja família, não tem condições mínimas de subsistência. - Abandonados: é aquele legalmente abandonado, ou aqueles cujos responsáveis perderam, por determinação judicial, o pátrio poder. [...] - Infrator: Autor de infração penal. À princípio são acrescentadas as características: insensibilidade face à violência, com os vícios, com os tóxicos e com a morte. Sexualidade precocemente exarcebada; ausência de consciência de seu próprio valor, como conseqüência é portador de grande agressividade, reação natural à rejeição familiar e social (MALHEIROS, 1952, p. 33). A criação do Juizado Privativo de Menores em 1924 (Lei n. 2059 - decreto n. 3828/25), a implantação do SAM - Serviço de Assistência ao Menor, a formação do Conselho de Assistência e Proteção ao Menor, a formulação do Código de Menores “Mello Mattos” de 1927 e a instituição do Serviço Social de Menores (decreto n. 9744/38), representaram marcos da terceira fase, “assistencial”, assim denominada por Silva (1997). Roberto da Silva (1997, 45), aponta as principais características da fase “assistencial”: 1- É fortemente marcada por tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil se tornou signatário; 2- A assistência à infância torna-se, preferencialmente, uma responsabilidade do Estado; 3- São consagradas em leis as primeiras distinções entre menor desassistido e menor infrator; 4- O Poder Judiciário torna-se hegemônico no trato das questões da infância (SILVA, 1997, p. 45). A consolidação da Política Nacional do Bem-Estar do Menor – PNBEM que orientou a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM e permitiu, por meio de suas “ramificações”, a origem, no Estado de São Paulo, das Unidades de Internação da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor – FEBEM e institucionalização do Novo Código de Menores em 1979, representam exemplos da 32 quarta fase denominada por Silva (1997) de “Institucional pós 64”. As características mais marcantes dessa fase são partes das mudanças políticas, econômicas e sociais no país iniciadas pela ditadura militar. Esses marcos legal-institucionais se basearam na “Lei de Segurança Nacional”, cujo enfoque era, entre outros, a repressão e a violência, que também se consolidaram como símbolos na história dos grandes complexos da FEBEM. Em 1976, a Secretaria de Promoção Social mudou o nome da Fundação Pró-Menor para Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem/SP), para se adaptar à política federal para a área do adolescente em situação de conflito com a lei. (BRASIL. Fundação Casa, 2010, on line) A quinta fase, designada por Roberto da Silva (1997) de “desinstitucionalização”20, representa um importantíssimo marco, tanto para a infância no Brasil como para o desenvolvimento da atual pesquisa, sobretudo pela consolidação da Constituição Federal Brasileira de 1988 e mais tarde a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Além do contexto sócio-econômico- político brasileiro, o contexto internacional também refletiu em mudanças na política à infância. Assim, a legislação brasileira adotou os princípios da Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direito e em desenvolvimento, portanto merecedores de tratamento especial. Neste momento, o Estado passa a compartilhar com a família e com toda a sociedade a responsabilidade sobre toda e qualquer criança e adolescente. Daí que as formas alternativas de acolhimento e de valorizando do espaço familiar como local privilegiado para o desenvolvimento de criança e adolescentes vem sendo priorizado ante a institucionalização, ainda que de forma lenta. São exemplos, as medidas socioeducativas de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade (art. 112 – ECA). É importante dizer que até a vigência do ECA a prioridade era a institucionalização como apontado por Malheiros (1952), a qual destaca que o trabalho e atendimento a crianças e adolescentes no Brasil em conflito com a lei se 20 Desinstitucionalização no plano do discurso. Em nível concreto o que se observa é que esta marca ainda persiste nas Políticas Públicas e principalmente na mentalidade de políticos, juristas e gestores que acreditam que a instituição total (fechada nela mesmo em relação ao atendimento de necessidades dos seus sujeitos) é o melhor para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. 33 dividia em duas fases: [...] na primeira registram-se principalmente medidas de beneficência e na segunda inicia-se e desenvolve-se a preocupação pelo aspecto legal do problema. A Primeira fase: A primeira demonstração de interesse dos poderes públicos pela proteção a infância foi a “Carta Régia de 12 de dezembro de 1693” do Rei ao Governador da Capitania do Rio de Janeiro, ordenando que – “as crianças enjeitadas ou ao desamparo, fiquem aos cuidados da Câmara, e dos bens do Conselho, tirem o que for necessário para essa despesa.” B Segunda fase: Em 1830 o Código Criminal põe fora de suas sanções, conforme o art. 10 §1º, os menores de 14 anos por não os considerar criminosos. Deveriam eles ser recolhidos a Casas de Correção, pelo tempo que o Juiz determinasse, contanto que o recolhimento não excedesse a idade de 17 anos (MALHEIROS, 1952, p. 8 e 9). A partir do século XX, em princípio sob influências do período republicano, a preocupação com a infância estava ligada às políticas de higienização. A idéia era criar internatos, como medidas profiláticas, para aqueles jovens que estavam vivendo em situações contrárias aos padrões da época: abandonados, carentes, com famílias “desestruturadas”, “delinqüentes”, entre outras situações. Essa política apoiava-se na idéia fatalista de que a pobreza necessariamente levava à criminalidade. Assim, crianças e adolescentes pobres eram encaminhados para instituições de abrigamento e/ou “correção”, associando a pobreza como uma pré- etapa para a passagem à criminalidade. Sob a “mascara” de corrigir a marginalidade, institui-se no país uma caça aos pobres, por considerá-los portadores do “gen” da criminalidade. Em pesquisas de verificações de entrada de menores em estabelecimentos subordinados ao juízo de menores, notamos que os abandonos resultavam quase totalmente da miséria, ruindo lentamente os pobres lares até que o desanimo completasse a obra de destruição-desagregação da família, abandono dos filhos, abandono dos pais, vícios, delinqüência, prostituição, alcoolismo – e dessa onda – avassalante salvaram-se ainda, no tocante aos filhos, o que pedem as suas internações pela consciência vaga de que os devem proteger, ou pelo sentimento paterno ou materno que ainda conservam vivos em seus corações desiludidos (PINHEIRO, 1985, p. 87). Na ausência de Políticas Públicas, principalmente, foram criadas instituições em que crianças e adolescentes eram lançados, muitas destas eram verdadeiras 34 prisões de adultos, em deplorável promiscuidade. A pesquisa de Pinheiro (1985) aponta com casos reais esta situação de ausência de critérios de seletividade institucional para a aplicação da internação. Os cinco casos examinados apontam as seguintes indicações: Menor - M.A.M., 13 anos – acusado de roubo; I.T.M. – mitômana, anormal; O.M.M., 15 anos – histérica, epiléptica, sexualidade incontida; L.R., 15 anos – pervertido sexual, homosexualismo; E.B., 14 anos – débil mental no limite de imbecilidade. [...] Todas essas menores vivem em promiscuidade no mesmo internato. Os males que daí decorrem são manifestos, contagio e propagação de vícios, ampliando o campo das perversões e atraso escolar pela disparidade da situação mental de cada uma. (PINHEIRO, 1985, p. 101) Os institutos inicialmente criados tinham uma série de problemas, a começar pela instalação física em que se abrigavam jovens de ambos os sexos. Segundo pesquisa de Malheiros (1952) o Serviço Social teve papel importante na reorganização desses Institutos. A exemplo disso Malheiros (1952) aponta a realidade do Instituto Modelo Feminino em princípios de 1951, em que o Diretor do Serviço Social de Menores solicitava a colaboração de Assistentes Sociais para o planejamento e a execução da reorganização desse setor. “[...] Coube a Assistente Social Chefe, organizar o programa que serviria de base para a reforma.” (MALHEIROS, 1952, p. 55). Os problemas envolvendo crianças e adolescentes (abandono, violência e marginalização) se intensificaram significativamente no século XX, movidos pelo desenvolvimento industrial que ocasionou, entre outras coisas, uma explosão demográfica desordenada das cidades - desenhando um novo perfil às estas e formando as grandes periferias. As instituições “preventivas” e “corretivas” se estruturaram inspiradas na visão positivista/ funcionalista e repressiva, compreendendo os jovens em conflito com a lei como disfuncionais. Segundo analisado por Santos (2004), [...] para esse tratamento, as Instituições de correção caracterizavam-se como hospital, com um corpo de funcionários capazes de promover a mobilização dos corpos devolvendo-os à sociedade como corpos sãos (SANTOS, 2004, p. 51). 35 Os projetos que regulamentavam a criação de instituições para este fim começaram a ser elaborados em 1883, mas só foram concretizados em algumas cidades a partir de 1902: a Colônia Dois Rios (1902) e a Escola Premonitória XV de Novembro, ambas no Rio de Janeiro; o Instituto Disciplinar do Tatuapé, em São Paulo (1902); e o Instituto João Pinheiro em Belo Horizonte (1909). Esses Institutos foram criados dentro de uma campanha de combate à vadiagem. Tinham como objetivo primeiro a repressão e, em seguida, o ensino de regras de comportamento e disciplina e a profissionalização para o mercado de trabalho (reafirmando a ideologia da classe burguesa de que o trabalho enobrece o homem e afasta os jovens do crime). Os funcionários tinham permissão para aplicar castigos físicos em caso de insubordinação e as punições eram normas: internos eram submetidos a exaustivas rotinas diárias de disciplinas, espancados e colocados em solitárias quando não se cumpriam o regime imposto. As Colônias Agrícolas, Casas Correcionais e outras denominações foram criadas não apenas para afastarem crianças e adolescentes das ruas, da marginalidade e de situações de risco, mas também com o objetivo de condicionar e preparar os jovens para endossarem o exército industrial de reserva, enquanto mão de obra precarizada, de baixa remuneração, desqualificada e mal remunerada. Estas instituições eram geridas, em sua maioria, por entidades filantrópicas e grupos religiosos. Somente a partir de 1930 e mais intensamente na década de 1960 é que o Estado assume a responsabilidade por estas instituições, sobretudo daquelas que atendiam aos “menores” que se encontravam em “situação de risco”. Segundo reflexões de Frontana (1999) o olhar do Estado para a questão da criança e do adolescente, seja em situação de carência, abandono ou em conflito com a lei é mais intenso no período da história brasileira conhecido como “regime militar/ditadura” (1964-1985), já que focava-se muito mais na questão da segurança pública (ordem pública) do que propriamente no Bem-Estar, como apontava as denominadas instituições. Assim são criadas as chamadas “instituições totais”, de modelos “fechados”, onde “todas as necessidades dos sujeitos são (ou deveriam ser) supridas” dentro dos seus muros: educação, alimentação, serviços de saúde, entre outros serviços. Evitando-se, assim, qualquer contato do jovem com o “mundo de fora”. Nessa trajetória das políticas públicas para a adolescência, em particular aos adolescentes infratores, é importante ressaltar a influência do Jurista Cândido Motta 36 no início do século XX no Brasil, contribuindo ativamente para a construção destas instituições disciplinares. O projeto n. º 16, de 1900, apresentado à Câmara de Deputados de São Paulo, pelo parlamentar Cândido Motta, previa a criação de um Instituto Correcional Industrial e Agrícola denominado “Instituto Educativo Paulista” para o atendimento de menores moralmente abandonados e criminosos. (SANTOS, 2004, p.107). Apesar de ser aprovado na comissão de justiça em 1900 e encaminhado à Câmara dos Deputados e depois ao Senado, somente em 1902 foi fundado o Instituto Disciplinar pela lei n. 844. Estas instituições, ligadas a grupos religiosos ou particulares, desenvolveram, ao longo de sua existência, atividades com esses jovens por meio da exploração de sua mão de obra. Esta prática era legitimada pela idéia de que o trabalho levava à salvação21 Em 1923 houve a criação do 1º Juizado de Menores, o primeiro da América Latina. A partir daí, o trabalho das instituições de atendimento à infância e à adolescência pautou-se, além da análise social, por diagnósticos psiquiátricos e psicológicos. Essa foi uma das formas de estigmatizar os jovens, fazendo avaliações quanto a sua personalidade, classificando-os por meio de critérios subjetivos por padrões de normalidade, qualificando-os em três categorias: bandidos, futuros bandidos ou não bandidos (bons, duvidosos e maus). O Juizado de Menores era incumbido de julgar casos de crianças e adolescentes com abandono moral ou material. Entendendo-se como abandono um significado amplo, ora exposto pelas palavras de Dr. José Maria de Freitas: Menores moralmente abandonados, são crianças cuja a característica comum é a de terem crescido fora de uma influência educativa, privadas de uma iniciação positiva na conquista dos valores da cultura (MALHEIROS, 1952, p. 28). Esse Juizado de Menores teve como seu primeiro titular o Dr. José Cândido de Albuquerque Mello Mattos (1864-1934), a quem foi incumbida a tarefa pelo Ministro da Justiça da época de elaborar da melhor forma um documento legal que orientasse o trabalho com crianças e adolescentes. Esse documento concluído deu- 21 Destaca-se que essa ideologia ainda permanece nos dias atuais por meio do discurso popular. E através desse se faz a critica ao ECA quando da proibição do trabalho à menores de 16 anos, sendo aceito a partir de 14 anos na condição de aprendiz. 37 se o nome de Código de Menores (1927) ou também popularmente chamado de “Código Mello Matos”. Também nesse período houve a criação, pelo decreto nº. 16.272/1923, do “Regulamento da Assistência e Proteção aos Menores Abandonados e Delinqüentes”. Em 1935 foi criado em São Paulo o Serviço Social de Assistência e Proteção ao “menor”, ligado à Secretaria da Justiça e Negócios do Interior. Em seguida, em 1937, no Governo de Getúlio Vargas, outorga-se a Nova Constituição que previa a assistência à infância e à juventude. Em 19 de novembro de 1938 criou-se o Decreto nº. 9.744 que reorganizou o Serviço Social de Menores, subordinado à Secretaria de Justiça. Este Decreto atribui ao Serviço Social de Menores a incumbência de reorganizar e executar no Estado o Serviço Social de Menores Abandonados e Delinqüentes. Cabia-lhe entre outras as seguintes atribuições: 1- Acompanhar as conquistas científicas referentes as finalidades do serviço. 2- Fiscalizar o funcionamento, administrativo, médico- pedagógico dos estabelecimentos de amparo e reeducação dos menores. 3- Recolher temporariamente os menores sujeitos a investigação e processo nos termos da respectiva legislação. 4- Receber, distribuir e sempre que necessário, redistribuir pelos estabelecimentos do serviço os menores devidamente julgados pela justiça de menores. 5- Amparar os menores de 21 anos, egressos de estabelecimento do serviço, ou por êste fiscalizados, auxiliando-os em seu reajustamento. 6- Proporcionar a Justiça de Menores cooperação necessária a boa execução da liberdade vigiada. 7- Exercer vigilância sobre os menores nos termos da respectiva legislação. 8- Propor a autoridade competente o desligamento a liberdade vigiada, bem como autorização para entrega de menores à pessoas idôneas sob/soldada ou outras condições. 9- Proceder aos exames referentes ao estado físico, mental, social e econômico dos pais, tutor ou pessoa sob cuja vivem os menores. (MALHEIROS, 1952, p.19-21) Em 1941, houve a implantação de outro Código Penal que reduzia a maioridade de 21 anos para 18 anos, alterando-se assim o Código de Menores de 1927. Outro acontecimento destacável ocorrido neste mesmo ano foi a implantação do Serviço de Assistência ao menor SAM – lei n.º 3799/41, como uma Política 38 Pública Federal e vinculado ao Ministério da Justiça. Este foi criado em meio à efervescência do Estado Novo, tido como Estado Social. O SAM tinha como missão amparar, socialmente, os “menores” carentes, abandonados e infratores, centralizando a execução de uma política de atendimento, de caráter corretivo, repressivo - assistencial em todo território nacional. Na verdade, o SAM foi criado, para cumprir as medidas aplicadas aos infratores pelo juiz, tornando- se mais uma administradora de instituições do que, uma política de atendimento ao infrator (LIBERATI, 2002, p. 60). O SAM ficou famoso pela sistemática aplicação de métodos violentos e repressivos, sem considerar uma metodologia que primasse pelo desenvolvimento pessoal e social dos adolescentes. Este funcionava como um sistema penitenciário, baseado na internação total tanto para infratores como para abandonados e carentes. O que os diferenciava era o local e a instituição em que cada um era internado. Após inúmeras denúncias este foi julgado e instinto em 1961. A orientação do SAM é, antes de tudo, correncional-repressiva, a seu sistema baseava-se em internatos (reformatórios e casa de correção) para adolescentes autores de infração penal e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para os menores carentes e abandonados. Estava lançado o embrião do que seria mais tarde a FUNABEM, berço de todas as FEBEMs (SARAIVA, 2005, p. 42-43). Neste período vigorava a idéia de que a internação era natural, mascarada pelo discurso de que assim esses jovens estariam longe de toda a forma de indução à delinqüência e a marginalidade. Porém, o que estava por traz disso era o objetivo de tirar de circulação os indesejados, de limpar as ruas, retirando aos olhos da sociedade essa “calamidade”. Diante das profundas transformações socioeconômicas dos anos 1950-1960, com a consolidação da sociedade urbano-industrial brasileira (iniciada a partir de 1930) e com a implantação de um governo militar em 1964, o governo resolveu administrar o “problema do menor” sob o manto da ideologia da Segurança Nacional por meio da PNBEM. Para manter o controle da sociedade o governo militar se apoiou no aparato repressivo incluindo perseguições, torturas e mortes; criou-se ... [...] uma gestão centralizadora e vertical, baseada em padrões uniformes de atenção direta implementados por órgãos executores inteiramente uniformes em termos de conteúdo, método e gestão. O 39 órgão nacional gestor desta política passa a ser a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor), e os órgãos executores estaduais eram as FEBEMs (fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor) (SARAIVA, 2005, P. 47). Ou seja, uma Política de Estado que veio a romper com o imperativo assistencialista de entidades particulares que historicamente tomaram para si o atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, muitas vezes embasadas por princípios religiosos e da solidariedade e não por princípios de direito e de justiça social. A sede da FUNABEM localizava-se no Rio de Janeiro, fato que aponta ainda para a grande centralidade dessa cidade como recente ex-capital do Brasil. Além dos prédios e equipamentos apossados do SAM, também herdou as práticas repressivas “adoçadas” pela repressão do regime militar. A construção dessa Fundação foi orientada, a princípio, pelo Código de Menores de 1927 e em seguida pelo Código de Menores de 1979. Discursivamente a proposta institucional assegurava uma série de benefícios (alguns subjetivos), considerados básicos, tais como: saúde, amor, compreensão, educação, recreação e segurança social. No entanto, a exemplo das organizações citadas anteriormente, a sua prática afirmava exatamente o oposto. A execução das normatizações postas pela PNABEM era feita em Unidades espalhadas pelos estados. Segundo Altoé (1993) algumas Unidades eram chamadas de “escolas/colégios”. Eram linhas de ação (em âmbito forma/legal e não efetivamente na prática) da FUNABEM: A ação da FUNABEM especificar-se-ia, então, em duas linhas – terapêutica e preventiva -, visando a reintegrar os menores marginalizados e agir sobre os ambientes marginalizantes, já que é impossível agir sobre todas as variáveis que compõem o grupo social marginalizado/marginalizante (FUNABEM, 1976, p. 37). A característica da linha terapêutica era fazer junto ao jovem um trabalho de avaliação, diagnóstico e plano de tratamento, uma ação de cunho positivista de tratamento do sujeito enquanto uma patologia, da qual Violante (1984) irá criticar, mais adiante em seus estudos, chamando tal prática de psicologização- psiquiatrização do adolescente. Incluía-se nessa avaliação sua família, bem como o meio social de onde ele provém. Essa linha era executada nas comunidades por meio de programas nos vários níveis de governo através da construção de Centros 40 Sociais e de Projetos Sociais. Conforme apontado por Malheiros (1952) os estudos de caso eram compostos por coletas de dados sob diversas dimensões como bio-psico-sociais- históricas e filosóficas. Formado pelas etapas de Estudo, Diagnóstico e Tratamento: ESTUDO Desde o primeiro atendimento que o técnico tem com o cliente, ele faz o estudo, diagnóstico e tratamento. O estudo deve obter dados sociais e psíquicos, internos e externos, objetivos e subjetivos. O técnico deve procurar conhecer a personalidade do cliente, sua situação, suas necessidades reais e potencialidades latentes. O estudo deve ser o mais completo possível, porque o estudo, dependerá o diagnóstico, e o tratamento do caso. Fica claro, pois que o estudo o é a coleta de dados os quais se fundamentará o diagnóstico (FEBEM, Síntese dos trabalhos realizados por este G.D.T., 1993, p. 1). DIAGNÓSTICO Características fundamentas do diagnóstico 1 Objetividade: ser prático e objetivo 2 O diagnóstico é interpessoal, isto é nunca considera a pessoa isoladamente, mas procura relaciona-lo com os seus problemas, com o seu meio, com o seu grupo, com seus familiares (FEBEM, Síntese dos trabalhos realizados por este G.D.T., 1993, p. 2). TRATAMENTO Desenvolver no cliente suas potencialidades e capacidades de auto- direção dos recursos meios. Objetiva mudança do cliente para melhor, procurando definir para bem tratar (FEBEM, Síntese dos trabalhos realizados por este G.D.T., 1993, p. 3). [...] 2- O tratamento deve ser individualizado. Para cada caso há um tratamento específico. Como na medicina se diz que há doenças, no Serviço Social se diz que não há problemas, mas pessoas com problemas, e assim sucessivamente (FEBEM, Síntese dos trabalhos realizados por este G.D.T., 1993, p. 4). Neste período, sob vigência dos Códigos de Menores de 1927 e posteriormente de 1979, a FUNABEM atendia crianças e adolescentes em situação de abandono, órfãos, de famílias carentes economicamente ou famílias “desestruturadas”, bem como o atendimento de jovens autores de atos infracionais. Dentre os seus objetivos destaca-se o caráter filantrópico e a equivocada idéia de supressão e substituição da família, pois ainda que suprisse, de forma precária, a alimentação, moradia e educação, não conseguiria substituir em hipótese alguma o amor. 41 Até então, a política oficial em relação às crianças e aos adolescentes pobres era definida pela Fundação Nacional do Bem- Estar do Menor – FUNABEM e pelas Fundações Estaduais do Bem- Estar do Menor – FEBEM (s), criadas a partir de 1964, sob inspiração da ideologia de Segurança Nacional. Centrada na institucionalização, no assistencialismo, na repressão, a política governamental do Bem- Estar do Menor negava a cidadania desta criança e deste adolescente, tornando-o “objeto de direitos”. A intervenção do Estado ocorre tendo em vista a transgressão das normas político-sociais que estes começavam a realizar na luta por sua sobrevivência, ameaçando o controle e a hegemonia exercidos pelo Estado. Neste momento, evidencia-se a necessidade de institucionalização de tais infratores, viabilizada pela lei de número 6.697, denominada “Código de Menor”, cujo objetivo é dispor sobre a assistência, proteção e vigilância dos “menores” (ROURE, 1996, p. 92). Os estudos realizados pela equipe da própria Fundação em 1976 apontaram uma prática discriminatória e marginalizadora contra crianças e adolescentes no interior das Unidades executoras dessa Política. Segundo consta nesse estudo, o jovem institucionalizado era denominado de “menor-problema-social”. De acordo com os dados colhidos nas Unidades da região metropolitana do Rio de Janeiro de 1964 a 1974, as crianças e adolescentes internados nessas Unidades se caracterizavam pelos seguintes aspectos sociais: Menor filho de pais subempregados (95%) Menor filho de mãe empregada doméstica (90%) Menor cujo pai abandonou a família (90%) Menor filho de pais separados, vivendo com o pai ou com a mãe (90%) Menor cujos pais não assumem seu papel (80%) (FUNABEM, 1976, p.18). A FUNABEM elege nesse período o termo “menor desassistido” para enquadrar adolescentes reconhecidos como carenciados ou de conduta anti-social. As Unidades tuteladas pela FUNABEM destinadas à “reeducação” e “ressocialização” de crianças e adolescentes foram marcadas pelo binômio assistencialismo/ repressão e objetivava, fundamentalmente, a punição como método para a disciplinarização. Em 1967 foi instaurado a Lei de Menores Infratores, alterada em 1969. Essa lei era caracterizada por medidas de proteção, assistência, vigilância e reeducação. Ditava que não poderia haver internação por prazo determinado e as medidas se 42 davam pelo critério da periculosidade. As medidas tinham um caráter sancionatório- punitivo, embora, discursiva e ideologicamente, se pretendesse a proteção assistencial. Na década de 1970 inicia-se um processo de descentralização do atendimento à infância e adolescência, ainda pautado pela Política Nacional do Bem Estar do Menor. No Estado de São Paulo é criada, em 1973, a Fundação Paulista de Justiça (Pró-Menor) pela Lei nº. 185, de 12 de dezembro de 1973 a qual caberia aplicar em todo o Estado as diretrizes e normas da Política Nacional do Bem Estar do Menor. Mais tarde em 1976, essa instituição passou a se denominar FEBEM – Fundação Estadual do Bem estar do Menor. Assim, através destas Unidades, a FUNABEM estendia seu trabalho pelas ramificações nos Estados e Municípios. A FEBEM é criada com o objetivo de “reintegração” por meio de uma ação assistencial-correcional. Seus objetivos eram: o abrigo; o tratamento e a educação do “menor” abandonado, carente e infrator; a prevenção de sua marginalização e a correção das causas dos “desajustamentos”. O contexto histórico ora retratado se materializa nas palavras daqueles que atuam diretamente com a questão da internação de adolescentes em conflito com a lei e confirmam a importância de se qualificar o debate acerca do contexto histórico. A antiga FEBEM surgiu na década de 70 na qualidade de uma Fundação, principalmente objetivada em um caráter educacional e assistencial. Ela abrigava crianças e adolescentes abandonados e em situação de risco, crianças vitimadas por violência familiar. Com o tempo, com o aumento da criminalidade, principalmente na faixa etária até os 18 anos, e também por determinação legal, na época o Código de Menores, a Instituição passou a ser responsável também pela ressocialização. Com isso, principalmente na capital, foram criados grandes complexos que acumulavam um número grande de Unidades e uma população muito alta de jovens, o que ocasionavam muitos tumultos, rebeliões, fugas e tudo isso ia negativando o nome da FEBEM (Entrevista com Diretor de Unidade). Mas o fato é que a FEBEM nasceu na década de 70 com o propósito de acolher menores em situação irregular e isso englobava tanto o adolescente em conflito com a lei quanto o adolescente carente, abandonado, órfão... E eles eram segregados, recolhidos no mesmo espaço. E a FEBEM nasceu numa visão meio megalomaníaca do Estado na época. Então foi construído uma unidade muito grande, com um projeto arquitetônico arrojado, com conjunto de piscinas, campo e quadras cobertos, enfim... Mas o programa socioeducativo, ou seja, o que fazer com o adolescente acolhido ali, foi perdendo o sentido ao longo dos anos, e perdeu totalmente o foco quando entrou em vigor o ECA, que obrigou o Estado a tratar de maneira diferente, 43 o carente, abandonado do adolescente em conflito com a lei... (Juiz da Infância e Juventude de Ribeirão Preto) Tendo o período militar como cenário para a constituição da FEBEM, a disciplina militar era aplicada no interior das suas Unidades, objetivando durante anos formar jovens para carreira militar. Assim, para alguns jovens a carreira militar foi uma influência da entidade. Ordem Unida era a designação para as práticas militares que foram introduzidas nos internatos, como marchar, usar uniformes e botas, atender aos toques de corneta, perfilar-se diante dos superiores, e a educação física, cunhada sob os moldes militares. (SILVA, 1997, p. 196) Silva (1997) ressalta, em sua pesquisa com alguns dos ex-internos desta instituição, as conseqüências da falta de preparação para o retorno à sociedade e da construção da chamada “identidade institucional”, a inserção de muitos na prática infracional e o processo de dependência desse indivíduo à vida institucional. Os anos passados no internato só servem para a vida no internato, não o preparam para a vida fora dos seus muros. É como sair de uma prisão, tendo entrado ainda criança e sem maiores referencias ou estrutura psicológica, para entender a experiência de internação. Em geral eles não entendem porque foram internados, nem porque estão saindo – a data de desligamento é vivida como arbitrária (ALTOÉ, 1993, p. 66 e 67). O jovem se deparava livre, mas ao mesmo tempo preso – como um refém da sociedade. Ele encontrava barreiras que o impediam de exercer sua liberdade e felicidade, enfrentando preconceitos e estigmas da sociedade que o impediam de obter melhores condições de vida. Ter sido aluno da FEBEM significava com freqüência ser “marginal”. Este estigma dificultava enormemente a sua inserção social e a sua realização como pessoa. Não chega a impossibilitar a chance de conseguir trabalho, mas com freqüência são acusados e responsabilizados por pequenos roubos no ambiente de trabalho. A obtenção de emprego se torna menos complicada quando eles omitem a informação, como muitos preferem, ou quando há alguma intermediação entre o empregador e o emprego – papel ocupado, por exemplo, pela C.A.P da FUNABEM. (ALTOÉ, 1993, p. 74) A marca que o internato deixa em muitos jovens “explode” ao serem 44 libertados. Toda violência, raiva e abandono por eles sofridos reflete no seu comportamento, acarretando a negação às normas e estimulando em muitos casos a criminalidade. Através de uma análise histórica do processo de institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil observou-se que a processo de institucionalização desenfreada foi uma prática violenta, na medida em que criminalizou, estigmatizou e afastou crianças e adolescentes de sua comunidade e de sua família. Condicionou- os em aglomeradas instituições que já nasceram falidas diante dos seus próprios princípios de isolar para “recuperar”, desintegrar para reintegrar à sociedade, entre outros princípios mascarados pelo discurso protetivo. Essas instituições foram palcos de violência física, psíquica e social. Quanto à massificação e despersonalização de crianças e adolescentes nestas instituições “correcionais”, observo-se que a vida institucional não proporcionava a emancipação destes. Os adolescentes, alguns já quase adultos, saiam e alguns ainda saem completamente alienados de sua própria história, com suas relações sociais, com suas possibilidades de se reinserir socialmente e de desenvolvimento de suas potencialidades, deficitárias. Observa-se, no funcionamento institucional, uma negação da existência da família e uma tentativa de assumir o seu papel, através da formação de um vínculo maior entre o aluno e a instituição. O internato passa, quase que exclusivamente, a representar a vida para o jovem, na medida em que nada mais lhe resta a não ser as vivências, enquanto aluno de colégio interno (ALTOÉ, 1993, p. 88). A implantação do ECA exigiu que a FEBEM passasse por mudanças para se adequar a nova lei, contudo, manteve um forte ranço do passado. A instituição tanto antes como FEBEM e hoje como Fundação CASA mantém princípios e diretrizes legais teoricamente constituídos. No entanto, ainda luta para escapar de uma tradição histórica, presente na instituição e também nas políticas sociais: a contradição entre o real e o ideal. O Brasil sempre se deparou com esta contradição: por um lado, adota posturas avançadas na legislação, acompanhando os principais avanços consagrados nos Tratados e nas Convenções internacionais, mas, por outro lado, essa mesma legislação avançada serve para mascarar e camuflar uma prática arcaica e discriminatória (SILVA, 1997, p. 71). 45 Apesar de terem sido desativados os famosos complexos (famosos no sentido negativo pelas diversas reportagens de suas rebeliões e outras problemáticas), ainda permanecem alguns resquícios do passado como o conjunto das três unidades de Ribeirão Preto que formam um verdadeiro complexo, estas abrigam uma média de 250 a 300 adolescentes, a maior delas, a UI-Ribeirão Preto, é o principal cenário para o presente estudo. Assim, frente a existência desse cenário, observa-se, além de uma situação de risco aos servidores, aos próprios adolescentes e para a sociedade de maneira geral, um desrespeito a um dos artigos do ECA (artigo 94) que versa sobre as obrigações das entidades de internação: III- Oferecer atendimento personalizado, em pequenas Unidades e grupos reduzidos; Outra marca do passado ainda persistente para os ex-internos da FEBEM e atual Fundação CASA é a ausência de muitos jovens quanto à expectativa de futuro e de preparação para o retorno à sociedade. Ainda é criada uma relação de tutela e dependência entre o interno e a instituição. 1.2 A medida de internação e sua base legal: do Código Mello Mattos ao SINASE As leis, historicamente, foram criadas com o objetivo de regulamentar a vida em sociedade. Contudo, estas se construíram refletindo os interesses hegemônicos (de classe) em detrimento da grande maioria da população. Elas têm por objetivos a harmonia e a correção das “disfunções” sociais. Na verdade foram mecanismos criados predominantemente pelos setores dominantes – ainda que absorvam certas demandas das camadas subalternas – em defesa do status quo e da propriedade privada. Com o nascimento de leis, surge também a noção de sujeito de direito (decorrente de mudanças econômicas e sociais do século XVIII), que está diretamente relacionada à noção de Estado, sobretudo com o surgimento das cidades. Deste século em diante ocorreram significativas mudanças nas formas de punição, especialmente no sistema judiciário, que passou a não mais homogeneizar 46 os delitos, diferenciando as punições e descentralizou o poder de punir (FOUCAULT, 1987). A sociedade estabelece rótulos e punições aos que infringem suas normas. Estas leis, envoltas por um caráter moralista cristão, resistem ao novo, às mudanças dos indivíduos, especialmente às profundas transformações do período efervescente que marca a adolescência. Por qualquer atitude de resistência, de inconformidade e de revolta eles são taxados como subversivos e “delinqüentes”. A história do direito da Criança no Brasil é lembrada por Wilson Donizeti Liberati (2002) a partir da regulamentação das atividades escravas com crianças, como a Lei do Ventre livre. Porém, essa lei não conseguiu êxito, pois as crianças continuavam sendo escravas já que seus pais também eram. O Código penal do Império (1830) e depois com o da República (1890) trouxeram em seus conteúdos artigos para a responsabilização dos “menores” por crimes e outras ações em contrario aos preceitos da sociedade. As legislações, em cada época de sua existência, imprimiam os valores de pequena parcela da sociedade detentora dos meios de produção. Para apreender o trabalho nos diferentes espaços sócio-ocupacionais cabe conhecer os aportes legais que o orientam. No caso da medida sócio-educativa de internação faz-se imprescindível conhecer principalmente o ECA, não perdendo de vista as demais legislações que antecedem e mesmo que complementam a luta pela efetivação de direitos desses usuários, entre elas Declarações Universais e internacionais sobre o Direito da Criança e do Adolescente, O Código de ética da profissão, Lei Orgânica da Assistência Social, Sistema Único de Saúde, SINASE e Plano Estadual de Atendimento sócio-educativo, Regimento Interno, entre outras. Atualmente, diante das circunstâncias mais contemporâneas, a Fundação tem que seguir alguns aspectos legais, previstos tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, no SINASE e também as Portarias do CONANDA, a questão dos Conselhos Municipais, tem que seguir a legislação ordinária e outras leis que reportam aos objetos de trabalho da Fundação (Entrevista com o Diretor de Unidade). As primeiras referências de Unidades para acolhimento e internação de jovens em conflito com a lei foram legitimadas pelo Código de Menores de 1927 (conhecido como “Código Mello Mattos”), instituído pelo decreto n. 17943-A em 12 de outubro de 1927, foi a primeira lei especifica a Criança e ao Adolescente, na 47 verdade a um seguimento de crianças e adolescentes, aqueles em sua maioria carentes afetiva e economicamente. Por meio desta legislação se constituiu, no Brasil, as primeiras bases jurídicas para a questão da infância. Alcançada por meio dos esforços do jurista José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, trouxe consigo os primeiros princípios da Doutrina da “Situação Irregular” e a idéia de que os jovens e suas famílias possuíam “patologias sociais” que precisavam sofrer a intervenção do Estado através do sistema de justiça. Desta forma, surgiu para atender, fundamentalmente, crianças e adolescentes pobres, vítimas da miséria e exclusão social. São crianças e adolescentes abandonados, moradores de rua, “delinqüentes” e aqueles advindos de famílias pobres “desestruturadas”, etc. - todos condicionados pela designação “menores”. Este código generalizava todos os antigos rótulos a que alguns jovens eram classificados (delinqüentes, vadios, transviados, libertinos, etc,) pela denominação “menor”22. O Código não se dirigia à totalidade dos menores de 18 anos, mas especificamente aos abandonados e delinqüentes. O discurso legal, dirigido ao controle social, buscava enquadrar aqueles que se encontravam privados do direito à cidadania. [...] O discurso legal enquadrava os menores provenientes de famílias com dificuldades ou sem acesso à alimentação, educação, habitação, saúde, entre outros direitos, portanto, os provenientes da camada da população sem acesso a condições dignas de cidadãos. (FÁVERO, 1999, p. 49-50) Durante a vigência do “Código de Menor”, seus princípios de vigilância e proteção acabaram por transformar crianças e adolescentes em indivíduos dependentes e submissos ou em marginais potencializados. O princípio norteador desta prática era a preocupação com a possibilidade de transgressão do “poder jurídico” em que as leis são definidas objetivando a consolidação desta sociedade (ROURE, 1996, p. 93). Malheiros ressalta a importância dos Assistentes Sociais na reformulação legal para a constituição do Código de Menores. À Comissão elaboradora do Código de Menores foram enviadas várias sugestões. Destas não perderam oportunidade as sugestões apresentadas por Dona Odila Cintra Ferreira, Dona Helena Iracy Junqueira, Dona Albertina Ramos e Dr. José Pedro Galvão de 22 Esse termo, “menor”, firmou-se no Brasil no século XX, especialmente com a instituição do Código de Menores de 1927 e, ainda hoje, mesmo após o estabelecimento do ECA, se encontra presente de forma negativa e taxativa nos vários discursos populares, seja de pessoas leigas, da mídia formadora de opinião e mesmo por profissionais que atuam na área da infância e adolescência, sobretudo na área jurídica. 48 Souza, por intermédio do ilustre professor Noé Azevedo, relativas ao Serviço Social, e do Dr. Pedro Xisto, por um Código de Família (MALHEIROS, 1952, 13-14). O Código de Menores “Mello Mattos” norteou durante mais de 4 (quatro) décadas as ações das instituições ditas correcionais. São exemplos o SAM - Serviço de assistência ao Menor- fundado em 1941 e, em seguida, a FUNABEM – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor- criado em 1964 (já indicados no item 2.1.). Em 1979 as Unidades da FEBEM tiveram que se readaptar aos preceitos legais do Código de Menores, instituído pela Lei n. 6.697/79. De caráter tutelar e de marginalização da pobreza, esta lei também se guiou pela Doutrina da “Situação Irregular”, reforçando a discriminação de crianças e de adolescentes pobres através do termo “menor”, endossando a idéia dos “bem nascidos” e dos “abandonados”, em que para os primeiros, o direito de família do Código Civil e, para os segundos, em “situação irregular”, o Código de Menores e o Juizado de Menores. Esta lei reforça a idéia de incapacidade do “menor” e delega ao juiz de menores poderes ilimitados na intervenção da vida de crianças e da família como um todo, nas palavras de ironia de Saraiva (2005) “um bom pai de família”. A decisão de internar ou não parte de uma avaliação subjetiva do juiz, muito mais do que a apuração e a avaliação das condições de vida a que são expostos estes jovens. [...] a grande maioria da população infanto juvenil recolhida às entidades de internação do sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e adolescentes, “menores”, que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira. Estava consagrado um sistema de controle da pobreza [...] (SARAIVA, 2005, p. 51). Outro aspecto a se destacar deste Código, que se refere diretamente às Unidades de internação, é o de estabelecer a internação como a última medida, a mais grave, mas sem período determinado para sua finalização. A duração da medida estava subordinada à ”recuperação” do “menor” que seria avaliada pelo Juiz diante das informações recebidas dos técnicos e do estabelecimento onde se encontrava o menor, além do parecer do Ministério Público (LIBERATI, 2002, p.89).  Seus princípios são, teoricamente, os processos educativo, curativo e protetivo. No entanto, de maneira distorcida, a prática das instituições ainda 49 se focava em retirar o jovem ”problema social” do convívio sob o pretexto de educá-los e curá-los da “patologia social” de que eram portadores.  Para a compreensão do percurso para a consolidação da Doutrina da Proteção Integral e da construção do Direito Penal Juvenil, os estudos de Saraiva (2005) e Furlan (2002) são pertinentes.  Saraiva (2005), embasado por outros pesquisadores, trata a construção do Direito Penal Juvenil em três etapas:  de caráter penal indiferenciado;  de caráter tutelar;  de caráter penal juvenil.  O caráter penal indiferenciado, datado do século XIX até a primeira década do século XX, é marcado pelo caráter retribucionista cuja idéia e a de que o sujeito está devendo à sociedade por seu ato cometido e, desta forma, ele deverá pagá-la através da sua privação de liberdade. Trata-se de um tratamento quase que indiferenciado entre adultos e crianças, distinguindo-se apenas o período de duração da internação (reduzido para crianças). Sua marca foi o recolhimento de crianças em estabelecimento de adultos, com aprofundamento da violência, tanto de ordem sexual, física e psíquica.  Sobre este período Saraiva (2005) faz uma comparação entre o Código Napoleônico e os Códigos Civis brasileiro de 1916 e o de 2002, apontando uma característica entre eles: a indiferença entre a responsabilidade civil para com a criança e um cachorro, em que, de acordo com este autor, a “responsabilidade é a do dono”. [...] do ponto de vista da responsabilidade civil, não se faz exagero dizer que o século XIX iniciou (e até hoje é assim) fazendo muito pouca distinção entre uma criança e um cachorro: a responsabilidade civil é a do dono (SARAIVA, 2005, p. 26, destaque e grifo do autor). Em relação ao caráter tutelar, originário dos Estados Unidos com expansão para outros países no inicio do século XX, este é caracterizado pela indignação diante da promiscuidade que permeava a prática de internação de crianças em um mesmo estabelecimento de adultos. Sobre a influência de certa tradição positivista, objetivava a segregação daqueles que eram detentores das chamadas “patologias 50 sociais”. Assim, crianças vítimas da “questão social”23 eram isoladas com a proposta de serem recuperadas, fortalecendo, com isso, a idéia de construção de instituições voltadas à correção destas “anomalias”. Já a última etapa, de caráter penal juvenil consolidada no século XX, é reflexo