RODNEY QUERINO FERREIRA DA COSTA O MUNDO DO TRABALHO DOCENTE E O ESGOTAMENTO PSÍQUICO ASSIS 2017 RODNEY QUERINO FERREIRA DA COSTA O MUNDO DO TRABALHO DOCENTE E O ESGOTAMENTO PSÍQUICO Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientadora: Prof. Dra. Rita Melissa Lepre ASSIS 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp F383m Ferreira-Costa, Rodney Querino O mundo do trabalho docente e o esgotamento psíquico / Rodney Querino Ferreira da Costa. Assis, 2017. 188 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Drª Rita Melissa Lepre 1. Ansiedade. 2. Depressão. 3. Fadiga mental. 4. Saúde mental. 5. Professores. I. Título. CDD 616.89 DEDICATÓRIA Nesse estudo discorro sobre a dificuldade da sociedade de construir vínculos de longo prazo em um mundo tão efêmero como o nosso. Pensando nesse fenômeno, e como ato de resistência a essa realidade, dedico esse manuscrito à pessoa que esteve presente em toda a narrativa que construí desde o primeiro dia que coloquei os pés em Assis (2003), para iniciar minha graduação em Psicologia, até o término dessa dissertação: Fabiana Rodrigues da Silva Costa – minha ilustríssima esposa, parceira de pesquisas e colega de profissão. Agradeço por todo o afeto recebido e pelo incentivo para a volta à vida acadêmica. É certo que esse trabalho não seria possível sem o seu apoio e paciência para lê-lo inúmeras vezes. Nossas conversas, bem como suas críticas e sugestões permeiam todo o texto, o que faz a considerar tão autora como eu dessa empreitada. Agradeço pela história que compartilhamos e por gerar diariamente dentro de mim o desejo de sempre ser uma pessoa melhor. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço minha orientadora Melissa Lepre, pela ajuda e carinho. Você me acolheu em um momento delicado da pesquisa e conseguiu transmitir a calma que necessitava para dar prosseguimento. Minha gratidão será eterna. Aos companheiros de pós-graduação Tassiana Carli e Paulo Marinho. A amizade que construímos nesse percurso está entre as melhores coisas que me ocorreu. Lembrarei afetuosamente dos momentos de risadas e de histeria coletiva que passamos juntos. Decerto, ao lado de vocês, me tornei um psicoterapeuta melhor. Aos professores do programa que, ao longo do mestrado, compartilharam sua sabedoria, apresentando caminhos nos quais auxiliaram na construção teórico- metodológica do estudo. São eles: Danilo Veríssimo, Esdras Vasconcellos (IP/USP), Gustavo Dionísio, Mary Okamoto e Silvio Yasui. Cada um conseguirá sentir-se representado nesse texto. Ao colega Nelson de Almeida Gouveia que, mesmo sem me conhecer previamente, auxiliou na parte estatística do estudo. Obrigado por tamanha generosidade. Considere-se como um dos responsáveis para a existência dessa obra. Aos professores que gentilmente aceitaram participar das bancas de qualificação e defesa: Antônio Francisco Marques (Unesp/Bauru) e Rosana de Sousa Pereira Lopes (UEL). Foi um privilégio tê-los como avaliadores. Suas contribuições e críticas foram inestimáveis para a qualidade do trabalho. A todos os docentes e gestores de São José dos Campos (SP), que participaram dessa pesquisa. É com grande carinho que me lembrarei desse contato. Guardo todos dentro de meu coração, por terem me permitido adentrar em seus espaços e por compartilharem um pouco do que sentiam. Espero que a confiança depositada em mim possa gerar frutos que auxiliem na melhoria das condições de trabalho no Magistério. Aos meus queridos colegas de trabalho, principalmente a equipe do Ambulatório de Saúde Mental Adulto do CVV, e aos educadores pertencentes à rede municipal de ensino de Paraibuna (SP). A experiência acumulada nesses espaços foi de uma riqueza imensurável, fico feliz por todos terem feito parte de minha vida. Esses lugares foram, sem dúvida, a melhor escola que tive. Agradecimento especial dedico ao professor Evânio Leal de Lima (in memoriam), que até meados de 2016 fora Secretário de Educação e, consequentemente, meu chefe. Uma das pessoas mais correta e trabalhadora que tive o prazer de conhecer. É com pesar que nesse momento não possamos compartilhar essa conquista, visto o respeito que nutríamos um pelo outro, apesar das discordâncias ocasionais. A meus pais, Dona Cleonice e Seu Jeremias (in memoriam), meus irmãos, Rogério, Ricardo e Rodrigo, e meus sogros, Dona Francineti e Seu Alberto, que, cada um a sua maneira, ajudou em meu desenvolvimento como ser humano. Às vezes, é necessário tempo e distanciamento para que certas experiências vivenciadas possam ser melhor compreendidas – ou ressignificada, para utilizar uma palavra cara aos psicólogos. Creio que hoje consigo demonstrar melhor a gratidão pela (ótima) formação que tive. Foram muitos os momentos de alegria, e mesmo os ruins foram essenciais para me tornar o que sou hoje. À minha psicoterapeuta Fernanda Falcão, por toda a ajuda dispendida ao longo desses anos e por me acompanhar nessa caminhada até esse momento. Certamente, você foi responsável pela minha sanidade mental ter saído ilesa desse processo. Encerrando, deixei para agradecer por último à pessoa mais importante para a elaboração dessa pesquisa: meu primeiro orientador Nelson Pedro-Silva. Você foi um verdadeiro mestre e um grande amigo. Sei de todos os esforços e a dedicação ímpar no qual debruçou sobre nossos escritos. Acredito que ambos crescemos nessa trajetória, e que toda a energia psíquica gasta no processo foi recompensada. Espero corresponder à confiança depositada, e possamos continuar juntos construindo conhecimento. Queixa antiga É uma dor que me dói muito longe... Dor antiga, separada do corpo. É uma dor que me dói não sei onde, meio física, metade celeste. Um tanto minha, outro tanto da terra. Veja o galho cortado a uma fronde e que ainda dá flores sentidas e que assim à sua árvore responde. Seu futuro parece o meu passado: minhas longas raízes ficaram no chão duro de onde fui arrancado. (No chão duro onde arroios felizes ainda cantam pelos vãos do passado) Cassiano Ricardo, poeta de S. J. dos Campos (1894-1974) FERREIRA-COSTA, R. Q. O mundo do trabalho docente e o esgotamento psíquico. 2017. 188 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2017. RESUMO Organizações que estudam a situação profissional do docente têm apontado que, atualmente, o magistério é considerado um trabalho de risco e, consequentemente, com maior probabilidade de adoecimento mental. Diante desse quadro, esta pesquisa tem por objetivo analisar os níveis de ansiedade e de depressão dessa população e aferir a relação destes níveis com as características pessoais e trabalhistas. Para tanto, foram sujeitos da pesquisa 163 professores do Ensino Básico da rede pública estadual de São José dos Campos (SP). Para a obtenção das informações, utilizou-se as escalas Beck Anxiety Inventory (BAI) e Beck Depression Inventory (BDI) e questionários com o intuito de coletar dados sociodemográficos e relacionados ao grau de satisfação com o trabalho. Os resultados indicaram que 58,0% dos questionados estavam psiquicamente adoecidos, e 27,0% deles apresentaram sintomatologia condizente a um quadro de transtorno de ansiedade ou de depressão. Entre os grupos considerados mais vulneráveis, destacaram-se os que: a) declararam não ter religião; b) trabalhavam em apenas uma escola; possuíam um filho; d) tinham feito mais de uma graduação acadêmica; e) desaprovavam algum aspecto de seu trabalho; e f) estavam usando medicação com função psicotrópica. Acredita-se que o processo de subjetivação desencadeado pela efemeridade das relações contemporâneas, juntamente com a dinâmica trabalhista do curto prazo, da flexibilidade, da competitividade e da produtividade, tem se apropriado de todas as reservas psíquicas do professor, desestimulando-o a estabelecer vínculos profundos com a sua função e com os estudantes, além de contribuir para o seu adoecimento. Foi possível concluir, assim, que é urgente a criação de políticas educacionais que levem em consideração a saúde mental dos docentes, promovendo ações que possam prevenir seu adoecimento, bem como remediá-lo, tais como oferecer maior acesso a serviços médico e psicológico; implantar projetos que aproximem educadores, educandos e familiares; possibilitar a diminuição do conteúdo programático obrigatório, entre outros. Palavras-chave: Ansiedade. Depressão. Fadiga mental. Saúde mental. Professores. FERREIRA-COSTA, R. Q. The world of teaching work and psychological exhaustion. 2017. 188 f. Dissertation (Masters in Psychology). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2017. ABSTRACT Organizations that study the professional situation of teachers have pointed out that the teaching profession is currently considered risky work, which, consequently, has a higher probability of mental illness. In view of this context, this research has aimed to analyze the levels of anxiety and depression of teachers and to assess the relationship of these levels with personal and labor characteristics. To this end, 163 early childhood, primary and secondary teachers of São Paulo state‟s public education system in São José dos Campos city were subjects of the research. Beck Anxiety Inventory (BAI), Beck Depression Inventory (BDI) and questionnaires were used to collect sociodemographic data and information on the degree of satisfaction with work. Results indicated that 58.0% of respondents were psychologically ill, and 27.0% of them had symptomatology consistent with anxiety or depression disorders. Among the groups considered most vulnerable, the following stood out: (a) those who declared they had no religion; (b) worked in only one school; (c) had a child; (d) had more than one academic degree; (e) disapproved of some aspect of their work; and (f) were using medication with a psychotropic function. It is believed that the process of subjectivation triggered by the ephemerality of contemporary relationships, along with the dynamics of short-term labor, flexibility, competitiveness, and productivity, has appropriated all the psychological reserves of teachers, discouraging them to establish deep connections with their job or students, besides contributing to their illness. Therefore, it was concluded that there is an urgent need for educational policies that take into account the teachers‟ mental health, promoting actions to prevent and remedy their illnesses, such as offering greater access to medical and psychological services; implementing projects that bring together educators, learners and their families; making it possible to reduce compulsory content, among others. Keywords: Anxiety. Depression. Mental fadigue. Mental health. Teachers. ÍNDICE DE QUADROS E FIGURAS Quadro 1 – Classificação das Escalas Beck (BAI e BDI) ................................... 105 Quadro 2 – Correlação de Person ...................................................................... 107 Figura 1 – Graduação da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) por área de conhecimento ..................................... 117 Figura 2 – Distribuição da amostra de docentes (n) da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) pelo nível de ensino que trabalha ......... 122 Figura 3 – Incidência de Transtorno de Ansiedade e/ou Depressão na amostra de docentes de São José dos Campos (SP) ...................................................... 127 Figura 4 – Incidência de adoecimento/esgotamento mental na amostra de docentes de São José dos Campos (SP) ........................................................... 128 ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1 – Distribuição da amostra de docentes da rede de ensino estadual de São José dos Campos (SP) .......................................................................... 101 Tabela 2 – Perfil sociodemográfico da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) .......................................................... 115 Tabela 3 – Formação acadêmica da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) ............................................................... 116 Tabela 4 – Histórico profissional da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) ............................................................... 118 Tabela 5 – Características profissionais da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) ........................................... 120 Tabela 6 – Distribuição da amostra de docentes da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP) referente a tratamento psicológico e psiquiátrico .......................................................................................................... 123 Tabela 7 – Distribuição da amostra de docentes de São José dos Campos (SP) referente ao histórico de queixas apresentadas para o uso de medicamento ...................................................................................................... 125 Tabela 8 – Resultado das Escalas Beck de Ansiedade e Depressão (BAI e BDI) da amostra de docentes de São José dos Campos (SP) ........................... 126 Tabela 9 – Distribuição referente ao grau de satisfação sobre aspectos estruturais, materiais e pecuniários dos docentes de São José dos Campos (SP) ..................................................................................................................... 130 Tabela 10 – Distribuição pelo grau de satisfação dos docentes, referente às relações estabelecidas com os funcionários da escola onde leciona ................ 131 Tabela 11 – Distribuição pelo grau de satisfação dos docentes, referente às relações estabelecidas com os estudantes e seus responsáveis ...................... 132 Tabela 12 – Distribuição referente à satisfação profissional e ao tempo disponível para prática educativa ....................................................................... 133 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 15 I - CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO ................................................. 29 1 Origens, transformações e desafios da contemporaneidade .......................... 30 1.1 Um pouco de história ................................................................................. 34 2 A saúde do trabalhador na sociedade capitalista: feridas psíquicas e morais 38 3 Burnout – O trabalho sugando a energia interna do sujeito ............................ 49 II - ESCOLA ADOECIDA: ESTUDOS ANTERIORES ....................................... 54 1 Uma análise da saúde mental do professor: estudos e referenciais teóricos . 55 2 Temas abordados ............................................................................................ 60 2.1 Motivos médicos de afastamento de professores de suas funções .......... 60 2.2 Incidência de transtornos mentais e/ou físicos ......................................... 61 2.3 Aspectos da prática profissional docente geradores de doenças ............. 70 2.4 Satisfação profissional e qualidade de vida ............................................... 74 2.5 Pesquisa interventiva ................................................................................. 78 2.6 Comparação entre realidades distintas ..................................................... 79 2.7 Conhecimento sobre o tema da saúde mental .......................................... 80 2.8 Influência do adoecimento do professor no processo educativo ............... 81 3 Síntese e considerações ................................................................................. 82 III - ANSIEDADE E DEPRESSÃO: as doenças da contemporaneidade ....... 84 1 Algumas considerações sobre o assunto ........................................................ 86 2 Ansiedade ........................................................................................................ 88 3 Depressão ....................................................................................................... 92 IV - OBJETIVOS E PERCURSO METODOLÓGICO ......................................... 98 1 Objetivos do estudo ......................................................................................... 99 2 Tipo de pesquisa e referencial teórico ............................................................. 100 3 Sujeitos ............................................................................................................ 100 4 Instrumentos .................................................................................................... 102 5 Procedimento geral para coleta das informações (dados) .............................. 104 6 Procedimento geral para a análise das informações (dados) ......................... 105 7 Comitê de ética ................................................................................................ 108 8 Algumas considerações sobre a aplicação dos instrumentos e a devolutiva dos dados ........................................................................................................... 108 V - RESULTADOS ............................................................................................. 113 1Informações pessoais e profissionais ............................................................... 114 1.1 Perfil sociodemográfico dos professores ................................................... 114 1.2 Formação acadêmica ................................................................................ 116 1.3 Histórico profissional .................................................................................. 117 1.4 Atuação docente ........................................................................................ 119 2 Saúde mental ................................................................................................... 122 2.1 Medicação e psicoterapia .......................................................................... 122 2.2 Níveis de Ansiedade e Depressão ............................................................ 126 3 Satisfação com o trabalho ............................................................................... 130 VI - ANÁLISE DOS RESULTADOS ................................................................... 135 1 A saúde mental em um mundo flexível e de relações de curto prazo ............. 136 1.1 A situação psíquica do professor e estratégias de enfrentamento ............ 136 1.2 Ansiedade, depressão e dados sociodemográficos .................................. 138 2 As condições encontradas para a prática de ensino: um olhar sobre a satisfação dos professores ................................................................................. 147 2.1 Ambiente laboral ........................................................................................ 148 2.2 Relações estabelecidas no espaço escolar ............................................... 150 2.3 Satisfação profissional e o controle sobre o tempo ................................... 153 VII - CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................... 157 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 166 APÊNDICES E ANEXOS ................................................................................... 182 15 INTRODUÇÃO 16 Os estudos aperfeiçoam a natureza e são aperfeiçoados pela experiência. Francis Bacon (1561-1626) Em 2003 ingressamos no curso de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Assis. Desde essa época já nos interessávamos por assuntos relacionados à educação. Inclusive, durante esse período, fizemos estágio profissionalizante em “Psicopedagogia e desenvolvimento infanto-juvenil”. Além disso, realizamos duas pesquisas de iniciação científica sobre o uso de jogos como recurso pedagógico1. Com o término da graduação, ocorrido em 2007, começamos a desenvolver nossa prática profissional em dois lugares. Ao mesmo tempo, iniciamos atuação como psicoterapeuta em um ambulatório de saúde mental localizado em São José dos Campos (SP) e como psicólogo escolar junto à Diretoria de Ensino de Paraibuna (SP). Os anos em que atuamos como psicoterapeuta possibilitou que tivéssemos contato diário com grande número de pessoas que apresentavam as mais variadas queixas. Seus sofrimentos, os sentidos que atribuíam a sua existência, bem como as formações de vínculo, foram importantes para o nosso desenvolvimento como psicólogos e indivíduos. Aprendemos a escutar e a acolher as demandas do outro, assim como a interpretar o silêncio, a trabalhar com profissionais de diversas áreas, a enriquecermos com a “troca” de saberes, a respeitar a dor alheia – frequentemente invisível aos olhos de outrem – e a auxiliar em sua superação, entre outros aspectos. O caminho percorrido como psicólogo escolar foi, a nosso ver, mais penoso. Porém, assim como o de psicoterapeuta foi igualmente rico. Quando iniciamos os nossos trabalhos, junto à referida Diretoria de Ensino, as escolas nos receberam com um misto de sensações. Alguns educadores nos viram como a “salvação da lavoura” e nos atribuíram poderes quase divinos de modificação do estado de ser das pessoas. Em decorrência desse raciocínio, os docentes nos encaminharam crianças com laudo médico de deficiência intelectual, com a esperança de que este estado fosse revertido. Outros nos viram com desconfiança, por temer que 1 Tratou-se dos estudos intitulados O uso do RPG como possível auxiliar pedagógico (FERREIRA- COSTA et al., 2007) e O role-playing game como ferramenta de aprendizagem no Ensino Fundamental e Médio (FERREIRA-COSTA et al., 2008), orientados pelo Prof. Dr. Eduardo Galhardo. 17 interferíssemos em suas práticas e nas rotinas da escola. Existiu, também, um pequeno grupo que literalmente entrou em crise psiquiátrica, com alucinações de persecutoriedade de que “descobriríamos” e “exporíamos” seus estados mentais. Estes, antes mesmo de nos conhecer, partiram para o enfrentamento, com intuito de nos descredibilizar para que, assim, nossa fala perdesse força frente aos demais. Com muito esforço e trabalho, feito de maneira paulatina, acreditamos ter conseguido desconstruir a imagem que atribuíam ao psicólogo, principalmente em relação a nossa intervenção. Por ser um trabalho institucional, começamos a participar dos espaços reservados para as reuniões de professores, denominado Horas de Ensino Continuado (HEC). Nesses encontros, buscamos trocar conhecimentos e, muitas vezes, os auxiliamos no tocante aos problemas vivenciados por eles, sobremaneira na relação estudante-escola-família. Foi nessa ocasião que disponibilizamos, na maioria das unidades de ensino, horários de supervisão e de acolhimento para professores, educandos e responsáveis. Estes são alguns exemplos do que realizamos. O que pretendemos dizer com esta exposição é que, com o tempo, conseguimos estabelecer vínculo com a maioria dos educadores e, por fim, nos tornamos um deles, ou seja, passamos a fazer parte da horda dos docentes. Essa relação estabelecida nos permitiu ter acesso a outros aspectos de suas vidas, além dos relacionados ao seu trabalho, os quais a maioria das pessoas tem dificuldade em explicitá-los. Verificamos que muitos deles estavam desorientados com relação aos rumos de suas vidas, tanto na dimensão pessoal quanto na profissional. Ora, desconhecemos alguém que possa afirmar possuir total domínio sobre esses aspectos. No entanto, no caso de nossos colegas, tal situação já tinha deixado marcas em seus corpos e mentes, a ponto de comprometer consideravelmente a qualidade de vida. Informamos que nesses momentos, não conseguíamos desvencilhar nosso olhar de profissionais da saúde mental, isto é, aquilo que eles nos narravam não era apenas produto de um quadro de angústia normal e esperada de qualquer existência humana. Para nós, eles estavam doentes ou adoecendo psiquicamente. No dia-a-dia de trabalho era possível observarmos o reflexo dessa situação: pedidos de afastamento médico; problemas de relacionamento, mesmo com aqueles com os quais tinham amizade; dificuldades para lidar com a dinâmica dos educandos; consequentemente, maior quantidade de encaminhamento de 18 estudantes para psicólogo e outros profissionais (principalmente do setor de Saúde); relatos de sintomas de pânico quando tinham que se dirigir à instituição educativa no qual desempenham atuação profissional, entre outros. Diante desse quadro, nós começamos a realizar algumas ações junto a esses trabalhadores visando seu bem estar. Inspirado em atividades ocorridas nas supervisões técnicas junto à equipe multiprofissional no ambulatório – denominadas “cuidar de quem cuida” – criamos alguns canais para que as inquietudes desses profissionais pudessem ser verbalizadas. Tempos depois, timidamente, estabelecemos pontes com outros serviços do município. A nossa intenção era a de que eles contassem com o auxílio de outros profissionais, como psiquiatras. Houve professores que com uma única escuta sentiram que suas energias tinham sido renovadas. Outros necessitaram realizar tratamento médico e/ou psicológico. Obviamente, nem todos os educadores deram abertura para esse tipo de intervenção. Muito menos, nos colocamos na posição de que solucionaríamos todas as demandas feitas. No entanto, essa experiência nos levou a refletir sobre a importância da saúde mental para a concretização da prática docente, bem como os seus reflexos no processo de ensino-aprendizagem e no estabelecimento de vínculos nesse lugar. Por ser a escola um espaço de convívio obrigatório dos quatro até os 17 anos de idade, conforme estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/962) (BRASIL, 1996), essa instituição tem o dever de desempenhar papel fundamental no desenvolvimento global do indivíduo. Isso se deve, entre outros fatores, pelo ingresso das pessoas em idade tenra nessa instituição. Por conseguinte, a nosso ver, é esperado que muitas das primeiras experiências necessárias à formação da subjetividade ocorram nesse ambiente. Logo, mais do que um espaço de transmissão das informações produzidas ao longo da história da humanidade, a Escola não pode perder de vista a sua importância no fortalecimento e/ou na transformação da sociedade. Com referência a isso, Paín (1985) afirma que a educação desempenha quatro funções interdependentes. A primeira é a de manter o status quo vigente, por meio da reprodução em cada indivíduo das normas e regras que visam garantir a permanência da espécie. A segunda relaciona-se a sua função socializadora, isto é, 2 A idade obrigatória pela LDB sofreu alteração pela Lei 12746/13 (BRASIL, 2013). 19 a de transformação do ser humano em sujeito, em ser civilizado, por meio do emprego das ferramentas construídas pelo homem, assim como da linguagem e do modo de vida existente. A terceira, diz respeito à função repressiva. Se “[...] a educação permite a continuidade funcional do homem histórico, garante também a sobrevivência específica do sistema que rege uma sociedade [...]” (PAÍN, 1985, p. 12). Por fim, as contradições do sistema levam a educação a funcionar como elemento transformador da ordem social em voga. Saviani (2015, p. 287), por sua vez, considera a ação educativa como [...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. Ainda a esse respeito, com base na Declaração Universal dos Direitos do Homem, Piaget (1948/1972, p. 51 e 72) afirma que a educação a) é um direito de todos; b) deve ser gratuita; c) visar o pleno desenvolvimento da personalidade do educando e “o reforço do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais”; bem como, d) ”favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos”. Para tanto, tal ambiente deve ser adequado à realização de tais funções. Só assim, os educandos podem efetivamente se transformar em cidadãos. Em outras palavras, para que tenhamos estudantes civilizados e críticos, é necessário que a Escola seja um local socializador e, igualmente, crítico. Dessa forma, é necessário que os diversos atores que habitam esse espaço (professores, pessoal técnico- administrativo, coordenadores e dirigentes, entre outros), estejam preparados para lidar, de um lado, com as demandas dos educandos e, de outro, com as exigências para se viver em sociedade. Para isso, o professor é uma figura fundamental. Não nos referimos aqui apenas à sua qualificação técnica, mas também à sua formação psicológica e social, sobretudo no tocante à sua capacidade para lidar com o outro, notadamente em situações de conflito e de desafio. Nesse ponto, nos indagamos, quais são as políticas e as estratégias que a Escola tem empregado, hoje, para lidar com as adversidades que ocorrem em seu espaço? 20 Segundo Elias (2014) e Pereira (2015), contudo, na economia capitalista – onde o ensino é tratado como mercadoria, devido à busca desenfreada pelo lucro – ações de promoção à saúde laboral, muitas vezes, são ignoradas pelos gestores. A preocupação está concentrada no aumento da quantidade de estudantes matriculados e aprovados, ficando a saúde do professor em segundo plano – para não dizer, em último. Foi esse um dos aspectos que observamos, a partir de nossa prática profissional, como psicólogos escolares na citada rede pública de ensino – o adoecimento psíquico dos professores. Verificamos, a partir de nossos atendimentos, que parcela considerável do corpo docente estava sofrendo psiquicamente. Dentre as causas para este estado, ouvimos relatos de sentimentos de impotência, desmotivação e tristeza para o exercício profissional. Atribuíam tais problemas, frequentemente, a insatisfação com as condições atuais oferecidas para o exercício da profissão – baixa remuneração, dificuldade de diálogo com a direção, pais e demais professores, imaturidade e problemas de comportamento dos educandos. Ao tomarmos contato com dados e estudos realizados por organizações e pesquisadores dedicados à análise da situação profissional do professor, notamos que a realidade na qual estávamos inseridos era semelhante à de outras instituições escolares. Dentre esses organismos, Oliveira e Leite (2012) citam o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) que, em parceria com o Grupo Géia – instituição de consultoria de empresas e entidades de classe –, coordenou pesquisa desenvolvida em 2010, cujo objetivo principal foi o de realizar panorama da saúde dos profissionais da Rede Estadual de Ensino de São Paulo. Os dados levantados apontaram que mais de 40,0% dos docentes entrevistados apresentaram em ano anterior à pesquisa (2009), comprometimentos quanto à sua saúde mental. Os principais “distúrbios” verificados foram depressão (29,0%) e ansiedade (23,0%). Segundo a avaliação dos pesquisadores, esses dados colocam as doenças mentais como a maior responsável por afastamento laboral de professores devido a problemas de saúde. Encontramos, também, dados disponibilizados pelo Departamento de Saúde do Servidor (DSS), órgão subordinado à Secretaria Municipal de Gestão e Desburocratização da cidade de São Paulo (SP). Esse organismo informou que, em 21 2009, houve quase 5 mil afastamentos de docentes da Rede Municipal de Ensino por causa de doenças mentais – quantidade equivalente a 10,0% do total de professores da citada rede de ensino (CAPITELLI, 2010). Em 1998, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) também realizou estudo, conjuntamente com pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), cuja finalidade foi a de investigar a presença da Síndrome de Burnout (doença psíquica caracterizada por esgotamento físico e mental, decorrente da relação não saudável com o trabalho). Para dar medida do problema, dos 52 mil educadores de diferentes regiões do país investigados, cerca de 25,0% deles sofriam, na época, da referida síndrome. Na mesma pesquisa, evidenciou-se o desconhecimento dos médicos em relação a essa patologia prejudicando, assim, o estabelecimento de estratégias de diagnóstico para seu enfrentamento (CODO, 1999). Tal ignorância, inclusive, foi confirmada pelo estudo de Batista et al. (2011), cuja intenção foi a de analisar o conhecimento de profissionais da área de saúde do município de João Pessoa (PB) sobre a referida síndrome: 75,0% desses profissionais a desconheciam, inclusive que esta era uma doença de trabalho, conforme classificação do Ministério da Saúde (BRASIL,1999). Além disso, os citados pesquisadores verificaram que mais de 80,0% nunca tinham feito um diagnóstico dessa patologia. Outro dado apontado referiu-se aos tipos de doenças mentais e o consequente motivo para afastamentos. Dos professores que foram diagnosticados com psicopatologia, houve grande incidência de sintomas depressivos e ansiosos, a saber: 41,0% apresentaram episódios depressivos; 8,3%, transtornos depressivos recorrentes; 14,8%, transtornos ansiosos, igual porcentagem de estresse grave e transtornos de adaptação; 4,2%, transtorno fóbico-ansioso; 2,6%, transtorno do humor e 1,6%, transtorno afetivo bipolar. Dados esses números, os autores chegaram a alertar para a necessidade de se criar políticas públicas com relação à saúde mental dos docentes: [...] é preciso que haja medidas de intervenção por parte das políticas públicas no sentido de valorizar o professor e cobrar maior eficiência no que se refere à avaliação de sua saúde. Essas medidas devem considerar uma realidade em que a saúde mental da categoria docente está comprometida, atingindo, consequentemente, seu desempenho no trabalho, suas relações pessoais e a qualidade de sua educação. (BATISTA et al., 2011, p. 434). 22 Tais observações vão ao encontro de trabalhos realizados por Delcor et al. (2004), Gasparini, Barreto e Assunção (2005, 2006), Goulart Júnior e Lipp (2008), Souza e Costa (2011) e Souza e Leite (2011). Esses pesquisadores investigaram a saúde mental dos educadores e as possíveis causas ambientais. As queixas dos professores foram, entre outras, as seguintes: - baixos salários; - indisciplina dos estudantes; - ações violentas praticadas por educandos e pais em relação aos docentes; - sobrecarga de funções, como organização dos materiais da sala de aula, correções das lições e provas, elaboração das aulas, entre outras, sem o reconhecimento institucional de que essas ações fazem parte da profissão docente; - ambiente físico inadequado, sobretudo as condições climáticas e o barulho provocado por estudantes, pessoal técnico-administrativo e, até mesmo, por outros professores da escola; - ausência de materiais para o desenvolvimento – de maneira minimamente adequada – do processo de ensino e aprendizagem; - jornada dupla de trabalho (às vezes, tripla); - desvalorização social da profissão; - falta ou dificuldade de diálogo com a direção e a coordenação da escola; - ausência de união entre os educadores. Não podemos deixar de destacar o fato de o trabalho docente, na atualidade, ser considerado uma profissão de risco e, por conseguinte, com maior probabilidade de adoecimento e afastamento, conforme apontou o relatório da Organização Internacional do Trabalho (1984)3. É uma atividade que exige adaptação constante do profissional que a executa, pois demanda lidar frequentemente com pessoas, sobremaneira com aquelas que estão em processo de desenvolvimento físico e psicológico4. A esse propósito, em pesquisa acerca das condições de trabalho e seus efeitos sobre a saúde dos professores da rede municipal de ensino de Belo Horizonte (MG), Gasparini, Barreto e Assunção (2005) verificaram que os 3 Trata-se do primeiro relatório, encontrado por nós, feito por esse organismo cujo teor caracterizou como risco a profissão docente. Informamos que não identificamos documentos mais recentes que tenha feito menção a esse aspecto. De qualquer forma, julgamos que a situação não se modificou. 4 Isso não significa que esse processo é uma prerrogativa da docência. Todavia, a velocidade demandada de adaptação é, a nosso ver, maior. 23 afastamentos de professores, por problemas de saúde, relacionavam-se à saúde mental. Nesse mesmo estudo, eles citaram pesquisas realizadas em outros países (por exemplo, a de PITHERS; FOGARTY, 1995) que apontaram a incidência maior de doenças mentais entre docentes do que a verificada na média geral da população. Informamos que o sofrimento psíquico, além de gerar desilusão e desmotivação, também pode acabar produzindo complicações físicas. A esse propósito, Giannini, Latorre e Ferreira (2013) e Souza et al. (2011), ao analisarem os fatores associados à patologia de pregas vocais em docentes, constataram que transtornos mentais favorecem a incidência de complicações no aparelho fonador. Ceballos e Santos (2015), ao estimarem a prevalência de dor musculoesquelética em professores, encontrou, também, associação entre esse problema de saúde e a presença de adoecimento psíquico. Ainda sobre a alta incidência de doenças mentais entre os professores, as pesquisas realizadas no Brasil evidenciaram que o comprometimento da saúde mental desses profissionais, independia de eles ministrarem aulas em escolas públicas e/ou particulares. Tanto é que Delcor et al. (2004), ao realizarem um estudo junto aos professores da rede particular de ensino do município de Vitória da Conquista (BA), verificaram que mais de 40,0% dos docentes apresentavam alguma doença mental. Isso os levou a concluir que, independente da faixa social que os estudantes estejam inseridos, ou da estrutura física e econômica da escola, os professores exercem sua profissão num contexto de alta demanda psicológica e física, sem o retorno adequado – tempo gasto de locomoção para ministrar aulas, carga horária excessiva, baixos salários, condições de infraestrutura precárias para o desempenho profissional, desprestígio social, entre outros. Outro motivo que nos levou a tecer a propositura sobre a ansiedade e a depressão entre os docentes, decorreu do fato de termos verificado que o trabalho desenvolvido por tais profissionais, quando doentes, compromete a ação educativa, pois interfere diretamente na relação professor-educando, conforme apontou Pedro- Silva (2005), entre outros estudiosos dedicados à investigação da relação ensino- aprendizagem. Goulart Júnior e Lipp (2008) apresentaram raciocínio semelhante, chegando, inclusive, a conjeturar que esse é um dos motivos para que os estudantes abandonem a escola: 24 A presença de quadro sintomatológico de ordem psicológica, provavelmente, esteja influenciando negativamente as relações interpessoais que as professoras devem estabelecer com a comunidade escolar, com destaque para aquelas que devem manter com o corpo discente da escola. Deve-se ressaltar que o relacionamento adequado entre professor e aluno é condição essencial para o sucesso da relação ensino- aprendizagem, principalmente nos primeiros ciclos acadêmicos, ou seja, no Ensino Fundamental. (GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008, p. 856). Diante desse quadro, podemos ser levados a crer que o trabalho docente é uma atividade predestinada ao fracasso e ao adoecimento. No entanto, mesmo com todas as adversidades encontradas no ambiente escolar, não se pode negar que o perfil do educador é um dos fatores garantidores do processo educativo. E, neste, deve haver a capacidade de lidar e superar adversidades (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005; GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008; SOUZA; LEITE, 2011). Para esses autores, como apontamos, o sofrimento psíquico é desencadeado por dificuldades de adaptação, além das questões levantadas anteriormente. Para Goulart Júnior e Lipp (2008), o desequilíbrio ocorre quando nossa capacidade de adaptação não acompanha a velocidade das transformações, ocasionando situações de conflito e de stress. Apesar de não negarem que algumas profissões colocam o funcionário em situações mais estressoras – e o magistério, devido a sua prática dinâmica, insere o professor em constantes situações potenciais de desequilíbrio – os estudiosos disseram que não se podem atribuir as causas apenas aos fatores externos. Eles advogam que os internos também influenciam na execução do trabalho educativo. Amparam-se, para fazer essa afirmação, na noção de que algumas pessoas – pela sua história de vida reconstruída – são mais vulneráveis psiquicamente. Além disso, observamos – por meio de nossa experiência profissional – a procedência desse raciocínio. Nos atendimentos de pacientes jovens adultos que realizamos em ambulatório público de saúde mental, verificamos que a maioria apresentou quadro de depressão e de transtorno de ansiedade. Pois bem, quando instigados a expor suas pretensões profissionais, era comum eles manifestarem o interesse em cursar Pedagogia. Apresentavam como justificativas, entre outras: a) o baixo custo financeiro para a realização de tal curso; b) a grande oferta de trabalho remunerado; c) a maior possibilidade de estabilidade financeira e profissional e d) por julgarem ser um curso “mais fácil”. 25 Apesar de não termos encontrado estudos que relacionassem uma proporção maior de pessoas com depressão e/ou ansiedade e o exercício profissional ligado à Pedagogia, ao compará-lo com outras carreiras, podemos supor que muitos dos aspirantes a professor não se encaixam no perfil esperado de um educador, a saber: acentuado equilíbrio emocional e físico (GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008). Para Souza e Leite (2011), é a capacidade de resiliência do docente, isto é, seu poder de adaptação diante de adversidades, que garantirá a manutenção de sua saúde psíquica. E, por conseguinte, é exatamente esse um dos aspectos que possibilita o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem. [...] o sofrimento [psíquico] possui uma dimensão dinâmica que enseja um esforço criativo de transformação. Nesse sentido, o trabalhador não é um receptor passivo de agentes provocadores de doença, mas participativo desse processo, desenvolvendo um papel importante na produção de sistemas defensivos. Esse esforço, de caráter individual ou coletivo, pode tanto criar melhores condições para que os profissionais preservem sua saúde, mesmo em condições bastante adversas, como ser explorado pela organização em proveito da produtividade, provocando mais sofrimento psíquico. (SOUZA; LEITE, 2011, p. 1.108). Resumindo, os estudos parecem apontar que tanto fatores externos quanto internos têm contribuído para o adoecimento psíquico dos docentes. Afinal, mesmo que o professor tenha alta capacidade de resiliência, os fatores ambientais podem levá-lo a adoecer. Tal raciocínio é semelhante ao feito por La Taille (2002), Pedro- Silva (2002) e Piaget (1932/1994) em relação às condutas éticas e morais. Explicamos: os julgamentos alheios exercem influência considerável na determinação das condutas, até mesmo em sujeitos julgados “autônomos” – a não ser que eles sejam heróis –, como assinalou Flanagan (1991/1996). Deste modo, ao pertencer a um grupo, o indivíduo levará em conta os valores estimados nesse espaço para a construção de sua autoimagem. Assim, a manutenção e o fortalecimento de sua identidade dependerão de tais valores. Para Pedro-Silva (2002), sem essa subordinação, provavelmente os seres humanos deixariam de existir como sujeitos (seres civilizados). É exatamente essa a tese que Taylor (1989) parece defender quando faz considerações sobre o papel determinante da dignidade nas condutas morais e a de Audard (1993, apud LA TAILLE, 2000, p. 38) sobre o ser autônomo: “é preciso ser herói para continuar acreditando no próprio valor quando as marcas exteriores do reconhecimento social desaparecem”. 26 Eis o que Piaget (1954 apud LA TAILLE, 2000, p. 38-39, grifos nossos) diz a respeito: Para o adulto, desprezar os juízos de outrem é quase impossível. Poderíamos pensar na situação na qual se encontraram muitos grandes homens cuja obra foi incompreendida durante muito tempo, pintores, músicos que não tinham audiência do público. Mas percebemos que, quando prosseguiram suas obras, em realidade sempre havia em torno deles um pequeno grupo de pessoas íntimas sobre as quais eles podiam se apoiar, um ou dois indivíduos de elite que ocupavam o lugar da opinião geral, que eram os juízes dos quais necessitavam e que representavam a aprovação de outrem; a aprovação é algo essencial de que o homem tem enormes dificuldades de abrir mão. O que garante nosso equilíbrio, portanto, varia em função de aspectos relacionados ao “clima cultural geral” (o meio), expressão construída por Adorno et al. (1950 apud ROUANET, 1989) para se referirem ao fato de os sujeitos autoritários manifestarem condutas democráticas ou vice-versa. Este clima consiste [...] particularmente na influência ideológica pela qual o media [meios de comunicação de massa] modelam a opinião pública. Se o nosso clima cultural foi padronizado sob o impacto do controle social e da concentração tecnológica a um grau sem precedentes, podemos esperar que os hábitos de pensamento dos indivíduos reflitam essa padronização, da mesma forma que refletem a dinâmica de sua própria personalidade. Tais personalidades podem, na verdade, ser produtos dessa padronização [ao invés da personalidade de tais sujeitos]. (ADORNO et al., 1950 apud ROUANET, 1989, p. 175-176). Nesse sentido, indagamos: será que os professores, mesmo os que apresentam alta capacidade de resiliência, não estão adoecendo por conta do clima cultural geral que enfatiza o individualismo e a obtenção de status social e financeiro a qualquer custo? O que mudou na relação trabalho-trabalhador, a ponto de levar ao adoecimento, à corrosão do caráter e ao empobrecimento das relações interpessoais, até com familiares e amigos íntimos? Diante desse cenário é que está sendo praticado o ensino hoje, isto é, a escola não é vista como um lugar seguro e acolhedor por aqueles que constituem sua população. Além disso, parte significativa dos professores não tem conseguido lidar com as dificuldades (parte delas) inerente ao seu ofício, bem como criar estratégias individuais ou coletivas para resoluções de conflitos. Tal situação, por conseguinte, acaba por gerar adoecimento e desmotivação para o exercício da docência. Dessa forma, a experiência escolar é prejudicada, 27 tanto na concretização do processo de ensino e aprendizagem quanto na de estabelecimento de relações interpessoais e na produção e/ou obediência a valores éticos e morais. Sublinhamos: é quase consenso que uma educação ético/moral não é possível, apenas, com aplicação de aulas expositivas sobre o tema (ANDRADE, 2010). Assim como La Taille (2005), para que seja “despertado” no educando o interesse por valores como igualdade, generosidade, respeito mútuo e justiça, acreditamos que a instituição escolar deve vivenciar esses valores. Todavia, um professor adoecido, provavelmente terá dificuldade para concretizá-los, mesmo que os tenham construídos e sejam dignos de admiração. Pelo contrário! O que os estudantes acabam presenciando são situações de insubordinação, inimizades, ofensas e individualismos por parte dos profissionais frente a seus colegas e superiores. Com o adoecimento dos docentes, a nosso ver, a escola como um todo adoece e sua função social acaba não se concretizando – a formação de cidadãos para viverem em um regime democrático. É nesse contexto que se insere o nosso estudo acerca do adoecimento dos educadores. Considerando tais aspectos, com a presente pesquisa – como se verá adiante – verificamos os níveis de ansiedade e de depressão em tais profissionais. Igualmente, a) analisamos se os referidos níveis são dependentes de fatores factuais (idade, tempo de exercício profissional no magistério, situação conjugal, espiritualidade, escolaridade, entre outros); b) traçamos o perfil sociodemográfico e profissional dos docentes da rede de ensino estadual do município de São José dos Campos (SP); c) averiguamos e analisamos o grau de satisfação que os educadores tinham acerca de seu trabalho e a relação deste com seus níveis de ansiedade e de depressão; d) aferimos se havia relação entre os níveis de ansiedade e de depressão dos professores e o tipo de escola que ministravam aulas (instituição de ensino integral, meio período, Anos Iniciais e Finais do Fundamental e Médio); e) verificamos a proporção de docentes que estavam em uso de medicação, com função psicotrópica, e atendimento psicoterápico. Diante disso, no primeiro capítulo discorremos sobre evolução dos processos de trabalho ao longo da história, culminando com os desafios encontrados atualmente. Nesta parte, apresentamos a fundamentação teórica da pesquisa, que 28 teve como principal norteador os estudos de Sennett (2004; 2006; 2009; 2015) sobre o trabalho na contemporaneidade. No segundo capítulo, apresentamos a revisão bibliográfica sobre a saúde do professor. Foi nossa pretensão verificar os trabalhos realizados sobre a saúde mental do docente, independentemente do referencial teórico adotado. O terceiro capítulo foi dedicado à abordagem da ansiedade e da depressão. Nesse momento, definimos esses transtornos, com base na 10ª Revisão do Código Internacional de Doenças (CID-10). Além disso, refletimos sobre os fatores determinantes para a incidência das citadas patologias. O quarto capítulo é reservado à metodologia empregada no presente estudo. Neste, explicamos a escolha da amostra, os instrumentos utilizados para a investigação e os procedimentos adotados para a coleta e a análise das informações (dados). No quinto e no sexto capítulos, apresentamos e analisamos os frutos obtidos com o trabalho de campo. Primeiramente, apontamos os resultados e, em seguida, buscamos articulá-los com a revisão bibliográfica e os estudos de Sennett (2004; 2006; 2009; 2015). Por fim, no sétimo capítulo expomos as conclusões e as considerações finais. Esperamos, com isso, contribuir para o preenchimento de lacuna existente na literatura sobre a saúde mental dos professores, além de colaborar para o estabelecimento de políticas destinadas ao cuidado da saúde psíquica desses profissionais. 29 I - CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO 30 Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato? Como se podem buscar metas de longo prazo numa economia dedicada ao curto prazo? Como se podem manter lealdades e compromissos mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo reprojetadas? Richard Sennett (1943-) No presente capítulo, apresentamos o conceito de trabalho, com base no referencial teórico marxista. Assim, tecemos considerações sobre as consequências da exploração da mão de obra do trabalhador, sobremaneira as marcas deixadas em seus corpos e em suas mentes. Destarte, mesmo com os avanços possibilitados pelas leis e direitos trabalhistas, visando o bem estar do funcionário, observamos que a cultura do imediatismo, da efemeridade e da flexibilidade – características próprias do capitalismo pós-industrial – tem obrigado o trabalhador atual a se renovar constantemente e a não se apegar a nada, pois tudo é passageiro ou pode se tornar obsoleto, além de inexistirem estímulos que possibilitem o estabelecimento de vínculos profundos com o objeto de trabalho. Como corolário, pouca reserva psíquica tem sido destinada ao campo das relações intra e interpessoais, pois a subjetividade produzida tende a levar o empregado a viver em constante estado de ansiedade e inconstância. Afinal, não há lugar no mundo para a construção de suas narrativas. Esses caracteres da atualidade podem explicar a alta incidência de trabalhadores mentalmente adoecidos, principalmente entre aqueles que lidam diretamente com outras pessoas – como é o caso dos professores. 1 – Origens, transformações e desafios da contemporaneidade5 Para Saviani (2007, p. 152) o “trabalho e a educação são atividades especificamente humanas”. Partindo dessa premissa, não há como negar o protagonismo do trabalho na constituição psíquica. Nesse sentido, o trabalho diferencia os homens dos animais, pois estes vivem 5 Contemporaneidade se refere ao período histórico que teve início após a Revolução Francesa (1789-1799) e se estende até os dias atuais. Também conhecido como Pós-Modernidade, esse termo carrega em seu conceito uma miríade de transformações ocorridas na sociedade ao longo dos últimos séculos. Podemos considerar como características da contemporaneidade: a rapidez e efemeridade das relações e costumes, o imediatismo, a desterritorialização, a globalização, o mundo virtual, entre outras (HENNINGEN, 2007; MAZZOLINI, 2006). 31 [...] um mundo sem conceito. Nele [o mundo animal] nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada ao que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu, está fechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, nenhuma ideia a transcende. O animal não compensa a privação do consolo com a diminuição do medo, a falta da consciência da felicidade com a ausência da tristeza e a dor. (ADORNO; HORKHEIMER, 1944/1985, p. 230). O processo de transformação da natureza realizado pelo homem, por meio do trabalho, acaba por diferenciá-lo do animal, pois o primeiro o executa sendo dirigido por um projeto, ao passo que o segundo o faz porque é da sua natureza. A esse respeito, Marx (1867/1996, p. 298) assim se pronunciou, ao dissertar sobre a superioridade do homem em relação aos outros animais: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. Em outros termos, o trabalho é uma atividade em que há uma intencionalidade, há um pensamento que o antecede, na qual é estabelecida uma relação dialética entre ação e teoria, onde uma modifica a outra (ARANHA; MARTINS, 1993). Dessa forma, o trabalho coloca o homem em contato com o mundo, o transformando, e sendo, também, modificado por ele. Afinal, para a atividade labutar habilidades são aprendidas e desenvolvidas, relações sociais são estabelecidas – o que torna o trabalho essencialmente uma atividade coletiva –, afetos são estimulados e um maior conhecimento sobre a natureza (e como desafiá-la e dominá-la) são construídos. Em suma, além do aprendizado técnico, o trabalho possui importância para o indivíduo, pois desenvolve sua imaginação, seu senso crítico, sua capacidade de socialização, alterando a visão que o homem tem do mundo e de si mesmo. Por conseguinte, estudar este tema é, ao mesmo tempo, entender os processos históricos formadores de nossa sociedade, da moralidade, da intelectualidade e da personalidade, como apresentaremos a seguir. 32 Entendemos sociedade como um conjunto de pessoas que possuem semelhanças ou afinidades. As pessoas, nesse sentido, podem estar ligadas pela cultura, religião, etnia, política, costumes, entre outros aspectos. Nota-se que o conceito empregado aqui possui alcance maior do que as limitações geográficas. Dessa forma, um mesmo tipo de sociedade pode ser encontrado em vários países (por exemplo, a dos judeus), enquanto que uma nação pode (senão sempre) ser formada por várias sociedades, como o Brasil com sua origem multicultural, religiosa e étnica (SOCIEDADE, 2016). Quanto à moralidade, tal como Piaget (1932/1994) a definiu, conceituamos como um conjunto de regras e valores cuja finalidade é a de possibilitar a vida societária. Isso significa que qualquer sociedade estabelece normas que objetivam a convivência. Quando elas não são respeitadas, também é previsto punições, tanto as legais quanto às decorrentes dos costumes. Do contrário, a sociedade está fadada ao seu desaparecimento. Em relação à intelectualidade, a consideramos tal como Piaget (1932/1994). Isso significa que ela tem por finalidade possibilitar a construção de conhecimento, visando a nossa adaptação. Já a personalidade, assim como Rouanet (1989, p. 168) – amparado em estudos desenvolvidos por Adorno et al. (1950), a compreendemos como [...] uma organização de forças, mais ou menos durável, dentro do indivíduo. [...] é um produto histórico, o desfecho de um processo genético, cujos determinantes mais profundos vêm da socialização familiar, que determina de que forma os fatores ambientais contemporâneos influenciam o comportamento. Por sua vez, essa socialização familiar, pela qual o passado, num certo sentido, predetermina as reações a estímulos presentes, depende da situação social, étnica e religiosa, de cada família. A personalidade, uma vez constituída, constitui um sistema, que predispõe o indivíduo à aceitação de certas ideologias, e à rejeição de outras [...] A escolha da ideologia, de alguma forma, corresponde a “necessidades subjacentes da pessoa”. Feitas essas considerações, a existência do trabalho encontra-se no início dos tempos e desde então muitos foram os valores atribuídos a ele. Sua evolução influenciou nas dinâmicas das sociedades e nos modos de produção da subjetividade. Conforme definição vernácula (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1861), o conceito de trabalho significa: 33 1. conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim 2. atividade profissional regular, remunerada ou assalariada 3. exercício efetivo dessa atividade 4. local onde é exercida tal atividade 5. cuidado ou esmero empregado na feitura de uma obra 6. qualquer obra realizada (manual, artística, intelectual etc.); empreendimento, realização 7. qualidade de execução, feitura, lavor 8. ação ou modo de executar uma tarefa, de manejar um instrumento 9. tarefa a cumprir; serviço 10. esforço incomum; luta, lida, faina 11. aquilo que é ou se tornou uma obrigação ou responsabilidade de alguém; dever, encargo 12. ação progressiva e contínua exercida por elemento natural, e o efeito dessa ação 13. resultado útil do funcionamento de um aparelho, um maquinismo, um sistema etc. [...] 16. Rubrica: economia política. Atividade humana que se caracteriza como fator essencial da produção de bens e serviços 17. Rubrica: economia política. Conjunto dos trabalhadores que participam da vida econômica de um país [...] Vê-se, que o termo engloba várias atividades humanas. O cultivo da terra, a confecção de um sapato, a realização de um parto, o ensino, o canto, a pregação para uma plateia de fiéis. Em suma, tendo como parâmetro Marx (1867/1996), trabalho refere-se a todo ato produtivo que se espera um fim de uso. Este pode necessitar apenas do corpo ou de ferramentas; despender esforço físico e/ou intelectual; não necessitar de qualificação acadêmica ou exigir conhecimentos escolares básicos e até universitários. Os ganhos decorrentes dessas atividades são variáveis, podendo ser materiais, como o salário, ou abstratos, como a satisfação pessoal e o reconhecimento social. A respeito do trabalho intelectual, La Taille (2006, p. 8) afirma que, atualmente – pelo menos, para os docentes – este sequer tem possibilitado a citada satisfação e reconhecimento, já que não é visto como um valor: Tampouco o conhecimento parece ser considerado hoje como riqueza cuja posse, por si só, seria valorizada. Quantos alunos não perguntam: „para que me serve isso?‟. Ora, boa parte do conhecimento, notadamente científico, responde a uma curiosidade pura, não a uma demanda pragmática e urgente (pensemos na Astronomia). Numa sociedade de busca desesperada de prazer imediato e estonteante, a alegria paciente de conhecer fica em segundo plano, ou simplesmente não existe. É essa a situação dos docentes que ministram aulas no Ensino Infantil, Fundamental e Médio. Eles não são reconhecidos pela comunidade. Mesmo entre os docentes que lecionam em universidades não gozam mais desse status – outrora vistos como autoridades, isto é, figuras de poder, prestígio e dignas de serem amadas (LA TAILLE, 2006). 34 Feita essa digressão, existem serviços que são considerados socialmente de maior destaque e, por conseguinte, possibilitam à obtenção de maiores salários. Outros, ao contrário, geram pagamentos que mal garantem a subsistência do trabalhador. Há, ainda, certas ocupações que, a despeito de não possuir grande status social, garantem ordenados elevados. Por exemplo, há trabalhadores com formação técnica que ganham vencimentos superiores aos de muitas profissões que necessitam de curso superior para o seu desenvolvimento. Assim, o prestígio não corresponde necessariamente à obtenção de maiores rendimentos pecuniários. Isso sem contar os trabalhos não assalariados, como o doméstico. Feitas essas considerações preliminares, na sequência apresentaremos breve histórico da relação do homem com o trabalho, ao longo da história da humanidade. 1.1 – Um pouco de história Nos primórdios (há cerca de 150 mil anos), a relação do homem com o trabalho era apenas a de subsistência, ou seja, esse dependia apenas de si para conseguir seu alimento, vestimenta e abrigo. Muitos fatores contribuíram para que o trabalho tivesse esse caráter: a descoberta do fogo; a confecção das primeiras ferramentas; o domínio rudimentar da agricultura; o convívio em comunidade, entre outros. Expliquemos. Com o domínio do fogo, foi possível assar os alimentos, se aquecer, iluminar o lar à noite ou explorar áreas onde os raios do sol não entravam, além de servir como arma para se proteger dos predadores. Com a criação das ferramentas – entre elas a roda – todas as atividades passaram a necessitar de menos energia física para sua execução. Com a agricultura, aprendeu a plantar e a colher os frutos, diminuindo o deslocamento geográfico para a obtenção de alimentos. Dessa forma, deixando para trás a relação puramente extrativista, o cultivo, bem como a criação e a domesticação de animais, permitiu que o homem passasse a ter controle sobre a terra que habitava. A vida em pequenas sociedades propiciou que o trabalho fosse dividido. O homem primitivo percebeu que, com a união das forças, os ganhos decorrentes de seu trabalho eram maiores (SAVIANI, 2007). Porém, nesse momento da história ainda não havia a divisão social do trabalho, tal como concebida a partir da 35 Revolução Industrial (meados do sec. XVIII). Marx (1867/1996) – talvez o maior pensador a esse respeito – definiu a divisão social do trabalho, como todas as formas de trabalho útil (no caso, geradora de lucro), as quais se diferem em ordem, gênero, espécie e variedade. Essa divisão é necessária para a produção de mercadoria, pois cada funcionário passa a ser responsável por uma parte da sua execução. Apesar da existência, ao longo da história, de divisão social do trabalho, somente no sistema capitalista o produto se converteu em mercadoria (BOTTOMORE, 1988; MARX, 1867/1996). Com isso, os donos dos meios de produção (os capitalistas) passaram a comprar a força de trabalho do proletariado, diferentemente do que ocorria nas sociedades primitivas, cuja finalidade era a produção coletiva de bens: Ela existe [divisão social do trabalho] em todos os tipos de sociedade e tem origem nas diferenças da fisiologia humana, diferenças estas que são usadas para favorecer determinados fins dependendo das relações sociais que predominem. Além disso, comunidades diferentes têm acesso a diferentes meios de produção e de subsistência em seus ambientes naturais, e tais diferenças estimula a troca de produtos quando as diferentes comunidades entram em contato. Assim, a troca dentro de e entre unidades sociais (a família, a tribo, a aldeia, a comunidade, ou seja, o que for) dá impulso à especialização da produção e, portanto, a uma divisão do trabalho. (BOTTOMORE, 1988, p. 112). No entanto, falar da história do trabalho é falar do próprio desenvolvimento do homem, do ponto de vista filogenético. Um dos aspectos que enfatizaremos, nesse caso, se refere à capacidade que o ser humano possui de se colocar no lugar do outro e enxergá-lo como alguém dotado ou digno de iguais direitos. Sabemos que, ao longo da história, o conceito e o que consiste a dignidade humana foi tema de debates no campo da Filosofia, no das Ciências e da Religião (COMPARATO, 2010). Abordamos tal assunto, visto que ao longo dos processos históricos que permearam a evolução do trabalho, este se configurou em relações não igualitárias para a sua execução, isto é, no decorrer da história sempre houve uma classe social subjugando as demais. Nas palavras de Horkheimer (1976, p. 116): “A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem”. Dessa forma, após os primeiros arranjos de trabalho – que sobressaía o regime de produção comunal – começa-se a construir a noção de que a terra, antes 36 de todos, torna-se propriedade de alguns. Tal condição possibilitou que os donos das terras não precisassem mais trabalhar nela para garantir o seu sustento, pois o trabalhado era executado, em sua maioria, por escravos. Nesse sentido, a Antiguidade (4000 a.C. – 476 d.C.) viu surgir a separação dos homens em duas classes: a dos aristocratas e a dos escravos. Essa situação fez com que o trabalho braçal (produtivo) fosse visto como algo indigno, restrito aos escravos, cabendo às pessoas livres o trabalho intelectual (ARANHA; MARTINS, 1993; SAVIANI, 2007; VERA, 2009). No período medieval (sec. V – XV d.C.) preservou alguns aspectos do trabalho na Antiguidade, como a relação entre os Senhores e os escravos. Devido à fragmentação do poder dos reis, os camponeses viviam em terras cedidas por nobres senhores feudais, tornando-se assim seus servos. Como forma de pagamento, estes davam parte de seus ganhos, obtidos com o cultivo da terra e a criação de animais. As relações de poder praticadas no sistema feudal se assemelhavam com o regime de escravidão, pois o cidadão comum era o responsável pelo trabalho produtivo, enquanto a nobreza mantinha-se no ócio (ARANHA; MARTINS, 1993; VERA, 2009). É nesse período que surge a figura do artesão e, por conseguinte, as atividades laborais deixam de ser realizadas exclusivamente no campo. Para auxiliar o artesão na confecção de seus produtos, é criada a função do aprendiz. Este necessita do artesão como mentor no aprendizado das técnicas para a execução do ofício e, em troca, oferecia sua força de trabalho. Devido à carga de serviço elevada a ser executada, muitas vezes sem compensação financeira, os aprendizes acabavam se tornando a classe explorada nesse processo (VERA, 2009). Os modos de produção do feudalismo continuavam a ser de subsistência, tal como na Antiguidade. No entanto, devido aos avanços tecnológicos – como a invenção de maquinários –, as produções começaram a ter excedentes. Ora, com tais produtos em mãos, os trabalhadores começaram a trocar entre si, ativando o comércio local (ARANHA; MARTINS, 1993; SAVIANI, 2007). Com isso criou-se uma “organização da produção especificamente voltada para troca, dando origem à sociedade capitalista” (SAVIANI, 2007, p. 158). Nesse novo sistema social e econômico, a produção passa a ter um valor, tornando-se mercadoria. A moeda passa a ser o capital e é por meio dela que ocorrem agora as transações econômicas. Pela busca do capital, as produções 37 artesanais vão sendo substituídas por trabalhos em massa em que cada um é responsável por uma parte do trabalho realizado ao mesmo tempo. Apesar de sempre ter havido divisão social do trabalho na história da civilização, como apontamos, somente no capitalismo o produto desse esforço converteu-se em mercadoria. Dessa forma, a divisão passa a ocorrer tanto entre os produtores (capitalistas) – pois eles competem entre si – quanto entre os próprios trabalhadores, com cada funcionário responsável por uma parte da confecção da mercadoria (ARANHA; MARTINS, 1993; BOTTOMORE, 1988; MARX, 1867/1996). [Para Marx] a divisão do trabalho é uma condição necessária para a produção de mercadorias, pois, sem atos de trabalho mutuamente independentes, executados isoladamente uns dos outros, não haveria mercadorias para trocar no mercado. Mas a recíproca não é verdadeira: a produção de mercadoria não é uma condição necessária para a existência de uma divisão social do trabalho; mesmo as comunidades primitivas já conheciam a divisão de trabalho, mas seus produtos nem por isso se convertiam em mercadoria. (BOTTOMORE, 1988, p. 112). Com o objetivo de obter lucros maiores, o sistema só sobrevive com o aumento da produção de mercadorias, o qual só é possível com a divisão social do trabalho. O produtor que não dispõe de meios para fazer sua própria mercadoria, por sua vez, acaba vendendo sua força de trabalho em troca de salário (BOTTOMORE, 1988). Dessa forma, o trabalho acaba se constituindo em um elemento “estranho” ao trabalhador, pois esse deixa de pertencê-lo até no seu imaginário. Trata-se da alienação. Etimologicamente a palavra alienação vem do latim alienare, alienus, que significa “que pertence a um outro”. E outro é alius. Sob determinado aspecto, alienar é tornar alheio, transferir para outrem o que é seu. Para Marx, que analisou esse conceito básico, a alienação não é puramente teórica, pois se manifesta na vida real do homem, na maneira pela qual, a partir da divisão do trabalho, o produto de seu trabalho deixa de lhe pertencer. (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 12, grifos dos autores). Para Marx (1867/1996), como apontamos, o trabalho alienado desumaniza o homem. Com isso, cada vez ele acaba perdendo o protagonismo na construção de sua própria história, pois concebe o fruto de seu esforço como não mais lhe pertencendo, e sua força criativa e transformadora é diluída. O capitalismo ganha, assim, novos contornos com a mecanização acentuada do trabalho e, consequentemente, com a banalização do trabalho humano. Isso ocorre com o 38 aprimoramento tecnológico criado para o aumento da produção, e tem na Inglaterra do final do século XVIII e XIX seu primeiro grande expoente. Essa época recebeu o nome de Revolução Industrial (ARANHA; MARTINS, 1993; DEJOURS, 1987/2015; SAVIANI, 2007, VERA, 2009). Como observamos, o trabalho produtivo sempre foi utilizado como método de opressão daqueles que possuíam o poder (político/financeiro) sobre o restante da população. Quando escravos, o trabalho era uma punição empregada às infrações cometidas ou quando o povo era conquistado. Na Idade Média (sec. V – XV d.C.), principalmente com ascensão do protestantismo, tornou-se uma virtude, uma forma de chegar mais perto de Deus (SENNETT, 2009). Com relação à cultura cristã, não deixa de ser irônico que na Bíblia, na passagem que narra a expulsão do homem do Paraíso, o Criador sentencia: “[...] no suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra [...]” (BÍBLIA, Gênesis 3:19). De qualquer forma, as relações estabelecidas nas diversas modalidades de que o trabalho foi praticado tiveram influência na formação psíquica. Afinal, o trabalho definia o lugar do homem no tempo e no espaço, as ambições, as relações afetivas e os ganhos materiais. Obviamente, tamanho gasto energético – físico e mental – não ocorreu impunemente. O trabalho, como apontaram Dejours (1987/2015) e Sennett (2004; 2006; 2009; 2015), passou a ser um dos maiores responsáveis pelo adoecimento do sujeito. 2 – A saúde do trabalhador na sociedade capitalista: feridas psíquicas e morais O caminho percorrido foi longo para o reconhecimento dos reflexos físicos e psíquicos que o modo de produção desempenhado na sociedade infringia aos trabalhadores. No entanto, mesmo com o surgimento de leis de proteção e uma crescente literatura relacionada à saúde no trabalho, ainda há muitos desafios atuais para que o espaço laboral torne-se local de promoção de bem estar. Para entendermos a trajetória das conquistas trabalhistas, bem como os processos de subjetivação encontrados na economia de mercado no mundo contemporâneo, é necessário analisarmos as mudanças ocorridas na sociedade a partir da Revolução Industrial inglesa (final do sec. XVIII) e as transformações ocorridas na população até os dias atuais. 39 Inicialmente é importante identificarmos o homem que habita esse período. Um dos aspectos mais marcantes da sociedade capitalista é o surgimento da classe do proletariado. Esta se caracteriza pelo fruto de seu trabalho não mais lhe pertencer (ARANHA; MARTINS, 1993; BOTTOMORE, 1988; MARX, 1867/1999). Como pontuou Marx (1867/1996), devido às características da economia de mercado, era essencial que o trabalhador fosse livre para vender sua força de trabalho, bem como ter acesso a sua própria produção e a de outrem. Dessa forma, a escravidão não possuía espaço nesse sistema. O que deveria ser um grande avanço na forma como a sociedade lidaria com a dignidade humana, entretanto, mostrou-se pífia em sua execução. Tal pensador, ao analisar as condições de trabalho nesse período, constatou que era nítida a sua precariedade. Dentre os vários aspectos que contribuíram para essa debilitação destacam-se: a) as péssimas condições estruturais e de segurança das fábricas; b) a carga horária de trabalho excessiva, passando, frequentemente, de 12h diárias; c) os baixos salários, os quais não garantiam as mínimas condições econômicas para a sobrevivência; d) a ausência de direitos ou de leis de proteção ao empregado. Era comum, além disso, o uso de mão de obra infantil e de mulheres visando, dessa forma, diminuir ainda mais os custos sobre o salário e o aumento da mais- valia, ou seja, a diferença entre o valor produzido (mercadoria) pelo funcionário e o valor recebido, como forma de pagamento. Marx (1867/1996) considerava que essa “troca” de mercadorias entre o trabalhador (tempo de serviço) e o empregador (salário) era umas das características que melhor exemplificava a exploração, sofrida pelo operário, no sistema capitalista (BOTTOMORE, 1988). Tal situação desencadeava, conforme Dejours (1987/2015), baixa qualidade de vida, a qual acabava por obrigar os operários a viverem em situação de vulnerabilidade social. Evidentemente, a realidade em que eles estavam inseridos deixou marcas tanto em seus corpos quanto em suas mentes. O autor complementa que esse sofrimento recebeu a alcunha, pela literatura da época, de miséria operária. É inegável que essa condição gerava danos à saúde, ou seja, ocorre adoecimento quando o ambiente no qual o sujeito está inserido é incapaz de suprir 40 as necessidades básicas, como a de higiene, alimentação e lazer. Consequentemente, uma vida de privações acaba influenciando negativamente no desenvolvimento biológico e psíquico, afetando não só aspectos da saúde física do trabalhador, mas também em sua própria formação cognitiva, afetiva e, a nosso ver, sobretudo no campo das relações ético-morais – assunto que dissertaremos mais adiante. Nesse momento histórico é que são produzidas as primeiras pesquisas sobre a saúde do trabalhador. Dejours (1987/2015, p. 17, destaque do autor) aponta que nesse período três correntes começaram a estudar o fenômeno do adoecimento: [...] o movimento higienista, o movimento das ciências morais e políticas e o movimento dos grandes alienistas [Esquinol, Pinel, Orfila, entre outros], onde os médicos ocupam uma posição de destaque. O médico faz sua entrada triunfal no arsenal do controle social, forjando um utensílio que terá grandes destinos, e que reencontraremos, mais tarde, sob a imagem do “TRABALHO SOCIAL”. No entanto, ao invés de se preocuparem com a melhora na qualidade de vida dos trabalhadores, esses movimentos objetivaram – com suas investigações – o controle do indivíduo, numa tentativa de “consertar” aqueles que de alguma forma não estavam sendo suficientemente produtivos, conforme os padrões estabelecidos pelos donos dos meios de produção. Desse modo, ao analisar o adoecimento dos trabalhadores, estes não eram enxergados como seres em conflito e sofrimento, mas sim possuidores de uma gama de sintomas que deveriam ser suprimidos. É nesse contexto, inclusive, que os trabalhos de Freud (1893-1895/1996) começaram a ser feitos. Ao trabalhar no Hospital Geral com pacientes que apresentavam sintomas físicos, mas que a medicina da época não conseguia resolver – como quadros de cegueira, de paralisia de membros superiores e inferiores –, o pai da psicanálise começou a desconfiar de sua relação com fatores de ordem psíquica. A partir do final do século XIX, em países mais industrializados da Europa, iniciam-se movimentos socialistas, anarquistas e trabalhistas de oposição a esse quadro de opressão ao trabalhador (ARANHA; MARTINS, 1993). O romance Germinal de Émile Zola (1885/2000) é emblemático a esse respeito. Ele narra, em tom ficcional, a situação de miséria e exploração na qual eram submetidos um grupo de mineradores e suas famílias numa cidade francesa e sua consequente revolta. 41 Com a chegada do protagonista da história – Étienne – este compartilha com os demais trabalhadores ideias que vão contra o status quo a que estavam submetidos e organiza movimento de enfrentamento aos donos do capital. Após os funcionários entrarem em greve, em confronto (ideológico e físico) com os poderes locais, e, por conseguinte, serem privados dos salários, culminando com o atentado à mina, os funcionários, por fim, voltaram aos seus postos de trabalho. Contudo, as sementes da insatisfação e da reivindicação de melhores condições trabalhistas e sociais já estavam plantadas na população. Assim, o nascimento dos sindicatos ligados aos profissionais da indústria (sec. XVIII) e o seu fortalecimento acabam contribuindo para a elaboração de um conjunto de leis realmente efetivas, visto que, anteriormente era comum que as conquistas trabalhistas fossem questionadas por regulamentos que impediam a sua execução (DEJOURS, 1987/2015). Podemos destacar como exemplos, ocorridos sobretudo na Inglaterra, os seguintes: - diminuição de jornada de trabalho, de 10 horas para oito horas, em média; - repouso semanal; - estabelecimento e cumprimento de idade mínima para exercício profissional; - aposentadoria; - higiene e segurança no trabalho, com a criação e a obrigatoriedade de equipamentos e delegados de segurança, bem como indenizações em caso de acidentes. Houve melhora das condições de trabalho. Todavia, é certo que tais mudanças não nasceram de forma espontânea e nem produto do desejo dos donos do meio de produção. Como apontamos, elas foram decorrentes de conflitos de interesses entre empregadores e empregados. Mesmo o Estado – em tese, o representante dos interesses de todos – tentado suprimi-los, sem sucesso, já que ele representava os interesses dos donos do capital. Informamos que seus efeitos foram sentidos mais rapidamente nos grandes centros urbanos. Isso ocorreu porque nesses lugares os sindicatos estavam mais organizados e eram mais ativos. Nos pequenos centros e no campo, a atuação sindical era mínima. Muitos foram os fatores que contribuíram para isso: - a maior facilidade de acesso aos meios de comunicação ocorrida nas grandes cidades, contribuindo para o avanço das ideias marxistas; 42 - a articulação do movimento operário ter tido mais êxito nas fábricas de grande porte; - o deslocamento de grandes contingentes de trabalhadores da zona rural para os grandes centros, em busca de melhores oportunidades de emprego, entre outros aspectos. Outro salto qualitativo, no ambiente de trabalho, ocorreu entre 1914 e 1945, período que ocorreu as duas Grandes Guerras. Para Dejours (1987/2015, p. 24, grifo do autor), a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1345) foi a época que se caracterizou “[...] pela revelação do corpo como ponto de impacto da exploração”. Essa noção é fundamental, na medida em que leva as análises, tanto provenientes dos sindicatos quanto dos especialistas, a se preocuparem com um aspecto da saúde que consideramos, hoje em dia, indevidamente limitado. O alvo da exploração seria o corpo, e só o corpo. Também as análises econômicas críticas do sistema capitalista argumentam suas teses sobre a exploração a partir do corpo lesado, do corpo doente, da mortalidade crescente dos operários em relação ao resto da população. (DEJOURS, 1987/2015, p. 24). Apesar dos ganhos decorrentes com a mudança de postura, o alcance dessa visão ainda era limitado. A doença concebida era apenas aquela visível no corpo. Com isso, acabava-se desconsiderando o adoecimento psíquico, mesmo com os citados avanços na área da saúde mental divulgados, principalmente, pelos estudos sobre o inconsciente de Freud (1886-1939/1996). É nesse contexto que a doutrina da medicina do trabalho surge nas fábricas encarregadas de produzir “produtos” para a guerra e vai se espalhando gradativamente para outras empresas que produziam bens visando atender outras finalidades. Mesmo assim, a produtividade continuava sendo a maior preocupação do sistema. Nesse sentido essa medicina tinha por finalidade garantir e otimizar o funcionamento dos meios de produção. Entre 1950 e fim da década de 1960 nota-se, então, que a visão dominante de saúde do trabalhador era quase exclusivamente orgânica e/ou sobre os efeitos das condições de trabalho oferecidas. Nesse sentido, as preocupações se resumiam em verificar aspectos relacionados à ergonomia e aos agentes insalubres (exposição a gases, vírus, bactérias, o trabalho com máquinas que ofereciam grandes riscos de acidentes, entre outros). 43 A despeito das melhorias propiciadas pela medicina do trabalho, uma característica marcante do sistema de produção capitalista dessa época dizia respeito à despersonalização do indivíduo, isto é, o homem “pensante” – que já não era tão valorizado – deixou de ter lugar na fábrica, pois a sua capacidade intelectual passou a ser desconsiderada na execução das tarefas. A esse respeito, Sennett (2009) exemplifica com a situação dos padeiros, em uma determinada realidade. Ele notou que não havia mais a exigência de se ter um profissional que soubesse fazer o pão. Bastava, apenas, apertar o botão de uma tela do monitor, pois o maquinário realizava toda a tarefa panificadora. Em outros termos, depreende-se que o trabalhador passou a ser completamente alienado e, em várias operações, dispensável em relação ao seu objeto de trabalho. Outro exemplo é observado no próprio campo educacional. É largamente adotado, tanto por escolas públicas quanto privadas, o uso de apostilas contendo boa parte – quando não todo – do conteúdo programático a ser lecionado e até a maneira como ele deve ser ensinado. Os defensores desse sistema acreditam que a padronização auxilia os educadores a seguirem o mesmo projeto6. No entanto, nos questionamos: até que ponto a autonomia do professor para conduzir a sua aula é perdida com a padronização? Em que medida esse expediente não acaba por transformar o docente numa espécie de técnico do saber? Feito este complemento, tirando do trabalhador sua dimensão de ser pensante, os donos dos meios de produção passaram a ter controle sobre a subjetividade dos seus funcionários, abrindo caminho para a sua submissão, domesticação e adestramento. Diante disso, indagamos: ora, sem o estímulo mental, como pode “surgir” o senso crítico? Tal situação acabou por anular as resistências psíquicas e consequentemente levou ao adoecimento do corpo (BOTTOMORE, 1988; DEJOURS, 1987/2015; SENNETT, 2006; 2009). Porém, este cenário perturbador que desenrolava para a classe trabalhadora sofreu resistência, e o cuidado com o a questão laboral começou a ter destaque nas discussões travadas após meados do século XX. Dessa forma, a saúde mental do trabalhador se beneficiou do advento de inúmeros movimentos, ocorridos na década 6 Atualmente, a compra de sistemas de ensino é largamente adotada por escolas particulares. Apesar disso, cremos que os pais ou responsáveis dos estudantes, matriculados nessas instituições, possuem autonomia para escolher uma unidade de ensino que melhor se adeque a seus anseios. Nossa preocupação se refere à situação dos colégios da rede estadual paulista que possuem apenas um modelo para seguir – o São Paulo Faz Escola. Ou seja, as famílias de menor poder aquisitivo ficam reféns de um único padrão pedagógico. 44 de 1960, de questionamento aos valores vigentes. Na Europa e Estados Unidos, estudantes, intelectuais e lideranças de diversas áreas clamaram por maior liberdade e justiça social. Muitos setores da sociedade, dentre eles os da classe operária, passaram a exigir melhorias na situação em que viviam, fazendo com que os governos deixassem de ignorar problemas relacionados ao mundo do trabalho em favorecimento aos grupos dominantes (DEJOURS, 1987/2015). Dejours (1987/2015) e Sennett (2006; 2009) citaram outros fatores que contribuíram para que o aparelho psíquico e a saúde psicológica começassem a ser levado em conta: o crescente questionamento quanto à eficácia do sistema Taylor7, o aumento do setor terciário (serviços) e o surgimento de novas indústrias, com novas exigências e sofrimentos. No capitalismo atual praticado nas economias desenvolvidas, o avanço científico e tecnológico, bem como o fortalecimento de organismos e leis internacionais de proteção à dignidade humana (como Declaração dos Direitos Humanos e a Organização Internacional do Trabalho), foram responsáveis pelas melhorias substanciais das condições de trabalho (VERA, 2009). Houveram ganhos qualitativos principalmente nos aspectos físicos, químicos e biológicos, na higiene, na segurança e nas leis de proteção do empregado. No fim, como apontaram Aranha e Martins (1993), o grande embate entre as classes, imaginado por Marx, não se concretizou. Para os autores, isso se deve, pois os métodos de exploração no trabalho deixaram de ser explícitos e a pobreza da classe trabalhadora diminuiu (pelo menos nos países ricos). Entretanto, tais melhorias vieram acompanhadas por novas cobranças e a reorganização do trabalho. Antes de aprofundarmos sobre as novas demandas do capitalismo moderno, vamos analisar brevemente em qual mundo este se encontra. Hoje vivemos numa economia cada vez mais globalizada, isto é, as trocas culturais e materiais entre os povos, bem como o deslocamento de pessoas entre os países são realizadas de forma mais facilitada e acentuada. A maioria da população – principalmente nos países ricos – está conectada via internet. O acesso ao conteúdo é amplo e as relações sociais estão se deslocando do plano físico para o 7 Taylorismo, concepção de produção idealizada por Frederick Taylor (1856-1915). Possui como principais características o trabalho em série, repetitivo e mecânico, em que cada funcionário era responsável por uma parte do todo. Ou seja, o trabalhador nunca se apropriava do produto final de seu esforço. Ao desenvolver seu modelo separando do homem seu corpo de sua mente, Taylor pretendia criar um método científico de administração de empresa que extrairia maior produtividade dos empregados. 45 digital. Muitos dos trabalhos realizados por ação humana agora são robotizados, bem como a confecção de mercadorias que – antes necessitavam de qualificação especializada – podem ser executadas apertando alguns botões em uma tela. As tecnologias de informação atuais8, aliada as mudanças de paradigmas relacionadas aos costumes e valores, influenciaram na forma como estabelecemos relações – e aqui nos referimos tanto as interpessoais quanto a de trabalho. Agora não se busca na profissão apenas uma forma de sustento, mas sim de satisfação pessoal (a busca de um sentido para a vida). Não que a identidade do sujeito já não tivesse sido alienada pelo modo de produção capitalista. O que se vislumbra agora é uma predominância maior do trabalho ser exercido por questões ideológicas, que pode ser, por exemplo, a de conseguir dinheiro e ter “sucesso”, como a de fazer a diferença na vida do outro (podemos exemplificar, citando os profissionais da educação e da saúde). No início da década de 1990, quando comecei a entrevistar especialistas em programas de computação no Vale do Silício, eles pareciam embriagados com as possibilidades da tecnologia e as perspectivas de enriquecimento rápido. [...] Todos eles se sentiam na crista de uma trepidante mudança: com frequência me diziam que as antigas regras já não vigoravam. (SENNETT, 2006, p. 31). Para Sennett (2004; 2006; 2009; 2015) uma das principais características do mercado atual se relaciona com o tempo, mais especificamente com a organização do tempo do trabalho: É a dimensão do tempo do novo capitalismo, e não a transmissão de dados high-tech, os mercados de ação globais ou o livre comércio, que mais diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho. (SENNETT, 2009, p. 25, grifo do autor). Estamos falando de um constante estado de ser “flexível”. A rotina e a estabilidade do velho capitalismo deram lugar à velocidade de mudanças e imediatismo da sociedade de consumo contemporânea. Com isso, as antigas empresas se adaptaram a essa nova realidade e as relações estabelecidas nesses 8 A esse respeito, tais tecnologias têm produzido impactos consideráveis na educação. Segundo Brito e Purificação (2008), com a atual geração de estudantes tendo nascida conectada ao mundo virtual, é imprescindível que o professor seja capacitado a utilizar esses recursos em sua prática, com o risco de ter dificuldades em abrir portas de diálogo com seu público. Hoje, mesmo nas escolas públicas, são comuns a existência de salas de informática e o uso de tablets e a internet como auxiliares pedagógicos. 46 locais passaram a ser regidas por ela. Surgiu o flexitempo, ou seja, o trabalho do indivíduo deixou de pertencer a um determinado lugar no espaço e tempo fixo. Uma pessoa hoje pode estar vinculada a uma empresa, mas fazer seu trabalho em casa ou ter opções de horários para entrar e sair do serviço. Sem contar as relações estabelecidas por metas cumpridas, que possuem prazos finais para que um determinado objetivo esteja pronto, porém sem cronograma diário fixo de tempo gasto para o serviço (SENNETT, 2006; 2009). O tempo flexível não se apropria apenas da carga horária de trabalho diário. A própria relação do funcionário com a empresa é acometida por essa transformação. Devido à busca por melhores gratificações ou as constantes demissões ocorridas nas reestruturações institucionais – comuns nessas novas empresas –, o trabalhador perdeu o sentimento de pertença com o seu local de trabalho, comum nas gerações anteriores. Isso fez com que a troca de emprego, devido às novas oportunidades de ascender na profissão ou apenas por questões financeiras, seja bem maior nessa fase do capitalismo (SENNETT, 2006; 2009; 2015). Para Dejours (1987/2015), mais do que as condições estruturais, salariais, de higiene e de segurança, é a organização do trabalho – ou seja, as relações afetivas e de comando, a divisão e conteúdo do serviço, as motivações e as obrigações – responsável pelo sofrimento mental. [...] pode-se perguntar o quê, no trabalho, é acusado como fonte específica de nocividade para a vida mental. A questão é de uma importância crucial. A luta pela sobrevivência condenava a duração excessiva do trabalho. A luta pela saúde do corpo conduzia à denúncia das condições de trabalho. Quanto ao sofrimento mental, ele resulta da organização do trabalho. Por condições de trabalho é preciso entender, antes de tudo, ambiente físico (temperatura, pressão, barulho, vibração, irradiação, altitude etc.), ambiente químico (produtos manipulados, vapores e gases tóxicos, poeiras, fumaças etc.), o ambiente biológico (vírus, bactérias, parasitas, fungos), as condições de higiene, de segurança, a as características do posto de trabalho. Por organização do trabalho designamos a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade etc. (DEJOURS, 1987/2015, p. 29, grifos do autor). Nesse sentido, por melhor que sejam as condições atuais de trabalho, não podemos menosprezar as consequências psíquicas produzidas por essa nova dinâmica. Acrescente-se que a organização contemporânea do trabalho – e da própria sociedade – estimula o individualismo, o imediatismo na busca pelo prazer, e o 47 distanciamento afetivo nas ações e no estabelecimento de relações interpessoais. Essa atitude é resultante em grande parte, como dito anteriormente, pela quantidade e velocidade com que as informações são recebidas e consumidas hoje. As sensações decorrentes desses estímulos, bem como seu rápido descarte, consomem as energias internas do sujeito a ponto de esgotá-las. Advém disso a inaptidão em responder com entusiasmo e profundidade a sensações novas. Nas palavras de Bauman (1997) e La Taille (2009), as pessoas dos grandes centros urbanos se comportam como turistas, ou seja, elas veem, ficam sabendo e mudam de assunto. “Olhar e partir. Não se fixar” (La Taille, 2009, p. 30). O ritmo vertiginoso da metrópole, respondendo às demandas de um capitalismo que impõe uma vida cada vez mais acelerada e automatizada, tanto na produção quanto no consumo, transformando a vida de seus habitantes em algo sem substância, sendo guiada pelos desejos do privado (o ter, o poder), ao invés de questões públicas ou políticas (ARANHA; MARTINS, 1993; BAUMAN, 1997; LA TAILLE, 2009). Conforme acentua Justo (2012, p. 198), Retirado de um solo firme, desprendido de raízes e colocado o sujeito em movimento, o ser humano, enfraquecido, é tomado por sentimentos de medo, desorientação e desamparo extremamente desvitalizantes e dessubjetivantes. Sennett (2009), a esse propósito, acredita que as relações flexíveis – consideradas superficiais e efêmeras para La Taille (2009) e líquidas para Bauman (1997) – de trabalho afetam diretamente na formação moral e ética dos indivíduos. Isso ocorre porque nesse mundo de mudanças constantes, o local de trabalho tem deixado de ser um lugar no qual se deposita objetivos de longo prazo. Portanto, fica enfraquecida qualquer possibilidade de criar vínculos duradouros e assentados na confiança, na lealdade, no sacrifício e no compromisso mútuo, como ocorria nas gerações passadas. Salientamos: não compartilhamos da noção de que as relações entre os donos dos meios de produção e os vendedores da sua força de trabalho eram pautadas exclusivamente em tais valores. Porém, em outros tempos, provavelmente pela necessidade de mão-de-obra especializada, aliado a busca de estabilidade pelos trabalhadores, as relações entre patrão e empregado não se fundamentavam apenas no critério da obtenção de mais valia. 48 Nesse sentido, não estamos, com isso, defendendo os modos de produção do velho capitalismo (industrial). Porém, é inegável que essa mudança teve reflexos nas relações estabelecidas dentro e fora do ambiente de trabalho. Afinal, uma geração ligada superficialmente a s