ANDREIA CELIA SILVA DE OLIVEIRA O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: uma análise crítica sobre as concepções de pobreza no seu quadro normativo. FRANCA – SP. 2022 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Campus de Franca – SP ANDREIA CELIA SILVA DE OLIVEIRA O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: uma análise crítica sobre as concepções de pobreza no seu quadro normativo Dissertação apresentada para defesa de Mestrado Profissional ao Programa de Pós- graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Franca/ SP, como requisito para obtenção do título de mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Linha de pesquisa: Instituições, cidadania e políticas sociais. Orientador: Prof. Dr. Hélio Alexandre da Silva FRANCA – SP. 2022 O48b Oliveira, Andreia Celia Silva de O Benefício de Prestação Continuada : uma análise crítica sobre as concepções de pobreza no seu quadro normativo / Andreia Celia Silva de Oliveira. -- Franca, 2022 96 p. + projeto Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Hélio Alexandre da Silva 1. Transferência de recursos financeiros governamentais. 2. Programa de sustentação de renda. 3. pobreza. 4. Assistência Social. 5. Assistência Social legislação. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. ANDREIA CELIA SILVA DE OLIVEIRA O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: uma análise crítica sobre as concepções de pobreza no seu quadro normativo Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Franca/ SP. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Hélio Alexandre da Silva Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” campus Franca/ SP ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” campus Franca/ SP ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Taís Pereira de Freitas Universidade Federal do Triângulo Mineiro Franca, 16 de agosto de 2022 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Considerando as concepções de pobreza estampadas no quadro normativo do BPC, o impacto socioeconômico desta pesquisa consiste em desnudar que o combate a pobreza está relacionado com a garantida do mínimo. Visualiza-se que as políticas de enfrentamento à pobreza não buscam sua erradicação, antes o seu controle social, garantindo a perpetuação da ordem vigente. POTENTIAL IMPACTO OF THIS RESEARCH Considering the conceptions of poverty set out in the BPC normative framework, the socioeconomic impact of this research consists of revealing that the fight against poverty is related to ensuring the minimum wage. It can be seen that policies to combat poverty do not seek its eradication, but rather social control, ensuring the perpetuation of the current order. AGRADECIMENTOS Agradeço à Deus, fonte de toda a vida, e a razão de ser da minha própria existência. Sem ele nada seria possível. Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Hélio Alexandre da Silva que me apoiou nos momentos de dificuldade, conduzindo com gentileza e sabedoria o trabalho, não deixando eu me apequenar diante das dificuldades enfrentadas durante todo o processo. Agradeço ao Prof. Alexandre Marques Mendes que sempre demonstrou total apoio e consideração a minha trajetória, sendo imprescindível sua participação nesse processo que culmina agora com esta dissertação. Quero também expressar meus agradecimentos a toda coordenação e equipe técnica do departamento de pós-graduação PAPP, pela atenção e apoio. Minha eterna gratidão a todos os demais professores do programa de pós-graduação pelo trabalho de excelência que desenvolvem na instituição. Poder retornar a “minha casa” Unesp, depois de tantos anos, encheu meu coração de alegria, trazendo à memória os anos que foram decisivos para meu crescimento pessoal e profissional. Não me bastam palavras para expressar a felicidade de poder continuar minha trajetória nesta universidade. Por isso, expresso meus agradecimentos a todos os profissionais que trabalham no campus da Unesp Franca - SP, que de uma forma ou de outra são responsáveis por manter e zelar esta casa do conhecimento. Não poderia deixar de agradecer aos companheiros de turma, pelos momentos maravilhosos que tivemos juntos: nas aulas, nos almoços, nas rodas de conversa. A troca foi maravilhosa e a companhia de cada um estará sempre guardada na minha memória. Muito obrigada a minha mãe, Ana Celia da Silva, por plantar em mim o gosto pelos estudos. O seu incentivo para que eu prosseguisse na jornada, independente das adversidades, foi decisivo. Agradeço meu esposo Emerson Vasconcelos de Oliveira que sempre foi um incentivador dos meus projetos, me auxiliando nas correções e contribuindo nas reflexões desse trabalho. Também ao meu filho Arthur Augusto Vasconcelos de Oliveira que foi muito gentil e compreensivo, especialmente nos momentos em que eu não podia estar tão presente. Por fim, agradeço a todos possíveis leitores desse trabalho, espero contribuir para as discussões presentes sobre o tema. “Ainda que a pobreza e a miséria material sejam facilmente perceptíveis e reconhecíveis, as causas e precondições que as tornam possíveis e socialmente legitimadas não o são. Esta é a razão última do fato historicamente invariante de que toda desigualdade existencial, política e material tenha que ser acompanhada por mecanismos simbólicos que mascaram e tornam opacas suas causas sociais.” Jessé de Souza A Ralé Brasileira, 2009 RESUMO A pesquisa objetiva analisar as concepções de pobreza apresentadas no quadro normativo do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC), criado pela Lei 8.742 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), de 07 de dezembro de 1993 e suas alterações posteriores. Busca apreender como a pobreza é apresentada nos textos legais analisados, denotando qual tem sido a opção do legislador no trato dessa questão e se há alinhamento ou não com os objetivos fundamentais da República, conforme apresentados no art. 3º, III, da Constituição Federal que preconiza a erradicação da pobreza e marginalização e a redução das desigualdades sociais. Procura estabelecer a relação entre os objetivos constitucionais, a Lei Orgânica da Assistência Social e outras normas regulamentadoras, com o propósito de analisar as concepções de pobreza mobilizadas de forma explícita e implícita na legislação que visa erradica-la. A pesquisa utiliza do método dedutivo, através do estudo das legislações relacionadas ao programa com ênfase nas definições sobre a pobreza, bem como de referências bibliográficas que proporcionem maior compreensão teórica sobre as diferentes abordagens das teorias sobre a pobreza e os aspectos críticos das políticas públicas para o seu enfrentamento. Os resultados visam contribuir para uma análise crítica sobre a atual concepção de pobreza adotado no quadro normativo do programa que, em grande medida, aproxima combate à pobreza e garantia do mínimo. Palavras – chave: benefício de prestação continuada, concepções de pobreza, legislação social. ABSTRACT The search aims to analize the conceptions of poverty presented in the normative framework of the Benefício de Prestação Continuada (BPC) program, created by Law 8.742 (Organic Law of Social Assistance – LOAS), of December 7, 1993 and its subsequente amendments. It seeks to aprprehend how poverty is presented in the analyzed lega texts, denoting what the legislator´s option has been in dealing with thus issue and whether or not there is alignment whit the fundamental objectives of the Republic, as presented in art. 3, III, of the Federal Constituion, which advocates the eradication of poverty and marginalization and the reduction of social inequalities. It seeks to establish the relationship between the constitutional objectives, the Organic Law of Social Assistance and other regulatory norms, in order to clarify the conceptions of poverty mobilized explicitly in the legislation that aims to eradicate it. The research uses the deductive method, through the study of legislation related to the program with emphasis on definitions of poverty, as wel as bibliographic references that provide greater theoretical undestanding of the diferente approaches to theories about poverty and the critical aspects of public policies for its confrontation. The results aim to contribute to a critical analysis of the current concept of poverty adopted in the program´s normative framework, wich, to a large extent, brings together comabating poverty and guaranteeing the minimum. Palavras – chave: contiued payment benefit, conceptions of poverty, social legislation. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9 2. ASPECTOS LEGAIS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA .................... 12 2.1 O Benefício de Prestação Continuada na Constituição Federal de 1988 ........................ 12 2.2 Lei Orgânica de Assistência Social e o BPC .................................................................. 21 2.2.1 BPC – LOAS durante a Covid-19 ................................................................................ 29 2.3 Outras legislações regulamentadoras do programa ......................................................... 32 3. CONCEPÇÕES DE POBREZA ........................................................................................... 39 3.1 ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A POBREZA .................................................... 39 3.1.1 Abordagens Econômicas .............................................................................................. 39 3.1.2 Abordagens Pluralistas ................................................................................................. 42 3.1.3 Abordagens Subjetivistas ............................................................................................. 46 3.1.4 Abordagens Essencialistas ........................................................................................... 47 3.1.5 Abordagens Das Capacidades ...................................................................................... 48 3.1.6 Abordagens Contextualistas ......................................................................................... 52 4. ENFRENTAMENTO A POBREZA: ASPECTOS CRÍTICOS...........................................53 4.1 Pobreza e mínimo: expressões da desigualdade social ................................................... 56 4.2 Pobreza e neoliberalismo ................................................................................................ 61 4.3 Que política pública é essa de enfrentamento/ erradicação da pobreza? ........................ 65 5. METODOLOGIA.................................................................................................................67 5.1 Métodos e procedimentos da pesquisa ............................................................................ 67 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................70 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 75 PRODUTO............................................................................................................................... 85 9 1. INTRODUÇÃO Os programas de transferência de renda no Brasil fazem parte da Política Nacional de Assistência Social que tem como ponto de origem a Constituição Federal de 1988 1 . Tais políticas passaram a ser adotadas no Brasil especialmente depois que políticas macroeconômicas neoliberais não conseguiram reduzir a pobreza, pelo contrário, houve um aumento significativo do número de pessoas em situação de vulnerabilidade social 2 e econômica no Brasil e em toda a América Latina (MARQUES, 2013, p. 299). As décadas de 1980 e 1990 retrataram os resultados dos programas de estabilização e de ajuste estrutural das décadas anteriores, acompanhados de medidas de desregulamentação e flexibilização do mercado de trabalho, redundando em precarização das relações de trabalho, aumento da informalidade e do desemprego, acirrando as desigualdades sociais (FLEURY, 1999, p. 299- 300). Em meio a esse cenário, em 1994, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi implantado em substituição ao programa Renda Mensal Vitalícia 3 (RMV), até então desenvolvido como política pública fora do âmbito da seguridade social. O BPC faz parte do rol de prestações de serviços, programas e projetos da política pública de proteção social de caráter assistencial, integrante da seguridade social, como previsto no art. 194 da Constituição Federal de 1988 4 . Previsto no artigo 203, inciso V da Constituição Federal, o BPC visa "a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família". Em 2021, durante a pandemia, houve o acréscimo do inciso VI que insere como objetivo da assistência social “a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza”. Financiado com recursos do orçamento da Seguridade Social, o BPC pode ser compreendido como política voltada para a garantia daquilo que está previsto no inciso III do 1 Art. 203 CF/ 1988. 2 Abordagem multidimensional, relacionado a condição de privação material ou social. Relaciona-se a processo de exclusão e de violação de direitos de pessoas ou grupos, podendo apresentar diversos níveis de privação quanto a renda, saúde, educação, moradia e outros. Tais grupos/ pessoas estão mais expostos a situação de risco, face ao contexto econômico e social a que estão inseridos. (Monteiro, 2011, p. 29-40) 3 Renda Mensal Vitalícia é um benefício de transferência de renda criado pela Lei 60179/1974 destinado a atender pessoas com mais de setenta anos de idade e inválidos, definitivamente incapacitados para o trabalho e que não exerçam atividade remunerada e nem tenham qualquer tipo de rendimento superior a 60% do salário mínimo. Este benefício está em extinção, atendendo atualmente somente as pessoas que já recebiam o benefício em 1995. Em 1º de janeiro de 1996, foi extinta a RMV, sendo substituída pelo BPC (MINISTÉRIO DA CIDADANIA – Renda Mensal Vitalícia). 4 Sob esse aspecto, o BPC goza da garantia constitucional com previsão orçamentária e fontes de custeio, conforme art. 195 da CF. 10 art. 3º., da Constituição Federal, a saber: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Nota-se que o texto constitucional fala em “erradicar a pobreza”, ou seja, não se trata de combatê-la ou diminuí-la a níveis mais baixos, mas de erradicá-la, isto é, extirpá-la ou extinguir sua existência no território nacional. Compreender, conforme mostra o texto constitucional, que a pobreza deve ser erradicada da vida social, está em total consonância com aquilo que prevê o artigo 1o., inciso III da Constituição Federal, segundo o qual a dignidade humana é um fundamento da República. É nesse contexto que o BPC ganha ainda maior relevância como meio de erradicar a pobreza e incentivar a busca pela realização de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, segundo dados do governo, entre os idosos e pessoas com deficiência, sem condições de prover a própria subsistência, o BPC é a principal forma de inclusão social dessa população em situação de vulnerabilidade (BRASIL, 2018, p.5). São grandes os desafios para o Brasil, dada a persistência da pobreza em seu território, acrescido das disparidades regionais geradoras de desigualdades espaciais e sociais. Conforme Telles: ...sempre existiu uma consciência pública de uma pobreza persistente – a pobreza sempre apareceu no discurso oficial, e também nas falas públicas de representantes políticos [...] como sinal de desigualdades sociais indefensáveis num país que se quer à altura das nações de Primeiro Mundo. (TELLES, 1993). Assim, a pobreza brasileira se apresenta com certa “naturalização”, a partir de determinantes históricos, econômicos e culturais, que são praticados pelas políticas de assistência aos pobres e refletidos nos padrões normativos (PONTES, 2010, p.182). Enquanto expressão da dívida social, a produção da pobreza se apresenta de três formas, na fala de Milton Santos, a pobreza incluída: produzida em certos momentos da vida, residual e flutuante, sem “vasos comunicantes”; a pobreza chamada de “marginalidade”: é fruto do processo econômico da divisão do trabalho no capitalismo, internacional ou nacional cujos arremedos de solução ficavam a cargo do governo; e a pobreza estrutural: trazida pelo desemprego e pela redução do valor do trabalho, não é uma pobreza local e nem mesmo nacional. A pobreza estrutural é percebida como algo natural, é produzida politicamente pelos governos globais, fomentada por organismos internacionais multilaterais, que oferecem soluções parcializadas, em diferentes partes do mundo. Os governos, ao mesmo tempo em que financiam programas de atenção e socorro aos pobres, são reprodutores da pobreza: “Atacam- 11 se, funcionalmente as manifestações da pobreza, enquanto estruturalmente cria-se a pobreza no mundo” (SANTOS, 1999, p. 9-11). Há outros fatores que surgem como obstáculo, tais como as reiteradas rupturas no poder político, crises econômicas, o esgarçamento das redes de proteção social e o desmonte das políticas públicas e dos direitos trabalhistas, previdenciários e sociais, contribuem para a formação de um cenário desafiador para a erradicação da pobreza no Brasil, que é objetivo do Estado tal como consta na Constituição. Acrescido a isso, mudanças no cenário geopolítico mundial e a crescente instabilidade política, dividindo e acirrando os ânimos entre os descontentes com a forma como os governos têm atuado na solução dos problemas sociais e econômicos, dificultam ainda mais as perspectivas de alcançar o cenário desejado. Enquanto isso, o mundo tem se tornado um lugar cada vez mais conectado, dadas as novas tecnologias, influenciando as formas de organização e as culturas das sociedades com novas demandas de bem-estar pautadas nos imperativos do capitalismo. Tais questões compõe o quadro atual, apontando a multifacetada e plural realidade brasileira, exigindo dos governos e da sociedade, na pretensão da erradicação da pobreza, ações propositivas e comprometidas com a realização dos fundamentos presentes no art. 1º. da nossa Carta Magna, em seus incisos e no seu parágrafo único. Nesse sentido, o objetivo principal desse trabalho é analisar as concepções de pobreza mobilizadas de forma explícitas e implícitas em parte da legislação que visa a erradicá-la, especialmente aquela presente nos artigos da Constituição Federal de 1988 que são pertinentes ao tema e na Lei Orgânica de Assistência Social (Lei 8.742/93) Com esse caminho, pretende-se aproximar os contornos mais estruturais daquilo que está no texto constitucional, que preconiza a erradicação da pobreza como um dos objetivos nacionais e aos contornos estruturais do texto da LOAS e demais normativos que apresentam o enfrentamento da pobreza como imperativo da política de assistência aos mais vulneráveis. O trabalho é apresentado em três capítulos, o primeiro apresenta os principais marcos legais do Benefício de Prestação Continuada, quais sejam: a Constituição de 1988, a Lei Orgânica de Assistência Social (Lei 8.742/93), as importantes discussões jurídicas engendradas no Supremo Tribunal Federal, especialmente as relacionadas ao critério de renda para inserção no programa, e outras normas (decretos, leis, portarias) complementares a LOAS que estruturam/ organizam a efetivação da política em todo território nacional 5 . Procuramos apresentar como está estruturado o BPC em linhas gerais e qual concepção de 5 Não são objeto de estudo todos os regramentos que norteiam a política. Enfatizamos aqueles que se coadunam com nosso objeto de pesquisa que é a pobreza enquanto categoria analítica. 12 pobreza podemos inferir destes normativos. No segundo capítulo apresentamos alguns pressupostos teóricos que sustentam as diferentes concepções de pobreza, apresentados por autores como Alessandro Pinzani, Amartya Sen, Maria Ângela de Almeida Souza e outros. Na terceira e última seção desenvolvemos uma análise crítica sobre o trato da pobreza no Brasil a partir da utilização do mínimo enquanto parâmetro para a política social, bem como as implicações da ideologia neoliberal que influencia as políticas ditas de enfrentamento/ erradicação da pobreza, com reflexos no programa BPC. 2. ASPECTOS LEGAIS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA Antes de analisar as concepções de pobreza, mobilizadas de forma explícita e implícita em parte da legislação que visa erradica-la, é preciso apresentar essa legislação com um pouco mais de detalhe. Nesse sentido, o BPC pode ser compreendido como política voltada para a garantia daquilo que está previsto no inciso III, do artigo 3º. da Constituição Federal, a saber: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Por isso, esse capítulo terá como objetivo, apresentar os contornos mais fundamentais do Benefício de Prestação Continuada. Ao analisarmos os aspectos legais do BPC verificamos, antes de qualquer coisa, o caráter sistêmico do programa dentro do ordenamento pátrio, abrangendo a fundamentação constitucional principiológica, a normatização Federal, e o detalhamento regulamentar efetuado pelos Órgãos e Entes Federais do executivo, gestores e reguladores do programa. 2.1 O BPC NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. O Benefício de Prestação Continuada está previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, no capítulo que trata da seguridade social: Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. VI – a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. (incluído pela EC no. 114, de 2021) (grifo nosso) 13 Como podemos apreender da normativa constitucional, o benefício integra a assistência social, organizada no modelo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS 6 ), administrado na atualidade pelo Ministério da Cidadania, criado pelos Decretos 9.674/2019 e Decreto 10.357/2020, na pasta da Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Tal Ministério encampou os extintos Ministérios do Desenvolvimento Social e Agrário, do Esporte e da Cultura 7 . Conforme preconizado na Constituição, o BPC visa garantir um salário mínimo de benefício mensal às pessoas 8 em situação de vulnerabilidade e risco social, que não tenham meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida pela sua família. Importante ressaltar que a Constituição indica como padrão mínimo para a garantia da subsistência o salário mínimo. Embora, na atualidade, haja discussões que buscam impor distinção entre salário mínimo nacional e salário mínimo para fins previdenciários, prevalece o entendimento do piso do salário mínimo o estabelecido em âmbito nacional, conforme previsto no art. 7o. inciso IV da Constituição Federal. Para tanto, o salário mínimo deveria ser capaz de atender, segundo a Constituição, necessidades, como saúde, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social para os trabalhadores e suas respectivas famílias. Sem adentrar na discussão sobre a constitucionalidade material 9 ou não do atual salário mínimo brasileiro, este é atualmente considerado o padrão básico, ao menos em tese, para a garantia de subsistência mínima do trabalhador, estendendo essa garantia também ao beneficiário do BPC nos termos do art. 203, V, da Constituição Federal. A Lei 13.152 de 29 de julho de 2015 dispunha sobre a política de valorização do salário mínimo e dos benefícios pagos pelo Regime Geral de Previdência Social para o período entre 2016 a 2019. Essa política previa os reajustes para o salário mínimo com base na variação do Índice de Preços ao Consumidor (INPC) e ainda o aumento real, conforme as 6 Implantado em 2005, o SUAS organiza a assistência social em todo território, conforme diretrizes apontadas pela PNAS (Política Nacional de Assistência Social) de 2004. A Lei 12.435/ 2011, alterou o art. 6o. da Lei 8.742/ 93, estabelecendo objetivos e diretrizes para o sistema. 7 Essas informações podem ser acessadas no site do Ministério da cidadania. Governo federal. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2021. 8 Idosos com idade acima de 65 anos (art. 20 da LOAS, alterado pela Lei 12.435/ 2011) e pessoas com deficiência. 9 Por se tratar de assunto amplo, merecedor de estudo à parte, a constitucionalidade material do salário mínimo refere-se ao conteúdo ou substância do ato normativo, ou seja, se ele está em consonância com os preceitos constitucionais. Infere-se a inconstitucionalidade do atual salário mínimo, visto que ele não atende às exigências apontadas no art. 7º, IV da CF e aos princípios da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, várias ações foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal questionando o valor do salário mínimo, pois incapaz de atender às satisfações das necessidades básicas do trabalhador (ex.: Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 1.439- DF, ADI nº 1,442-1 DF, ADI nº 1.458-7, ADI nº 737-8). https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/historico 14 taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nos referidos anos. Ocorre, entretanto, que desde 2020 o governo alterou as regras para o reajuste do salário mínimo, estabelecendo como parâmetro a inflação acumulada do ano, sem previsão de aumento real. Assim, vê-se paulatinamente o esgarçamento do poder aquisitivo do atual salário mínimo, inviabilizando a satisfação das necessidades básicas do trabalhador e, no caso em comento, dos beneficiários do BPC, conforme previstos inicialmente na Constituição Federal. Esta discussão se mostra pertinente na medida em que o legislador, ao indicar que o salário mínimo deveria ser suficiente para suprir as necessidades básicas vitais, elege tal parâmetro para a existência do trabalhador no limite da subsistência. Conforme dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), em janeiro de 2022 o salário mínimo necessário para a satisfação das necessidades de um trabalhador no mesmo período é de R$5.997,14, sendo o atual de R$1.212,00. A pesquisa utiliza como referência o valor da Cesta Básica de Alimentos 10 . Dessa forma, parece-nos evidente que, ao estabelecer a garantia de um salário mínimo ao idoso e a pessoa com deficiência que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família, o legislador cria um recorte, definindo o que é considerado o mínimo aceitável de renda para a subsistência do beneficiário do programa. Merece atenção especial que a concessão do benefício é condicionada à comprovação da insuficiência de meios para prover a própria subsistência ou de tê-la provida pela família. Nesse sentido, recai a responsabilidade pela comprovação da privação ao próprio candidato ao benefício, que deverá comprovar a situação de hipossuficiência para a vida independente. Isso nos remete ao entendimento prevalente, no plano conceitual, da concepção conservadora da assistência pública aos mais vulneráveis, desfavorecendo a construção do cidadão como sujeito de direitos. Analisando a previsão do benefício na carta magna, uma leitura atenta remete aos objetivos e princípios constitucionais fundamentais. Conforme já foi analisado aqui, a Constituição em seu art. 3º. apresenta a erradicação da pobreza: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (grifo nosso) 10 Esses dados podem ser acessados no site do DIEESE, Pesquisa nacional da cesta básica de alimentos, 2021. Página inicial. Disponível em: < https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>. Acesso em: 13 abr. 2022 e METODOLOGIA da pesquisa nacional da cesta básica de alimentos – janeiro de 2016, DIEESE, 2016. Disponível em: < https://tecnoblog.net/247956/referencia-site-abnt-artigos/>. Acesso em: 18 jan. 2021. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html https://tecnoblog.net/247956/referencia-site-abnt-artigos/ 15 IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Erigir a erradicação da pobreza enquanto objetivo fundamental da República indica um certo grau de intolerância com a perpetuação da pobreza. O legislador constituinte usa um termo “forte”, demonstrando o desejo de extirpar o flagelo da pobreza no país. É, todavia, importante considerar o texto constitucional em toda sua extensão e contexto histórico. Parece-nos oportuno ressaltar que, pressionado pelos movimentos sociais da época e pelos “ventos” do Estado Providência emanado dos países desenvolvidos e a proteção emanada pelo direito internacional (MARTINS, 2020, p. 23), a Carta Constitucional de 1988 expressou a urgente necessidade de garantir a aplicação dos direitos e garantias fundamentais e os direitos sociais. Tais objetivos devem ser perseguidos pelo Estado, usando de sua força coativa e vinculante. Ao Estado cabe empreender todos os esforços possíveis para a efetivação dos seus objetivos, sendo a erradicação da pobreza um imperativo para o desenvolvimento e elevação dos níveis de felicidade e bem-estar da população em geral. Ressalte-se, entretanto, a nova redação do art. 203 da Constituição Federal, no seu inciso VI, incluído pela Emenda Constitucional nº. 114 de 2021: “a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza.” Nessa nova inserção na constituição vemos a mudança de tônica, já não se trata de erradicar a pobreza, mas de “reduzir a vulnerabilidade socioeconômica de famílias”. A nova inserção demonstra um deslocamento dos objetivos constitucionais, para uma “nova ordem política e ideológica”, mais alinhada com a teoria neoliberal atual. Estrategicamente, sem se alterar o texto constitucional na sua essência, visto que resguardado pelas limitações materiais ao poder de reforma. Flexibilizam-se as formas de enfretamento a pobreza brasileira, assaltando os direitos e garantias individuais. Já não se propõe erradicar a pobreza, mas sim reduzi-la, num claro movimento de encolhimento dos deveres do Estado, repercutindo no acirramento das questões de natureza social. Contudo, vale salientar o art. 3º. que trata dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, ainda traz em seu inciso III o objetivo de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdade sociais e regionais”. Nesse sentido, passa a existir uma tensão entre o que prevê esse artigo e o que está na formulação do art. 203, inciso VI que preconiza a “redução [e não a erradicação] da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza”. Salta aos olhos a nova redação constitucional que se deu em pleno período pandêmico no Brasil, quando houve o agravamento da pobreza e da fome, visto o aumento do desemprego e renda em decorrência das medidas sanitárias restritivas necessárias, impostas 16 pela crise sanitária. Nesse período de grande agudização das expressões da questão social o governo lançou o programa Auxílio Emergencial 11 , transferindo recursos a um número significativo de cidadãos que sofriam os efeitos da pandemia. No art. 23, X a Constituição define que são competências da União, Estados e Municípios o combate as causas da pobreza e os fatores da marginalização, buscando promover a integração social dos setores desfavorecidos. Já a Lei Complementar 111 de 6 de julho de 2001 criou o Fundo de Combate a erradicação da pobreza, conforme previsto nos arts. 79, 80 e 81 da ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias). Esse fundo foi criado para as ações de combate à pobreza até 2010, entretanto, a EC n. 67 prorrogou esse prazo por tempo indeterminado. Interessa-nos em particular a destinação dos recursos desse Fundo, conforme o art. 3º da LC 111/ 2001: Os recursos do Fundo serão direcionados a ações que tenham como alvo: I – famílias cuja renda per capita seja inferior à linha de pobreza, assim como indivíduos em igual situação de renda; II – as populações de municípios e localidades urbanas ou rurais, isoladas ou integrantes de regiões metropolitanas, que apresentem condições de vida desfavoráveis. § 1 o O atendimento às famílias e indivíduos de que trata o inciso I será feito, prioritariamente, por meio de programas de reforço de renda, nas modalidades "Bolsa Escola", para as famílias que têm filhos com idade entre seis e quinze anos, e "Bolsa Alimentação", àquelas com filhos em idade de zero a seis anos e indivíduos que perderam os vínculos familiares. § 2 o A linha de pobreza ou conceito que venha a substituí-lo, assim como os municípios que apresentem condições de vida desfavoráveis, serão definidos e divulgados, pelo Poder Executivo, a cada ano. (grifo nosso). Nos termos da LC 111/2001, os recursos deverão ser destinados às ações voltadas para as famílias ou indivíduos com renda per capita inferior à linha da pobreza, populações de comunidades urbanas ou rurais isoladas, integrantes de regiões metropolitanas que apresentem condições desfavoráveis. Também deverão ser priorizadas as famílias com filhos com idade até quinze anos, a depender do programa de reforço de renda. Aqui vemos que a lei traz alguns aspectos gerais sobre a concepção de pobreza para dar seguimento ao comando constitucional de sua erradicação. Em seu parágrafo segundo a referida lei indica que os conceitos de linha da pobreza e condições desfavoráveis deverão ser definidos, a cada ano, pelo Poder Executivo. O governo brasileiro tem priorizado conceituar a pobreza a partir dos indicadores de renda, as denominadas linhas da pobreza. Conforme a Síntese de Indicadores Sociais: uma 11 Vide p. 24. 17 análise das condições de vida da população brasileira 12 , não há uma linha de pobreza oficial no país, coexistindo várias linhas para análise da pobreza, conforme os programas sociais existentes. O CadÚnico inscreve famílias com renda de até ½ salário mínimo de rendimento per capita e outras com renda até ¼ do salário mínimo, os candidatos ao BPC. Os dados de 2020 apontavam que para serem elegíveis ao programa Bolsa Família, as famílias pobres deveriam declarar renda per capita mensal de até R$178,30 (cento e setenta e oito reais e trinta centavos) e as famílias extremamente pobres renda de até R$89, 00 (oitenta e nove reais) (IBGE, 2020, p. 133). Atualmente o BF foi substituído pelo programa denominado Auxílio Brasil. Para este programa são consideradas famílias pobres aquelas com renda mensal familiar per capita entre R$105,01 e R$210,00, já as famílias extremamente pobres são aquelas com renda familiar mensal de até R$105,00 13 . Já o Banco Mundial utiliza três linhas de pobreza, conforme os níveis de renda de cada país, sendo fixada a linha da extrema pobreza no valor de US$1,90/dia; para os países de renda média baixa o valor de US$3,20/dia para a linha da pobreza; e para a os países de renda média alta, sendo que o Brasil pertence a esse último grupo, o valor de US$5,50/dia para a linha da pobreza. Em linhas gerais, segundo dados do SIS, em 2020 nas linhas da extrema pobreza monetária no Brasil estão as famílias com renda per capita de até ¼ do salário mínimo e as famílias pobres de até ½ salário mínimo (Ibidem, p. 63). Estes parâmetros adotados para aferição da pobreza indicam a precariedade das condições de vida das populações, aferindo condições básicas no nível da subsistência. Embora haja consenso sobre a multidimensionalidade da pobreza, na prática o que vemos é a utilização de linhas estritamente monetárias para sua conceituação. Conforme Feres e Villatoro, “A utilização exclusiva de linhas monetárias leva ao risco de produzir estratégias desbalanceadas, orientadas à supressão estatística de um dos sintomas da pobreza e não das causas da privação” (2013, p. 16). Assim, embora as abordagens monetárias tenham a vantagem de estabelecer critérios objetivos e de fácil mensuração, acabam por estabelecer padrões mínimos extremos, ao nível da subsistência, excluindo populações que vivem em situação de privação semelhantes, privadas do acesso aos programas governamentais, frequentemente, por uma fração numérica. Veremos mais adiante como isso se apresenta no BPC, e se existem mecanismos para 12 Síntese dos indicadores sociais – SIS. 13 Ministério da Cidadania. Governo Federal. Auxílio Brasil. Disponível em: < https://www.gov.br/cidadania/pt- br/auxilio-brasil/auxilio-brasil/#quem-direito> . Acesso em: 13 abr. 2022. 18 compensar a unilateralidade desse parâmetro no atendimento das famílias em situação de extrema pobreza. Superar o flagelo da pobreza pressupõe um conjunto de ações, com objetivos, metas e programas bem estruturados e articulados entre o governo e sociedade, pois a erradicação da pobreza é algo complexo, que exige um grande esforço nacional. A pobreza tratada com simplismo moralizante e paternalista, que desconsidera seus aspectos multidimensionais, serve para tornar o pobre objeto de caridade, obstando a mudança nas relações hegemônicas cristalizadas no seio da sociedade. Dentre alguns caminhos amplamente apontados pelos estudiosos e operadores das políticas sociais para o trato eficiente da pobreza, estão o implemento de políticas efetivamente articuladas e alinhadas no mesmo propósito, qual seja: a erradicação da pobreza. A desigualdade social brasileira é outra questão que precisa ser verdadeiramente enfrentada pelos governos e sociedade, especialmente considerando o quadro atual das atuais políticas neoliberais que têm colocado em polos antagônicos as políticas sociais e econômicas. Nesse sentido, apresentam que os gastos com programas e políticas sociais colocam em risco o equilíbrio fiscal do Estado, sustentando que a eficácia do mercado no trato dos problemas sociais que ele mesmo gera, pode ser operacionalizada por meio de políticas puramente econômicas e fiscais (TEIXEIRA, 1985, p. 400). Para tanto, individualizam a pobreza, fragilizando as lutas sociais e as possibilidades de mudanças estruturais que efetivamente possam elevar os níveis de bem-estar para toda coletividade e não somente para alguns. Embora a Constituição apresente a “erradicação da pobreza” como um imperativo da República, parece-nos que ainda há um longo caminho a ser percorrido, especialmente se considerarmos que as diferentes abordagens para medir a pobreza diferem da sua capacidade de alcançar os objetivos propostos, ou seja, uma abordagem unilateral do fenômeno da pobreza é incapaz de oferecer uma caracterização completa da privação a que estão sujeitas as populações mais vulneráveis. Importa, mais adiante, analisar os artigos que regulamentam o BPC na LOAS, onde poderemos inferir em que medida o objetivo constitucional de erradicar a pobreza se traduz em ações concretas e que demonstrem ou não a perseguição intransigente de tal objetivo. Direitos básicos como saúde, educação, alimentação estão abrangidos no direito à dignidade da pessoa humana, expresso no texto constitucional brasileiro. Conforme Martins: ...uma interpretação constitucionalmente adequada do princípio da dignidade da pessoa humana como ideia fonte do sistema de direitos fundamentais deve 19 compreender uma composição analítica de todos os direitos que, no programa da Constituição, garantem uma vida boa para a pessoa humana. (2020, p. 140) Assim, podemos vislumbrar uma relação entre o primado da erradicação da pobreza e os direitos fundamentais constitucionais, na medida em que a superação da pobreza está relacionada à garantia de saúde, educação, moradia, alimentação, convivência comunitária e tantos outros necessários à vida em sociedade. Diferentes instrumentos e tratados internacionais, assinados pelo Brasil, apresentam os pobres como titulares de direitos, a serem garantidos pelos estados 14 . Para Ingo Sarlet (2004), citado por Martins (2020, p. 140) “os direitos fundamentais constituem explicitações da dignidade da pessoa humana”. Necessário, portanto: Levar a sério também os direitos sociais lato sensu e vislumbrar na proteção à saúde, à educação, ao meio ambiente, ao trabalho ou à assistência social, tanto quanto nos demais direitos de prestação bens portadores de um valor autônomo para a felicidade humana, que devem ser juridicamente garantidos [...] porque são por si só indispensáveis à dignidade da existência humana (Ibidem). A Constituição brasileira em seu artigo 1º estabelece as bases do ordenamento pátrio, apresentando seus princípios fundamentais: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (grifo nosso). Dentre os princípios constitucionais fundamentais o exercício da cidadania e a dignidade da pessoa humana apresentam relação direta com o BPC, por suas próprias peculiaridades. É benefício de transferência de renda, cujo objetivo é garantir a vida e o acesso aos recursos sociais mínimos, àqueles que não têm condições de prover a própria subsistência. Nesse sentido, o BPC proporciona àqueles que conseguem acesso ao benefício o direito a condições de vida minimamente dignas, na medida em que os recursos financeiros alocados proporcionam acesso aos bens necessários à sua sobrevivência 15 . Conseguem, portanto, certo grau de inserção no tecido social, um mínimo de dignidade e de cidadania. Críticas surgem quanto às famílias que não conseguem acessar o benefício face ao critério 14 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pactos Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e outros. 15 Sobre o enfrentamento a pobreza a partir de políticas baseadas no mínimo à sobrevivência ver a última parte dessa dissertação(Cap. 3). 20 altamente excludente 16 , bem como, em razão de toda uma teia burocrática que envolve o processo de concessão. A não cidadania e a exclusão estão sempre circundando entre aqueles que se pretendem beneficiários, especialmente considerando que o acesso se dá pelo não direito, pela prova da própria miserabilidade, vulnerabilidade e subalternidade dos sujeitos. É a chamada “cidadania invertida”: em que o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em que se reconhece como um não-cidadão, tem como atributos jurídicos e institucionais, respectivamente, a ausência de uma relação formalizada de direito ao benefício, o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais. (TEIXEIRA, 1985, p. 401). A simples transferência de renda, com os critérios de concessão adotados, baseia-se numa abordagem da pobreza que não contempla sua multidimensionalidade, prejudicando a meta de erradicação da pobreza à medida que limita a capacidade de se compreender o fenômeno em toda sua dimensão. O art. 4, III, da Lei Orgânica da Assistência Social, alinhada com as diretrizes constitucionais apresenta o princípio da dignidade do cidadão: Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios: I - supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II - universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III - respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV - igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V - divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos. (grifo nosso). Observamos nesse artigo alguns princípios da LOAS, sendo que destacamos o enfoque dado a dignidade sob a perspectiva da cidadania. Esta vem atrelada ao respeito à autonomia do cidadão, ao seu direito aos benefícios e serviços públicos de qualidade, à convivência familiar e comunitária e à vedação de qualquer comprovação vexatória de suas condições de necessidade. Também no inciso IV, ao tratar da igualdade, preconiza a LOAS o acesso a assistência social sem discriminação em qualquer situação. Sob este aspecto podemos inferir que garantir tais direitos é, entre outras, formas práticas de se enfrentar a pobreza. Não ter a autonomia de sua vontade respeitada, não ter acesso a serviços e benefícios de qualidade, não ter direito a convivência social e aos outros aspectos da cidadania, é a 16 Critério de renda per capita que será abordado mais adiante. 21 expressão da pobreza para a lei. A pobreza, sob esta ótica conceitual, é a própria cidadania inversa, é a negação da cidadania. A universalização dos direitos sociais na lei é apresentada como condição para tornar o destinatário das ações alcançável pelas demais políticas públicas. O acolhimento deste princípio deve gerar a promoção da articulação da assistência social com as demais políticas setoriais, medida que amplia o atendimento das populações mais vulneráveis e o reconhecimento da pobreza enquanto fenômeno multidimensinal, na política de assistência social. Também o direito a informação compõe o espectro de direitos componentes da cidadania, abrangendo a divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos. Isso porque, um cidadão informado tem melhores condições de acesso aos recursos disponíveis, logo, sendo menos afetado pela privação. Nesse sentido, o direito à informação deve ser entendido como um direito básico, sendo a desinformação um dos aspectos da manifestação da pobreza no contexto da assistência social brasileira. 2.2 LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL E O BPC A fim de dar cumprimento ao comando constitucional, em 7 de dezembro de 1993 foi publicada a LOAS, com objetivo de regular e organizar a Assistência Social em todo o território. Em seu art. 1º. a Lei 8.742/93 prescreve que “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações e iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (grifo nosso). Desde já, vale notar que o objetivo da Política de Seguridade é garantir “os mínimos sociais” e as “necessidades básicas” para quem vivem em situação de privação a níveis profundos de pobreza. Para garantir esse mínimo básico, em seu art. 2º., V, a Lei 8.742/93 apresenta, dentre outros objetivos: "A garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família". A expressão "pessoa portadora de deficiência" encontra-se em desuso, sendo mais utilizada na atualidade "pessoas com deficiência" ou “PcD”. Nota-se ainda que a lei infraconstitucional manteve a mesma redação do texto constitucional, adotando a mesma regra da garantia de um salário mínimo de benefício mensal como padrão do benefício aos 22 idosos e pessoas com deficiência que comprovadamente não tenham condições de prover a própria subsistência ou tê-la provida pela família. Quiçá aqui se possa inferir que esse é o modelo adotado pela constituição para a garantia da dignidade da pessoa humana, conforme preconizado no art. 1º.., III da Constituição. Sobre o valor do salário a ser utilizado como padrão para os benefícios, justifica-se o entendimento de que seja adotado o salário mínimo publicado anualmente no Diário Oficial da União (DOU), visto ser este mesmo o padrão adotado para o cálculo da renda per capita para inserção no programa. Como já explicitado anteriormente, o salário mínimo atual não é capaz de atender todas as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, quais sejam: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, nos termos do art. 7, IV da CF, entretanto, ele é o indicador de renda utilizado para a aferição da pobreza nos programas sociais. Disposto no Capítulo IV, Seção I, nos artigos 20, 20-B,21 e 21-A, a lei institui e dá algumas diretrizes para o Benefício de Prestação Continuada, destacamos o art. 20: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. § 1º. Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto § 2º. Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. § 3º Observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (Redação dada pela Lei 14.176 de 2021) § 4º. O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória. § 5º. A condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada. § 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2 o , composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS. § 7º. Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura § 8º. A renda familiar mensal a que se refere o § 3 o deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido. 23 § 9º. Os rendimentos decorrentes de estágio supervisionado e de aprendizagem não serão computados para os fins de cálculo da renda familiar per capita a que se refere o § 3º. deste artigo. § 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2 o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. § 11. Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento. § 11-A. O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2 (meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.176, de 2021) § 12. São requisitos para a concessão, a manutenção e a revisão do benefício as inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - Cadastro Único, conforme previsto em regulamento. § 14. O benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário no valor de até 1 (um) salário-mínimo concedido a idoso acima de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou pessoa com deficiência não será computado, para fins de concessão do benefício de prestação continuada a outro idoso ou pessoa com deficiência da mesma família, no cálculo da renda a que se refere o § 3º deste artigo. § 15. O benefício de prestação continuada será devido a mais de um membro da mesma família enquanto atendidos os requisitos exigidos nesta Lei. Importante alteração ocorreu em 2011, com a Lei 12.435 que reduziu de 70 para 65 anos a idade mínima para o acesso ao benefício do idoso em situação de vulnerabilidade e risco social. Também houve alteração na lei quanto ao conceito de família. Antes, considerava-se a "unidade mononuclear", entretanto, diante das novas demandas e atuais configurações familiares, ampliou-se o conceito, reconhecendo não somente os vínculos consanguíneos, mas também os vínculos socioafetivos da unidade familiar. O parágrafo 2º. traz a definição do que é considerado para fins da lei, pessoa com deficiência, sendo aquela com impedimento de longo prazo 17 de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que impeça a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições. Nota-se uma clara mudança de paradigma, sendo que a redação original conceituava a pessoa com deficiência aquela incapaz para a vida independente e para o trabalho. O Decreto 6.214/2007 complementa o conceito, considerando a incapacidade como fenômeno multidimensional, para além do trabalho, mas também a participação, a inclusão social e a interação no ambiente físico e social. Quanto ao conceito de impedimento de longo prazo, o parágrafo 10 indica o tipo de deficiência que produz efeitos pelo prazo mínimo de dois anos. Dessa forma, pessoas com outras enfermidades, igualmente incapacitantes, mas que não produzam efeitos nesse lapso temporal não recebem a proteção do BPC. 17 Impedimento de longo prazo, conforme indicado no art. 20, §10 da LOAS é aquele que produz efeitos no período mínimo de 2 anos. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm#art20b http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14176.htm#art1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14176.htm#art1 24 Quanto ao conceito de incapacidade para prover a própria manutenção, previsto no §3º, a lei define a pessoa (idosa ou com deficiência de longo prazo) com renda per capita familiar de até 1/4 do salário mínimo. Para tanto são consideradas as somas dos rendimentos brutos 18 auferidos mensalmente pelos membros da família, compostos por salários, proventos, pensões alimentícias, benefícios previdenciários ou privados, seguro-desemprego, comissões, pró-labore e outros de trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos de patrimônio, renda mensal vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, exceto se concedido a outro idoso, membro da família, conforme disposto no art. 4º., VI e art. 19, parágrafo único, todos do Decreto 6.214/ 2007. Como podemos apreender de tais dispositivos, a lei abarca um amplo leque de rendimentos do grupo familiar, a fim de restringir o acesso ao benefício. Entretanto, há que se ressaltar o não cômputo na renda familiar dos rendimentos auferidos de estágio supervisionado e de aprendizagem previstos no §9º. do art. 20 da LOAS, alterado pela Lei 13.146 de 2013, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, com o objetivo de estimular a inclusão e participação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho 19 . Outra consideração importante sobre a renda familiar é que a lei aponta como critério de seletividade a renda per capita de até 1/4 do salário mínimo 20 . Nesse sentido, apresenta um padrão de seletividade que impõe aos candidatos ao benefício valores muito abaixo do valor do salário mínimo nacional. Para se tornar elegível para o programa, ao indivíduo é necessária a comprovação de sua miserabilidade quase absoluta. Considerando a renda per capita de até ¼ do salário mínimo, dividida pelos trinta dias do mês, em valores atuais 21 , o indivíduo precisaria estar vivo com cerca de US$1,90/dia, o que o coloca na linha da extrema pobreza, utilizados os parâmetros internacionais preconizados pelo Banco Mundial. Conforme Stopa (2019, p. 236): a regulamentação da Assistência Social seguiu a lógica propagada pelo Consenso de Washington, de que o Estado deve apenas se comprometer com o alívio das 18 Destaque para os rendimentos brutos. Nesse sentido, no caso de a renda familiar ser originada de emprego formal isso redundaria em desfavor do núcleo familiar do beneficiário, considerando que no mercado formal de trabalho há descontos previdenciários que acabam por reduzir o valor repassado diretamente ao trabalhador. Assim, o critério de seletividade do BPC amplia a exclusão, elegendo não os pobres, mas os miseráveis, considerando para tanto o aspecto econômico e a exclusão do mercado formal de trabalho. Para as famílias mais pobres, cada centavo pode fazer a diferença entre ter ou não o pão à mesa. Dessa forma, considerar somente a renda bruta na análise do pedido é evidenciar a indignidade humana que estão sujeitos os mais vulneráveis no Brasil. 19 A Lei Brasileira de Inclusão traz novo paradigma da pessoa com deficiência, estabelecendo como eixo central a participação, a integração social e a autonomia da pessoa com deficiência. 20 Redação dada pela Lei 14.176 de 22 de junho de 2021. 21 Os valores se alteram conforme a variação da cotação do dólar americano do dia. 25 situações mais aviltantes de pobreza. Nesse sentido, os programas, benefícios e serviços têm uma abordagem compensatória e focalizada, e o BPC foi assegurado sob essa perspectiva. A intervenção estatal tem a função de manter os níveis de pacificação social à medida que garante a sobrevivência dos pobres em patamares mínimos, sem abalar as estruturas da produção e reprodução da desigualdade social. Individualiza a pobreza ao restringir a análise da renda per capita ao núcleo familiar do beneficiário, ocultando a perversidade do sistema social gerador de exclusão e privação social. Importante inovação no programa, prevista no art. 20, §11 da referida lei, foi a introdução da possibilidade de utilização de outros elementos probatórios da condição de miserabilidade e da situação de vulnerabilidade do grupo familiar para análise da concessão. Nesse sentido, poderá ser considerado, não somente o critério de renda familiar per capita, mas também fatores relativos a vulnerabilidade do grupo familiar, tais como acesso à educação, saúde, esgoto e água tratada, transporte entre outros. Tais avanços são frutos da Lei da Inclusão de 2015 que alterou a LOAS, beneficiando todos os candidatos à política. Aprovada em um contexto de avanço das discussões sobre as causas da desigualdade social, a Lei 13.146/ 201 é publicada atendendo aos anseios de inclusão da pessoa com deficiência ao mesmo tempo em que atende as demandas do mercado por novos grupos de consumidores. Outrora relegados a penúria e à beira da indigência, agora “cidadãos”, com recursos para consumir bens primários. A Lei 14.176/2021 trouxe ainda alteração, ampliando o critério de seletividade no programa para até ½ salário mínimo nos casos previstos no art. 20-B da lei: Art. 20-B. Na avaliação de outros elementos probatórios da condição de miserabilidade e da situação de vulnerabilidade de que trata o § 11 do art. 20 desta Lei, serão considerados os seguintes aspectos para ampliação do critério de aferição da renda familiar mensal per capita de que trata o § 11-A do referido artigo I – o grau da deficiência;. II – a dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária; e. III – o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que trata o § 3º do art. 20 desta Lei exclusivamente com gastos médicos, com tratamentos de saúde, com fraldas, com alimentos especiais e com medicamentos do idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuitamente pelo SUS, ou com serviços não prestados pelo Suas, desde que comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida. § 1º A ampliação de que trata o caput deste artigo ocorrerá na forma de escalas graduais, definidas em regulamento. § 2º Aplicam-se à pessoa com deficiência os elementos constantes dos incisos I e III do caput deste artigo, e à pessoa idosa os constantes dos incisos II e III do caput deste artigo. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm#art20%C2%A711 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm#art20%C2%A711 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm#art20%C2%A711a 26 § 3º O grau da deficiência de que trata o inciso I do caput deste artigo será aferido por meio de instrumento de avaliação biopsicossocial, observados os termos dos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e do § 6º do art. 20 e do art. 40-B desta Lei.. § 4º O valor referente ao comprometimento do orçamento do núcleo familiar com gastos de que trata o inciso III do caput deste artigo será definido em ato conjunto do Ministério da Cidadania, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS, a partir de valores médios dos gastos realizados pelas famílias exclusivamente com essas finalidades, facultada ao interessado a possibilidade de comprovação, conforme critérios definidos em regulamento, de que os gastos efetivos ultrapassam os valores médios. (grifo nosso). A inserção de outros elementos na análise da concessão do benefício vem ao encontro das constantes reivindicações das organizações de usuários e profissionais da assistência social. O rol elencado no artigo indica taxatividade, ou seja, somente os critérios estabelecidos na lei garantem o direito de acesso, considerando os demais elementos propostos para o programa em outros trechos da legislação. Quanto a inserção do §11-A no art. 20, há que se ressaltar que o novo limite legal impõe um freio às concessões excepcionais que ultrapassavam ¼ ou até ½ do salário mínimo na renda per capita familiar 22 . Já em relação aos aspectos cumulativos do art. 20, incisos I, II e II, a lei passa a exigir da pessoa idosa, além dos gastos com a saúde, também a dependência de terceiros, sendo este último contrário aos princípios do Estatuto do Idoso que preconiza a dignidade e autonomia como valores para a vida do idoso. Entretanto, permanecem as possibilidades de aferição de outros elementos probatórios, que poderão ser objeto de análise do poder judiciário, especialmente se invocado a garantia constitucional dos direitos e garantias individuais. Convida ainda a atenção, o caráter fiscalizatório presente na normativa, apontando para os aspectos burocratizantes da política estatal. As demais normas regulamentadoras que especificam o direito acabam adstritas aos técnicos, versados nos liames da burocracia estatal, dificultando a participação e o usufruto do direito àqueles mais vulneráveis, com acesso limitado a educação, saúde e renda. 22 A Ação Civil Pública no STF (ACP 5044874-22.2013.404.710/RS) de 2016, que dispôs sobre excepcionalidades para concessão do BPC. Acórdão: “Vistos e relatados estes autos [...] decide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, não conhecer da remessa oficial e dar parcial provimento ao recurso do Ministério Público Federal, julgando parcialmente procedente o pedido para condenar o INSS a deduzir do cálculo da renda familiar, para fins de verificação do preenchimento do requisito econômico ao benefício de prestação continuada do art. 20 da Lei nº 8.742/93, apenas as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada, com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis e consultas na área da saúde, requeridos e negados pelo Estado, estendendo os efeitos deste julgado a todo o território nacional, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.” (grifo nosso) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm#art2%C2%A71 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm#art2%C2%A71 27 Sob a questão da utilização de outros elementos probatórios da miserabilidade, importa ainda ressaltar o crescente processo de judicialização do BPC 23 que gerou alterações nas legislações correlatas ao benefício. Reiterados pedidos indeferidos no âmbito administrativo acabaram por resultar em numerosas demandas judiciais, especialmente por não haver uma conceituação clara do que se entende por miserabilidade na Constituição Federal e, pela possibilidade de sopesar outros critérios para o reconhecimento do direito trazidos pela Lei Brasileira de Inclusão 24 . Embora em 2013, o Supremo Tribunal Federal, no RE 589.963 tenha declarado incidenter tantun 25 a inconstitucionalidade do art. 20, §3 da LOAS, não trouxe outro indicativo de qual critério deveria ser adotado para a aferição da miserabilidade. Dessa forma, as decisões permanecem a juízo dos julgadores, sendo que há julgados que ampliam o conceito de miserabilidade, considerando outros aspectos da vida e outros que restringem ainda mais, conforme a interpretação dos laudos psicossociais de cada caso sob análise judicial. Em 21 de fevereiro de 2018, o Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF4), unificou a jurisprudência definindo presunção de miserabilidade absoluta do idoso ou pessoa com deficiência que busque o benefício quando a renda per capita familiar estiver dentro dos critérios objetivos estabelecidos na lei (inferior a 1/4 do salário mínimo 26 ). Isso se deu através do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), visto haver divergências em reiteradas decisões dos Tribunais Superiores que relativizavam o conceito de miserabilidade no sentido de excluir o candidato que, durante as investigações apresentava "...eventual sinal de riqueza"., ou seja, ainda que o candidato ao benefício se enquadrasse nos critérios seletivos, inclusive de renda, poderia não ser aceito no programa, visto que o critério de miserabilidade ficava à mercê da subjetividade do julgador, gerando insegurança jurídica. Assim, o TRF4, unificou a jurisprudência no sentido de firmar a presunção absoluta de 23 Para ver dados sobre a judicialização do BPC, acessar Nota Técnica nº 03/ 2016/ DBA/ SMAS/ MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/NotaTecnica_n03_Judicializaca o_BPC.PDF. Acesso em 22 jan. 2021. 24 Para maiores detalhes da discussão sobre a constitucionalidade e da adoção de outros fatores para inserção no programa, além dos apresentados na LOAS, ver decisões do Supremo Tribunal Federal: RE 580.963 de 18 de abril de 2013. 25 Incidenter tantun, expressão latina, que no caso indica uma questão decidida no plenário do STF. Traz implicação direta para as partes envolvidas no processo sob júdice. Sendo assim, embora reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo apresentado, não gera nulidade do mesmo. Gera insegurança jurídica a medida que não traz regras claras quanto a temática envolvida. 26 Esse era o critério definido em lei à época. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/NotaTecnica_n03_Judicializacao_BPC.PDF https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/NotaTecnica_n03_Judicializacao_BPC.PDF 28 miserabilidade, não devendo ser objeto de questionamentos no âmbito do judiciário 27 . Entretanto, não se pode olvidar que ainda permanece a critério subjetivo do julgador a concessão ou não do benefício ao candidato cuja renda familiar per capita ultrapasse o valor estabelecido na LOAS ou da nova Lei 14.176/ 2021. Os artigos 21 e 21-A da LOAS apresenta as normas de ordem prática sobre o organização e controle do BPC, sendo posteriormente detalhados em diversas outras leis, regulamentos e portarias: Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem. § 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário. § 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização. § 3 o O desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com deficiência. § 4º A cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com deficiência não impede nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regulamento. § 5º O beneficiário em gozo de benefício de prestação continuada concedido judicial ou administrativamente poderá ser convocado para avaliação das condições que ensejaram sua concessão ou manutenção, sendo-lhe exigida a presença dos requisitos previstos nesta Lei e no regulamento. (Incluído pela Lei nº 14.176, de 2021). No art. 21, a LOAS indica o prazo para revisão do benefício que é realizado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e os critérios para cessação e cancelamento do mesmo. Note-se que a cessação diz respeito a superação das condições que geraram o direito, já o cancelamento diz respeito as irregularidades na concessão ou utilização do mesmo. Art. 21-A. O benefício de prestação continuada será suspenso pelo órgão concedente quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. § 1 o Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a qualquer benefício previdenciário, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso, sem necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21. § 2 o A contratação de pessoa com deficiência como aprendiz não acarreta a suspensão do benefício de prestação continuada, limitado a 2 (dois) anos o recebimento concomitante da remuneração e do benefício. 27 JUSTIÇA FEDERAL. TRF4 uniformiza jurisprudência sobre presunção e miserabilidade para concessão de benefício assistencial. DISPONÍVEL EM: . ACESSO EM: 25 JAN. 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14176.htm#art1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14176.htm#art1 29 O art. 21-A da LOAS foi acrescido pela Lei 12.470 de 31 de agosto de 2011. Visa regular especificamente questões relacionadas ao trabalho da pessoa com deficiência. Aponta a suspensão do benefício nos casos de exercício de atividade remunerada, todavia faz previsão de meios que simplificam o processo, aproveitando etapas já cumpridas pelo beneficiário para que volte a receber os valores monetários, desde que dentro do prazo de revisão, que é de dois anos. Ao passo que as alterações na lei burocratizam a concessão do benefício, lado outro, novas demandas são incorporadas. Contudo, esse é um traço constante, a legislação se constrói em torno do mínimo, isto é, oferece garantias mínimas e atende necessidades básicas através de um salário mínimo. Entre outras coisas, esse cenário é produzido por forças antagônicas presentes durante o processo: por um lado, o Estado mínimo, burocratizado e enxuto, por outro, a imposição da realidade das populações que procuram os serviços da assistência social, denotando a multidimensionalidade da pobreza como apresentada nas diversas teorias que conceituam o fenômeno. 2.2.1 BPC – LOAS durante a Covid-19 Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta a respeito do surto do coronavirus, declarando o Estado de Emergência Pública de Importância Internacional. Diante da nova realidade mundial, em março de 2020 o Brasil decretou estado de calamidade pública através do Decreto Legislativo nº 6, adentrando numa das piores crises sanitárias dos últimos tempos, a denominada Pandemia da Covid-19. Em razão dessa nova realidade, foi necessária a aplicação de medidas sanitárias e de isolamento social pelos governos, gerando restrições na liberdade de locomoção das pessoas, no funcionamento de empresas, comércios e todo tipo de atividade econômica, cultural ou de lazer. A despeito das orientações contraditórias entre os governos estaduais e governo federal, seguiu-se as orientações dos órgãos sanitários, autoridades da saúde pública e as orientações internacionais da OMS, visto que os estudos indicavam que o vírus se propagava por secreções, como a saliva ou gotículas respiratórias, bem como através de superfícies e objetos contaminados 28 . Dessa forma, as restrições se impuseram ao dia a dia dos cidadãos como medidas essenciais 28 OPAS – OMS – Folha informativa Covid-19 – Escritório da OPAS e da OMS no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2021. https://www.paho.org/pt/covid19 30 de proteção, destacando-se a necessidade de se evitar a aglomeração de pessoas, face ao risco iminente de contágio 29 . Diante deste quadro, ocorreu um agravamento da crise financeira no país, com a perda de diversos postos de trabalho. Países como a China, Japão, França, Alemanha, EUA, Argentina, Colômbia, Chile entre outros 30 adotaram medidas emergenciais para oferecer suporte financeiro aos cidadãos, a fim de garantir condições mínimas de sobrevivência. No Brasil, por sua vez, criou-se o programa intitulado Auxílio Emergencial, através da Lei 13.982 de 2 de abril de 2020, que também alterou a LOAS no art. 20, parágrafos 3º, 14 e 15 e criou o art. 20-A. O objetivo da Lei foi conceder auxílio econômico-financeiro no valor inicial de R$600,00 (seiscentos reais) ao trabalhador que cumprisse alguns requisitos, tais como: ser maior de 18 anos, salvo casos de mães adolescentes, não ter emprego formal, não receber benefícios assistenciais ou previdenciários ou outros, renda mensal per capita até ½ salário mínimo ou renda familiar total até 3 salários mínimos. Nessa pesquisa importa-nos indicar as alterações temporárias que ocorreram no BPC por força da Lei 13.982/2020, tão somente aquelas que apresentam interface com nosso o objeto de pesquisa. Vejamos: Art. 20 §3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja: I - Igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, até 31 de dezembro de 2020. (grifo nosso). Aqui se observa pequena alteração no critério econômico, passando a flexibilizar a concessão também para famílias com renda igual a ¼ do salário mínimo. Art. 20-A. Em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19), o critério de aferição da renda familiar mensal per capita previsto no inciso I do § 3º do art. 20 poderá ser ampliado para até 1/2 (meio) salário-mínimo. (grifo nosso). Já o caput do art. 20-A, acrescenta a possibilidade de ampliação do critério de aferição da renda per capita familiar para até 1/2 salário mínimo em razão do estado de calamidade pública. Essa ampliação, todavia, deve ficar sujeita a escalas graduais conforme determinados fatores, dentre eles: 29 Vide Lei 13.979 de 6 de fevereiro de 2020. 30 G1 – Economia. SALATI, Paula. Veja as medidas econômicas adotadas pelos países para socorrer população e empresas. Disponível em: < https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/19/veja-medidas-economicas- adotadas-pelos-paises-para-socorrer-populacao-e-empresas.ghtml>. Acesso em: 24 jan. 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm#art20a http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/DLG6-2020.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/DLG6-2020.htm https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/19/veja-medidas-economicas-adotadas-pelos-paises-para-socorrer-populacao-e-empresas.ghtml https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/19/veja-medidas-economicas-adotadas-pelos-paises-para-socorrer-populacao-e-empresas.ghtml 31 § 1º A ampliação de que trata o caput ocorrerá na forma de escalas graduais, definidas em regulamento, de acordo com os seguintes fatores, combinados entre si ou isoladamente: I - o grau da deficiência; II - a dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária III - as circunstâncias pessoais e ambientais e os fatores socioeconômicos e familiares que podem reduzir a funcionalidade e a plena participação social da pessoa com deficiência candidata ou do idoso; IV - o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que trata o § 3º do art. 20 exclusivamente com gastos com tratamentos de saúde, médicos, fraldas, alimentos especiais e medicamentos do idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou com serviços não prestados pelo Serviço Único de Assistência Social (SUAS), desde que comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida. Observe-se que tais alterações representam, mesmo que implicitamente, uma ampliação na abordagem política da concepção de pobreza, considerando não somente aspectos econômicos, mas também outras formas de privação a que estão sujeitos os candidatos ao benefício. Isso se justificou face ao agravamento da situação econômica e social decorrentes da pandemia. Percebidos, ao menos conceitualmente, como reconhecidamente pobres, flexibilizaram-se as regras para concessão do benefício aos candidatos que já aguardavam uma deliberação antes do início da decretação da pandemia no Brasil. Entretanto, em 31 de dezembro de 2020, por meio de Medida Provisória 1.023, o governo federal retomou os critérios originais, estabelecendo o critério de renda para os patamares inferiores a ¼ do salário mínimo 31 , passando a viger a partir de 1 de janeiro de 2021. A medida teve validade por 120 dias 32 . Na exposição dos motivos da MP 33 o governo justifica o retorno à redação original do artigo, apontando a necessidade de regulamentar a matéria dentro limite temporal indicado na Lei 13.982/2020 que alterava o art. 20, §3º até 31 de dezembro de 2020. Por outro lado, em 22 de junho de 2021, por iniciativa do poder legislativo, a MPV 1023/2020 foi transformada na Lei 14.176/2021, retornando a redação do art. 20, §3º, para famílias cuja renda per capita seja igual ou inferior a ¼ do salário mínimo. Em meio a esse cenário, a pandemia continuou numa curva crescente em número de casos no país, com os dados apontando para o aumento substancial de mortes, acrescido ao colapso do sistema de saúde em diversas regiões e a baixíssima taxa de imunização da 31 BRASIL, Diário oficial da União – edição extra. Disponível em: . Acesso em 23 jan. 2021. 32 A medida deve ser submetida a análise do congresso nacional, nos termos do art. 62 da CF. 33 EMI nº 00041/2020 MCID ME. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019- 2022/2020/Exm/Exm-MP-1023-20.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2021. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node05lm6fj6goxehq8i3blez1zpu2840536.node0?codteor=1957256&filename=MPV+1023/2020 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node05lm6fj6goxehq8i3blez1zpu2840536.node0?codteor=1957256&filename=MPV+1023/2020 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-1023-20.pdf http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-1023-20.pdf 32 população até meados de janeiro de 2022. Somente após a disponibilização das vacinas contra a Covid-19 em território brasileiro, é que os números de casos graves começaram a cair. Após a fase aguda da pandemia, seguiu-se com a retomada das atividades produtivas, declarando-se o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPINI), através da Portaria GM nº913 de 22 de abril de 2022. Permanecem, entretanto, os reflexos da crise sanitária, agravados por outros fatores internos e externos, perpetuando os problemas econômicos e sociais, deslocando milhares de pessoas para níveis mais profundos de privação. Para o BPC, as alterações legislativas do período pandêmico foram incorporadas ao texto legal, representando ligeiro avanço na cobertura do programa em todo o país. 2.3 OUTRAS LEGISLAÇÕES REGULAMENTORAS DO BPC A LOAS é o principal instrumento jurídico/ legal que traz os preceitos para garantir e regular o BPC. No entanto, diante da magnitude e da complexidade de gestão do programa, foi criado um extenso arcabouço legal para garantir maior regulação e controle na sua operacionalização. Ao longo dos anos, desde sua efetiva implantação em 1996 34 , vários decretos, portarias e outros instrumentos legais regularam a execução do programa. Aqui destacamos os principais que estão em vigência e que se relacionam diretamente ao tema proposto no trabalho que é o estudo normativo do BPC sob o enfoque da pobreza. O Decreto 6.214 de 26 de setembro de 2007 trouxe as maiores alterações na LOAS desde sua promulgação. Destacamos a alteração da terminologia da pessoa portadora de deficiência para pessoa com deficiência, a introdução do conceito de incapacidade como fenômeno multidimensional e o conceito de família para cálculo da renda per capita, mais abrangente do que o previsto inicialmente na LOAS. Definiu competências ao INSS, regulou a integração junto a rede de proteção social básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) entre outros. O art. 1º., parágrafo 2º. do Anexo da lei indica sua consonância com a LOAS ao apontar que o BPC visa o enfrentamento da pobreza, a garantia de proteção social, o atendimento em situações de contingências sociais e à universalização dos direitos sociais, nos moldes do parágrafo único do art. 2º da Lei 8.742/1993. Este artigo indica que o 34 BRASÍLIA. Ministério do Desenvolvimento Social. Secretaria de avaliação e gestão da informação. Manual do pesquisador. Programa e Benefícios de Prestação Continuada. Brasília, 2018. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2020. https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/manual_pesquisador_BPC.pdf 33 enfrentamento a pobreza na assistência social deve se realizar de forma integrada às políticas setoriais, garantindo-se os mínimos sociais. Percebe-se a diferença de ênfase dada pela Constituição no art. 3º, III que apresenta a erradicação da pobreza como objetivo fundamental e a LOAS em seu art. 2º, parágrafo único, que apresenta o enfrentamento da pobreza como objetivo da assistência social. Erradicar a pobreza aponta para uma percepção mais exigente, no sentido de arrancar, eliminar, extirpar conforme se encontra nos dicionários da língua portuguesa. Já o termo enfrentar, relaciona-se a colocar-se em oposição, lutar, combater, mas sem o compromisso de extirpar. A princípio a diferença de tônica pode indicar que os objetivos da assistência social, tal como previstos na LOAS visam combater a pobreza sem a pretensão de extirpá-la 35 . A partir do que já foi apresentado acima, é possível afirmar que as concepções de pobreza adotadas nas legislações estudadas, de forma implícita e explícita, não apenas deixa de contemplar a sua multidimensionalidade, como está vinculada diretamente a certa noção de mínimo, isto é, pobreza está sempre ligada a privação daquilo que se considera básico ou fundamental, logo, o esforço de construção de políticas públicas para erradicar a pobreza torna-se não apenas objeto de muita disputa, como a própria concepção de pobreza, é, ela mesma, um fator complicador nesse contexto. Apesar da relevância da meta de erradicação da pobreza, o significado e alcance desta noção têm sido muito pouco analisados. Uma primeira pergunta se refere à erradicação de qual pobreza. Isso porque não há uma definição universalmente aceita de pobreza, e inclusive dentro de cada país, cada pesquisador utiliza definições diferentes. Assim, por exemplo, alguns entendem a pobreza como insatisfação das necessidades básicas, enquanto outros a definem como a privação de um padrão de vida socialmente aceitável. Também se afirmou que a pobreza é a falta de capacidades para alcançar desempenho básico, ou o não ter acesso a direitos. De qual destas “pobrezas” estamos falando quando discutimos erradicação da pobreza? (FERES e VILATORO, 2013, p. 11). É sabido que o exame sobre o fenômeno da pobreza é algo complexo, que exige profundo esforço teórico e prático para sua compreensão em todas as suas dimensões. Não são meras construções teóricas, mas têm implicações práticas, refletidas nas ações governamentais destinadas a esta população. Faz-se, portanto, necessário se estabelecer qual abordagem sobre a pobreza as legislações pretendem adotar, com consequências diretas “sobre a viabilidade do que se interprete como a sua erradicação” (FERES E VILATORO, 2013, p. 11). Outra questão que merece reflexão é para qual pobreza a LOAS se move? Conforme Stopa (2019, p. 235), no processo de construção da Constituição de 1988, a assistência social 35 Ver capítulo 3. 34 gozava de pouca visibilidade social e política, sendo objeto de poucas reivindicações. Quanto a regulamentação do BPC, a lógica que predominava entre os grupos de trabalho constituídos era da diminuição do alcance do benefício. Dois argumentos que corroboravam essa lógica diziam que havia uma imprecisão conceitual entre Previdência e Assistência, sendo que se estava criando um benefício sem prévia contribuição e o outro argumento era de que o BPC poderia desmotivar o ingresso no trabalho formal. Nesse sentido, embora seja evidente os avanços conquistados na LOAS, estudos apontam a permanência de fortes traços de conservadorismo que marcam as políticas sociais, em especial a assistência social. Reiterados atos normativos, vez ou outra, ampliam a extensão e alcance dos direitos e garantias individuais, buscando melhor atendimento as demandas dos grupos, alvos das políticas publicas, todavia, há também um extenso arcabouço legal que estabelece critérios rígidos de seletividade e acessibilidade aos benefícios, programas e projetos da assistência social, demonstrando qual tem sido a opção do legislador no trato da pobreza no Brasil. Nesse sentido, o enfrentamento a pobreza se pauta na universalização dos serviços através de ações focalizadas, restritas a determinados grupos sociais, dependentes e merecedores da tutela estatal. A percepção das desigualdades esmaecem frente a luta pela sobrevivência. Nos arts. 8º., II e 9º., II, do Decreto 6.214/2007 36 , são reafirmados os parâmetros financeiros dos candidatos ao benefício, que é a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo e não possuir outros benefícios da seguridade social, condições de idade e deficiência, entre outros. Os demais artigos do Decreto 6.214/07 trazem regras de controle e operacionalização do BPC, definem competências ao Ministério do Desenvolvimento Social, INSS e órgãos gestores da assistência social. O art. 37, define as competências do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), ressaltando a inserção dos beneficiários do programa na rede socioassistencial e em outras políticas setoriais, O art. 38 estabelece as diretrizes de âmbito nacional do MDS (Ministério de Desenvolvimento Social) por intermédio da Secretaria Nacional de Assistência Social, o art. 39 define o modus operandi do BPC junto ao INSS e o art. 40 impõe aos órgãos gestores da assistência social na três esferas do governo a articulação do BPC com outros programas voltados para idosos e pessoas com deficiência. Os artigos 41 e 42 tratam do monitoramento e avaliação do programa, sendo que destacamos o art. 41, §1, V, que estabelece estudos e pesquisas para avaliação dos impactos do benefício na redução da 36 Parâmetros alterados na LOAS, pela Lei 14.176/ 2021, mas que permanecem na lei citada. 35 pobreza 37 . Entre os artigos 43 e 46 o texto apresenta as regras do controle social, os artigos 47 a 49 apresentam as regras de suspensão e cessação do BPC, finalizando com o art. 50 que traz as disposições gerais. Outro importante normativo que alterou a LOAS quanto ao BPC, foi a Lei 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão, que conforme já citado, estabelece outros elementos probatórios de miserabilidade a serem utilizados para a concessão do benefício, acrescendo o §11, no art. 20 da LOAS: "Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento". Como já destacado na primeira sessão deste trabalho, este dispositivo possibilitou a inserção de um grande número de beneficiários, movimentando os órgãos gestores e também o judiciário. A Portaria MDS no. 44 de 19 de fevereiro de 2009 estabelece instruções sobre o BPC. Nesta, destaca-se o art. 3º. que impõe prioridade de atendimento dos beneficiários no acesso aos serviços, programas e projetos da rede socioassistencial: Art. 3º. Os beneficiários do BPC e suas respectivas famílias são usuários da política de assistência social, devendo lhes ser assegurado, prioritariamente, o acesso aos serviços, programas e projetos da rede socioassistencial, por meio da articulação entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, observado o disposto no art. 24, §2º, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. § 1º As ações de atenção e de acompanhamento dos beneficiários do BPC e de suas famílias devem ser desenvolvidas nos Centros de Referência da Assistência Social - CRAS e, quando couber, nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS, ou pelo órgão gestor local da política de assistência social. Pressupõe-se uma atenção maior a este seguimento populacional, em face da situação de maior risco e vulnerabilidade social, em consonância ao art. 5º., §1º. da mesma Portaria: § 1º As ações de atenção e acompanhamento dos beneficiários do BPC pressupõem reconhecê-los como segmentos populacionais com graus de risco e vulnerabilidade social variados, considerando as características do ciclo de vida do idoso, da deficiência e do grau de incapacidade da pessoa com deficiência, bem como as características das famílias e da região onde vivem ambos os segmentos. 37 Para maiores informações sobre a avaliação da política, ver: Avaliação de políticas públicas: guia prático ex post, volume 2. Brasília: Casa Civil da Presidência da República, 2018. Este guia aponta que não foram encontrados dados de avaliação dos impactos da política (p.97), nem mesmo há indicadores relacionados a redução da pobreza entre os beneficiários do BPC (p. 90). Todavia, estudos, como de Sátyro, Natália e Soares, Sergei. Análise do impacto do bolsa família e do benefício de prestação continuada na redução da desigualdade nos estados brasileiros - 2004 - 2006, Rio de Janeiro: IPEA, 2009 (Texto para discussão, n. 1435) Disponível em: . Acesso em: 17 jan. 2020, indicam que os referidos programas contribuíram de forma significativa para a queda da desigualdade social, apresentando diferenças entre os diversos estados da federação. (p. 35 - 36). https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1435.pdf 36 Aqui a legislação indica os aspectos a serem considerados na análise de risco e vulnerabilidade social dos beneficiários do BPC, ou seja, o ciclo de vida do idoso, a deficiência e o grau de incapacidade, bem como outros aspectos relacionados a família e região em que vivem 38 . O art. 10, §1º. assinala que o Plano de Inserção e Acompanhamento dos Beneficiários do BPC tem como diretriz, entre outras, "o acompanhamento dos beneficiários e de suas famílias com vistas a agregar condições e valores necessários à sua autonomia". A redação da Portaria traz uma tensão à medida que orienta os técnicos para “o acompanhamento dos beneficiários”, “com vistas a agregar valores” ao mesmo tempo em que preconiza o desenvolvimento da autonomia. Geralmente tais acompanhamentos revestem-se de um discurso paternalista, tutelar, onde o técnico dá orientações às famílias com base em valores muitas vezes alheios à realidade dos sujeitos alvos daquela política pública. Nesse sentido a legislação aponta para uma ação assistencial, sujeita a interpretação do aplicador da política. Vemos aí uma abertura para práticas impositivas dos aparelhos do Estado, submetendo a subjetividade do pobre ao seu próprio arbítrio. Isso evidencia certo grau de contradição no discurso garantidor de direitos que permeia toda a legislação pertinente ao programa. Importa ainda tecer algumas considerações sobre o Decreto 9.462 de 8 de agosto de 2018 que alterou os Decretos 6.214/ 2007 e o Decreto 6.135/ 2007, tornando obrigatório a inscrição do beneficiário no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF e inscrição e atualização no CadÚnico 39 , conforme previsto no artigos 1º do referido decreto: Altera o Art. 12, § 2º do Decreto 6.214/2007: "O benefício será concedido ou mantido apenas qu