UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM ANA LETÍCIA SAN JUAN ADESÃO DO FAMILIAR AO TRATAMENTO DO ADOLESCENTE USUÁRIO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL BAURU 2018 ANA LETÍCIA SAN JUAN Adesão do familiar ao tratamento do adolescente usuário de substâncias psicoativas em um centro de atenção psicossocial Dissertação apresentada como requisito à obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Programa de Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, linha de pesquisa de Desenvolvimento - Comportamento e Saúde, sob orientação da Professora Adjunta Drª Carmen Maria Bueno Neme. BAURU 2018 San Juan, Ana Letícia. Adesão do familiar ao tratamento do adolescente usuário de substâncias psicoativas em um centro de atenção psicossocial / Ana Letícia San Juan, 2018 158 f. Orientador: Carmen Maria Bueno Neme Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2018 1. Adolescente. 2. Familiar. 3. Substâncias psicoativas. 4. Adesão I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. FOLHA DE APROVAÇÃO AGRADECIMENTOS Agradeço a minha família pelo suporte constante nos momentos de formação pessoal e profissional. Aos meus pais, Maria José e Antonio, pela vida, pelos ensinamentos, mas, principalmente, pelo tanto que sei e o muito que ainda terei de descobrir. Ao meu irmão, Fábio, pela convivência mais alegre e aconchegante do que qualquer outra e modelo de ser humano íntegro, bom e sedento pelo conhecimento. Ao meu irmão, Érico, pelos momentos de conversa inteligente e por ser aquele com quem aprendo que o respeito pelo outro começa com os seus. À Catarina e aos sobrinhos queridos pelos dias tão doces e felizes nos quais passo em sua presença. À professora Carmen, nossa querida Pilé, pelos aprendizados constantes e possibilidade de enriquecimento de minha formação profissional e pessoal. Pelo suporte de sempre, mas, principalmente, pelo modelo de busca por conhecimento. Minha admiração a sua força! Ao professor Érico, pessoa na qual consegui amparo, motivação, mas, principalmente, que passei a admirar como ser humano por meio de sua convivência nesse período do mestrado. Serei eternamente grata a você pelos caminhos sugeridos e pelo apoio tão cuidadoso. À professora Mônica, que empaticamente aceitou o convite para contribuir com meu trabalho mesmo diante de limitações. Seu profissionalismo e empatia me ensinam a cada dia que pessoa quero ser. Obrigada. Ao meu querido amigo Márcio Magalhães, com quem aprendo todos os dias e que me ensina que a amizade é uma via de mão dupla e o companheirismo é uma construção de duas pessoas dispostas a conviver. À minha eterna amiga Gisele, pessoa de caráter admirável e que me mostra que, apesar da distância, os amigos são pessoas com quem não precisamos usar máscaras ou teatralizar, precisamos apenas ser. Sua amizade me é muito especial. À querida amiga e, por acaso, chefe, Josiane Carrapato, com quem divido minhas angústias existenciais e profissionais, além das teorias advindas dos inúmeros livros que gostamos de compartilhar para quem sabe, sermos melhores profissionais e melhores pessoas. Obrigada pelas gentilezas, pelos ensinamentos e pelos momentos divertidos. Aos meus colegas de CAPS, pessoas guerreiras e dispostas, que desejam fazer a diferença mesmo que seja para um só paciente. Tenho orgulho de ter participado do desafio de formar esse serviço com vocês. Finalmente, aos adolescentes e familiares do CAPS AD III. Pelo desafio que nos colocam todos os dias. Vocês nos tornam desejosos por aprendizados que possam servir de subsídio para um serviço de qualidade e, principalmente, com mais humanidade. Minha admiração pelo esforço de viver todos os dias, apesar da vida. “A arte de viver é simplesmente a arte de conviver... Simplesmente, disse eu? Mas como é difícil!” (Mário Quintana, 1994). SAN JUAN, A. L. Adesão do familiar ao tratamento do adolescente usuário de substâncias psicoativas em um centro de atenção psicossocial. 2018. 158 f. Dissertação (Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem) - UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2018. RESUMO O consumo de substâncias psicoativas entre adolescentes é uma grande preocupação para estudiosos, governantes, profissionais da saúde e da educação. Este trabalho teve como objetivo investigar alguns fatores que possam influenciar na não adesão ao tratamento dos familiares de adolescentes usuários de substâncias psicoativas que frequentam um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas Infantojuvenil de um município do interior de São Paulo. Nesta instituição, foi realizado levantamento dos prontuários dos pacientes atendidos no período de agosto de 2014 a junho de 2017 para a obtenção do percentual de não adesão das famílias ao tratamento dos adolescentes e propostas entrevistas clínicas e aplicação do instrumento projetivo “Desenho da Família com Estória" aos adolescentes e a pelo menos um familiar responsável pelos adolescentes. Os dados obtidos dos prontuários foram descritos e analisados por meio da técnica de análise de conteúdo e os “Desenhos da Família com Estória”, por meio de Protocolo de Análise, com interpretação baseada nos pressupostos psicanalíticos. Os resultados indicaram que de 655 prontuários, apenas 43 estavam ativos no período analisado, sendo que desses, 12 adolescentes não eram acompanhados pelos familiares, representando 30% dos familiares. Foram encontrados neste estudo elementos como novos arranjos familiares; uso de substâncias psicoativas por pelo menos um dos genitores; conflitos, agressões físicas e/ou verbais entre genitores e adolescentes; dentre outros aspectos. Nas entrevistas clínicas foram observadas dificuldades objetivas dos familiares em comparecer aos atendimentos, mas, também, a presença de conflitos e ansiedades familiares possivelmente depositadas no adolescente e tornando-o bode-expiatório familiar. A partir dos achados do estudo, foi possível concluir que pode se fazer útil adotar na rotina dos CAPS AD Infantojuvenil a metodologia de avaliação dos adolescentes e familiares empregada nessa pesquisa, sendo necessário abarcar a complexidade do fenômeno da não adesão ao tratamento nos próximos estudos. Palavras-chave: Adolescentes; Substâncias psicoativas; Família; Adesão; Centro de Atenção Psicossocial. ABSTRACT The consumption of psychoactive substances among adolescents is a major concern for scholars, government officials, health professionals and education. This study aimed to investigate some factors that may influence the non adherence to the treatment of family members of adolescents who use psychoactive substances attending a Psychosocial Care Center to Alcohol and Drug for Child and Adolescent of a municipality in the interior of São Paulo. In this institution, a survey was carried out of the medical records of the patients treated from August 2014 to June 2017 to obtain the percentage of non-adherence of the families to the treatment of adolescents and proposed clinical interviews and application of the projective instrument “Desenho da Família com Estória” to adolescents and to at least one family member responsible for adolescents. Data were analyzed through the content analysis technique and the “Desenho da Família com Estória", through Analysis Protocol, with interpretation based on psychoanalytical assumptions. The results indicated that of 655 medical records, only 43 were active in the analyzed period, of which 12 adolescents were not accompanied by their relatives, representing 30% of the family members, such as new family arrangements, psychoactive substance use least one of the parents, conflicts, aggression physical and/or verbal relations between parents and adolescents, among other aspects. In the clinical interviews, there were objective difficulties of the relatives in attending the visits, but also the presence of family conflicts and anxieties possibly deposited in the adolescent and making him a family scapegoat. Based on the findings of the study, it was possible to conclude that it is useful to adopt the adolescents and family assessment methodology used in this research in the routine of the Psychosocial Care Center to Alcohol and Drug for Child and Adolescent , and it is necessary to cover the complexity of the phenomenon of non adherence to treatment in the next studies. Keywords: Adolescents; Psychoactive substances; Family; Adherence; Center for Psychosocial Care. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................. 12 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 14 2 REVISÃO DA LITERATURA ............................................................... 16 3 OBJETIVOS ............................................................................................ 31 3.1 Objetivo Geral .................................................................................... 31 3.2 Objetivos Específicos ......................................................................... 31 4 MÉTODO ................................................................................................ 32 4.1 Participantes ...................................................................................... 32 4.2 Local .................................................................................................. 33 4.3 Procedimento...................................................................................... 33 4.3.1 Coleta de dados ........................................................................ 33 4.3.2 Instrumento para coleta de dados .............................................. 35 4.4 Análise de dados ................................................................................ 37 5 RESULTADOS ...................................................................................... 39 5.1. Adolescentes e familiares participantes do estudo qualitativo: dados sociodemográficos 44 5.2 Adolescentes e familiares participantes do estudo: dados das entrevistas de acolhimento obtidos dos prontuários ......................... 46 5.3 Adolescentes e familiares: dados da entrevista inicial para o estudo 49 5.4 Dados dos Desenhos da Família com Estórias ................................ 58 5.5 Síntese dos casos estudados ............................................................. 59 5.6 Feedback das entrevistas ................................................................... 99 6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...................................................... 100 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 107 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 111 ANEXOS 118 APÊNDICES 149 12 APRESENTAÇÃO A principal motivação para a realização deste trabalho sobre a não adesão de familiares de adolescentes usuários de substâncias psicoativas em tratamento, relaciona- se a minha atuação como psicóloga em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III Infantojuvenil, especialmente em relação às famílias dos adolescentes atendidos no serviço, que se queixam quanto ao consumo de drogas deles, e que é atribuído apenas ao adolescente, sem considerar outros aspectos e contextos de vida, incluindo as relações familiares. A dificuldade de muitos pais de se perceberem na dinâmica da relação “adolescente-uso de drogas” acarreta dificuldades também para as intervenções terapêuticas e, possivelmente, para a adesão daqueles ao tratamento. Desta forma, influencia também na adesão dos adolescentes ao tratamento. Os pais são modelos de comportamento para eles, e sua participação no tratamento também é uma demonstração de afeto e cuidado. A partir da relação profissional estabelecida com esses pais, muitas indagações surgem no cotidiano de minha atuação como psicóloga e a principal delas refere-se à questão da adesão dos pais ao tratamento: por que alguns pais de adolescentes atendidos nos CAPS Álcool e Drogas Infantojuvenil não aderem aos atendimentos? A literatura aponta uma relação importante entre o consumo de drogas por adolescentes e o ambiente familiar. Contudo, existe um predomínio de estudos epidemiológicos sobre o tema que não aprofundam essa questão, visto que não abarcam os aspectos subjetivos envolvidos, dificultando a compreensão do fenômeno. Parece consenso entre os estudiosos que o contexto do consumo de drogas não pode ser atribuído à droga em si, pois ele é multideterminado, no entanto, ainda é comum no cotidiano das instituições, especialmente as educacionais e familiares, muitas vezes reforçada pelas mídias, a culpabilização do adolescente pelo consumo da droga, o que dificulta, muito, as intervenções dos profissionais que trabalham com essa demanda. Considerando estas questões, o presente estudo se propôs a investigar o problema da não adesão ao tratamento das famílias de adolescentes atendidos em um CAPS Álcool e Drogas Infantojuvenil de um município do interior do estado de São Paulo. Nesse sentido, a presente pesquisa visa trazer contribuições para os profissionais e instituições que trabalham com os adolescentes desse perfil, subsidiando intervenções mais eficazes 13 para as famílias e adolescentes nesse tipo de atendimento, com base na compreensão do fenômeno, além de contribuir para a melhoria do serviço como um todo e para os conhecimentos científicos neste assunto. 14 1 INTRODUÇÃO O consumo de substâncias psicoativas entre os adolescentes tem-se configurado como uma grande preocupação no Brasil e no mundo, tanto na comunidade científica, quanto entre os profissionais de saúde e educação, governantes e pessoas em geral, levando a importantes esforços na produção de estudos para compreender esse fenômeno (PRATTA; SANTOS, 2009). A adolescência é um período de importantes transformações para o jovem em que é comum as experiências com os pares e a tendência à grupalização, as mudanças constantes de humor e o afastamento dos pais, dentre outros aspectos. Isso acontece na tentativa de se diferenciar e estabelecer sua própria identidade como apontam Aberastury e Knobel (1981). É nesse contexto de inúmeras transformações que o adolescente experimenta o novo e, muitas vezes, onde se dá o encontro dele com as drogas, muito comum nos dias atuais. O consumo de drogas pelos adolescentes é considerado uma preocupação pelos inúmeros problemas associados, dentre eles a possibilidade de contágio pelas DST/HI/AIDS. A contaminação por HIV entre os jovens de 15 a 19 anos mais que triplicou no período de 2005 a 2014, passando de 2,1 para 6,7 casos por 100 mil habitantes (BRASIL, 2015). Um dos motivos relacionados a esse aumento é a dificuldade do uso de preservativo pelos jovens, muitos dos quais não o fazem quando estão sob efeito de álcool e outras drogas. O tratamento de consumo de drogas na adolescência é disponibilizado pelo SUS nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), incluindo os CAPS AD (Álcool e Drogas) III, dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Esses serviços têm por objetivo proporcionar a atenção integral e contínua a pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool, crack e outras drogas, se constituindo em lugares de referência de cuidado e proteção para usuários e familiares em situações de crise e maior gravidade, como recaídas, abstinência, ameaças de morte, dentre outras. Além disso, os CAPS AD III devem produzir, em conjunto com o usuário e seus familiares, um Projeto Terapêutico Singular que possibilite a ampliação das possibilidades de vida e faça a mediação de suas relações sociais; também deve considerar a promoção da inserção, proteção e suporte de grupo para seus usuários, no processo de reabilitação psicossocial; os CAPS devem se orientar pelos princípios da Redução de Danos (BRASIL, 2013). 15 Considerando a complexidade do fenômeno do consumo de drogas, a família do adolescente pode ser fator de proteção para seu desenvolvimento ou fator de risco, dependendo das questões individuais de cada elemento que compõe o núcleo familiar e que contribuem para uma determinada dinâmica entre seus membros. Essa dinâmica pode ser compreendida a partir das teoria das relações de objeto proposta por Melanie Klein (1975/2006). Considerando que o uso de drogas pelos adolescentes também está relacionado com as questões familiares, é de suma importância incluir as famílias no tratamento dos adolescentes usuários de drogas. Quando os adolescentes fazem tratamento nos CAPS, a não aderência dos familiares aos atendimentos pode contribuir para que os resultados esperados dos trabalhos não sejam atingidos, uma vez que os adolescentes são dependentes de um sistema familiar que é sua rede de apoio original. O que se observa é que parece existir uma baixa adesão de familiares ao tratamento dos adolescentes usuários de substâncias psicoativas e a dificuldade de adesão dos familiares pode contribuir para a não adesão dos adolescentes ao serviço e, consequentemente, o fracasso no tratamento. 16 2 REVISÃO DA LITERATURA A inserção dos adolescentes no universo das drogas é um fato para o qual familiares, estudiosos do assunto e profissionais precisam atentar visto que é realidade cada vez mais comum em nosso cotidiano. Por causa da potencialidade que o consumo de drogas tem de trazer problemas ao desenvolvimento desses jovens pelos riscos associados, faz-se necessário reconhecer a complexidade dos aspectos que envolvem a questão ao estudá-la. O termo “substâncias psicoativas” pode ou não ser empregado como sinônimo de “drogas” quando se fala do fenômeno do consumo de substâncias e ambos são termos empregados com significados específicos de acordo com a proposta do estudo. De acordo com Pollo-Araújo e Moreira (2008), a Organização Mundial de Saúde aponta que o termo “droga” tem uso variado, referindo-se na Medicina a qualquer substância que tenha potencial para prevenir ou curar doenças ou melhorar o bem-estar físico ou mental; já no uso popular, o termo “drogas” se refere às substâncias de consumo proibido, como a maconha, cocaína e heroína. Para Szupszynski e Oliveira (2008), substância psicoativa é aquela que, independentemente da via de administração, provoca alterações no humor, na consciência, na sensopercepção, na cognição e na função cerebral por sua ação no sistema nervoso central. Considerando a diversidade da empregabilidade dos termos “substâncias psicoativas” e “drogas” na literatura pesquisada, neste estudo o termo “drogas” é utilizado como sinônimo de “substâncias psicoativas”. O consumo de substâncias psicoativas pode ser considerado em termos de uso, abuso e dependência. Caldeira (1999) refere que usar drogas significa consumir algum tipo de substância psicoativa de forma eventual ou recreacional, como no caso do consumo de bebidas alcoólicas em certas ocasiões, já o abuso de drogas diz respeito ao consumo excessivo de qualquer substância psicoativa, que acarrete danos físicos, psicológicos e/ou sociais para o indivíduo. A questão do consumo problemático está no prejuízo causado pela droga em alguma esfera da vida do indivíduo e perda de controle sobre o consumo, considerando- se, portanto, a frequência e a quantidade da substância usada menos importantes nesse diagnóstico. Para Niel, Moreira e Silveira (2009) a diferença entre o abuso e a dependência de substâncias está no fato de que o abuso de substâncias psicoativas leva a algum prejuízo social, escolar, profissional, familiar ou legal na vida do indivíduo; na 17 dependência das substâncias são observados prejuízos, porém a perda de controle se faz evidente. O fenômeno do consumo de substâncias psicoativas é estudado por diversas ciências: antropologia, sociologia, política, educação e psicologia, dentre outras (SCHENKER, 2008), as quais trazem compreensões distintas e variadas sobre a questão. Pillon e Luis (2004), por exemplo, apontam a existência de alguns modelos explicativos para o consumo de substâncias psicoativas, que compreendem os Modelos Ético Legal, Moral, Médico ou de Doença, Psicológico ou Psicossocial, e Sociológico ou Sociocultural. Para as autoras, o Modelo Ético Legal localiza as causas do consumo de substâncias psicoativas nos comportamentos antissociais e/ou imorais de certos grupos de transgressores, que devem sofrer sanções legais pelos danos provocados às pessoas. O Modelo Moral considera que os indivíduos são responsáveis pelo consumo das substâncias e, portanto, as mudanças no padrão de consumo viriam de uma motivação apropriada. Já o Modelo Médico ou de Doença baseia-se na suposição de que a doença tem origens ou manifestações físicas e, por isso, necessita de tratamento médico ‒ utilizado na Psiquiatria e consolidado com o Manual Diagnóstico de Doenças (DSM) - IV (APA, 2014) e com o Código Internacional de Doenças (CID) – 10 (OMS, 2007). O Modelo Sociológico ou Sociocultural compreende a problemática das drogas como resultado da influência do meio cultural, suas crenças, valores e atitudes e o Modelo Psicológico ou Psicossocial inclui os modelos do aprendizado social, da interação familiar e dos traços da personalidade do indivíduo. Além dos modelos explicativos para o uso de drogas evidenciado por Pillon e Luis (2004), outro modelo é considerado na explicação para o consumo de substâncias. O Modelo Biopsicossocial, por exemplo, considera a dependência de drogas um produto do encontro de três elementos: o sujeito que faz uso da substância, a própria substância e o ambiente no qual esse sujeito está inserido. Segundo Rezende (2008), um dos importantes teóricos que adota esta perspectiva é Claude Olievenstein, médico psiquiatra francês cujo pensamento se difundiu enormemente pelo Brasil influenciando os profissionais da área com suas ideias a respeito da dependência de drogas. Olievenstein utiliza o termo “toxicomania” para se referir à dependência de drogas, que será reproduzido aqui. Cardoso et al (2014) apontam que Olievenstein considera que a toxicomania deve ser entendida numa tríade composta pela realidade de três elementos: do ambiente onde o consumo acontece, da droga (que é o produto que assume a função subjetiva) e do 18 indivíduo (que, de forma consciente ou não, toma uma posição diante desse consumo). Isso quer dizer que a dependência de drogas deve ser entendida como um fenômeno que forma um sistema em que cada fator influencia e, ao mesmo tempo, é influenciado pelos outros. Nesta perspectiva biopsicossocial de Oliveinstein, a tríade droga-sujeito-ambiente se altera continuamente, uma vez que as drogas, os sujeitos e os ambientes mudam ao longo do tempo, portanto, a clínica da toxicomania é a clínica da intensidade. Nesse sentido, um olhar médico, que busca a causalidade, não daria conta desse problema complexo, apenas o faria um olhar multidisciplinar. O consumo problemático de álcool e outras drogas tem sido preocupação no mundo todo. De acordo com o “Relatório Mundial sobre Drogas” de 2015, elaborado pela Organização das Nações Unidas, é estimado que um total de 256 milhões de pessoas, ou 1 entre 20 pessoas com idades entre 15 e 64 anos, usaram drogas ilícitas no ano de 2013, sendo que 1 entre 10 usuários tiveram um problema com drogas, sofrendo com desordens ou dependência naquele ano. O montante de pessoas com problemas com drogas representaria cerca de 27 milhões de pessoas, ou quase toda a população de um país do tamanho da Malásia (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2015). O consumo de substâncias psicoativas também tem se estendido aos adolescentes, tornando-se uma preocupação. Um dos levantamentos sobre o consumo de drogas entre estudantes do Ensino Fundamental e Médio das redes Públicas e Privadas das capitais brasileiras e Distrito Federal realizado pela Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD) em parceria com o Centro Brasileiro de Informações sobre as Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (CEBRID) se deu em 2010. Nesse levantamento, foi demonstrado que 30,6% dos alunos de 10 a 12 anos, sem levar em conta o tipo de escola, declararam ter feito consumo na vida de álcool; 3,5%, de tabaco; 5,9%, de inalantes; 2,6%, de ansiolíticos; 1,9%, de energéticos com álcool e 1,3%, de anfetamínicos. A maconha foi citada por 0,5% dos estudantes e o crack, por 0,1%. Esses dados demonstram que a exposição dos estudantes às drogas tem acontecido muito cedo (CARLINI et al, 2010). A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) 2015 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou em 2,6 milhões os jovens inseridos no 9º do Ensino Fundamental em 2015, nas capitais brasileiras e Distrito Federal. A pesquisa, que investigou vários aspectos sobre a saúde do adolescente de 13 a 15 anos, cursando o 9º ano do ensino fundamental, mostrou que 1,5 milhão (55,5%) já havia feito uso de bebida alcoólica uma vez na vida. Os adolescentes que fizeram uso de drogas 19 ilícitas somaram 236,8 mil (9,0%), superando o número de adolescentes da pesquisa de 2012 (230,2 mil ou 7,3%) (BRASIL, 2015). As estatísticas apresentadas indicam que o consumo de drogas tem se apresentado como uma realidade cada vez mais comum entre os adolescentes, embora seja importante salientar, como apontado por Niel, Moreira e Xavier (2009, p.23), que “existem situações, circunstâncias, conjunturas em que um indivíduo torna-se mais ou menos vulnerável” ao uso de drogas. A questão do uso de drogas na adolescência pode ser compreendida considerando os aspectos de vulnerabilidade próprios desse período do desenvolvimento. O termo adolescência compreende várias definições: as que passam pela questão dos limites da idade; as que a compreendem como um período de transformações psíquicas, comportamentais e físicas iniciadas na puberdade; e as que enfocam a questão histórica da adolescência. O dicionário Aurélio, por exemplo, define a adolescência como um período da vida humana que começa com a puberdade, caracterizado por mudanças corporais e psicológicas, e que vai de cerca de 12 aos 20 anos. A definição de adolescência que envolve os limites da idade é considerada por algumas organizações internacionais, especialmente para a elaboração de documentos e pactos de proteção dos direitos dos adolescentes. De acordo com Outeiral (2008), a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a adolescência em duas fases: a primeira, dos 10 aos 16 anos, e a segunda, dos 16 aos 20 anos. O Ministério da Saúde segue a convenção elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que delimita o período entre 10 e 19 anos, 11 meses e 29 dias de idade como adolescência, e o situado entre 15 e 24 anos como juventude. Há, portanto, uma interseção entre a segunda metade da adolescência e os primeiros anos da juventude. Adota ainda o termo “pessoas jovens” para se referir ao conjunto de adolescentes e jovens, ou seja, à abrangente faixa compreendida entre 10 e 24 anos (BRASIL, 2010). Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) entende o adolescente como a pessoa entre os 13 e os 18 anos de idade (BRASIL, 1990). Existem definições da adolescência que abordam principalmente as mudanças físicas, comportamentais e cognitivas que ocorrem nessa etapa do desenvolvimento. Hellen Bee (2011), estudiosa do desenvolvimento humano, aponta que o início da adolescência é um tempo de transição, com mudança significativa em todos os aspectos do funcionamento da criança e que o fim da adolescência parece representar a consolidação de uma identidade mais coesa, com metas e papéis mais claros. A autora 20 refere-se ao fato que, enquanto o adolescente de 12 ou 13 anos está assimilando1 um número enorme de experiências físicas, sociais e intelectuais, vivendo um estado de desequilíbrio devido ao funcionamento deficiente dos velhos padrões e esquemas e ainda incipiente uso dos novos, os jovens de 16, 17 ou 18 anos começam a fazer as acomodações necessárias, estabelecem uma nova identidade, novos padrões de relacionamentos sociais, novas metas e papéis. A autora acrescenta ainda que a puberdade define o início da adolescência e afeta claramente todos as outras facetas do desenvolvimento do jovem, atribuindo às alterações hormonais os comportamentos de confronto ou conflito entre pais e filhos e a agressividade e o comportamento delinquente. A autora pondera, no entanto, que as mudanças no corpo do adolescente podem levar ao tratamento diferenciado do adolescente pelos pais, que passam a vê-lo como um quase adulto. Uma concepção de adolescência que não é considerada fase natural do desenvolvimento e, sim, construção social que tem repercussões na subjetividade e desenvolvimento do homem moderno é baseada na perspectiva sócio histórica, que advém do marxismo. Bock (2007) aponta que a adolescência é vista como uma construção social com repercussões na subjetividade e no desenvolvimento do homem moderno e não como um período natural do desenvolvimento. Além disso, a autora aponta que esse momento é significado, interpretado e construído pelos homens. Para Lepre (2005), no século XVIII aparecem as primeiras tentativas de se definir, claramente, a adolescência e somente no século XX é que nasce o adolescente moderno típico exprimindo uma mistura pureza provisória, força física, espontaneidade e alegria de viver, o que tornou o adolescente o herói do século XX. Uma teoria do desenvolvimento humano baseada nas relações sociais e com ênfase no ego foi a proposta por Erik Erikson, que propôs os estágios psicossociais, caracterizados como períodos em que o ego enfrenta algumas crises ao longo do ciclo vital, e, ao sair delas, o sujeito teria um ego mais fortalecido ou mais frágil, de acordo com sua vivência do conflito. Além disso, o final de cada crise influenciaria o próximo estágio, sendo que o desenvolvimento estaria completamente imbricado no seu contexto social (RABELLO; PASSOS, 2009). 1 Os conceitos de assimilação e esquema referidos por Bee (2011) referem-se aos conceitos propostos por Jean Piaget (2013), que considera a assimilação a ação do organismo sobre os objetos que estão à sua volta, o qual depende de condutas anteriores e incidem sobre o mesmo objeto ou outros análogos. Já os esquemas seriam os esboços das ações que podem ser repetidas de forma ativa pelo sujeito. Logo, a assimilação seria o processo de incorporar os objetos aos esquemas de condutas. 21 Para Erikson (1968), a crise enfrentada na adolescência seria a “crise de identidade”, que leva às angústias, passividade ou revolta, dificuldades de relacionamento inter e intrapessoal, além de conflitos de valores. E, ainda, para o autor, dos 13 aos 18 anos, a qualidade do ego a ser desenvolvida é a identidade, logo, a principal tarefa do adolescente seria adaptar o sentido do eu às mudanças físicas da puberdade, bem como desenvolver uma identidade sexual madura, buscar novos valores e fazer uma escolha ocupacional. Arminda Aberastury e Maurício Knobel (1981) falam sobre a Síndrome Normal da Adolescência, considerada como um quadro com uma sintomatologia específica. Knobel (1981) afirma que o adolescente passa por “desequilíbrios e instabilidades” (p.9) necessários para estabelecer sua identidade, que é o objetivo desse momento de vida. O autor aponta, ainda, que o adolescente passa por três lutos necessários para enfrentar a transição entre o mundo infantil e o mundo adulto: o luto pelo corpo infantil perdido, o luto pelo papel e identidade infantis e o luto pelos pais da infância, os quais constituem- se em “verdadeiras perdas de personalidade” (p.10). Aberastury e Knobel (1981) apontam que os sintomas da síndrome da adolescência normal compreenderiam a busca de si mesmo e da identidade; a tendência grupal; a necessidade de intelectualizar e fantasiar; a existência de crises religiosas; a deslocalização temporal; a evolução sexual manifesta (autoerotismo até heterossexualidade adulta genital); a atitude social reivindicatória com tendências anti ou associais de diversa intensidade; as contradições sucessivas em todas as manifestações de conduta; a separação progressiva dos pais; as constantes flutuações de humor e estado de ânimo. É importante considerar que Knobel (1981) fala sobre a normalidade como “a capacidade de utilizar os dispositivos existentes para o alcance das satisfações básicas do indivíduo, numa interação permanente que procura modificar o desagradável ou inútil através do alcance de substituições para o indivíduo e para a comunidade” (p.27). Portanto, a normalidade não seria o submetimento ao meio, mas uma adaptação a este, muito embora pondere que a personalidade bem integrada não é, necessariamente, a melhor adaptada. Além disso, Knobel acrescenta que o período da adolescência, “como todo fenômeno humano, tem sua exteriorização característica dentro do marco cultural- social no qual se desenvolve” (p. 24), logo, é possível considerar a adolescência como um período específico do desenvolvimento humano aliado à “sua expressão circunstancial de caráter geográfico e temporal histórico-social” (p. 25). 22 A adolescência, considerada um fenômeno biopsicossocial, tal como se dá atualmente no mundo ocidental, pode ser vista como um período de vulnerabilidade para o indivíduo, conforme apontado por Knobel (1981). Golshimidt e Niel (2009) apontam que a vulnerabilidade do adolescente está bastante relacionada à instabilidade e à fragilidade advindas das transformações biológicas, psíquicas e sociais pelas quais o adolescente passa. Acrescentam que a adolescência é um período em que se iniciam várias doenças psiquiátricas e é comum o distanciamento e a falta de diálogo com os pais, comprometendo o acompanhamento destes em seu desenvolvimento, desempenho na vida e uso de drogas. O uso de drogas está bastante relacionado ao prejuízo na capacidade de crítica (NIEL; SILVEIRA; MOREIRA, 2009) o que leva aos comportamentos de risco bastante comuns na adolescência, como a adoção de práticas sexuais inseguras, resultando em gravidez indesejada e contaminação por Doenças Sexualmente Transmissíveis/HIV/AIDS (DST/HIV/AIDS), por exemplo (MIOZZO et al, 2013; BERTONI et al, 2009; SCIVOLETTO et al, 1999). Sabe-se que as DST/HIV/AIDS no adolescente representam umas das maiores preocupações no Brasil e no mundo, especialmente pelas repercussões na vida do jovem, da família e da comunidade. No Brasil, o Boletim Epidemiológico de AIDS de 2015 aponta que de 2005 a 2015 houve um aumento na taxa de detecção de HIV entre homens, com destaque para o aumento em jovens de 15 a 24 anos, sendo que de 2005 para 2014 a taxa entre aqueles com 15 a 19 anos mais que triplicou - de 2,1 para 6,7 casos por 100 mil habitantes (BRASIL, 2015). A compreensão dos prejuízos e do próprio consumo de substâncias psicoativas por adolescentes deve envolver a análise dos aspectos e/ou contextos de vulnerabilidade a que as pessoas estão submetidas e que levam ao uso de drogas. Os fatores de risco são eventos considerados obstáculos individuais ou ambientais que podem aumentar a vulnerabilidade da criança e adolescente para resultados negativos em seu desenvolvimento (PESCE et al, 2004; SAPIENZA; PEDROMÔNICO, 2005; SHENKER; MINAYO, 2005). Já os fatores de proteção possuem a característica essencial de provocar uma modificação na resposta do indivíduo aos processos de risco. De acordo com Rutter (1987), os fatores de proteção possuem diversas funções, tais como: minimizar o impacto dos riscos, alterando, assim, a exposição da pessoa à situação adversa; reduzir as reações negativas em cadeia pela exposição do indivíduo à situação de risco; estabelecer e manter a autoestima e autoeficácia pelo estabelecimento de 23 relações de apego seguras e cumprimento de tarefas bem-sucedidas; criar oportunidades para reverter os efeitos do estresse. De acordo com o documento do Ministério da Saúde, “A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas” (BRASIL, 2003), os fatores de risco para o uso de álcool e outras drogas correspondem às características ou atributos de um indivíduo, grupo ou ambiente de convívio social, que contribuem para aumentar a probabilidade da ocorrência deste uso. Além disso, o mesmo documento aponta que os fatores de risco para o uso de drogas, bem como os de proteção, podem ser identificados em todos os domínios da vida: nos próprios indivíduos, em suas famílias, em seus pares, em suas escolas e nas comunidades, e em qualquer outro nível de convivência socioambiental. Os fatores de risco referentes ao domínio individual correspondem à baixa autoestima, falta de autocontrole e assertividade, comportamento antissocial precoce e doenças preexistentes, como transtorno de deficit de atenção e hiperatividade, e vulnerabilidade psicossocial. Em relação à família traz que os fatores de risco dizem respeito ao uso de álcool e outras drogas pelos pais, à ocorrência de isolamento social entre os membros da família, ao padrão familiar disfuncional e à falta do elemento paterno (BRASIL, 2003). No domínio das relações interpessoais, os principais fatores de risco são pares que usam drogas, ou ainda que aprovam e/ou valorizam o seu uso, a rejeição sistemática de regras e práticas ou atividades organizadas, consideradas como um sinalizador. Os mais importantes fatores de risco nos ambientes de formação e aprendizados são a falta de habilidade de convivência com grupos e a disponibilidade de álcool e drogas na escola e nas redondezas, bem como a inconsistência de regras e papéis na escola em relação ao uso de drogas pelos estudantes (BRASIL, 2003). Em relação aos fatores de proteção, no domínio individual estão a presença de habilidades sociais, flexibilidade, habilidade em resolver problemas, facilidade de cooperar, autonomia, responsabilidade e comunicabilidade, bem como vinculação familiar-afetiva ou institucional. No domínio da família, os fatores de proteção estão relacionados à vinculação familiar, com a presença de valores e o compartilhamento de tarefas no lar, aliados à troca de informações entre os membros da família sobre as suas rotinas e práticas diárias. No domínio das relações interpessoais, são considerados fatores protetivos a convivência com grupos de pares que não usam álcool e/ou drogas e não aprovam ou valorizam o seu uso, bem como com aqueles envolvidos com atividades 24 recreativas, escolares, profissionais, religiosas, dentre outras, que não envolvam o uso indevido de álcool e outras drogas (BRASIL, 2003). Schenker e Minayo (2005), em revisão de artigos sobre a questão dos fatores de risco e proteção para o consumo de drogas na adolescência, sinalizam a existência de seis principais contextos com riscos para o consumo e abuso de substâncias psicoativas (SPA) na adolescência: o próprio consumo das substâncias enquanto fator de risco para doenças; a família, cuja qualidade da interação entre os pais e os filhos influencia, sobremaneira, na relação do jovem com o consumo das SPA (constituindo-se como fatores de risco, por exemplo, as famílias sem investimento nos vínculos entre pais e filhos; famílias cujo envolvimento materno é insuficiente; cujas práticas disciplinares são inconsistentes ou coercitivas; permissivas ou com dificuldades no estabelecimento de limites; com educação autoritária, pouco zelo e afeto; falta de monitoramento parental); o envolvimento com os pares, sendo que estes se tornam fator de risco para o consumo de substâncias quando funcionam como modelo de comportamento ao mostrar tolerância, aprovação ou fazer consumo de drogas; a escola, que se torna fator de risco para o consumo das SPA quando associada, principalmente, ao absenteísmo, falta de motivação para os estudos e mau desempenho escolar; facilidade da droga na comunidade de convivência; a mídia, que traz a associação entre as drogas e à publicidade, às imagens de artistas, à facilidade da sociabilidade e à sexualidade. A família pode ser um importante fator de proteção para o consumo de substâncias por adolescentes, e, acima de tudo, para o desenvolvimento saudável de seus membros. Shenker e Minayo (2003) conceituam a família como uma instituição privada, passível de vários tipos de arranjo e com a principal função de socialização primária das crianças e dos adolescentes. Além disso, as autoras consideram que a família, integrada à cultura, assegura os comportamentos normalizados pelo afeto e pela cultura, garantindo o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, daí ser importante incluir a família no tratamento dos adolescentes em relação ao consumo de álcool e drogas. Zimerman (2000) aponta que o grupo familiar é de suma importância na estruturação do psiquismo da criança, na formação da personalidade do adulto e na formação de seus grupos internos, os quais determinarão como o sujeito interagirá e como estabelecerá suas relações grupais e sociais com outros grupos ao longo de sua vida. O autor acrescenta, ainda, que: 25 A família se constitui como um campo dinâmico, no qual agem tantos os fatores conscientes como os inconscientes, sendo que a criança, desde o nascimento, não apenas sofre passivamente a influência dos outros, como, reciprocamente, é também um poderoso agente ativo de modificações nos demais e na estrutura da totalidade da família (p.42). Ademais, Zimerman (2000, p.43) aponta que no grupo familiar circula “uma rede de necessidades, desejos, demandas, relações objetais, ansiedades, mecanismos defensivos, mal-entendidos de comunicação, segredos ocultos e compartilhados, afetos contraditórios, etc”. Esses elementos influenciam, sobremaneira, o relacionamento entre os membros da família e pode ser importante para compreender as relações dos indivíduos com eles mesmos e com o mundo. Para compreender a dinâmica do grupo familiar, Zimerman (2000) refere a importância de se conhecer três aspectos: 1. As características pessoais do pai e da mãe separadamente e da relação conjunta, as quais ajudam a constituir as representações internas que o filho tem dos pais, bem como de si mesmo; 2. As identificações, que formam os sentimentos de identidade e autoestima; 3. Os papéis exercidos pelos membros (bode expiatório, orgulho da mamãe, doente da família, etc) dentro e fora da família. Uma contribuição importante em relação à família enquanto processo grupal advém do teórico Pichon-Rivière (1998b). Esse autor refere-se ao fato que a família é uma estrutura social básica, que se configura pelo interjogo de papéis diferenciados (pai, mãe, filho), podendo-se afirmar que a família é o modelo natural da situação de interação grupal. Pichon-Rivière (1998b) entende que o doente é o porta-voz das ansiedades do grupo familiar desempenhando o papel de depositário das tensões e conflitos grupais, sendo denominado de “bode expiatório” (p.79). Assim, a doença de um membro denuncia a situação de conflito e do caos subjacente que a patologia de segurança tenta controlar, tornando o paciente o porta-voz do grupo por sua conduta desviante. Pichon-Rivière (1998b) esclarece ser frequente, após algumas sessões, a eclosão do conflito familiar, mantido em silêncio pelos membros e gerador de ansiedades. Vivendo a família a confrontação do conflito como uma catástrofe, ela resiste ao esclarecimento. A mudança, para o autor, produz um temor manifesto na forma como o doente é tratado, ocultando os fatos, o que se configura como a segregação da pessoa. A partir da teoria das relações de objeto proposta por Melanie Klein é possível compreender como se dá a constituição do aparelho psíquico e, posteriormente, indicar uma compreensão de como as relações familiares se dão de forma a produzir ansiedades 26 e uma dinâmica conflituosa. Para Melanie Klein (SEGAL, 1973), desde o nascimento o bebê já possui ego suficiente para experenciar ansiedade diante da polaridade inata dos instintos de vida e de morte, usar mecanismos de defesa e formar relações de objeto primitivas na fantasia e na realidade. Diante do ansiedade produzida pelo instinto de morte, contudo, o ego o deflete (splits) projetando a parte que o contém para fora, ou seja, para o seio. Logo, o seio é sentido como mau e ameaçador, o que origina o sentimento de perseguição. Também é estabelecida uma relação com o ego ideal, em que a libido é projetada de forma a satisfazer o instinto do ego de proteger a vida. Dessa forma, o ego passa a ter uma relação com dois objetos: o seio ideal e o seio persecutório. É a esse momento que Melanie Klein dá o nome de posição esquizoparanóide: a ansiedade predominante é a de que o objeto perseguidor entrará no ego e o aniquilará, bem como ao objeto ideal; a característica esquizoide está na cisão. O ego passa a lançar mão de várias defesas para se proteger contra a ansiedade produzida pelo medo de ser aniquilado, tais como identificação projetiva, projeção e reintrojeção. Se o desenvolvimento se dá de forma favorável, o bebê sentirá cada vez mais que seu objeto ideal e que seus próprios impulsos libidinais são mais fortes do que o objeto mau e do que seus impulsos maus. Dessa forma, ele será cada vez mais capaz de identificar-se com seu objeto ideal e, em virtude dessa identificação, bem como em virtude de seu desenvolvimento fisiológico e desenvolvimento de seu ego, sentirá capaz de se defender e defender seu objeto ideal, menos impulsionado, portanto, a projetar seus impulsos maus para fora. Os medos paranoides diminuem e a projeção diminui, sendo predominante o impulso de integração do ego e objeto. O bebê passa a reconhecer o objeto como objeto total e a se relacionar com ele. Esse momento do desenvolvimento foi chamado por Klein (1975) de posição depressiva. Nesse momento o bebê passa a reconhecer a mãe e outras pessoas e a perceber que suas experiencias boas e más advêm do mesmo seio. No entanto, essa percepção leva o bebê a ambivalências e sua ansiedade advém dos conflitos de que seus impulsivos destrutivos possam ter destruído ou possam destruir sua mãe, da qual depende completamente. É nesse sentido que o mundo interno do bebê passa a ser vivenciado como estando em pedaços, identificado com esse objeto que ele fantasia ter destruído, daí o bebê experenciar sentimentos de culpa, anseio e desesperança (SEGAL, 1973). Segal (1973, p. 93) aponta que “a posição depressiva nunca é plenamente elaborada”, pois sempre estão presentes as ansiedades relativas à ambivalência e à culpa, bem como os sentimentos de perda, reativando experiências depressivas. Contudo, Klein 27 (1975) descreve em sua teoria, que existem momentos em que o desenvolvimento não se dá de forma satisfatória, permanecendo no sujeito relações perturbadas de objeto predominantemente esquizóides ou depressivas. Para Klein (1975), algumas características observadas nas relações de objeto esquizóides são: cisão violenta do self e projeção tem por efeito fazer com que a pessoa a quem é dirigida seja sentida como perseguidor, contudo, a parte destrutiva do self que é projetada é sentida como destruidora para o objeto amado, logo, surge a culpa, que não é eliminada e é sentida como uma responsabilidade inconsciente para os representantes da parte agressiva do self. Outra característica é o retraimento do contato com outras pessoas com o objetivo de evitar a intrusão destrutiva. Calil (1987) aponta que as defesas predominantes da posição esquizóide são a cisão, projeção, idealização, identificação-projetiva, projeção e negação. Na posição depressiva, dado que o sentimento de culpa faz despertar a fantasia de que houve a destruição do objeto bom, são mobilizadas as defesas maníacas, regredindo-se a mecanismos esquizo-paranoides e, portanto, utilizando-se as mesmas defesas citadas. Somando-se às considerações de Melanie Klein, Calil (1987) aponta existir um terceiro momento no desenvolvimento, que vai dos três aos seis anos de idade da criança e cuja habilidade de se envolver com as pessoas ao seu redor aumenta. Nesse momento, os impulsos sexuais da criança são dirigidos aos pais e, ao mesmo tempo, ela nota que eles possuem um relacionamento à parte, ocasionando sentimentos de rivalidade, ciúmes e exclusão. O grau de segurança com que os pais assumem suas identidades sexuais e toleram os impulsos hostis e a curiosidade da criança em relação a eles vai influenciar no desenvolvimento sexual e nos relacionamentos da criança em sua vida adulta. Contudo, os conflitos, fantasias e ansiedades presentes nessa fase podem ser compartilhados por toda a família de forma que os papéis dos pais não são claramente definidos e passam a ser inconscientemente vividos como anulação e autodestruição. Os membros familiares, então, acabam por viver papéis distorcidos para lidar com a ansiedade produzida pela crença inconsciente de anulação e aniquilação, repercutindo em toda a dinâmica familiar. A questão da influência da família no uso de substâncias psicoativas por adolescentes é abordada por Freitas (2002), que se refere ao dependente de drogas como drogadependente, representante eleito da problemática da família, sendo que, normalmente, esse eleito surge na adolescência devido ao momento de transformações corporais e psicológicas no adolescente que repercutem também na família. O autor acrescenta que a drogadicção tem como origem a falta de amor e o abandono, bem como 28 o comprometimento na capacidade de lidar com frustrações, sendo que a droga passa a servir como um “anestésico para a angústia” (p.43) que o acúmulo de frustrações do dia a dia provoca. Freitas (2002) aponta que as famílias, chamadas de pré-adictivas, possuem estrutura frágil com os pais não conseguindo exercer os papéis de forma adequada, cuja dificuldade de se colocar limites se mostra a questão mais evidente. A frustração é o que permite ao sujeito adquirir a capacidade de discernir entre o que se pode e o que não se pode fazer, mas quando faltam os limites, de acordo com o autor, “o eu absolutamente narcísico não pode sobreviver frente ao outro, já que a negação do outro será a própria negação deste eu” (p.47), assim, a drogadição funciona como uma forma inconsciente de encontrar um limite que não foi dado pelos pais, pela procura, em última instância, da morte. A compreensão de que o uso de drogas por adolescentes está intimamente relacionado às suas famílias leva à necessidade da inclusão desses núcleos familiares no tratamento dos adolescentes usuários de substâncias psicoativas. Nesse sentido, Freitas (2002) considera que o trabalho com adolescentes usuários de drogas não pode prescindir de um trabalho com o grupo familiar. No Brasil, muitas ações têm sido propostas para o tratamento de adultos e adolescentes usuários de substâncias psicoativas, com ênfase especial para os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. De acordo com Andrade (2011), a ampliação da rede CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial em álcool e outras drogas – tem sido uma das ações desenvolvidas pela Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, rede esta que em 2010 contava com 258 centros no Brasil. Os CAPS são dispositivos substitutivos ao Hospital Psiquiátrico, local historicamente destinando ao tratamento de portadores de transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas, dentre outros problemas e doenças, e foram implantados por meio da Portaria/GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2002). Esta portaria define e estabelece diretrizes para o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial, os quais são categorizados por porte e clientela, recebendo as denominações de CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad. As modalidades de serviços I, II e III cumprem a mesma função no atendimento público em saúde mental, devendo realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes, incluindo os sofrimentos advindos do uso de álcool e outras drogas. Os atendimentos devem ser feitos, prioritariamente, na área 29 territorial dos pacientes, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo, distinguindo-se por características, como número de habitantes, composição da equipe interdisciplinar e tipo de atendimento, principalmente (BRASIL, 2002). Em 2012, a Portaria nº 130, de 26 de janeiro de 2012, redefiniu o CAPS AD III e os respectivos incentivos financeiros a partir de portarias posteriores à criação dos CAPS, que ampliaram a atenção integral e o acesso ao tratamento para usuários de álcool e outras drogas no SUS. Nesse sentido, o CAPS AD III passou a ser um serviço destinado a proporcionar a atenção integral e contínua a pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool, crack e outras drogas, com funcionamento 24 horas em todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados, podendo realizar atendimentos a adultos ou crianças e adolescentes, conjunta ou separadamente. Dentre as características de funcionamento dos CAPS AD III, destacam-se: a obrigatoriedade de se constituírem em lugares de referência de cuidado e proteção para usuários e familiares em situações de crise e maior gravidade, como recaídas, abstinência, ameaças de morte, dentre outras; a obrigatoriedade de produzirem, em conjunto com o usuário e seus familiares, um Projeto Terapêutico Singular que possibilite a ampliação das possibilidades de vida e faça a mediação de suas relações sociais; a obrigatoriedade de promoverem inserção, proteção e suporte de grupo para seus usuários, no processo de reabilitação psicossocial; a obrigatoriedade de orientarem-se pelos princípios da Redução de Danos (BRASIL, 2013). Contudo, o que se observa em alguns contextos de tratamento nos CAPS Álcool e Drogas é a dificuldade de adesão das famílias ao tratamento de seus filhos adolescentes usuários de drogas por diversos motivos, dentre eles, a necessidade de trabalhar e o cuidado de outros filhos. A adesão ao tratamento pode ser definida como “um processo colaborativo que facilita a aceitação e a integração de determinado regime terapêutico no cotidiano das pessoas em tratamento, pressupondo sua participação nas decisões sobre o mesmo” (BRASIL, 2008, p.14). No caso específico do tratamento para adolescentes usuários de substâncias psicoativas, Vasters e Pillon (2011, p.4) sugerem o vínculo entre o usuário do serviço e o profissional “de forma que haja compromisso mútuo nas atividades integradas ao tratamento e, decorrente disso, o favorecimento de mudanças no comportamento em relação ao uso da droga.” 30 Vasters e Pillon (2011) apontam que tanto a prática institucional quanto a literatura mostram que os jovens não costumam procurar tratamento para o uso de drogas e quando o fazem, abandonam o tratamento sem que as mudanças almejadas aconteçam. A baixa adesão dos adolescentes ao tratamento para consumo de substâncias psicoativas é relacionada no estudo de Scaduto e Barbieri (2009) a fatores externos aos adolescentes, como o próprio tratamento e as características da equipe, por exemplo. Contudo, a participação da família no tratamento de seus filhos usuários de substâncias psicoativas é pouco estudada, sendo raras as pesquisas que apontam conhecimentos sobre os motivos que levam ao abandono do tratamento pelos familiares. Scaduto e Barbieri (2009) estudaram o discurso sobre a adolescência por parte dos membros da equipe de uma instituição de saúde para dependentes químicos. Os pesquisadores encontraram, como parte dos resultados, que a participação da família é considerada importante no tratamento dos adolescentes, mas também uma dificuldade enfrentada pelo serviço. Nessa mesma direção, Vasters e Pillon (2011), em pesquisa que teve por objetivo conhecer o uso de drogas entre adolescentes, da primeira experimentação às percepções sobre adesão ao tratamento, constatou que a falta de apoio da família, bem como sua participação nas atividades do tratamento dos filhos, foi um dos aspectos fortemente relatado pelos jovens como motivo associado à sua não adesão ao tratamento. A questão da dificuldade da família em se envolver no tratamento dos adolescentes usuários de substâncias psicoativas foi abordada por Miles et al (1998) que, ao estudar a relação entre o consumo de drogas na adolescência e as características dos pais, percebeu que apenas um terço destes apareceu na entrevista do estudo, demonstrando a dificuldade da família em assumir questões relacionadas ao uso de drogas por seus filhos. Belotti, Fraga e Belotti (2017) realizaram revisão da literatura nacional sobre o papel da família e sua influência no processo de cuidado do seu ente com necessidades decorrentes do uso abusivo de drogas nos serviços de saúde mental. Em seus achados, identificaram como dificuldades para a adesão dos familiares ao tratamento: conflitos gerados na família em função de possuir um membro com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas; sentimento de sobrecarga; o fato de a família acreditar que a internação é a única solução para a resolutividade do problema; a busca por soluções imediatistas; falta de diversidade e de oferta de cuidado que correspondam às demandas apresentadas pela família. 31 Por outro lado, estudo proposto por Brischiliari, Rocha-Brischiliari e Marcon (2016) com familiares de adolescentes hospitalizados para tratamento por uso de SPA identificaram sentimentos de abandono pela família e deficiência no cuidado integralizado. As principais queixas dos familiares referiam-se à falta de cuidado adequado às suas necessidades, incluindo orientações, acompanhamento, valorização, respeito, compreensão e envolvimento com o tratamento. Além disso, foi identificado que os conhecimentos da família não são considerados e seus medos, dúvidas e angústias não são compartilhadas, privando-a de conhecer e de participar do tratamento do adolescente. Ademais, as famílias referem que seus filhos são acompanhados por psiquiatras, que apenas prescrevem a medicação e agendam novo retorno, sendo que a recuperação dos filhos é atribuída unicamente à vontade do paciente. Tendo em vista a importância das famílias no tratamento dos adolescentes usuários de substâncias psicoativas e a constatação de abandonos do tratamento por muitas famílias, o presente estudo parte da hipótese de que as dinâmicas conflituosas das famílias contribuem para a não adesão dos familiares ao tratamento no CAPS AD III Infantojuvenil. A pesquisa busca responder à seguinte pergunta: por que algumas famílias de adolescentes usuários de substâncias psicoativas em tratamento em CAPS Álcool e Drogas Infantojuvenil não aderem ao tratamento? Considerando o importante aumento de adolescentes usuários de substâncias psicoativas e os problemas de saúde relacionados ao uso dessas substâncias, este trabalho se justifica pela necessidade da ampliação de estudos científicos que possam aprimorar a compreensão de relações familiares de adolescentes usuários, para subsidiar ações de atendimento mais eficientes a essa população. 3 OBJETIVOS 3.1 Objetivo Geral Investigar alguns fatores que possam influenciar na não adesão ao tratamento dos familiares de adolescentes usuários de substâncias psicoativas que frequentam o CAPS AD III Infantojuvenil. 3.2 Objetivos Específicos a) Investigar os índices de não adesão dos familiares responsáveis pelos adolescentes atendidos no CAPS AD III Infantojuvenil; b) Investigar a relação dos adolescentes e familiares com o uso de drogas; 32 c) Investigar as relações entre familiares e adolescentes e o papel destes nestas relações. 4 MÉTODO Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo composto por duas etapas. A primeira etapa consistiu no levantamento quantitativo de dados de prontuários visando descrever a situação atual dos adolescentes e familiares atendidos no CAPS AD e os índices de não adesão dos familiares de adolescentes que comparecem regularmente aos atendimentos. A segunda etapa, qualitativa, consistiu na descrição e análise de casos de adolescentes em atendimento no serviço, cujos familiares não aderiram ao tratamento. Para Fraser e Gondim (2004), a abordagem qualitativa ou ideográfica surge como contraponto à abordagem monotética, que busca a quantificação e o controle das variáveis para se alcançar o conhecimento objetivo. Na abordagem qualitativa ou ideográfica, a ação humana tem sempre um significado subjetivo e intersubjetivo, que não pode estar fora do alcance do ponto de vista quantitativo e objetivo. O significado subjetivo se dá pelos elementos conscientes ou inconscientes de cada pessoa, e, portanto, o objeto de análise é a pessoa. A análise do conjunto dos dados obtidos por meio dos instrumentos utilizados busca compreender as singularidades, semelhanças e diferenças entre os casos estudados quanto aos motivos alegados pelos familiares para a não adesão ao tratamento, bem como quanto à constituição da família e aspectos conflituosos da dinâmica familiar. 4.1 Participantes Foram pesquisados 655 prontuários de adolescentes inseridos no CAPS AD III Infantojuvenil de um município do interior de São Paulo considerando o período de agosto de 2014 a junho de 2017, correspondendo este total a 100% dos adolescentes/familiares no período referido. Considerou-se neste estudo a adolescência como o período entre os 12 e 18 anos de idade, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente. Do total de prontuários, identificou-se 12 adolescentes cujos familiares não compareceram aos atendimentos há, pelo menos, 3 meses ininterruptos sem apresentação de justificativa. Destes 12, apenas 4 díades adolescente-familiar concordaram em participar do estudo, constituindo-se na amostra final do mesmo. 33 Foram excluídos nesta pesquisa os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em regime de liberdade, semiliberdade ou fechado, assim como os adolescentes usuários do serviço inseridos em instituição de acolhimento. 4.2 Local O estudo foi realizado em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III Infantojuvenil de um município do interior do estado de São Paulo. O CAPS AD III Infantojuvenil em questão foi inaugurado em 2014 e se caracteriza por ser um serviço de atenção psicossocial a crianças e adolescentes com intenso sofrimento psíquico decorrente do uso, abuso e/ou dependência de substâncias psicoativas e/ou vulnerabilidades sociais, físicas e psíquicas advindas desse contexto com funcionamento diário por um período de 24 horas de acordo com a Portaria nº130 de 26 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012). San Juan e Lobregat (2016) apontam que o atendimento se dá em nível ambulatorial, semi-intensivo, intensivo ou na modalidade “repouso”, sendo que neste último o adolescente permanece pelo período de, até, 14 dias ininterruptos na instituição. Além disso, as autoras descrevem a demanda como espontânea, por encaminhamento da rede ou via judicial, destacando que o serviço trabalha com a motivação da pessoa atendida. Esse CAPS conta com a atuação de profissionais de nível superior: dois médicos, duas psicólogas, duas assistentes sociais, quatro enfermeiras e uma fonoaudióloga, além de profissionais de nível médio: seis técnicos de enfermagem, duas agentes sociais, duas serventes de limpeza e duas escriturárias. Esses profissionais atuam nas diferentes modalidades de apoio e atendimento aos adolescentes e familiares, os quais englobam: entrevista de acolhimento, atendimento médico, consulta de enfermagem, grupos terapêuticos, grupos de orientação familiar, oficinas terapêuticas, atendimento individual, visitas domiciliares, atendimentos psicoterapêutico e socioterapêuticos, atividades externas com caráter de “acompanhante terapêutico” e acompanhamento nas atividades diárias para os adolescentes da modalidade “repouso”. 4.3 Procedimentos 4.3.1 Coleta de dados Após submissão e aprovação do presente projeto pela Plataforma Brasil, protocolo de nº 2.224.752, e Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do 34 Município onde se deu o estudo, considerando a resolução nº 466/2012, a pesquisadora iniciou a primeira etapa do trabalho correspondente à análise dos prontuários da instituição. Nessa etapa, foram analisados todos os prontuários do serviço, que compreendem os prontuários transferidos de outros serviços nos quais os adolescentes eram atendidos antes da abertura do CAPS em questão, bem como os prontuários abertos no período entre a inauguração do serviço, agosto de 2014 até o mês de março de 2017. A coleta de dados nessa etapa objetivou caracterizar a situação dos atendimentos no período referido. Para tanto, a pesquisadora observou e anotou em planilha de Excel os seguintes dados: número do prontuário; situação atual do adolescente em relação ao atendimento; data da entrevista de acolhimento; acompanhante na entrevista de acolhimento; idade no momento da entrevista de acolhimento; gênero; último atendimento do adolescente; último atendimento do familiar. Após a análise dos prontuários, foram selecionados todos aqueles cujos adolescentes permaneciam em atendimento no serviço, mas cujos genitores e/ou familiares responsáveis estão sem comparecer aos atendimentos há, no mínimo, 3 meses. A seguir, a pesquisadora entrou em contato por telefone com os familiares não aderentes ao tratamento, solicitando sua participação e a dos adolescentes no estudo, informando- os sobre os objetivos e procedimentos do mesmo. Os que concordaram foram agendados para o primeiro encontro. A segunda etapa do estudo correspondeu à coleta de dados, constituindo-se das seguintes etapas: a) coleta dos dados pessoais dos adolescentes e familiares dos prontuários, a fim de caracterizar os participantes; b) coleta de dados das entrevistas de acolhimento dos prontuários; c) realização das entrevistas; d) aplicação do “Desenho da Família com Estória”; e) encontro de feedback sobre os resultados com adolescentes e familiares. A coleta dos dados pessoais dos adolescentes e familiares considerou a idade dos participantes, gênero, grau de escolaridade dos adolescentes, além de ocupação dos familiares. Já a coleta de dados das entrevistas iniciais do estudo considerou os temas abordados (ANEXO A). Todos os dados foram anotados em planilha de Excel para posterior análise. O primeiro encontro da entrevista inicial do estudo contou com três momentos: a) um momento que envolveu a díade adolescente-familiar, cujo propósito foi conversar sobre os objetivos e os procedimentos da pesquisa e realizar assinatura dos Termos de 35 Consentimento (APÊNDICE A) e Assentimento (APÊNDICE B), obtendo cada participante uma cópia dos termos. Nesse momento, a pesquisadora esclareceu aos participantes sobre a necessidade do uso do gravador durante a entrevista para permitir o registro dos dados e, posteriormente, sua transcrição, garantindo a pesquisadora o sigilo das informações e o não acesso do conteúdo a outras pessoas. Além disso, os participantes receberam esclarecimentos sobre a possibilidade de aderirem ou não à participação em qualquer etapa da pesquisa. O segundo momento do primeiro encontro, que envolveu apenas o acompanhante familiar, e o terceiro momento, apenas com o adolescente, tiveram o objetivo de realizar a entrevista e a aplicação do “Desenho da Família com Estória”. O segundo encontro, realizado cerca de 30 dias após o primeiro, teve o objetivo de oferecer o feedback sobre os resultados das entrevistas e dos desenhos e foi realizado separadamente com adolescente e familiar. 4.3.2 Instrumentos para a coleta de dados Os instrumentos de coleta de dados estão elencados de acordo com as etapas da pesquisa. 1. Prontuário: Ficha de Acolhimento (ANEXO A). Os itens desse roteiro focalizam dados sobre: a queixa e história da queixa; dados socioculturais e de relacionamento da família; informações sobre condições de nascimento e desenvolvimento do adolescente; histórico de adoecimento, internações, uso de medicações e história de sintomas psiquiátricos; relação do adolescente com a escola; histórico de envolvimento do adolescente com atos infracionais; reconhecimento de habilidades sociais e/ou dificuldades de interação social; informações sobre os tipos de drogas usadas pelo adolescente; avaliação da motivação para o tratamento; impressões finais do entrevistador. 2. Roteiro de Temas para Entrevista inicial com os familiares e adolescentes (APÊNDICE C). O roteiro, elaborado pela pesquisadora, norteia a investigação acerca do uso de drogas pelos adolescentes, relação adolescente/familiar e adesão ao tratamento. 1. O tema 1 buscou investigar a compreensão dos adolescentes e familiares acerca do histórico do uso de drogas pelo adolescente, possíveis hipóteses para seu uso das drogas, bem como uso de drogas por familiares. 2. O tema 2 aborda as relações entre familiares e adolescentes, incluindo expectativas e frustrações, procedimentos educativos, regras e consequências, comunicação e afeto entre familiares e adolescentes. 3. O tema 3 visou propor breve avaliação do tratamento, bem como identificar possíveis dificuldades e impedimentos 36 relatados pelos familiares e adolescentes para o não comparecimento aos atendimentos no CAPS. A opção pela entrevista se deu por ser um método clínico importante para a investigação qualitativa. Como afirma Bleger (1998, p. 1) a entrevista “é um instrumento fundamental do método clínico e é, portanto, uma técnica de investigação científica em psicologia”. A entrevista inicial do estudo é, de acordo com Tavares (2000), um conjunto de técnicas ou procedimentos que visam investigar uma determinada questão. Essas técnicas são realizadas em um tempo delimitado e dirigidas por uma pessoa treinada e com conhecimentos psicológicos. O objetivo principal da entrevista é a descrição e a avaliação dos aspectos pessoais, relacionais ou sistêmicos, com vistas a recomendar, encaminhar ou propor uma intervenção. 3. “Desenho da Família com Estória” - técnica gráfica para a investigação clínica da dinâmica individual e familiar, cuja natureza e características “consistem na aplicação e interpretação de uma série de quatro desenhos de família, cromáticos ou acromáticos, segundo consignas determinadas: ‘desenhe uma família qualquer, desenhe uma família ideal, desenhe uma família em que alguém não está bem e desenhe a própria família” (TRINCA, 2013. p. 211). Após a realização de cada desenho, pede-se ao participante que conte uma estória associada a cada desenho e que responda a um ‘inquérito, fornecendo, também, um título para cada produção. Utiliza-se para sua administração, folhas de papel em branco, sem pauta, de tamanho ofício, lápis preto, além de caixa de lápis de cor de doze unidades. O uso da técnica projetiva “Desenho da Família com Estória” se fez importante visto que as provas projetivas são instrumentos clínicos de avaliação cujo objetivo é conhecer aspectos do inconsciente da pessoa avaliada, por meio do desenho e do inquérito. De acordo com Trinca (2013), à pessoa é oportunizada a expressão de suas dificuldades e conflitos por meio de enredos, personagens, temas, traços, dramas e outros aspectos, permitindo a manifestação de conteúdos latentes relacionados às fantasias inconscientes, angústias e defesas. 4. Protocolo de análise dos aspectos gerais do “Desenho da Família com Estória” (APÊNDICE D). Este protocolo foi elaborado pela pesquisadora a partir da proposta de Campos (2014). Contém uma análise de aspectos gráficos gerais do desenho, como: localização do desenho no papel; pressão ao desenhar; caracterização do traço; simetria 37 do desenho; detalhes do desenho; movimentos nos desenhos; tamanho da figura; uso da borracha; riscar o papel. 5. Protocolo de análise da constelação familiar do “Desenho da Família com Estória” (APÊNDICE E). O protocolo foi elaborado para o estudo com base em Campos (2014) e contém as análises de aspectos da dinâmica familiar, considerando elementos das figuras desenhadas; a ordem dos desenhos e a forma da representação, bem como o desenho de outras pessoas além da família; riscos; separação dos membros familiares; figuras de mãos dadas, entre outros elementos. 6. Protocolo de análise do HTP (House-Tree-Person), elaborado por John Buck e traduzido por Renato Cury Tardivo (2003). Apresenta itens para análise de desenhos projetivos, os quais foram utilizados neste estudo para a análise dos Desenhos da Família, tendo sido analisados: localização do desenho na folha; proporção dos desenhos; a perspectiva; detalhes essenciais e não essenciais; qualidade do traçado. 4.4 Análise dos dados Na primeira etapa, todos os prontuários do serviço foram analisados com o objetivo de caracterizar a situação dos atendimentos aos adolescentes no período entre agosto de 2014 e março de 2017. Os dados obtidos dos prontuários permitiram a criação de categorias de análise, a saber: “não fez acolhimento”, “18 anos”, “abandono”, “prontuário anulado”, “transferidos”, “óbito”, “alta”, “Fundação Casa” e “ativos”. Posteriormente, cada prontuário foi inserido em uma das categorias referidas, obtendo-se a frequência absoluta dos números em cada categoria para comparação. Os dados pessoais e das entrevistas iniciais obtidos dos prontuários foram anotados pela pesquisadora e organizados em um quadro para melhor visualização, além de terem sido utilizados para compor os casos realizados. Os relatos obtidos das entrevistas clínicas com os adolescentes e familiares foram transcritos e cuidadosamente lidos, relidos e organizados de acordo com os temas abordados nas entrevistas, considerando-se, portanto, uma categorização apriorística. Posteriormente, os conteúdos semelhantes das respostas foram organizados em subcategorias nos moldes da Análise de Conteúdo, proposta por Bardin (1988). Os desenhos realizados pelos participantes a partir da proposta do “Desenho da Família com Estória” (Trinca, 2013) foram analisados de acordo com 6 itens propostos por Villela (2013): 38 a) Grafismo: observa-se a sequência do que foi produzido, considerando-se os elementos do mesmo desenho e a comparação com os outros, bem como as variações e características como tamanho, traços, detalhes, localização do desenho na folha e uso da cor. b) Atitude diante da tarefa: a partir dos registros dos comentários, interjeições e gestual dos participantes, é possível avaliar se eles lidam com a tarefa com resistência, aceitação, rejeição, insegurança, ansiedade, persecutoriedade, dentre outros. Considera-se, também, os aspectos transferenciais e contratransferenciais. c) Tempo de latência: observa-se o tempo transcorrido entre a solicitação da tarefa e a execução da mesma, associando-se à qualidade desta. d) Linguagem: o distanciamento entre os significantes e os significados, grandes desorganizações nos discursos e instabilidades na linguagem podem significar distúrbios transitórios ou permanentes na organização do ego, como sugere Chabert (2004 citado por Villela, 2013), no entanto, a linguagem estável e coerente, com boa comunicação e organização se relacionam a uma organização entre as representações inconscientes e os princípios conscientes relacionados à adaptação à tarefa. e) Constelação familiar da família representada: considerar a constelação da família representada em comparação com a família real, comparando o número de membros, eventuais distorções dos tamanhos das figuras, inclusões e exclusões da própria pessoa no desenho, etc. f) Conteúdos latentes observados no inquérito: observa-se as características peculiares do desenho e da estória em relação à temática central, relações entre os personagens, identificações, caracterizações das figuras parentais, fraternas e outras, tipos de ansiedades e conflitos e defesas usadas para dar conta das ansiedades. Os aspectos gerais do grafismo e da constelação familiar foram analisados com base em protocolo de análise a partir das propostas de Campos (2014) e os aspectos mais específicos de análise das pessoas que compunham os desenhos e das casas representadas foram analisadas com base no protocolo proposto por Buck (2003). Tanto o “Desenho da Família com Estória” quanto os casos, após a integração dos dados da entrevista inicial, da entrevista inicial do estudo e do “Desenho da Família com Estória”, foram analisados e interpretados com base nos pressupostos psicanalíticos, como sugere Trinca (2013), “que se ocupa dos significados inconscientes do material clínico” (p. 221) e cujos critérios de interpretação “contam, na prática, com o referencial psicanalítico e com a experiência clínica do profissional” (p. 221). 39 5 RESULTADOS Os resultados da primeira etapa do estudo são apresentados a seguir e correspondem à etapa descritiva com a caracterização da situação dos adolescentes no CAPS AD III Infantojuvenil no período de agosto de 2014 a junho de 2017 e a caracterização dos familiares não aderentes ao tratamento. Posteriormente, são apresentados os resultados referentes à segunda parte do estudo, de natureza qualitativa: dados sociodemográficos, dados das entrevistas de acolhimento obtidos dos prontuários, dados da entrevista inicial para o estudo, dados dos Desenhos da Família com Estórias e estudos de caso. Para a caracterização dos adolescentes e familiares atendidos, foram analisados 655 prontuários e criadas categorias para enquadrar cada um deles. Assim, obtiveram-se as seguintes categorias: “não fez acolhimento”, “18 anos”, “abandono”, “prontuário anulado”, “transferidos”, “óbito”, “alta”, “Fundação Casa” e “ativos”. A tabela 1 apresenta estes dados. Tabela 1: Distribuição dos prontuários do CAPS AD III por categorias de análise Categorias Número absoluto de prontuários Porcentagem (%) Não fez entrevista de acolhimento 94 14,35 18 anos 181 27,63 Abandono 259 39,54 Óbito 1 0,15 Prontuário anulado 4 0,61 Transferido 14 2,14 Alta 25 3,82 Ativo 43 6,56 Fundação Casa 34 5,19 Total 655 100 Fonte: Elaborada pela autora A categoria “não fez entrevista de acolhimento” corresponde aos prontuários que foram transferidos de outros serviços onde os adolescentes eram atendidos, mas cujos usuários não realizaram acolhimento neste novo CAPS. Nessa categoria foram incluídos 40 94 prontuários (14,35%) e, embora tenha sido realizada busca ativa, esses adolescentes não compareceram ao serviço. A categoria “18 anos” corresponde aos usuários que completaram a maioridade e, portanto, não são mais atendidos no CAPS AD III Infantojuvenil, uma vez que o serviço está de acordo com portaria Nº 130, de 26 de janeiro de 2012, que estabelece “nos casos em que se destinar a atender crianças e adolescentes, exclusivamente ou não, o CAPS AD III deverá se adequar ao que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente”. O número de prontuários de adolescentes que completaram a maioridade no período de 3 anos de funcionamento do serviço, é de 181 correspondendo a 27,63% dos pacientes e inclui os que foram ou não transferidos para outros serviços. Peixoto et al (2010), em estudo que comparou o perfil de pacientes que aderiram ao tratamento de substâncias psicoativas (SPA) com os que não aderiram a ele em um CAPS do Mato Grosso do Sul, encontraram que a média de início de uso dos pacientes foi de 17,3 anos. O dado encontrado em nosso estudo e no estudo de Peixoto et al (2010) sugerem que uma parte dos adolescentes que procuraram pelo serviço o fizeram tardiamente, possivelmente pelo início tardio do uso de drogas por essa população, mas, também, pela tardia aceitação do tratamento. Importante considerar que a inserção tardia no CAPS AD na adolescência pode sinalizar uma possível dificuldade na continuidade do tratamento em outros serviços após a maioridade, acarretando em outros problemas relacionados ao trabalho e às demandas da vida adulta. Em relação ao abandono do tratamento, a categoria pode ser explicada pela ausência do usuário no serviço há, pelo menos, 3 meses, como também sugere Peixoto et al (2010). Apesar do abandono, contudo, esses usuários podem retornar ao atendimento a qualquer tempo. Os adolescentes que abandonaram o tratamento somam 256 (39,08%) e 43 (6,53%) estavam ativos no período analisado, indicando uma baixa adesão dos usuários ao tratamento, como também assinalam Scaduto e Barbieri (2009) e Araújo et al (2012), em estudos que mencionam a questão da adesão ao tratamento para uso de drogas em adolescentes. A categoria “anulados” corresponde aos prontuários com duplicidade na numeração e somam 4 prontuários (0,61%). Além disso, a categoria “transferidos” corresponde aos usuários do serviço que foram transferidos para outros serviços da rede de saúde mental por apresentarem queixas diferentes do uso de substâncias psicoativas, somando 14 usuários (2,14%). 41 Os prontuários analisados apontaram 1 caso (0,15%) de adolescente com dependência de drogas que veio a óbito por suicídio, imprimindo a necessidade de se considerar os riscos de morte associados ao uso abusivo e dependência de drogas. Contudo, faz-se importante problematizar os diferentes perigos a que a pessoa está sujeita considerando seus aspectos individuais e contextuais, como afirmam Shencker e Minayo (2003), não devendo tomar a situação do suicídio apenas como causa do uso de drogas. A categoria “alta” considerou os adolescentes desligados do serviço por meio de solicitação do próprio adolescente ou família, bem como consentimento da equipe. De acordo com os critérios adotados pelo CAPS AD III, a alta é indicada pela equipe quando os objetivos do projeto terapêutico individual planejado entre usuário, família e profissionais foram cumpridos ou quando o adolescente ou a família consideram não precisar mais dos atendimentos e a equipe concorda com tal decisão, tendo em vista os critérios de inserção social e/ou o cumprimento dos objetivos propostos de Redução de Danos ou abstinência. Nesse sentido, os prontuários analisados indicaram que 25 usuários (3,82%) receberam ou solicitaram alta. Apesar de esse dado sinalizar um baixo percentual de adolescentes que obtiveram ganhos com o tratamento realizado, é importante considerar que não demonstra, necessariamente, a realidade dos ganhos obtidos com o tratamento, uma vez que nem todos os pacientes solicitam a alta quando percebem ganhos com o tratamento, podendo abandoná-lo antes que a equipe ofereça a alta. Scaduto e Barbieri (2009) em estudo que buscou compreender o discurso dos membros de uma equipe de CAPS sobre a adesão de adolescentes usuários de SPA revelou que o sucesso no tratamento é entendido como a obtenção de mudanças no comportamento do adolescente e o estabelecimento de uma relação diferente dele com a droga, o que implicaria em maior autocuidado, autocontrole e redução dos prejuízos advindos do consumo de drogas. A categoria “Fundação Casa” foi criada para incluir os adolescentes que receberam ou ainda recebem atendimento no serviço e que estão inseridos no regime fechado daquela instituição. O fato de se incluir na mesma categoria os adolescentes que estão ou já estiveram em atendimento no CAPS inseridos em regime fechado se deu pela dificuldade de controle sobre a alta dos adolescentes na Fundação Casa, alta esta, muitas vezes não comunicada aos profissionais do CAPS. Nesse sentido, foram incluídos na categoria 34 usuários (5,19%). O atendimento de adolescentes com envolvimento de adolescentes usuários de SPA com a justiça também é citado em outros estudos (GALHARDI, 2016; ARAÚJO et al, 2012). 42 Os prontuários da categoria “ativos” se referem aos adolescentes em atendimento nos 3 meses anteriores, no mínimo, à análise dos prontuários. Essa categoria somou 43 do total de prontuários (6,56%) e sofreu subclassificações correspondentes a outras modalidades de atendimento, como demonstradas no quadro abaixo. Foram desconsiderados os atendimentos da Fundação Casa: Tabela 2: Distribuição dos prontuários do CAPS AD III por tipo de tratamento Subcategorias Número absoluto de prontuários Porcentagem Em tratamento com a família 25 58,14% Acolhidos em instituição 3 6,98% Em tratamento sem a família 12 27,90% Apenas em tratamento médico 2 4,65% Outra demanda 1 2,33% Total 43 100% Fonte: Elaborada pela autora. A subcategoria “em tratamento com a família” corresponde aos adolescentes e familiares que estão em acompanhamento no CAPS AD III. A subcategoria “acolhidos em instituição” refere-se aos adolescentes em instituição de acolhimento, antigos abrigos; “em tratamento sem a família” corresponde aos adolescentes que comparecem ao serviço, mas cujos familiares não aderiram ao tratamento nos últimos 3 meses; “apenas em tratamento médico” refere-se ao adolescente usuário do serviço que adere apenas à modalidade de atendimento médica e não às outras; “outra demanda” corresponde aos adolescentes que não fazem uso de SPA, mas, por falta de serviço de atendimento à demanda do adolescente na rede de saúde mental, passaram a ser atendidos no CAPS AD III. Dos 655 prontuários, 12 foram identificados como não aderentes ao tratamento. Os dados são apresentados no quadro 1: 43 Quadro 1: Dados sociodemográficos dos adolescentes em tratamento e familiares não aderentes obtidos da ficha da entrevista de acolhimento Dados Participantes Gênero do Adolescente Idade do Adolescente na entrevista de acolhimento Tipo de família com quem reside Acompanhante Ocupação do acompanhante A1 F 11 anos Extensa Avó materna Diarista A2 M 15 anos Nuclear Genitora Desempregada A3 F 15 anos Recasada Genitora Não trabalha fora A4 F 13 anos Extensa Avó Não trabalha fora A5 M 16 anos Recasada Genitora Técnica de enfermagem A6 M 15 anos Monoparental Genitora Ocupação não informada A7 F 15 anos Monoparental Genitor Aposentado A8 M 14 anos Recasada Madrasta Não trabalha fora A9 M 14 anos Monoparental Genitora Servente de limpeza A10 M 15 anos Recasada Genitora Cabeleireira A11 M 15 anos Monoparental Genitora Desempregada A12 M 14 anos Monoparental Genitora Atendente Fonte: Elaborada pela autora. Dos 12 adolescentes cujos pais não são aderentes ao tratamento, 8 são do gênero masculino e 4 são do gênero feminino, sendo que à época da entrevista de acolhimento, um adolescente ainda estava no período da puberdade, com 11 anos, e o restante, com idades entre 13 e 16 anos. A prevalência maior de adolescentes do gênero masculino também é indicada por outros estudos (MARCON, SENE e OLIVEIRA, 2015; ARAÚJO et al, 2012; SALAZAR et al, 2004). Os tipos de família com os quais os adolescentes residem são compostos por famílias monoparentais (um dos genitores e filhos), famílias recasadas (um dos genitores e novos companheiros, além de filhos) ou famílias extensas (avós). Marcon, Sene e Oliveira (2015), em estudo sobre o contexto familiar e o uso de drogas em adolescentes internados, observou que 58,1% dos adolescentes viviam em famílias reconstituídas com 44 a presença de apenas um dos pais sinalizando a presença cada vez mais marcante de novos arranjos familiares. Do total (12) de adolescentes cujos pais não comparecem aos atendimentos, no momento da entrevista de acolhimento 8 foram acompanhados pela genitora, um deles foi acompanhado pela madrasta e um deles, pela avó. Esse dado sinaliza que o cuidado dos filhos ainda é muito fortemente associado ao feminino, eximindo-se, muitas vezes, a responsabilidade pelos cuidados dos adolescentes em relação à saúde e práticas educativas dos genitores e outros representantes masculinos familiares. Tal dado também foi observado no estudo de Galhardi (2016). As ocupações dos familiares correspondiam às seguintes: cabeleireira, diarista, atendente, auxiliar de limpeza. Além disso, no momento da entrevista de acolhimento, um familiar se encontrava desempregado e um estava aposentado. Sobre um dos participantes, contudo, não foi encontrada informação acerca da ocupação. Esses 12 familiares foram convidados a participar do estudo, contudo, 8 recusaram explicitamente sua colaboração. Um dos familiares manifestou-se de forma agressiva ao telefone solicitando que não o importunassem, já que desejava que o filho morresse. Apenas 4 díades familiares-adolescentes concordaram com a pesquisa, constituindo os dados desses participantes em amostra do estudo qualitativo, que estão apresentados no quadro 2. A identificação dos participantes foi feita por nomes de heróis de desenhos de histórias em quadrinhos ou estórias infantis e seus respectivos familiares nas estórias, de forma a garantir o sigilo de seus nomes. Os nomes foram escolhidos pelas associações mentais da pesquisadora obtidas nos momentos das entrevistas a partir das posturas e falas dos participantes. Nesse sentido, a participante 1 e sua avó receberam os nomes de Chapeuzinho Vermelho e Vovozinha; o participante 2 e sua mãe, Wiccano e Feiticeira Escarlate; o participante 3 e sua mãe, Franklin Richards e Mulher Invisível; e a participante 4 e seu pai, Jade e Lanterna Verde. 5.1 Adolescentes e familiares participantes do estudo qualitativo: dados sociodemográficos Os dados sociodemográficos obtidos dos prontuários correspondem aos dados fornecidos pelo familiar acompanhante do adolescente no momento de sua primeira ida ao serviço, ou seja, na entrevista de acolhimento, e transcritos na Ficha de Acolhimento do serviço (ANEXO A). 45 Para esse estudo foram selecionados apenas os dados considerados relevantes à compreensão do fenômeno que se pretendeu avaliar, tais como gênero, data de nascimento, grau de escolaridade e dados dos familiares, que estavam disponíveis na ficha de entrevista de acolhimento do serviço. Além disso, foram recolhidas informações sobre a data da entrevista de acolhimento e o familiar acompanhante, bem como as pessoas com quem o adolescente reside. Quadro 2: Dados sociodemográficos dos adolescentes obtidos dos prontuários da instituição Identificação do adolescente Chapeuzinho Wiccano Franklin Richards Jade Gênero F M M F Idade na data da entrevista de acolhimento 11 anos 15 anos 14 anos 14 anos Mês/ano da entrevista inicial 01/2015 08/2016 07/2016 10/2016 Grau de Escolaridade 5ª série/6º ano 8ª série/ 9º ano 8ª série/9º ano 8ª série/ 9º ano Pessoas com quem adolescente reside Avó materna Genitora Padrasto Irmão Genitora Irmã Genitor Irmã Irmão Prima Familiar acompanhante Avó materna Genitora Genitora Genitor Idade na data da entrevista de acolhimento 52 anos 40 anos 33 anos 60 anos Ocupação do familiar Diarista Desempregada Atendente Aposentado Grau de escolaridade Analfabeta Sem informação 2º ano Ensino Médio 1º ciclo Ensino Fundamental Fonte: Elaborada pela autora. Em relação ao gênero dos entrevistados, dois adolescentes eram do gênero masculino e dois do gênero feminino, cujas idades variavam de 11 a 15 anos no momento das entrevistas de acolhimento. Além disso, três familiares eram do gênero feminino e um entrevistado, do gênero masculino com idades variando de 33 a 60 anos. 46 Em relação às ocupações, todos os adolescentes cursavam as 8ª séries do Ensino Fundamental e seus familiares tinham ocupações domésticas e de atendente, estava desempregada ou estava aposentado. Os adolescentes que residem com um dos genitores (e irmãos) vieram acompanhados deles e a adolescente que reside com a avó materna veio acompanhada dela no momento da entrevista de acolhimento. 5.2 Adolescentes e familiares participantes do estudo: dados das entrevistas de acolhimento obtidos dos prontuários As queixas dos familiares que acompanharam os adolescentes no momento da entrevista de acolhimento corresponderam tanto às queixas relacionadas ao uso de SPA quanto às queixas relacionadas a problemas de comportamentos dos jovens. Assim, observaram-se queixas de vulnerabilidade ao uso de drogas pelo contato com familiar e pares que fazem uso de SPA, queixas de uso de SPA pelo adolescente, queixas de problemas no comportamento na escola e em outros contextos de vida e queixas de consequências negativas do uso de SPA, como sintomas psicóticos. As queixas dos adolescentes corresponderam a sentimentos negativos advindos dos conflitos familiares, sentimentos negativos pelo uso de SPA, uso esporádico de SPA e desejo de interrupção do uso de SPA. Interessante notar que o principal motivo para a procura pelo serviço não está, necessariamente, relacionado ao consumo de drogas pelos adolescentes, mas sim, a questões individuais e das relações com as quais não sabem lidar. O fato de os adolescentes aceitarem o tratamento motivados por outras questões sugere a possibilidade da vivência de sofrimento e da ausência de espaços para falar sobre seus sentimentos, bem como de elaborá-los. Da mesma forma, os adultos parecem não ter espaços para falar sobre suas preocupações em relação aos adolescentes, procurando nos profissionais ajuda para questões que também geram sofrimento e, além disso, cobranças da sociedade, especialmente, em relação à justiça – nos casos de problemas de comportamento inadequados na escola, por exemplo. Tanto as queixas dos familiares quanto as queixas dos adolescentes demonstram que o uso de drogas é uma queixa primária que pode promover a procura pelo tratamento no CAPS, contudo, as queixas adjuntas à queixa primária, em relação ao comportamento dos adolescentes e falta de afeto dos familiares, por exemplo, parecem sinalizar que há motivações inconscientes que promovem os conflitos entre familiares e adolescentes em seus relacionamentos e que levam à busca pelo tratamento. Féres-Carneiro et al (2017) 47 em pesquisa sobre “falta de comunicação” com 16 famílias, teve como uma das conclusões do estudo que o que se apresenta como queixa primária pela família é, na verdade, secundário à demanda de tratamento pelas falhas na constituição do aparelho psíquico familiar. As autoras acrescentam o modo como se dá a comunicação acaba por demonstrar que há falhas na formação do aparelho psíquico pensante, que é a via por meio da qual “os aspectos não representados são inscritos no campo simbólico” (p. 1780). Em relação ao sistema familiar, no momento da entrevista de acolhimento, todos os adolescentes referiram conflitos entre eles e, pelo menos, um dos familiares, genitores em especial. Também foram mencionadas as separações entre os genitores, o uso de SPA por um dos genitores, agressões por um dos genitores a membros da família ou ao adolescente e conflitos entre os genitores. Marcon, Sene e Oliveira (2015) apontaram em sua pesquisa um percentual de 39,2% dos adolescentes que possuíam relacionamento insatisfatório/conflituoso com os familiares. Os autores ponderam, no entanto, que, apesar de essa situação ser motivador para o uso de drogas pelos adolescentes, eventos como divórcio, novos casamentos e conflitos podem ser motivo para o fortalecimento de vínculos e amadurecimento desde que a família consiga estabelecer um clima de afeto e cuidado com o outro. A dinâmica escolar/emprego foi caracterizada pelos entrevistados adolescentes pela frequência na escola, sendo que à época da entrevista de acolhimento todos os adolescentes estavam inseridos no 8ª série do Ensino Fundamental. Esse dado aponta a defasagem escolar de um adolescente, assim como o estudo de Felipe (2015), que apontou que 39,5% de sua amostra de adolescentes estava em atraso escolar. Outro dado da presente pesquisa se refere à inserção de apenas uma adolescente em Instituição de Convivência e Fortalecimento de Vínculos/Projeto Social no contraturno da escola e desistência de outro adolescente de Projeto de Inserção Profissional, sugerindo a pequena inserção dos adolescentes em atividades que extrapolam os ambientes escolares, o que aumenta, por sua vez, a vulnerabilidade para o uso de SPA por esses jovens. Apenas um dos adolescentes mencionou situação legal relacionada ao porte de drogas, situação em que a direção da escola onde estuda fez um boletim de ocorrência pelo porte de maconha constando “tráfico de drogas”, de acordo com genitor. Importante considerar o preconceito que ainda permeia o consumo de drogas fazendo com que as avaliações das autoridades escolares sejam mais subjetivas do que propriamente legais. Apesar de constar no Boletim de Ocorrência a questão do tráfico de drogas, contudo, a conduta de enviar o jovem para o tratamento no CAPS AD III revela que as autoridades 48 competentes cumpriram com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1