UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS GIOVANNA AYRES ARANTES DE PAIVA CRIANÇAS E (IN)SEGURANÇA: A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE CRIANÇAS-SOLDADO NA AGENDA INTERNACIONAL CAMPINAS 2020 GIOVANNA AYRES ARANTES DE PAIVA CRIANÇAS E (IN)SEGURANÇA: A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE CRIANÇAS-SOLDADO NA AGENDA INTERNACIONAL Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Relações Internacionais, na área de Paz, Defesa e Segurança Internacional. Orientador: Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA POR GIOVANNA AYRES ARANTES DE PAIVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. SHIGUENOLI MIYAMOTO CAMPINAS 2020 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387 Paiva, Giovanna Ayres Arantes de, 1992- P166c PaiCrianças e (in)segurança : a construção de narrativas sobre crianças- soldado na agenda internacional / Giovanna Ayres Arantes de Paiva. – Campinas, SP : [s.n.], 2020. PaiOrientador: Shiguenoli Miyamoto. PaiTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Pai1. Crianças-soldado. 2. Narrativas. 3. Segurança internacional. I. Miyamoto, Shiguenoli, 1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Children and (in)security : the construction of narratives about child soldiers on the international agenda Palavras-chave em inglês: Child soldiers Narratives International security Área de concentração: Paz, Defesa e Segurança Internacional Titulação: Doutora em Relações Internacionais Banca examinadora: Shiguenoli Miyamoto [Orientador] Suzeley Kalil Mathias Vanessa Braga Matijascic Samuel Alves Soares Julia Bertino Moreira Data de defesa: 28-02-2020 Programa de Pós-Graduação: Relações Internacionais Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-1148-7435 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1702719949741513 Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) http://www.tcpdf.org UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 28 de fevereiro de 2020, considerou a candidata Giovanna Ayres Arantes de Paiva aprovada. Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto Profa. Dra. Suzeley Kalil Mathias Profa. Dra.Vanessa Braga Matijascic Prof. Dr. Samuel Alves Soares Profa. Dra. Julia Bertino Moreira A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, professor Shiguenoli, pelos conselhos, reuniões, dedicação e paciência – sempre de forma simples, verdadeira e humana – que me motivaram a seguir com esta investigação. À professora Suzeley, por estar sempre disposta a ajudar em qualquer situação, pelos comentários pertinentes e instigantes nas bancas de qualificação e defesa. À professora Vanessa pelas contribuições generosas e detalhadas na qualificação e na defesa. Ao professor Samuel pela generosidade e humanidade em tantos momentos de San Tiago Dantas e pelos comentários na banca de defesa. À professora Júlia pelas contribuições desde o mestrado e pelas reflexões na banca de defesa. À Capes, por ter financiado esta pesquisa no Brasil (processo 88882.435426/2019-01), bem como o período de Doutorado Sanduíche na Universidade de Coimbra (processo 88881.187084/2018-01) Axs membrxs do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). O misto de excelência acadêmica, cooperação e generosidade foi essencial para conseguir realizar este trabalho. Agradeço, sobretudo, a essas pessoas inspiradoras: Lívia, Matheus, Raquel, Patricia, Luiza, Clarissa, Kimberly, Jonathan, Bárbara, David e Helena. Axs funcionárixs, discentes e docentes da Unicamp e do San Tiago Dantas pelo excelente trabalho e pelos seis anos de agradável convivência. Expresso gratidão especialmente a Grazi, Giovana e Isabela por terem feitos meus dias mais leves e organizados. À professora Daniela Nascimento por ter me recebido gentilmente na Universidade de Coimbra e pelas generosas contribuições a este trabalho. Ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra pela acolhida e por ter me dado a oportunidade de conhecer pesquisas admiráveis. Agradeço com carinho à Biblioteca Norte-Sul pelo trabalho tão humanizado. RESUMO Nesta pesquisa, argumentamos que a discussão internacional em torno do emprego de crianças- soldado foi baseada em algumas narrativas. Por narrativas, nos referimos a histórias construídas, contadas e recontadas, com o objetivo de criar uma verdade, uma versão sobre acontecimentos, uma argumentação de como os eventos ocorreram. Desse modo, propomos a hipótese de que a discussão sobre crianças-soldado, principalmente a partir da década de 1990, foi construída tendo por base uma narrativa dominante que está amparada em três pilares: as relações de poder entre Norte e Sul, o pensamento liberal e a perspectiva securitária. Esses três aspectos formam linhas de argumentação que constroem uma narrativa sobre as crianças- soldado, visto que influenciam os modos de se enxergar as próprias crianças e as partes que as empregam. Mais do que isso, a construção de uma narrativa sobre crianças-soldado com base nesse tripé fortalece a consolidação de um modelo de desenvolvimento que instrumentaliza a criança-soldado como um problema de Segurança intrínseco ao Sul Global e que, consequentemente, fortalece a necessidade de intervenção em “Estados Falhados”. Por outro lado, também reconhecemos que há contestação dessa narrativa e tentativas de construir outras explicações sobre a temática. Com o objetivo de analisar o modo pelo qual tais narrativas foram construídas, analisaremos a produção acadêmica especializada sobre crianças-soldado, o trabalho de alguns órgãos da ONU e o trabalho de algumas ONGs que abordam o tema. Palavras Chave: crianças-soldado; narrativas; Segurança Internacional ABSTRACT In this research, we argue that the international discussion around the use of child soldiers was based on some narratives. By narratives, we refer to stories constructed, told and retold, with the aim of creating a truth, a version of events, an argument of how events occurred. Thus, we propose the hypothesis that the discussion about child soldiers, especially since the 1990s, was based on a dominant narrative that is supported by three pillars: the power relations between North and South, the liberal thought and the security perspective. These three aspects form lines of arguments that build a narrative about child soldiers, since they influence the ways of seeing the children themselves and the parts that employ them. More than that, the construction of a narrative about child soldiers based on this tripod strengthens the consolidation of a development model that instrumentalizes the child soldier as a security issue intrinsic to the Global South and thus strengthens the need for intervention in “Failed States”. On the other hand, we also recognize that there is a contestation of this narrative and attempts to construct other explanations on the subject. In order to analyze the way in which such narratives were constructed, we will analyze the specialized bibliography on child soldiers, the work of some UN organs and the work of some NGOs that address the theme. Key Words: child soldiers; narratives; International Security. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAAC Children Associated with Armed Conflict CAFS Conflict-Affected Fragile States CDC Convenção sobre os Direitos da Criança CRIN Child Rights International Network CS Conselho de Segurança DDR Desarmamento, Desmobilização e Reintegração EUA Estados Unidos da América FMI Fundo Monetário Internacional MRM Monitoring and Reporting Mechanism OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIT Organização Internacional do Trabalho ONG Organização Não-Governamental ONU Organização das Nações Unidas OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PIB Produto Interno Bruto PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento R2P Responsabilidade de Proteger RDC República Democrática do Congo RUF Revolutionary United Front Unicef Fundo das Nações Unidas para a Infância Unitar United Nations Institute for Training and Research SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10 1.1 Introdução ao tema ............................................................................................................. 10 1.2 Desenho de pesquisa ........................................................................................................... 12 2. CONSTRUIR, PROTEGER, DESENVOLVER: RELFEXÕES SOBRE CRIANÇAS E ESTADOS ................................................................................................................................ 18 2.1 A construção da infância .................................................................................................... 18 2.2 A proteção da infância ........................................................................................................ 22 2.3 O desenvolvimento da infância .......................................................................................... 29 3. AS ANOMALIAS DO SUL: CORRIGIR CRIANÇAS E ESTADOS ................................ 36 3.1 A “globalização da infância” e o papel dos Estados .......................................................... 36 3.2 “Estados Falhados”, crianças desviantes ............................................................................ 45 3.3 A criança-soldado na Segurança Internacional .................................................................. 50 4. AS CRIANÇAS-SOLDADO NA BIBLIOGRAFIA ........................................................... 57 4.1 Recrutamento, treinamento e doutrinamento ..................................................................... 60 4.2 Conflitos armados e armas leves ........................................................................................ 65 4.3 (Ir)racionalidade e barbarismo............................................................................................ 70 4.4 Questões socioeconômicas ................................................................................................. 74 4.5 Considerações sobre as narrativas na bibliografia .............................................................. 79 5. O TRABALHO DA ONU SOBRE CRIANÇAS-SOLDADO............................................. 81 5.1 Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflitos Armados ................................................................................................................................... 83 5.2 Grupo de Trabalho do Conselho de Segurança para Crianças e Conflitos Armados ......... 91 5.3 Considerações sobre a narrativa da ONU ........................................................................... 96 6. O TRABALHO DAS ONGS SOBRE CRIANÇAS-SOLDADO ........................................ 99 6.1 Save the Children International ....................................................................................... 101 6.2 Watchlist on Children and Armed Conflict ...................................................................... 106 6.3 The Roméo Dallaire Child Soldiers Initiative .................................................................. 110 6.4 Child Soldiers International e Child Rights International Network (CRIN) .................... 116 6.5 Considerações sobre as narrativas das ONGs................................................................... 121 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 129 10 1.INTRODUÇÃO 1.1 Introdução ao tema O universo bélico é majoritariamente habitado por adultos, narrado por e para adultos. As crianças, quando não são subtraídas das histórias dos conflitos, são lembradas apenas como vítimas que sofreram as consequências das hostilidades, não como atores que também participaram ativamente nesses contextos. Porém, sabemos que, por trás dessa perspectiva adulta dos conflitos armados, as próprias crianças já foram empregadas em diversas atividades bélicas ao longo da história – seja em períodos de guerra ou mesmo durante épocas de aparente paz – portando armas, carregando munições, trabalhando como cozinheiras, escravas sexuais e espiãs. O termo crianças-soldado1 designa essas crianças2 que desempenham diversas funções junto a grupos armados não-estatais e/ou forças armadas nacionais. Assim, as crianças-soldado sintetizam a união entre dois mundos aparentemente separados e incompatíveis: o mundo infantil e o mundo da guerra e da violência. Somente no final do século XX e início do século XXI – após a assinatura de documentos internacionais que estabeleceram formalmente os Direitos da Criança – o emprego de crianças-soldado ganhou maior atenção no âmbito internacional, principalmente por parte da Organização das Nações Unidas (ONU) e de algumas Organizações Não-Governamentais (ONGs). Assim, uma prática que está presente há anos nos conflitos armados e em várias partes do mundo passou a ganhar maior destaque apenas a partir da década de 1990, quando entrou, efetivamente, na agenda do Conselho de Segurança da ONU e passou a ser discutida em fóruns internacionais como mais um "novo" tema do século XXI. Consideramos que debater as formas pelas quais as crianças-soldado são enxergadas, assim como analisar a forma pela qual o tema passou a ganhar relevância na agenda de Relações Internacionais ensejam mais investigação. Nesse esforço investigativo, notamos que, dependendo da idade, algumas crianças são incapazes de expressar opiniões com clareza e, mesmo quando conseguem fazê-lo, muitas vezes, não são ouvidas com seriedade. Isso torna mais fácil retirar da criança o seu papel de narrador de sua própria visão de mundo e relegá-lo a explicações adultas, podendo apropriarem- 1 No capítulo 3, discutimos mais detalhadamente esse conceito, buscando problematizá-lo. 2 Majoritariamente nesta pesquisa, quando nos referimos à criança, estamos falando de menores de 18 anos, utilizando o conceito do Unicef, estipulado na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989: “criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (UNICEF, 1989, art.1). Apesar disso, consideramos que tal conceito é construído socialmente e buscamos analisá-lo ao longo dos capítulos 2 e 3. 11 se e criarem versões das crianças-soldado de acordo com o interesse que lhes for conveniente. Essa particularidade já constitui uma inquietação que motiva pesquisas sobre quem é a criança- soldado, por qual motivo ela é utilizada e por quem ela é empregada. A presente pesquisa não nasceu apenas dessa inquietação, mas de muitas outras. Tais inquietudes residem em contradições que necessitam ser explicadas – ou, pelo menos, analisadas. Por um lado, observamos que menores de 18 anos foram e são empregados em forças armadas nacionais em diversos países no mundo todo – como Reino Unido, Irlanda do Norte, Mali e Serra Leoa. Por outro lado, vemos que a discussão sobre crianças-soldado ainda se foca mais nos países do Sul que enfrentam conflitos armados em seus territórios. Ao mesmo tempo em que parte da comunidade internacional enfatiza a importância de proteger as crianças em conflitos armados – especialmente as crianças-soldado –, observamos também que várias nações ainda apoiam militarmente grupos armados não-estatais ou mesmo forças armadas nacionais que empregam menores de 18 anos. Mesmo com o emprego de crianças- soldado sendo considerado um problema de Segurança Internacional, a responsabilidade por essa prática recai mais sobre os “Estados Falhados” e menos sobre a falta de compromisso da comunidade internacional com questões relativas à infância. Diante dessas contradições observáveis, propomos a hipótese de que a discussão sobre crianças-soldado em âmbito internacional, sobretudo a partir da década de 1990, foi construída com base em uma narrativa dominante que está amparada em um tripé: 1) o pensamento liberal e neoliberal que rege o Estado e a proteção dos indivíduos; 2) as relações de poder entre os países do Norte e do Sul Global; e 3) a perspectiva securitária. Por “pensamento liberal e neolibreal”, referimo-nos à influência liberal na política e na economia que, por vezes, manifesta-se na forma de políticas que pregam um dado modelo de desenvolvimento estatal e proteção dos indivíduos. Ao tratarmos das “relações de poder entre os países do Norte e do Sul Global”, referimo-nos às relações entre os países “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”, em que o modelo ideal de proteção da infância é construído tendo por base a realidade de desenvolvimento dos países do Norte. Consequentemente, as crianças do Sul que desviam desse ideal da infância – como as crianças-soldado – são consideradas anomalias que podem ser corrigidas. Por “abordagem securitária”, queremos dizer que o tratamento do emprego de crianças-soldado como um problema de Segurança Internacional impacta a forma de enxergar as partes que empregam as crianças como inimigos a serem combatidos e as próprias crianças-soldado como objetos de proteção a serem salvos. Ou seja, argumentamos que a narrativa sobre as crianças-soldado não é isenta de interesses: ela reflete formas de dominação e de expressão de poder. 12 A originalidade e contribuição deste trabalho – que se aloca no Sul Global como uma tentativa de se somar aos demais trabalhos vindos dessa parte do mundo – reside justamente em articular os fatores componentes do nosso tripé. Logo, partimos do entendimento de que a temática das crianças-soldado não flutua acima ou abaixo de questões políticas, econômicas e sociais. Pelo contrário, está ancorada na forma como enxergamos o Estado e na idealização do Estado capitalista liberal como o melhor modelo de desenvolvimento a ser imposto aos países e às crianças. As chamadas crianças-soldado e os estudos sobre elas são reflexos dessas relações que formam o cenário internacional. Por outro lado, também reconhecemos tentativas de construir outras narrativas que fogem dessa lógica. Assim, não há apenas uma narrativa sobre o emprego de crianças-soldado, mas um conjunto de narrativas que se revelam a partir da investigação mais aprofundada sobre o tema. 1.2 Desenho de pesquisa Como neste trabalho analisamos as narrativas construídas sobre as crianças-soldado no cenário internacional, é necessário esclarecermos o que entendemos por “narrativas”. Referimo-nos não a relatos pessoais e biográficos ou histórias orais, mas ao seu sentido mais amplo, considerando que narrativas são histórias construídas, contadas e recontadas, com o objetivo de criar uma verdade, uma versão sobre acontecimentos, uma argumentação de como os eventos ocorreram. A narrativa é, pois, uma maneira de construir modelos explicativos que justificam determinada realidade, dando ordem e significado a acontecimentos (LABOV, 1997; LINARD, 2017; PAIVA, 2008). Por conseguinte, estudar a forma pela qual as narrativas são construídas, consolidadas e reproduzidas é uma maneira de investigar as relações de poder que se articulam em torno de um tema. No Brasil, a análise de construção de narrativas já foi utilizada em alguns trabalhos no campo das Relações Internacionais, a fim de explicar o estabelecimento de visões dominantes sobre nacionalidade, segurança e ameaça (LEITE, 2013; MOTTA, 2014); política externa brasileira (BRANCOLI, 2016a); imagem do continente africano (MINILLO, 2013); papel hegemônico dos Estados Unidos (MOLL NETO, 2015) e privatização da violência (BRANCOLI, 2016b). Esses esforços fazem parte de um movimento maior de trazer novos elementos analíticos para as Relações Internacionais, partindo da ideia de que a realidade pode ser construída, desconstruída e reconstruída. Trata-se, pois, de uma forma de elucidar fatores 13 que ficaram à sombra do mainstream das análises internacionais (ADLER, 1999; ASHLEY; WALKER, 1990; WALKER, 1993). No nosso estudo, buscamos por fatores que indiquem como essas linhas argumentativas estão articuladas, como moldam a forma de enxergar o emprego de crianças- soldado e se são reafirmadas pelas organizações internacionais. Logo, procuramos por estruturas explicativas que se repetem nas análises sobre as crianças-soldado e que indicam pontos-chave para a compreensão do fenômeno. Também nos atentamos para pontos de inflexão e rupturas nessas narrativas, isto é, pontos divergentes que afastam uma construção narrativa da outra, quais aspectos tais pontos abordam, além de momentos de rompimento de elementos de causalidade traçados para explicar o emprego de crianças-soldado. Em suma, nosso objetivo ao longo deste trabalho foi mostrar como a questão das crianças-soldado nas Relações Internacionais é uma construção por meio de narrativas – dominante e alternativa – que se estabelecem mais em nome de determinados interesses e menos em nome da efetiva proteção da criança. Apesar de apontarmos a existência de uma narrativa dominante e uma narrativa nascente que pode se contrapor a esta, não queremos cair no dualismo de separar hermeticamente essas narrativas, pois pode haver elementos explicativos que estão presentes em ambas. A fim de sistematizar nossa pesquisa, foi necessário pensarmos sobre os atores que contribuem significativamente para a construção de narrativas sobre crianças-soldado, ou seja, atores que têm poder de construir e influenciar percepções acerca do tema, levando em consideração que as narrativas resultam de articulações e interações entre esses atores. Consideramos três frentes que influenciam as narrativas sobre crianças-soldado: a própria produção acadêmica sobre o tema; as Nações Unidas; e as ONGs. A bibliografia acadêmica sobre Crianças e Conflitos Armados3 desenvolveu-se consideravelmente nos últimos anos, por isso dispomos de material especializado acerca desse assunto. No Brasil, uma importante bibliografia foi produzida por Jana Tabak em sua dissertação de mestrado (2009), acerca do processo de reintegração de crianças-soldado, e em sua tese de doutorado (2014), sobre a construção de um conceito de infância nas Relações Internacionais. Demais artigos e dissertações também já foram publicados sobre o assunto (FAÇANHA, 2001; MARTUSCELLI, 2015; PAIVA, 2016; RIVA, 2012). 3 Utilizamos a expressão Crianças e Conflitos Armados em letras maiúsculas para nos referirmos a uma bibliografia já desenvolvida e que está em expansão, que se dedica a abordar o modo pelo qual as crianças estão inseridas nos conflitos armados e em atividades militares, de que forma a violência afeta as crianças, e quais as explicações para o emprego de crianças-soldado. 14 Muitas vezes, características como barbarismo e irracionalidade da violência direcionada às crianças são destacadas como fatores causais que levam ao emprego de crianças- soldado (DALLAIRE, 2010; SINGER, 2001; SPIGA, 2010). Essa perspectiva apresenta uma tendência a procurar respostas para o emprego de crianças-soldado no subdesenvolvimento socioeconômico de alguns lugares do mundo, colocando o foco da análise em problemas típicos de países em desenvolvimento como pobreza, falta de acesso à educação e saúde, conflitos armados, violência indiscriminada, intenso fluxo de armas leves e Estados que não garantem direitos básicos dos cidadãos, os chamados “Estados Falhados” (MITTON, 2012). Por outro lado, parte da bibliografia aponta que fatores distintos devem ser levados em consideração. O próprio entendimento do conceito de criança pode ter impacto em como a sociedade interpreta a participação das crianças em atividades bélicas. A falta de combatentes adultos em algumas regiões em que o número de crianças é abundante também ajuda a explicar porque as crianças-soldado se concentram mais em determinados locais (CABRAL 2006; DENOV; MACLURE, 2006; HONWANA, 2005; MACHEL, 1996; ROSEN 2005; ROSEN, 2015; SPRINGER, 2012; TABAK, 2014). Wessels (2006), por exemplo, chama a atenção para a necessidade de contextualizar o emprego de crianças-soldado, evitando recair na dicotomia vítima/perpetrador que, muitas vezes, está presente nas análises sobre esse tema: ora a criança é vista somente como a vítima de uma situação de pobreza extrema e de conflitos armados que a obriga a tomar parte no conflito, ora é vista como um perpetrador da violência que age sem escrúpulos. No âmbito das Nações Unidas – principal organização internacional dedicada a tratar questões que envolvem a paz, a defesa e a segurança internacionais – analisamos dois órgãos específicos sobre a temática: o Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflitos Armados e o Grupo de Trabalho do Conselho de Segurança para Crianças e Conflitos Armados. Esses dois órgãos trabalham especificamente com temas relacionados ao envolvimento de crianças em conflitos armados com ênfase no emprego de crianças-soldado. Existem outros órgãos das Nações Unidas que também trabalham a questão da infância, porém enfocam mais o bem-estar da criança em geral. A questão das crianças-soldado não é o foco desses órgãos, o tema é tratado apenas marginalmente. Ainda no que concerne ao trabalho da ONU, tomamos a liberdade de aproveitar os resultados da pesquisa feita na nossa dissertação de mestrado. Nesse trabalho anterior, investigamos como alguns órgãos da ONU (Unicef, Assembleia Geral, Conselho de Segurança e Secretariado) tratavam o emprego de crianças-soldado e chegamos à conclusão de que havia uma convergência na forma de trabalho desses organismos que apontava para o 15 subdesenvolvimento como uma ameaça às crianças e como uma das forças causais do emprego de crianças-soldado (PAIVA, 2016). Essa investigação prévia nos permitiu ter uma noção do trabalho do sistema onusiano, de modo que iremos nos aprofundar ainda mais em outros aspectos não abordados no mestrado. No âmbito das Organizações Não-Governamentais, emergiram algumas iniciativas especializadas em crianças. Focaremos nessas organizações que possuem trabalhos específicos sobre crianças-soldado e proteção das crianças em conflitos armados e que possuam materiais a serem analisados, tais como documentos e relatórios que explicitam suas respectivas visões acerca da temática. São elas: Save the Children; The Romeo Dallaire Child Soldier Initiative; Watchlist on Children and Armed Conflict e Child Soldiers International, juntamente com a Child Rights International Network. Todas essas ONGs possuem sites oficiais nos quais publicam seus estudos, relatórios, recomendações e trabalhos mais relevantes. Portanto, o material a ser utilizado em nossa pesquisa é de acesso público e tem caráter mais analítico e qualitativo do que quantitativo. Lembramos que há outras instituições que abordam a proteção da criança e da infância como World Vision International, Believe in Children Barnardo’s e Plan International, mas nenhuma delas foca-se no tema Crianças e Conflitos Armados, tampouco no emprego de crianças-soldado. Quando citam a questão é de forma marginal e complementar, não tendo o objetivo de enfocar este assunto. Algumas outras organizações como a Terre des Home chegam a mencionar o emprego de crianças-soldado como um fator que gera preocupação, mas não produzem relatórios específicos sobre o tema, somente citando-o de forma pontual. Em nossa pesquisa, consideramos que essas organizações – tanto a ONU quanto as ONGs – são atores relevantes nas Relações Internacionais, pois formam discursos, produzem documentos e materiais de pesquisa, tomam decisões e têm poder de influenciar a conduta de Estados no cenário internacional. Nos documentos da ONU, das ONGs e na bibliografia selecionada, procuramos por elementos que constroem formas de enxergar as crianças-soldado e as partes beligerantes que as empregam. Para facilitar e organizar nossa análise, alguns elementos são essenciais como: conceitos de infância e criança empregados; de que forma representam as partes que empregam crianças (inimigos e ameaças); para quais casos de emprego de crianças-soldado conferem maior destaque; quais fatores são apontados como causas do emprego de crianças-soldado (por exemplo, subdesenvolvimento, fluxo de armas leves, questões culturais). Esses documentos são produzidos principalmente a partir dos anos 2000, época em que o emprego de crianças-soldado ganhou maior atenção internacional. Em nossa investigação, não nos focamos em um país 16 específico, pois isso limitaria nossa análise. Nosso objetivo foi olhar como a questão é representada e construída por narrativas no âmbito global. Como forma de expor nossos argumentos, optamos por primeiro apresentar a base teórica que sustenta algumas concepções sobre conflitos e crianças para, posteriormente, entrarmos com mais detalhes nos estudos sobre crianças-soldado. A própria bibliografia que trata das crianças-soldado ecoa alguns aspectos que abordamos nos capítulos iniciais sobre liberalismo, relações Norte-Sul e Segurança Internacional. Sentimos a necessidade, então, de explicitar as relações entre as mudanças no cenário internacional e a proteção e construção do que é a infância. Assim, dividimos a apresentação deste trabalho em cinco capítulos. No capítulo 2 (Construir, proteger, desenvolver: reflexões sobre crianças e Estados), abordamos como as concepções sobre as crianças e a infância foram construídas e modificadas ao longo da história, juntamente com as próprias transformações dos Estados e dos modelos político e econômicos que guiaram esses países. No capítulo 3 (As anomalias do Sul: corrigir crianças e Estados), o nosso intuito foi investigar as relações estabelecidas entre as crianças que não se encaixam no modelo universalizado de criança e infância – consolidado por documentos internacionais – e os Estados que também não se encaixam no modelo de Estado liberal e capitalista – os chamados “Estados Falhados”. No capítulo 4 (A bibliografia sobre crianças-soldado), apresentamos uma revisão e discussão sobre os principais pontos que a produção acadêmica especializada – brasileira e estrangeira – apontam como fatores determinantes para a utilização de crianças-soldado. No capítulo 5 (O trabalho da ONU sobre crianças-soldado), abordamos e analisamos outros atores: os órgãos da ONU especializados em crianças-soldado, mais especificamente, o Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflitos Armados e o Grupo de Trabalho do Conselho de Segurança sobre Crianças e Conflitos Armados. Objetivamos analisar qual foi a narrativa que o sistema da ONU construiu sobre as crianças-soldado. Já no capítulo 6 (O trabalho das ONGs sobre crianças-soldado), investigamos a forma pela qual as ONGs abordam o emprego de crianças-soldado. Nossas considerações finais encerram este trabalho, retomando nossa hipótese e revisando os pontos das narrativas construídas sobre as crianças-soldado. Com esta investigação, pretendemos fortalecer os estudos sobre crianças no campo de Relações Internacionais e Segurança Internacional. Apesar de existirem vários documentos internacionais que abordam a questão da criança em conflitos e de haver uma bibliografia que trata do tema das crianças-soldado, o debate acerca de sua presença na agenda de Relações 17 Internacionais é relativamente recente e enseja mais investigações. Fazemos um esforço de repensar a criança como um ator internacional na agenda de Segurança. Além disso, pretendemos contribuir para enxergar além da narrativa dominante sobre as crianças-soldado, repensando o papel das Nações Unidas e das ONGs no combate ao emprego de crianças-soldado, trazendo uma abordagem mais plural que contribua para um debate ainda incipiente. As reflexões sobre crianças, infâncias, Estados e organizações internacionais também ressoam no Brasil, país que tem histórico de ser um ator frequente em fóruns internacionais sobre direitos humanos e possui produção acadêmica sobre a infância em diferentes áreas do conhecimento. Ademais, o Brasil é palco de diversos tipos de violência contra a criança, o que reforça ainda mais a importância de enriquecer os debates sobre essa temática no país. Mais uma vez, ressaltamos o fortalecimento dos estudos vindos do Sul Global e sob a perspectiva dos países que compõem o Sul Global como forma de tentar problematizar construções narrativas cristalizadas e, aos poucos, compor um panorama de estudos sobre Relações Internacionais e sobre infância que reflita anseios e desafios brasileiros. 18 2. CONSTRUIR, PROTEGER, DESENVOLVER: RELFEXÕES SOBRE CRIANÇAS E ESTADOS A palavra infância representa um estado negativo do ser. Etmologicamente, significa aquele que não fala (PAGNI, 2010). Assim, a criança é definida pela sua incapacidade de fazer algo e por sua subordinação ao universo adulto. A criança é a que não fala, não se expressa com clareza, não vota, não casa, não possui independência (PAGNI, 2010; SARMENTO, 2012). Justamente por essa incompletude do ser, a criança é definida exogenamente. São os adultos que definem quem são as crianças, como elas devem se comportar e o que é melhor para elas. Os conceitos (ou até mesmo a falta de conceitos) de criança e infância que se apresentam ao longo da história são frutos das visões dos adultos sobre o mundo e refletem as mudanças pelas quais as sociedades passam. Mudanças sociais, políticas, econômicas, históricas e culturais. Dessa forma, o olhar com o qual as sociedades enxergam e definem as crianças diz mais sobre as próprias sociedades do que sobre as crianças. Partimos da ideia de que os conceitos de criança e infância são construções sociais que variam de acordo com essas mudanças. Neste capítulo, temos o objetivo de analisar a construção social da criança e da infância como expressões das transformações nas sociedades. Para tanto, dividimos o capítulo em três itens. O primeiro deles, o item 2.1 (A construção da infância) objetiva apresentar a forma pela qual as crianças foram ganhando cada vez mais atenção por parte do mundo adulto até chegarmos na constituição da infância moderna. O item 2.2 (A proteção da infância) irá analisar a necessidade de proteger não só as crianças, mas a ideia de infância. Daremos especial atenção para a consolidação dos Direitos Humanos a partir da década de 1950 e para a proclamação dos Direitos da Criança, em 1959. O item 2.3 (O desenvolvimento da infância) encerra o capítulo, analisando de que forma o conceito de infância foi normatizado em documentos internacionais e o desenvolvimento da criança como ser humano foi considerado parte das estratégias de desenvolvimento socioeconômico dos países. Todas essas questões nos serão úteis para pensarmos sobre o conceito de criança- soldado que veremos ao longo deste trabalho. 2.1 A construção da infância Existem versões de como a concepão de criança, e sobretudo de infância, surgiram e se desenvolveram na história moderna ocidental. 19 A reflexão acerca do papel da criança na sociedade esteve presente em clássicos da filosofia política moderna, mesmo que marginalmente. As discussões sobre a natureza humana, o Estado de Natureza e a formação das sociedades tocam, de algum modo, no tema da criança, por esta ser a fase inicial da vida humana (HOBBES, 1997; LOCKE, 1991; ROUSSEAU, 1995). Mas foi principalmente no século XX que se desenvolveram estudos mais específicos sobre a infância. Tomaremos por base essas análises que têm o objetivo de investigar as construções e desconstruções pelas quais as noções de criança e infância passaram. Nesse sentido, Philippe Ariès (1965), em sua obra “História Social da Criança e da Família” (“L’Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime”, no título original), publicada pela primeira vez em 1960, traz uma importante contribuição ao enxergar a face histórica do processo de construção da infância4. O autor fornece uma visão ímpar para a década de 1960 ao conferir relevância para como as sociedades enxergavam suas crianças em diferentes momentos históricos e como essas visões foram se transformando. Embora Ariès receba críticas por enfocar a visão adulta sobre a infância e não a criança em si, o livro ainda é notável pelo empenho em destacar a infância em diferentes períodos históricos. O estudo foi alvo de releituras, reinterpretações e críticas, tornando-se um importante marco nos estudos sobre a infância e abrindo caminho para que outros trabalhos também dedicados a reler a criança fossem publicados (FAAS, 2013; HEYWOOD, 2010; JOHANSSON, 1987; POLLOCK,1983; RYAN, 2013; VANN, 1982; WILSON, 1980). Ariès (1965) ressalta que, anteriormente à construção do Estado Moderno, ainda na época medieval, a criança era entendida como um “adulto em miniatura”. Isso não significa dizer que não existia afeto pela criança na época medieval, mas que havia uma espécie de indiferença em relação à criança, a qual não era entendida como uma categoria humana especial, mas sim como um ser que apenas recebia e absorvia o mundo adulto. Nas representações iconográficas medievais, como nas pinturas, as crianças eram pouco retratadas e, quando o 4 No que concerne à adolescência, Ariès (1965) identifica que o termo adolescente não foi claramente definido no Antigo Regime. Segundo o autor: “Até o século XVIII, a adolescência era confundida com a infância. Na escola latina, as palavras puer e adolescens eram usadas indiscriminadamente. Preservados na Bibliotheque Nationale, estão os catálogos do Colégio Jesuíta de Caen com uma lista dos nomes dos alunos acompanhados de comentários. Um garoto de quinze anos é descrito nesses catálogos como bonus puer, enquanto seu jovem colega de escola de treze anos é chamado de optimus adolescens” (ARIÈS, 1965, p. 25, tradução nossa). De acordo com o autor, somente no final do século XVIII e, sobretudo no século XIX, a adolescência e a infância são diferenciadas de forma mais evidente por atividades como o serviço militar. Estudos mais recentes, principalmente no século XX, marcam mais claramente a transição da infância para a adolescência por fatores físicos, cognitivos e sociais (THORNBURG, 1983). No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, estabelece que criança é o indivíduo com 12 anos incompletos e o adolescente aquele entre 12 e 18 anos (BRASIL, 1990, art. 2), porém as definições de criança e adolescente variam conforme as legislações de cada país. 20 eram, suas imagens se assemelhavam a de pequenos adultos. A criança representava uma fase não tão importante do ser humano, a qual passava rapidamente e da qual se guardavam poucas recordações iconográficas. Não havia uma clara distinção entre a fase de vida na qual o ser humano é criança e a fase na qual se torna adulto. É importante ressaltar que muitos indivíduos sequer chegavam à fase adulta. Devido à baixa expectativa de vida da Idade Média, era preciso ter muitos filhos para que algum conseguisse superar doenças, conflitos, condições sanitárias e resistir ao passar dos anos (ARIÈS, 1965). Raedts (1977) e Ryan (2016) defendem que as políticas de idade – ou seja, a categorização do ser humano em anos de vida – constituem formas modernas de contar o tempo. Raedts (1977) propõe que, no contexto medieval, a noção de criança estava intimamente relacionada à servidão e ao patriarcado. Isso explica porque a mesma palavra pueri ou pueritiu era usada tanto para designar os seres humanos nas fases inicias da vida, quanto para definir aqueles que possuíam algum trabalho que os colocava em condição de servidão (RAEDTS, 1977, p. 296). Logo, não havia rigidez em contar a vida em anos, tampouco uma definição fixa do que era a criança. Em contraposição, na Era Moderna, as ideias associadas à criança e à juventude foram separadas da noção de servidão (RYAN, 2013). Ariès (1965) interpreta o século XVII como o ponto de virada que iria consolidar a importância da criança e o “sentimento de infância” que está presente ainda hoje em documentos internacionais: a criança necessita de cuidado e proteção especial. Mesmo que a mortalidade das crianças ainda fosse significativa nesse século, algumas mudanças das sociedades europeias impactaram os modos como as crianças eram percebidas e cuidadas nessa época: a institucionalização da educação infantil e o fortalecimento do núcleo familiar como um espaço de intensificação da educação da criança (RYAN, 2013). Ariès (1965) lembra que a partir desse século, as representações iconográficas de crianças passaram a ser cada vez mais comuns e as famílias demandavam que suas crianças fossem retratadas como parte integrante e importante do seio familiar. É justamente no século XVII que John Locke aprofunda a ideia de “tábula rasa” na obra “Ensaio Acerca do Entendimento Humano”. O autor argumenta que os seres humanos nascem iguais e são moldados a partir de suas experiências em vida. A criança, mencionada marginalmente por Locke, é a fase inicial desse desenvolvimento, como uma folha em branco na qual serão escritas as experiências. Os pais e os educadores assumiriam, portanto, o importante papel de conferir instrução à criança e guiá-la da melhor forma para se consolidar como adulto (LOCKE, 1991). Sob essa perspectiva, a criança é um ser relevante, pois significa o início da vida humana, o começo de uma vida cheia de possibilidades e aberta a experiências. 21 Se guiadas da melhor forma, tais experiências conduzirão a criança ao desenvolvimento do seu ser. De acordo com esse raciocínio, a criança representa o pleno potencial da vida humana (LOCKE, 1991). Segundo Ariès (1965), o conceito moderno de infâcia prospera justamente nos círculos de iluminismo burguês, em que a criança é a própria representação das possibilidades de mudança na sociedade: de ascenção social e de educação. O autor aponta a consolidação do Estado Moderno e liberal como um fator importante que explica o desenvolvimento da noção moderna de infância (ARIÈS,1965). Quando falamos em “Estado Moderno e liberal” estamos nos referindo ao liberalismo, ou seja, um conjunto de ideias que se manifesta em diversos âmbitos e que abarca os ideais e as práticas liberais. Hoffmann (1995) lembra que o liberalismo é, em essência, uma contestação aos regimes autoritários. De fato, o pensamento liberal emergiu na Europa, em um contexto específico, como um conjunto de ideias que procurava garantir as liberdades individuais em meio a uma época de domínio absolutista. Nesse sentido, os ideais liberais contestavam os privilégios da nobreza e o modelo de Estado absolutista no âmbito político e econômico. Um Estado que interferisse minimamente na economia e que garantisse alguns direitos individuais, entre eles a propriedade privada, favoreceria os negócios da burguesia nascente (HOFFMANN, 1995). Ainda assim, a princípio, esses direitos limitavam-se a direitos civis, direitos de propriedades individuais e direitos de liberdade religiosa. Gradualmente, os direitos assegurados foram ampliando-se e traduzindo-se por meio de maior representação política através de eleições. Contudo, o direito à propriedade e o relativo afastamento do Estado em relação ao mercado e à economia não garantiam igualdade a todos os estratos da população. O liberalismo surge, então, como legitimador da classe burguesa, cujos ideais foram reafirmados e propagados através de importantes eventos históricos como a independência das Treze Colônias, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789 (ROTHSCHILD, 1995). Tais revoluções burguesas estabeleceram um modelo de sociedade sob a égide dos ideais liberais, valorizando a liberdade para o mercado se expandir livre da regulação do Estado. Ademais, essas transformações nos Estados Unidos e na França reforçaram a constituição dos Estados Modernos e de um ideal de nação, moldando a forma como os outros Estados deveriam ser (ROTHSCHILD, 1995). Em meio a esse período de consolidação liberal, Rousseau (1995) dá algumas pistas sobre como a criança era enxergada no século XVIII e ainda acrescenta reflexões sobre o papel da educação na vida da criança. 22 Na obra “Emílio ou da Educação”, originalmente publicada em 1762, Rousseau considera que, nos primeiros anos de vida, a criança não possuía sentimentos: “Antes ela não é nada mais do que era no ventre da mãe; não tem nenhum sentimento, nehuma ideia” (ROUSSEAU, 1995, p. 57). Esse autor ainda categoriza o que cada faixa etária representa e as capacidades físicas e mentais das crianças em cada idade. Dos 12 aos 15 anos, a criança entraria na idade da força, desenvolvendo força física, intelectual e moral. O período de 15 a 20 anos seria a idade da razão e das paixões, fase dedicada à formação moral e espiritual. A etapa final da educação dar-se-ia após os 20 anos, quando o indivíduo estaria preparado para o casamento e para educar seus próprios filhos (PAIVA, 2007; ROUSSEAU, 1995). Diferentemente de Ariès (1965) que aponta o século XVII como um ponto de virada no entendimento da criança, Cunningham (2014) trabalha com a construção da infância em um tempo histórico mais abrangente. Esse autor argumenta que entre 1500 e 1900, gradativamente, desenvolveu-se a chamada “ideologia da infância”, isto é, ideias encadeadas e coerentes sobre o que deve ser a infância. Um marco é a ideia de que a escola – e não o trabalho – era o lugar ideal para a criança. Contudo, ao mesmo tempo em que existiam crianças que viviam de acordo com a “ideologia da infância”– que frenquentavam a escola e que desfrutavam de proteção no seio familiar – também existiam variáveis como gênero5, raça, posição social que disitinguiam outros modos de ser criança. Por exemplo, as crianças das classes mais baixas demoraram mais a passar por essa especialização e continuavam a usar roupas comuns e participar de brincadeiras comuns, que não as diferenciavam dos adultos (ARIÈS, 1965). Mesmo a pretensa universalização da educação das crianças guardava segregações. Depois do século XVIII, a escola única foi substituída por um sistema dual de educação que se dividia não por faixas etárias, mas por critérios sociais: o liceu – ou colégio para a classe média (educação secundária) – e a escola para as camadas mais baixas da população (educação primária) (RYAN, 2013). 2.2 A proteção da infância 5 Ariès (1965) argumenta que os meninos foram as primeiras crianças realmente tratadas como crianças. O autor ressalta que o casamento de um menino de 14 anos ainda era raro, mas o casamento de uma menina de 13 anos ainda era bem comum. As meninas eram vistas mais como mulheres, só depois é que também passaram a ser vistas como crianças. De acordo com a argumentação de Ariès (1965), anteriormente ao século XVII não se notava tamanha especialização da vida da criança, tampouco uma clara divisão entre o universo do adulto e o universo da criança. O mundo infantil emerge nessas pequenas especializações da vida da criança e na criação de um universo separado do adulto. 23 Entre o período de 1830 e 1920, nós vimos que Cunningham (2014) chama a atenção para uma mudança em relação à forma de se tratar a criança: a “ideologia da infância” passa a ser incorporada na esfera de ação pública. A preocpuação primordial das políticas públicas direcionadas à infância era que as crianças pudessem desfrutar de suas infâncias (CUNNINGHAM, 2014). Ainda assim, o processo de especialização da vida infantil separadamente do universo adulto foi longo e gradual. A regulação do trabalho infantil – que mais tarde culminaria na proibição do trabalho infantil – é parte desse processo e é também parte de um movimento maior de proteger o trabalhador contra a exploração do capital. Tendo por base a explicação da luta de classes, na obra “O Capital”, originalmente publicada em 1867, Marx analisa esse processo no qual as crianças estiveram presentes de forma importante (MARX, 2013, p.466). Na Europa do final do século XVII, ainda existia a ideia de que o trabalho era necessário para a criança, pois conferia a ela uma função, uma ocupação e um saber. Em alguns empregos em fábricas6 de laminagem e usinas de ferro e aço as crianças trabalhavam inclusive no turno noturno, pois era mais lucrativo utilizar crianças nesse período do que pagar parte do salário dos trabalhadores adultos. Além disso, as crianças eram consideradas trabalhadoras obedientes e começar cedo no trabalho significaria aprender um ofício com antencdência (MARX, 2013, p.466). Nos séculos XVIII e XIX a realidade não era tão diferente. Na Inglaterra, em 1860, em uma fábrica de rendas, crianças de 7, 9, 10 anos acordavam entre às 2, 3 e 4 horas da manhã e eram obrigadas a trabalhar até as 10, 11 e 12 horas da noite (MARX, 2013, p. 405). Em uma fábrica de papeis de parede, crianças de 7 anos costumavam trabalhar 16 horas por dia (MARX, 2013, p. 408). Ainda que entre 1802 e 1833 a Inglaterra tenha aprovado cinco leis trabalhistas, estas não eram compulsórias e não havia rígida fiscalização para o cumprimento dessas legislações (MARX, 2013, p. 440). Apenas em 1833 o Parlamento inglês aprovou a Lei Fabril que reduziu a jornada de trabalho das crianças de 13 a 18 anos para 12 horas de trabalho em alguns ramos industriais que incluíam a produção de algodão, lã, linho e seda (MARX, 2013, p. 439). Então, somente no século XIX alguns avanços mais concretos são alcançados em termos de limitação do trabalho infantil. 6 As crianças não trabalharam apenas em fábricas, mas também na agricultura, no comércio, no artesanato. Elas foram – e são – parte dos trabalhadores que ajudam a construir a economia capitalista (CUNNINGHAM, 2014). 24 Em 1844 e 1847 novas leis fabris foram aprovadas. Alguns fabricantes “começaram, aqui e ali, a dispensar uma parte, às vezes a metade dos adolescentes e trabalhadoras por eles empregados” (MARX, 2013, p. 450). Tais leis, no entanto, ainda deixavam muitas brechas. Por exemplo, Marx descreve a Lei Fabril de1844 da seguinte forma: proibia que crianças de 8 a 13 anos, que tivessem sido ocupadas pela manhã antes das 12 horas, voltassem a ser ocupadas depois de 1 hora da tarde. Mas ela não regulava de modo algum as 6 horas e meia de trabalho das crianças cuja jornada de trabalho começava ao meio-dia ou mais tarde! Desse modo, crianças de 8 anos, se começassem a trabalhar ao meio-dia, podiam ser empregadas das 12 horas à 1 da tarde, 1 hora; das 2 às 4 da tarde, 2 horas, e das 5 às 8 e meia da noite, 3 horas e meia; no total, as 6 horas e meia determinadas por lei! Ou melhor ainda. A fim de fazer seu trabalho coincidir com o dos trabalhadores masculinos adultos até as 8 e meia da noite, os fabricantes precisavam apenas não dar a elas nenhum trabalho antes das 2 horas da tarde, podendo, a partir de então, mantê-las na fábrica ininterruptamente até as 8 e meia da noite! (MARX, 2013, p.450). Ademais, a fim de driblar a restrição de trabalho infantil, os empregadores utilizavam um esquema de “revezamento” no qual deslocavam as crianças da fiação para a tecelagem ou de uma fábrica para a outra, fazendo com que trabalhassem por até 15 horas (MARX, 2013, p. 454). Os fabricantes de seda, por exemplo, alegavam que não podiam manter suas produções sem as crianças, pois isso acarretaria a paralisação de suas fábricas (MARX, 2013, p. 458). Além disso, argumentavam que não havia dinheiro suficiente para empregar grande número de trabalhadores maiores de 13 anos e que “a delicadeza do tecido [seda] requeria uma leveza de toque que só poderia ser garantida por meio de uma admissão prematura nessas fábricas” (MARX, 2013, p. 459). Em 1850, na Inglaterra, ainda existiam 3.732 crianças empregadas em 257 fábricas (MARX, 2013, p. 452). A Lei Fabril de 1850 diminuiu apenas para ‘jovens e mulheres’ a jornada de 15 horas para 12 horas, das 6 horas da manhã até às 18h. No entanto, as crianças continuaram a ser empregadas “meia hora antes do começo e 2 horas e meia após o término desse período, mesmo que a duração inteira de seu trabalho não devesse ultrapassar 6 horas e meia” (MARX, 2013, p.460). Somente em 1853 houve proibição de “empregar crianças, na manhã, antes, e à noite, depois dos jovens e das mulheres” (MARX, 2013, p.460). Ou seja, só na segunda metade do século XIX há uma consolidação maior da proteção da criança contra o trabalho degradante nas fábricas da Europa. Nessa época, a escolarização de crianças tornava-se mais comum. Isso porque existia uma demanda por pensamentos cada vez mais sofisticados para produzir economias igualmente mais sofisticadas. Dessa forma, a criança pode ser vista como a esperança de formar futuros economistas que vão pensar e manter 25 esse sistema capitalista de Estados. A nação investe na criança – em sua saúde e educação, por exemplo – ou seja, investe na especialização do universo infantil separado do universo adulto e, como retorno, dispõe das novas gerações como futuros trabalhadores (CUNNINGHAM, 2014). A possibilidade de aumentar a produtividade por meio da tecnologia possibilitou que parte das mulheres e das crianças fossem dispensadas do trabalho fabril. A partir disso, elas passam a exercer funções mais específicas na sociedade. No caso das mulheres, elas passam a ter mais tempo em casa para desempenhar um outro tipo de trabalho – que não é remunerado, tampouco reconhecido como trabalho: o doméstico. São o sustentáculo para que o marido trabalhe fora de casa. Elas ainda preparam, dentro do ambiente familiar, os “trabalhadores do futuro”, que um dia assumirão a reprodução e a permanência desse sistema capitalista: as crianças (FEDERICI, 2019, p. 68)7. Faas (2013) argumenta que a infância moderna consiste em um modo de vida privilegiado que só se tornou mais acessível para a população a partir do século XIX, quando foi adotado por instituições como parte de um projeto maior de Estado Moderno. A partir disso, a infância torna-se um paradigma de humanitarismo, aparentemente acima de divisões de classe, raça e gênero. Isto é, não importa a qual gênero, raça8 ou classe social as crianças pertencem, elas são universalizadas e tratadas como crianças, ao menos no âmbito teórico. Logo, a defesa da infância moderna é vista como uma forma de reafirmar as benesses de um Estado liberal e garantir progresso humano, dignidade e liberdade (FAAS, 2013). No começo do século XX, o foco estava nos deveres que os Estados e pais ou responsáveis tinham na proteção da criança. Porém, principalmente na segunda metade do 7 Essa autora não possui o objetivo de se aprofundar na reflexão sobre o papel das crianças nas sociedades capitalistas. Ainda assim, seus estudos permitem pensar a criança como fruto da procriação colocada à serviço da acumulação capitalista. Nesse sentido, a criança passa a ser mais valorizada e cuidada, visto que significava a continuidade natural da mão-de-obra (FEDERICI, 2017, p. 178). Alguns estudos sobre crianças possuem inspiração em estudos sobre gênero. Apesar de não ser nossa intenção neste trabalho, é possível traçar um paralelo entre a emancipação e empoderamento de mulheres e um movimento semelhante, buscando mostrar a voz e o empoderamento das crianças. Sobre esse tema, ver: OAKLEY, Ann. Women and Children First and Last: Parallels and Differences between Children’s and Women’s Studies. In: Children's Childhoods Observed and Experienced. Berry Mayall (ed.), London: Falmer Press, 1994. 8 As relações entre a questão racial e a infância merecem especial atenção nas análises brasileiras. Sobre o tema, ver: LIVEIRA, Fabiana de; ABRAMOWICZ, Anete. Infância, raça e "paparicação". Educ. rev., Belo Horizonte , v. 26, n. 2, p. 209-226, Aug. 2010; DA SILVA JOVINO, Ione. Crianças negras na história: Fontes e discursos sobre a breve infância permitida pelo escravismo oitocentista brasileiro. Revista Eletrônica de Educação, v. 9, n. 2, p. 189-226, 2015 e NUNES, Míghian Danae Ferreira; CORRÊA, Lajara Janaina Lopes. As crianças negras vistas pela sociologia da infância no brasil: uma revisão de literatura. Saber & Educar, n. 21, p. 86-97, 2016. 26 século, a abordagem dominante nos fóruns internacionais tornou-se mais ampla e ambiciosa, enxergando a criança como sujeito de direitos que devem ser defendidos, difundidos, promovidos e implementados (ONU,1959; 1989). Além disso, formalizou-se o entendimento de que as crianças devem não apenas ter direitos garantidos, mas também serem ouvidas e terem suas vozes levadas em consideração em processos jurídicos (ONU, 1989). Assim, ao longo do século XX, podemos notar a intenção de promover, em âmbito internacional, um senso de obrigação moral para que os Estados se comprometessem formalmente a adotar padrões de proteção da criança. O maior aprofundamento da retirada da criança do ambiente laboral para o ambiente educacional por meio da garantia dos direitos da criança é algo recente, consagrado por meio de documentos internacionais que proclamam a criança como sujeito de direitos. O pós-Primeira Guerra Mundial intensificou essa proteção da infância como forma de reparar as marcas deixadas pelo conflito armado. A Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924) reconheceu a necessidade internacional de garantir proteção especial às crianças. A Liga das Nações, em 1925, designou o Comitê de Bem-Estar da Criança que abordava as melhoras práticas para a proteção das crianças. A preocupação com o bem-estar infantil em tempos de pós-guerra abarcava cuidados médicos, emocionais e psicológicos (STEWART, 2011) 9. O pós-Segunda Guerra Mundial também foi um período de proliferação e fortalecimento de organizações humanitárias, tanto no âmbito da recém criada ONU quanto no âmbito das Organizações Não-Governamentais. As crianças foram impactadas de diferentes formas por esse conflito mundial. As crianças europeias sofreram com a violência e destruição de parte de seus territórios, seus lares e suas famílias; as crianças japonesas foram severamente afetadas pelas bombas atômicas (COLES; MARTEN, 2002); e crianças soviéticas, inglesas, estadunidenses e alemãs atuaram nas linhas de batalha da Segunda Guerra como soldados (KUCHERENKO, 2011; SANTOS; MUNIZ, 2012)10. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) nasceu nesse contexto, com o intuito de oferecer proteção às crianças desamparadas no pós-Segunda Guerra Mundial. Ações 9 No Brasil, entre 1920 e 1940, cuidar da criança significava modernizar a sociedade. Foram tomadas medidas como ênfase na educação da criança, especialização de atividades lúdicas como jogos e passatempos, campanhas e debates sobre alfabetização e amamentação (KUHLMANN JR.; MAGALHÃES, 2010). 10 Sobre o impacto da Segunda Guerra Mundial nas crianças, ver também: BRECHT, Bertolt. A Cruzada das Crianças. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2014, livro de poemas que expressa o sentimento de abandono de crianças no final do conflito. Sobre a juventude hitlerista, ver: BARTOLETTI, Susan Campbell. Juventude Hitlerista: a história dos meninos e meninas nazistas e dos que resistiram. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. 27 de filantropia de igrejas ou de instituições de assistência humanitária também prosperavam nessa época, promovendo campanhas de doação e ajuda para reestabelecer a vida das pessoas afetadas pelos anos de guerra (STEIN, 2007). Por exemplo, a organização Oxford Committee for Famine Relief, que depois viria a se tornar a Oxfam, foi fundada na Grã-Bretanha, em 1943. Ainda durante a Segunda Guerra Mundial, tal organização instituiu campanhas para arrecadação de comida, a fim de enviar para os países Aliados, sobretudo para crianças e mulheres que passavam fome ou estavam sob ocupação dos países do Eixo (OXFAM, 2019). De modo geral, o pós-Segunda Guerra foi marcado pela importância conferida à proteção do indivíduo. Tanto a Carta de criação das Nações Unidas, de 1945, quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, expressavam a preocupação com o bem- estar do ser humano. A Carta da ONU lembra que as guerras causaram “sofrimento indizível à humanidade” (ONU, 1945, preâmbulo). Isso mostra a influência do impacto da guerra para legitimar a defesa dos direitos humanos como ideal comum, aceito por toda a comunidade internacional. Já o texto da Declaração ressalta os direitos e liberdades humanos e considera que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade” (ONU, 1948, preâmbulo). É verdade que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi apenas o ponto de partida para um entendimento cada vez mais amplo do que são os direitos humanos. No âmbito das Nações Unidas, ainda há outros documentos internacionais que expandiram as temáticas abarcadas. Podemos citar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU, 1979), a Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Estados de Emergência e de Conflito Armado (ONU, 1974), a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006). A Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959) representa o início desse alargamento do escopo ao especificar a criança como um ser de direito. O documento exprime que “a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento” (ONU, 1959, preâmbulo). Ainda acrescenta que as crianças devem ser tratadas sem nenhuma discriminação: “todas as crianças [...] serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94836 http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94836 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencaopessoascomdeficiencia.pdf http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencaopessoascomdeficiencia.pdf 28 social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família (ONU, 1959, princípio 1)”. O documento lista os direitos infantis como o direito ao “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade” (princípio 2); direito a “alimentação, habitação, recreação e assistência médica adequadas” (princípio 4); além do direito à educação, brincar e divertir-se (princípio 7). O texto também indica as obrigações das sociedades, instituições e governos para garantir a proteção das crianças, levando em consideração os melhores interesses das crianças na instituição da lei (princípio 2) e os cuidados necessários às crianças sem famílias e às crianças que necessitam de meios de susbsistência (princípio 6). A temática da proteção da infância conseguia obter relativo consenso a ponto de unir alguns países em nome de um bem comum: as futuras gerações. Em seu último artigo, a Declaração proclama que a criança “Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de seus semelhantes” (ONU, 1959, art 10). Essa proteção da criança da década de 1950 não está descolada do contexto histórico. É importante ressaltar que, principalmente nos Estados Unidos, a década de 1950 foi marcada pelo baby boom, ou seja, pelo crescimento na taxa de natalidada. Entretanto, tal fenômeno não se repetiu nas décadas seguintes. Pelo contrário, foi seguido pela redução nas taxas de nascimentos que já podiam ser notadas na década de 1970, em parte pelo maior uso de métodos contraceptivos (BUMPASS; PRESSER, 1972). Essa mudança demográfica impactou o sistema educacional, a força de trabalho – principalmente a feminina – e a produção industrial que passou a mirar mais na população adulta (FEDERICI, 2019, p.100-101). Pensando mais especificamente nas crianças, com o maior controle da natalidade houve a possibilidade de planejar o nascimento das crianças e destinar mais cuidados a essas crianças desejadas. Isto é, houve maior esforço de planejamento familiar e, consequentemente, foi possível pensar cada vez mais o papel das crianças nessas sociedades planejadas. A criança é a mão-de-obra do futuro – daí o maior cuidado com seu bem-estar e sua educação – e é também consumidora desde seu nascimento – haja vista produtos específicos para bebês e crianças pequenas (COOK, 2009; FEDERICI, 2017; 2019). A Declaração dos Direitos da Criança é, pois, o início de um maior aprofundamento da proteção da criança que resultou em uma normatização da infância e estabelecimento do que é considerado uma infância ideal. Contudo, por estar no formato de declaração, o documento 29 serviu mais como uma diretriz para os países terem noção dos direitos da criança, e menos como um documento que constrange os países a assumirem um compromisso com a infância. 2.3 O desenvolvimento da infância Poucos anos após a publicação da Declaração dos Direitos da Criança, o Unicef teve sua missão reformulada de maneira significativa. Por iniciativa de Maurice Pate e Dick Heyward – então diretores executivos dessa agência onusiana –, foi conclamada uma conferência internacional para tratar da ajuda a países pobres e atender as necessidades de suas crianças de forma mais efetiva. Assim, em 1964, foi realizada a Conferência Internacional sobre Planejamento para Crianças em Países em Desenvolvimento, em Bellagio, na Itália (STEIN, 2007; UNICEF, 2018). De acordo com um dos organizadores da Conferência de Bellagio, Herman Stein, “Crianças e jovens são os recursos futuros para o desenvolvimento social e econômico e devem ser fortalecidos” (STEIN, 2007, p.22, tradução nossa)11. Isso significa que as crianças passaram a ser parte de grandes projetos de desenvolvimento e o Unicef passou a ser uma agência que fazia parte do planejamento do desenvolvimento mundial (BLACK, 1986). Anteriormente à conferência, o bem-estar da criança era visto mais como uma questão de caridade do que de desenvolvimento nacional. Desse modo, o Unicef era apenas um organismo de menor importância na ONU, que provia ajuda emergencial a crianças e promovia campanhas contra doenças infecciosas (STEIN, 2007). Essa abordagem ligada ao desenvolvimento nacional é relevante, pois se tornou uma maneira de chamar a atenção dos Estados para a importância do desenvolvimento infantil. Stein (2007, p.7, tradução nossa) sintetiza que: “O apelo sentimental, no entanto, não poderia ser usado para comunicar ao público em geral ou aos tomadores de decisão o papel fundamental que as crianças teriam na construção de uma sociedade viável”12. Então, era preciso mostrar que a forma com que as crianças de um país são cuidadas iria influenciar também o futuro desenvolvimento das nações. Reunindo autoridades das áreas de economia, saúde, nutrição, educação, demografia e políticas sociais, a conferência estabeleceu que o “o bem-estar das 11 No original: “Children and youth are the future resources for both social and economic development and should themselves be strengthened”. 12 No original: “Sentimental appeal, however, could not be used to communicate to the general public or decision makers the fundamental role children would play in constructing a viable society”. 30 crianças era a base essencial do desenvolvimento nacional” (STEIN, 2007, p.3, tradução nossa)13 . Principalmente em relação aos países mais pobres, partiu-se do seguinte raciocínio: O bebê que eventualmente fará parte desses recursos precisará primeiro sobreviver, viver seu primeiro ano enfrentando perigos, frequentar a escola dispondo de nutrição suficiente para evitar infecções e doenças graves, aprender o seu ofício, operar suas máquinas, cultivar seus talentos e tornar-se um adulto completamente produtivo. Fatores emocionais não são incluídos no caminho desse planejamento (STEIN, 2007, p. 7, tradução nossa)14. Essa associação entre desenvolvimento infantil e desenvolvimento socioeconômico encontrou apoio no sistema internacional. É importante ressaltar que, nessa época, os países estavam em plena Guerra Fria. Rivalidades irrompiam nos países de “Terceiro Mundo” e havia uma constante disputa por zonas de influência entre os blocos capitalista e socialista. Então, era necessário mostrar o que o desenvolvimento capitalista era capaz de promover. Nesse sentido, as benesses do desenvolvimento capitalista incluíam o bem-estar da criança (STEIN, 2007). No âmbito do Banco Mundial, por exemplo, desenvolviam-se e colocavam-se em prática ideias sobre pobreza e desenvolvimento. Em 1968, Robert McNamara – presidente do Banco Mundial entre 1968 e 1981, conhecido também por ter sido Secretário de Defesa dos Estados Unidos no começo da Guerra do Vietnã – introduziu a ideia de que o desenvolvimento não era apenas crescimento econômico, mas significava também desenvolvimento humano. Isso incluía erradicar a pobreza absoluta e controlar as taxas de natalidade de países pobres, dar incentivos para que esses países aumentassem sua produtividade e melhorassem o acesso a serviços públicos essenciais, a fim de combater a desnutrição e o analfabetismo. Isto é, a noção de desenvolvimento ganhava contornos sociais (CLARK, 1981). Tal raciocínio pode ser visto como um aprendizado dos anos de Guerra do Vietnã, quando McNamara verificou que a desigualdade e o subdesenvolvimento tinham potencial para implodir revoluções sociais e aproximar países do bloco socialista. De acordo com a visão de McNamara, conceder um pouco de desenvolvimento humano a essas populações mais pobres como forma de manter algum domínio sobre essas regiões e evitar novos levantes poderia ser uma estratégia eficiente (CLARK, 1981). O argumento de que o crescimento não planejado da população pode ter impactos negativos na economia não é original de McNamara, mas ele colocou tal ênfase populacional 13 No original: “the well-being of children was the essential foundation of national development”. 14 No original : “The baby who will eventually be part of these resources will first have to survive, live through its hazardous first year, get to school with enough nutrition to avoid serious infections and diseases, then learn its trade, operate its machinery, cultivate its talents, and become a fully productive adult. Emotional factors are not included in the planning track” 31 em prática ao propagar essa ideia como uma das preocupações do Banco Mundial15. Ou seja, controlar o nascimento das crianças – principalmente nos lugares mais pobres do mundo – era entendido como um dos fatores determinantes para o desenvolvimento mundial (CLARK, 1981; MADDUX; MCNAMRA 1981). A partir dessa compreensão, o sistema da ONU abriu mais espaço para a questão da infância, visto que não se tratava apenas de proteger as crianças, mas de promover um modelo de desenvolvimento que também englobava a infância. Uma maneira de chamar atenção para o desenvolvimento das crianças deu-se por meio da formulação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), de 1989, um amplo e importante documento sobre a proteção da infância. Tal documento apenas consolidou-se depois de um processo de engajamento internacional em torno das questões relacionadas à criança. Em 1976, a Assembleia Geral aprovou a resolução que criaria o Ano Internacional da Criança, que viria a ocorrer em 1979. Tal evento funcionou como uma espécie de revisão das medidas que tinham sido adotadas para melhorar a vida das crianças no mundo todo. Como resultado do Ano Internacional da Criança, em 1989, é finalmente proposta a Convenção sobre os Direitos da Criança, o documento de direitos humanos mais ratificado da história das Nações Unidas, totalizando 196 ratificações (UNICEF, 2019)16. Diferentemente da Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959) que anunciara que as crianças eram sujeitos de direitos básicos, a CDC conclamava os países a tomar medidas para assegurar esses direitos. Ou seja, o papel dos Estados na garantia de tais direitos passou a ganhar maior destaque. Então, a CDC consagrou uma mudança importante que foi se consolidando ao longo do século XX: a criança deixava de ser apenas responsabilidade da família, na esfera privada, e passava a ser também responsabilidade do Estado (ONU, 1989). 15 As ideias de McNamara não deixaram de enfrentar oposição. Em relação às medidas de controle do crescimento populacional, inicialmente, alguns países - principalmente na América Latina - foram contra esse papel do Banco Mundial de dar orientações sobre questões sociais (CLARK, 1981). 16 Somália e Sudão do Sul ratificaram a CDC em 2015 (ONU, 2015). Até o ano de 2019, os Estados Unidos seguem como o único país que assinou a convenção, mas não a ratificou (UN, 2019). Grupos políticos dentro dos Estados Unidos argumentam que a ratificação do documento – que teria que ser aprovada pelo Senado estadunidense – implicaria em perda de parte da soberania do país em tomar decisões sobre suas crianças, interferindo nas legislações domésticas sobre a infância, bem como diminuindo a autonomia dos pais e responsáveis em educar as crianças (CORRARINO; DRAKE, 2015; MARK, 2015). É importante observar que os Eua não são exatamente um modelo de proteção das crianças. Por exemplo, o país mantém a possibilidade de menores de 18 anos serem condenados à prisão perpétua e regras mais flexíveis em relação ao trabalho na agricultura de menores de 18 anos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2014); além das recorrentes detenções de crianças migrantes, sobretudo mexicanas, que são afastadas de seus pais (CORRARINO; DRAKE, 2015). O caso dos Eua é um exemplo de como os direitos das crianças, apesar de terem ganhado destaque e senso de urgência no cenário internacional, ainda estão subordinados a interesses econômicos e políticos. Assim, a proteção da criança acaba sendo instrumentalizada conforme esses interesses, corroborando a visão de que a o debate sobre a infância não está descolado dos debates políticos (MARK, 2015). 32 O texto da Convenção começa por definir o que é a criança: “todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (ONU, 1989, art. 1). Isto é, o documento propõe um padrão internacional, mas deixa uma abertura para que as legislações domésticas divirjam de tal definição. A Convenção almejou propor as diretrizes para proteger todas as crianças do mundo, mas destaca, especialmente, as crianças dos países em desenvolvimento, que seriam as mais afetadas (ONU, 1989, preâmbulo). A CDC reafirmou os direitos da criança como o direito à vida, desenvolvimento, nome e nacionalidade, livre expressão (considerando a capacidade de discernimento das crianças, de acordo com sua idade e maturidade); direito de ser ouvida em processos judiciais e administrativos; liberdade de associação e reunião pacífica; acesso à informação; acesso à saúde e serviços médicos; segurança social e educação (ONU, 1989, art. 30). Além desses direitos, o documento destacou a responsabilidade de os Estados ajudarem os pais na educação dos filhos, incluindo ajuda material quando necessário (ONU, 1989, art. 18, art. 27). O texto também chamou atenção para a necessidade de proteção especial de crianças refugiadas (ONU, 1989, art. 22); crianças deficientes (ONU, 1989, art. 23) e ainda reforçou o compromisso com o combate ao trabalho infantil (ONU, 1989, art. 32). O artigo 38 é dedicado a crianças afetadas por conflitos armados, determinando que: “Os Estados Partes devem tomar todas as medidas possíveis na prática para garantir que nenhuma criança com menos de 15 anos participe diretamente nas hostilidades” (ONU, 1989, art. 38) e ainda acrescenta que: “os Estados Partes na presente Convenção devem tomar todas as medidas possíveis na prática para assegurar proteção e assistência às crianças afetadas por um conflito armado, reinserção e recuperação das crianças vítimas de violência” (ONU, 1989, art. 39). A CDC é um instrumento importante no que concerne à proteção da infância e, de fato, concede direito de participação às crianças quando propõe que suas vozes sejam ouvidas em algumas situações relativas a assuntos que as afetam diretamente (ONU, 1989). No entanto, a Convenção também enfrenta diversas críticas. Primeiramente, a própria formulação de seu texto não contou com a participação de crianças. Estas não foram incluídas na elaboração de quais seriam as melhores práticas e melhores interesses para suas vidas. Em segundo lugar, o documento internacional não inclui alguns temas relevantes em seu escopo. Por exemplo, não aborda o casamento infantil, que impacta mais as meninas do que os meninos. Tampouco invoca um debate etário, discutindo a partir de que idade começa a infância e a adolescência. Dessa forma, a CDC não se preocupa em trazer visões plurais da criança e da infância. Logo, o ideal 33 infantil é formulado com base em generalizações sobre as crianças que excluem características locais17 e reproduzem a lógica de dominação dos países do Norte sobre o Sul e dos adultos sobre as crianças (ARCE, 2015). Nesse sentido, por mais que a CDC constitua um passo importante no entendimento das crianças como atores que possuem direitos, tal concessão de direitos ainda é superficial. Aparentemente, se concede voz a elas, mas na prática não se verifica a participação infantil na elaboração legal e simbólica do que é a criança (ARCE, 2015). Dessa maneira, proteger a infância e impulsionar o desenvolvimento das crianças passa, necessariamente, por enxergá-las como sujeitos de direito. Porém, tal fator não é a única condição para que todas as crianças desfrutem de uma infância tida como universal e ideal. Vimos até aqui que a criança e a ideia de infância foram protegidas através de documentos internacionais – como a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). Em meio a duas guerras mundiais, a necessidade de proteção da criança foi reforçada no âmbito internacional e associada ao desenvolvimento nacional e internacional, o que fez com que a temática da criança chamasse ainda mais atenção. Apesar desse avanço, os próprios documentos internacionais que deveriam funcionar como ferramentas de proteção da criança carregam suas contradições, visto que foram formulados sob uma visão estreita do que é a infância. Assim, as múltiplas infâncias coexistem no cenário internacional. Na prática, nem todas as crianças nascem iguais, em condições que garantam saúde, educação e lazer. Levando em consideração essa diversidade das infâncias e das sociedades, os estudos sobre Sociologia da Infância desenvolvem-se a partir da década de 1980. Essa perspectiva ressalta que a infância é construída socialmente, portanto reflete a sociedade e adquire múltiplas 17 Documentos regionais e nacionais sobre as crianças também foram formulados. Um exemplo é a Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança, de 1990. No texto, os Estados Africanos Membros da Organização da Unidade Africana (OUA) ressaltam a situação crítica das crianças devido a fatores socioeconômicos, culturais, subdesenvolvimento, desastres naturais, conflitos armados e fome, destacando também a “imaturidade física e mental da criança” (OUA, 1990, preâmbulo). Esse documento define a criança como qualquer pessoa menor de 18 anos e aborda temas como não-discriminação, liberdade de expressão, de associação, de pensamento, de consciência e religião, além de direito à recreação, saúde e protetção contra o trabalho infantil. Destacamos ainda o comprometimento com a proteção contra práticas sociais e culturais prejudiciais às crianças - o que inclui o casamento infantil (OUA, 1990, art. 21) e outras práticas discriminatórias em relação ao gênero (ao contrário da CDC que não aborda esse tema). A Carta Africana chama atenção para a necessidade de proteger crianças contra os impactos dos conflitos armados e prevenir o recrutamento de crianças (OUA, 1990, art. 22); proteger crianças refugiadas (OUA, 1990, art. 23); e crianças que vivam sob regime de Apartheid (art. 26); além de crianças de mães que estão na prisão (OUA, 1990, art. 30). Diferentemente da CDC, o documento africano reserva o artigo 31 para apontar que as crianças, de acordo com suas habilidades e idades, também possuem responsabilidades que incluem: respeitar os pais e a família, colocar suas habilidades físicas e intelectuais a serviço de sua respectiva nação, contribuindo para a independência e integridade nacional; preservar e fortalecer a solidariedade social e nacional bem como os valores culturais africanos (OUA, 1990, art. 31). 34 formas. Problematizando os já consolidados estudos biológicos e psicológicos sobre a criança, a abordagem sociológica entende que a infância é mais do que apenas uma fase passageira na vida humana. A infância é uma categoria geracional e social não-homogênea, sendo perpassada por outras divisões como classe, gênero, raça, religião, geografia. A infância é, pois, uma categoria permanente da sociedade: a infância como categoria perdura na sociedade, mas não é imutável, visto que se transforma de acordo com as mudanças históricas, culturais, políticas, sociais e econômicas. Ou seja, a infância não se resume às características individuais de cada criança. É antes uma categoria baseada em parâmetros sociais. Entretanto, muitos desses parâmetros não levam em consideração que a criança é participante ativa da sociedade. Nesse sentido, a Sociologia da Infância fornece mais uma importante contribuição ao enxergar a criança como sujeito social capaz de criar culturas e dar sentido a suas ações, de acordo com suas idades e desenvolvimentos (ABRAMOWICZ; DE OLIVEIRA, 2010; QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2005). Mesmo tendo reconehcida sua capacidade de ser um agente transformador, a criança continua sendo excluída da sociedade de forma paternalista (QVORTRUP, 2011). No entanto, novos estudos passaram a resgatar essas infâncias silenciadas, mostrando a multiplicidade de histórias de crianças que, muitas vezes, sequer são lembradas como parte constituinte da infância. Podemos citar os estudos de Stearns (2016) sobre noções de infância no continente africano a no sul da Ásia, além dos impactos dos regimes comunistas sobre as crianças, com foco na União Soviética e na China. Um importante trabalho também foi realizado por King (2011) que analisou crianças e jovens africanos escravizados nos Estados Unidos, no século XIX e a participação de crianças no movimento abolicionista. Mintz (2004) dedicou-se a discutir o papel das crianças dos Estados Unidos nos tempos de guerra, no crescimento industrial e os impactos do Estado de Bem-Estar Social sobre a infância. Rosen (2005) traz uma relevante contribuição ao chamar atenção para a participação de crianças judias em núcleos urbanos de resistência armada contra a Alemanha nazista, no contexto da Segunda Guerra Mundial. A participação dessas crianças na resistência armada é vista por Rosen como uma ação de autodefesa e proteção contra o Holocausto. Ademais, Rosen (2005) confere ênfase ao relevante papel desempenhado por grupos de jovens sionistas que emergiram na Europa entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, em países como Polônia, Lituânia e Ucrânia e ainda revisita a participação de crianças em prol do reconhecimento do Estado Palestino como na Organização para a Libertação da Palestina. 35 O autor ainda questiona o imaginário ocidental sobre a infância ao apresentar casos de crianças envolvidas em guerras anteriores ao século XXI como os meninos que participaram ativamente na Guerra Civil Americana, revelando a relação duradoura e antiga entre crianças e conflitos armados (2015). No Brasil, foi publicado o estudo "Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil" (MERLINO, 2014) que revela casos de crianças torturadas, presas e submetidas e violências física e psicológica pela ditadura militar. Ainda podemos citar o trabalho de Fernandes (2013) que chega a mencionar pontualmente as crianças na sua obra sobre a sociedade Tupinambá no Brasil, ainda que não seja seu objetivo discutir o papel das crianças. O autor cita, por exemplo, a tradição de oferecer um tacape e um arco com flechas aos meninos como forma de já transmitir os valores guerreiros. Também é retratado o ritual de furar o lábio do menino como uma maneira de despertar a coragem e o controle das emoções. Na interpretação de Fernandes: “Os adultos invadiam, assim, as esferas da vida psíquica infantil e juvenil, fazendo com que os imaturos encarassem como valores uma ampla série de ações, de compromissos, de sentimentos, de idéias e de ideais” (FERNANDES, 2013, p. 183). Todos esses trabalhos constituem esforços de reconstruir infâncias silenciadas e contar a história de crianças que, geralmente, não são contadas na história da construção da infância moderna e ocidental. Em sua maioria, são casos de violência contra as crianças, mas também de resistência, mostrando que as crianças não estavam presentes apenas como espectadoras, mas também como participantes de eventos históricos. O descompasso entre as múltiplas infâncias construídas socialmente e a infância idealizada no cenário internacional será analisado no próximo capítulo. 36 3. AS ANOMALIAS DO SUL: CORRIGIR CRIANÇAS E ESTADOS Este capítulo analisará as relações entre o desenvolvimento dos Estados e as consequências para a vida das crianças. Daremos especial ênfase para as transformações econômicas e políticas do final do século XX e início do século XXI. Nesse contexto, a necessidade de proteger a criança ganhava mais destaque internacional, ao mesmo tempo em que os riscos à vida infantil se intensificavam. Dividimos o presente capítulo em três partes. O item 3.1 (A “globalização da infância” e o papel dos Estados) apresentará os impactos da intensificação do processo de globalização sobre os Estados e, consequentemente, sobre o bem-estar das crianças. O item 3.2 (“Estados Falhados”, crianças desviantes) investigará, de forma mais específica, como a argumentação sobre os “Estados Falhados” foi utilizada para explicar as violações aos direitos das crianças e a existência de crianças desviantes, isto é, crianças que desviam da infância normalizada. A partir disso, chegamos no item 3.3 (A criança-soldado na Segurança Internacional) no qual argumentaremos que a chamada criança-soldado é um exemplo dessas “crianças desviantes”. Mais do que isso, o conceito de criança-soldado carrega em si duas ideias vistas como contraditórias: a ideia da criança e do soldado. Dessa união paradoxal resulta a criança-soldado, considerada uma anomalia da infância que, de acordo com os documentos internacionais que analisamos até aqui, deveria estar protegida do universo bélico. Essa urgência de proteção humana é revestida por uma abordagem securitária, em que garantir a segurança humana dessas crianças se torna um dos fatores que poderá servir para reforçar a importância de intervenções, sobretudo nos “Estados Falhados”. 3.1 A “globalização da infância” e o papel dos Estados Partindo de um relativo otimismo sobre os caminhos que o mundo iria tomar após a Guerra Fria, Francis Fukuyama (1989; 1992) destaca-se por ser uma das vozes mais enfáticas do triunfo liberal. O autor argumenta que a ideologia liberal atingiu um patamar de hegemonia que, dificilmente, seria contestado por outra ideologia de pretensões universais. Por isso, Fukuyama aposta que o pós-Guerra Fria não representa apenas o arrefecimento dos conflitos, mas sim o “fim da história”, pelo menos o fim da história como a conhecemos18. Sendo assim, o liberalismo se estabilizaria e se difundiria como modelo dominante no mundo, simbolizando 18 Ainda que Fukuyama admita que o “fim da história” não significaria o fim dos conflitos armados, que poderiam acontecer por motivos étnicos e nacionalistas, ele argumenta que os conflitos entre grandes potências estariam em declínio. 37 “o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano” (FUKUYAMA, 1989, n.p)19. Esse otimismo com a perspectiva liberal foi motivado pela hegemonia estadunidense, pelo relativo êxito em remover barreiras comerciais e de comunicação, estabelecendo a economia transnacional, e pela capacidade de exportar esse modelo (FUKUYAMA, 1989; 1992; PARIS, 2014). Tal otimismo também pode ser sentido em relalção ao futuro das crianças. Elas passavam a ser cada vez mais protegidas e represetavam, assim, os receptáculos dos benefícios que a globalização poderia gerar na economia e na vida política e social. Por outro lado, o contexto de intensificação da globalização aprofundou os riscos aos quais as crianças estavam expostas, intensificando desigualdades entre as diferentes infâncias que existem – uma que, de fato, desfruta dos direitos das crianças e outra que não possui tal privilégio (MARCHI; SARMENTO, 2017). Apesar da Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1973), que conclamava os Estados a proibir que menores de 15 anos fossem admitidos ao emprego, crianças continuaram a ser trabalhadoras e produtoras nas indústrias que sustentavam a economia internacional. Em seu texto de 1985, Qvortrup advertia para o trabalho infantil, lembrando que, mesmo em países que possuíam documentos que proibiam tal prática, elas ainda eram empregadas quando era vantajoso e necessário para gerar lucro, o que não difere muito da análise feita por Marx no século XIX: Cerca de 40% da população mundial é formada por crianças com menos de 15 anos e, dentro de alguns anos, haverá mais de dois bilhões de crianças. De longe, a maior proporção delas (talvez 80%) vive em áreas menos desenvolvidas do mundo. Quase sessenta milhões dessas crianças são registradas como economicamente ativas de uma maneira ou de outra, mas esse número é provavelmente a ponta do iceberg (QVORTRUP, 1985, p. 129, tradução nossa)20. Mais de trinta anos depois, os dados da OIT corroboram a preocupação desse autor. Em 2016, 152 milhões de crianças com idades entre 5 e 17 anos eram empregadas em trabalho infantil no mundo. O continente africano reunia a maioria dessas crianças (72,1 milhões), mas a prática também estava especialmente presente na Ásia e no Pacífico, seguido por Américas, Europa e Ásia Central, e Estados árabes. De acordo com esse relatório da OIT, a maior parte 19 No original: “the end point of mankind's ideological evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human government”. 20 No original: “About 40 per cent of the world's population are children under the age of 15, and within a few years there will be more than two billion children. By far the greatest proportion of them (maybe 80 per cent) live in less-well-developed areas of the world. Nearly sixty millions of these children are registered as economically active in one way or another, but this figure is probably the tip of the iceberg” 38 das crianças empregada no trabalho estava na agricultura (71%), mas também era possível identificar crianças empregadas no setor de serviços (17%) e no setor industrial (12%) (OIT, 2017, p.5). Também existem tipos de trabalhos subnotificados. Por exemplo, crianças que trabalham no setor informal da economia, que trabalham com o crime organizado, vendendo drogas e armas, e aquelas que trabalham para algum grupo armado não-estatal ou força armada nacional. O trabalho doméstico que envolve principalmente as meninas também é menos visível pela naturalização do papel doméstico das mulheres nas sociedades (COOK, 2009). As Nações Unidas expressaram preocupação – por meio de seus relatórios e iniciativas – com a situação das crianças e dos jovens21. A organização argumenta que o processo de globalização concedeu novas oportunidades de crescimento e desenvolvimento da economia mundial, permitiu o maior contato entre pessoas e países, maior interconexão entre jovens no mundo todo e possibilitou trocas de experiências e conhecimentos (UN, 2004). Por outro lado, a organização também admite que o rápido processo de intensificação da globalização veio acompanhado de aumento da pobreza, desemprego e desintegração social, assim como ameaças ao bem-estar humano, tais como problemas ambientais e proliferação de doenças como HIV/AIDS. Esses impactos negativos foram sentidos principalmente nos países em desenvolvimento que continuaram marginalizados, assim como em suas populações mais vulneráveis: crianças e jovens. A faixa etária mais jovem enfrenta falta de acesso à saúde e educação, além de pobreza e fome, envolvimento em conflitos armados e doenças (UN, 2004; 2005; 2010). Em outras palavras, a ONU parte do princípio de que a intensificação do processo de globalização gerou um movimento duplo: proporcionou crescimento econômico para alguns países, mas ao mesmo tempo gerou aumento da pobreza e riscos ao bem-estar dos seres humanos. Nos relatórios das Nações Unidas sobre a situação da juventude, é possível notar certo otimismo quanto a uma globalização inclusiva e equitativa. Isso ocorreria por meio de incentivos a políticas nacionais e internacionais que ajudariam os países que ficaram à margem da globalização. Com tais políticas, essas nações poderiam responder aos desafios que vêm passando e atingir as metas de desenvolvimento globais (UN, 2004; 2005; 2010). Como vimos no capítulo 2, desde a década de 1960 o tratamento das crianças foi incluído como uma parte do grande projeto de desenvolvimento nacional e internacional. 21 Nos documentos “World Youth Report”, produzidos pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas, a ONU considera “jovens” aqueles entre 15 e 24 anos (UN, 2004; 2005; 2010). 39 Contraditoriamente, muitas crianças não usufruíam esse desenvolvimento vislumbrado pelas políticas do Banco Mundial, do Unicef e de parte do sistema ONU. Marchi e Sarmento resumem a situação das crianças da seguinte forma: Os direitos que, desse modo, estão enunciados, apenas são garantidos estruturalmente às crianças dos países e das classes sociais que mais ganham com o modelo hegemônico de globalização, mesmo se, de alguma forma ou de outra, todas as crianças do mundo sejam negativamente afetadas por algumas das consequências da desregulação social introduzida pelo capitalismo avançado: degradação ambiental e aumento, por consequência, das doenças originárias da menor qualidade do ar e da água, exposição aos conflitos da “guerra infinita” (COSTA & LOUÇÃ, 2003), da violência urbana, da degenerescência das relações de sociabilidade, da incerteza em face do emprego e das perspectivas de inserção futura no mercado de trabalho etc. Mas, é certo, são as crianças dos países e dos grupos sociais “perdedores” na nova questão social introduzida pelo capitalismo globalizado que mais duramente sofrem essas consequências (MARCHI; SARMENTO, 2017, p. 957). É possível identificar uma incongruência na proteção da infância. Os países que proclamam os direitos das crianças são também os que excluem essas mesmas crianças a partir de políticas que barram crianças imigrantes e refugiadas ou políticas que financiam militarmente e politicamente conflitos que geram esses refugiados. Nesse sentido, por mais que a proteção da infância tenha ganhado destaque, consenso e até urgência internacional, ora ela é instrumentalizada para atender a interesses políticos, ora ela simplesmente fica em segundo plano quando outros interesses geopolíticos e econômicos estão em jogo (MARCHI; SARMENTO, 2017). Sobretudo a partir da década de 1980, a implantação do neoliberalismo – isto é, um conjunto de medidas econômicas que visa consolidar um modelo de economia com menor interferência do Estado – agrava ainda mais as contradições e o abismo entre as nações desenvolvidas e em desenvolvimento (A