UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES – CAMPUS SÃO PAULO LEVI FERNANDO LOPES VIEIRA PINTO “A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”: a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas das Escolas Modernas n. 1 e 2. SÃO PAULO 2019 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES – CAMPUS SÃO PAULO LEVI FERNANDO LOPES VIEIRA PINTO “A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”: a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas das Escolas Modernas n. 1 e 2. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Mestrado Acadêmico em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes. Área de Concentração: Arte Educação. Linha de Pesquisa: processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural. Orientadora: Profª. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli. SÃO PAULO 2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P659p Pinto, Levi Fernando Lopes Vieira, 1991- "A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador" : a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas das Escolas Modernas n.1 e 2. / Levi Fernando Lopes Vieira Pinto. - São Paulo, 2019. 171 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Educação - Brasil - História. 2. Anarquismo e anarquistas - São Paulo (SP). 3. Política e educação. 4. Arte - Aspectos políticos. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 370.12 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) CERTIFICADO DE APROVAÇÃO Câmpus de São Paulo UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”: a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas nas Escolas Modernas nº 1 e 2 TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: AUTOR: LEVI FERNANDO LOPES VIEIRA PINTO ORIENTADORA: RITA LUCIANA BERTI BREDARIOLLI Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em ARTES, área: Artes Visuais pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. RITA LUCIANA BERTI BREDARIOLLI Departamento de Artes Cênicas Ed Fund Com / Instituto de Artes de São Paulo Profa. Dra. REJANE GALVAO COUTINHO Departamento de Artes Cênicas Ed Fund Com / Instituto de Artes de São Paulo Profa. Dra. ANNA MAE TAVARES BASTOS BARBOSA Departamento de Comunicação / Universidade Anhembi Morumbi São Paulo, 27 de junho de 2019 Instituto de Artes - Câmpus de São Paulo - Rua Dr Bento Theobaldo Ferraz, 271, 01140070 http://www.ia.unesp.br/#!/pos-graduacao/stricto---artes/CNPJ: 48031918001791. LEVI FERNANDO LOPES VIEIRA PINTO “A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”: a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas das Escolas Modernas n. 1 e 2. Dissertação apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Artes exigido Programa de Pós-Graduação em Artes, com a área de concentração em Arte Educação, pela seguinte banca examinadora: ______________________________________________ Profª. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli (Orientadora) _____________________________________________ Profª. Dra. Rejane Galvão Coutinho (Banca examinadora – IA/UNESP) ____________________________________________ Profª. Dra. Anna Mae Tavares Bastos Barbosa (Banca examinadora – Faculdades Anhembi/Morumbi) Suplentes: Profª. Dra. Luiza Helena da Silva Christov (IA/UNESP) Profª. Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira (FFLCH/USP) Para a dona Dilma e “seu” Gerson, os que primeiro me conscientizaram nessa luta de classes. Para a vó “Thêre” (in memorian), poetisa numa cidade feita de brancos. Para a toda classe trabalhadora. Agradecimentos A todas(os) que estiveram ao meu lado e me ensinaram o verdadeiro significado de amor, amizade e solidariedade: ... à minha mãe e meu pai, que povoam minhas lembranças com histórias, memórias, causos... ... à professora, a doutora, a orientadora, a amiga, a companheira, a camarada Rita Bredariolli, pelos anos de cumplicidade, pelas aulas poéticas, pelas orientações sensíveis, pelo diálogo sempre em aberto, pela confiança e por todo o amor que me dedicou e me ensinou que o universo acadêmico pode ser resistência... ... ao Leonardo Sotini (Milo), por aparecer no momento e na hora certa em minha vida e revolver toda a minha terra. Agradeço por perdoar meus erros, ausências e mau-humores, pelos abraços, pelas conversas, trocas, risos... pela leitura sensível e, sobretudo, pelo encorajamento e por acreditar em mim... boa parte de nossas longas conversas viraram partes dessa narrativa... ... ao André Massuia, por seu carinho e colo de mãe que sempre me deu em todos os momentos difíceis da minha vida e pela escuta reconfortante nas crises e alegrias que esse trabalho suscitou... ... agradeço ao Cesar Assai e Cássio Lopes, dois vaga-lumes que, mais do que sobreviventes, são resistentes e me ensinaram o verdadeiro valor da amizade e povoam as minhas lembranças mais bonitas desde que resolvi me aventurar nos meios acadêmicos... ... ao Luccas (Fran), por sua inestimável leitura, carinho, amizade, incentivo... ... à Betina, por seu empoderamento inspirador, por sua resistência e coragem em tempos difíceis... ... à Bruna Nonino (Soka), por me amparar nas minhas ansiedades e por deixar minha vida mais leve... ... ao Guilherme Fornari, pelo colo de amigo, mãe, pai e pelo cuidado e zelo de irmão... ... ao Brumati, pelas confidências, brejas, fofocas, rolês e acolhida que me deu em todo esse tempo sem nunca desistir de mim... ... ao Mamão, por me ensinar todos os dias a potência do samba como espaço de resistência e me lembrar do meu amor à música... ... às alunas, alunos e equipe do PREVEST da UNESP de São José dos Campos, pela oportunidade e confiança que me oferecem, pelas trocas, pelo aprendizado e por compartilharmos boa parte das ideias, sonhos e esperança... ... às alunas, alunos e equipe do SoArte, que me acompanharam em todo esse percurso e que me ofereceram condições e me alimentaram diariamente a não desistir... ... agradeço aos responsáveis dos acervos que visitei: Renata Cotrim (CEDEM UNESP), Cláudia e Maurílio (CME USP) e ao Ricardo Biscalchin (UEIM UFSCar).... ... a equipe da Seção de Pós-Graduação do Instituto de Artes: Fábio, Rodrigo e Neusa – sem a paciência e o carinho inesgotável de todos, esse trabalho não seria possível... ... a todas(os) que, fizeram parte dessa trajetória e que mesmo não citado aqui, merecem o meu total agradecimento... Resumo No final do século XIX, o anarquismo chegou ao Brasil graças a imigração europeia, estimulada tanto pela crise econômica alguns países do continente, como a Itália, Espanha e Portugal, quanto pelo financiamento a essa imigração por parte do governo brasileiro, sobretudo no Estado de São Paulo. A consolidação do anarquismo no interior da classe operária paulistana – classe social que começou a surgir com a progressiva reconfiguração do capitalismo brasileiro que começou a dar seus primeiros passos à industrialização – fomentou uma cultura própria, desdobrando-se na música, teatro, poesia, literatura e na educação, com a abertura de escolas libertárias. Nossa narrativa contará a história das Escolas Modernas de São Paulo, que funcionaram na década de 1910 nos bairros operários do Brás e Belenzinho. Falar sobre elas teve, basicamente, dois objetivos: primeiro, contribuir para a história do anarquismo, da educação e da arte/educação no Brasil – considerando que há pouca bibliografia sobre elas ou ainda a sua omissão nas narrativas oficiais; segundo, tentar compreender de que maneira a cultura libertária formada na classe trabalhadora em questão se conciliava com o programa curricular das Escolas e se, por consequência, contou com aulas de artes que se contrapunham ao currículo oficial. Esse trabalho só foi possível a partir da consulta e leitura de documentos preservados em alguns acervos, em conjunto ao material bibliográfico existente. Palavras-chave: educação libertária; história da arte/educação; cultura anarquista; memória social. Résumé À la fin du XIXème siècle, l’anarchisme est arrivé au Brésil grâce à l’immigration européenne, stimulée à la fois par la crise économique dans certains pays du continent, tels que l’Italie, l’Espagne et le Portugal, et par le financement de cette immigration par le gouvernement brésilien, en particulier dans l’État de São Paulo. La consolidation de l’anarchisme au sein de la classe ouvrière de la ville de São Paulo – une classe sociale qui a commencé à émerger avec la reconfiguration progressive du capitalisme brésilien qui commeçait à faire ses premiers pas vers l’industrialisation – a favorisé la création d’une culture propre, qui s’est étendue à la musique, au théâtre, à la poésie, la littérature et l’éducation, avec l’ouverture des écoles libertaires. Notre récit racontera l’histoire des Écoles Modernes de São Paulo, qui ont fonctionné pendant les années 1910 dans les quartiers ouvriers du Brás et Belenzinho. Parler de ces écoles avait deux objectifs principaux: premièrement, contribuer à l’histoire de l’anarchisme, de l’éducation et de l’art/éducation au Brésil – compte tenu du fait qu’il existe peu de bibliographie à leur sujets ou même leur omission dans les récits officiels; deuxièmement, essayer de comprendre la manière dont la culture libertaire formée dans la classe ouvrière en question s’est réconciliée avec le programme éducationnel des Écoles et si, par conséquent, elle comptait sur des classes d’art que s’opposaient au programme officiel. Ce travail n’a été possible qu’à partir de la consultation et de la lecture de documents conservés dans certains archives, ainsi que du matériel bibliographique existant. Mots-clés: éducation libertaire; histoire de l’art/éducation; culture anarchiste; mémoire sociale. LISTA DE ABREVIATURAS CEDEM – Centro de Educação e Memória da UNESP CME – Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da USP FE – Faculdade de Educação UEIM – Unidade Especial de Informação e Memória UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” USP – Universidade de São Paulo LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: pororoca no rio Araguari (Amapá)..............................................................................16 Figura 2: Projeto para a construção de um céu. Desenho 27......................................................24 Figura 3: expansão da área urbanizada de São Paulo no período que compreende o ano de 1892 a 1914........................................................................................................................................42 Figura 4: capa do jornal libertário para mulheres circulado em Buenos Aires............................51 Figura 5: “Cortando o mal pela raiz”..........................................................................................56 Figura 6: A Escola Moderna n. 1, 1913. A esquerda, João Penteado..........................................69 Figura 7: o fuzilamento de Francisco Ferrer, 1909. Gravura......................................................71 Figura 8: propaganda das Escolas Modernas de São Paulo........................................................76 Figura 9: primeira página de “O Inicio”, n. 2, 1915....................................................................79 Figura 10: cabeçalho da primeira página de “Boletim da Escola Moderna”...............................85 Figura 11: propaganda da Escola Moderna n. 1 de 1917............................................................92 Figura 12: texto da aluna Virgina Cesare e Catarina Bari...........................................................94 Figura 13: texto da aluna Catarina Bari......................................................................................94 Figura 14: texto da aluna Catarina Bari......................................................................................95 Figura 15: pedido de Habeas Corpus para João Penteado, com correções a mão.....................106 Figura 16: defesa pessoal de João Penteado.............................................................................108 Figura 17: detalhe do caderno de João Penteado......................................................................116 Figura 18: detalhe ampliado do caderno de João Penteado......................................................119 Figura 19: divulgação da aula de desenho ministrada pela profa. Isabel Ramal.......................122 Figura 20: divulgação do curso de música e artífice da Escola Moderna n.1............................123 Figura 21: capa do “Hinário da Escola Moderna n. 1” de Cesario Cavassi...............................129 Figura 22: contracapa e primeira página do “Hinário”.............................................................130 Figura 23: detalhe do miolo do “Hinário”................................................................................131 Figura 24: índice do “Hinário”.................................................................................................133 Figura 25: detalhe do cabeçalho do índice...............................................................................134 Figura 26: convite da festa da Escola Moderna n. 1, 1917........................................................143 Figura 27: símbolo da URSS sobrepondo-se ao símbolo anarquista. Grafite...........................151 Figura 28: símbolo do Conselho Federal da Espanha (AIT)....................................................152 SUMÁRIO Introdução – História(s), memória(s): um macaréu de imagens ou sobre a “nuvem sem contorno” no céu. ....................................................................................................................15 ... sobre o macaréu de imagens... ...............................................................................................16 ... sobre a “nuvem sem contorno” ... ..........................................................................................24 Capítulo I – Lembranças de São Paulo: República Velha, Anarquismos, Educação Libertária... .............................................................................................................................31 ... alguns apontamentos sobre o Brasil e a São Paulo da República Velha... ..............................32 ... O verdadeiro socialismo é o socialismo Anárquico... ...........................................................43 ... a educação libertária... ...........................................................................................................59 Capítulo II – As Escolas Modernas de São Paulo: história e memória. ..............................68 ... ensino racionalista... ..............................................................................................................83 ... coeducação dos sexos... .........................................................................................................89 ... abolição das provas, premiações e castigos... ........................................................................98 ... explosão da máquina infernal... ...........................................................................................102 Capítulo III – A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador. ...................................111 Educação Artística Intelectual e Moral... as práticas artísticas nas Escolas Modernas de São Paulo... ....................................................................................................................................112 ... o desenho... .........................................................................................................................118 ... a música... ...........................................................................................................................125 ... o teatro... .............................................................................................................................138 Considerações finais..............................................................................................................150 Referências bibliográficas.....................................................................................................164 ANEXO Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas possibilidades. [Jorge Luis Borges. O jardim de veredas que se bifurcam] Mas o tempo não passa, o tempo é estático, o tempo é, nós é que estamos passando pelo tempo, nós nos desgastamos no tempo, deu pra compreender? [Sr. Abel. Memória e Sociedade] O que é tempo? Um rio ondulante que carrega consigo todos os nossos sonhos? Ou os trilhos de um trem? Talvez ele tenha curvas e desvios, permitindo que você possa continuar seguindo em frente e, ainda assim, retornar a uma estação anterior da linha. [Stephen Hawking. O universo numa casca de noz] Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. [Jorge Luís Borges. A biblioteca de Babel] ... em qualquer lugar que estivessem recordassem sempre que o passado é uma mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável, e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera. [Gabriel García Márquez. Cem anos de solidão] Bem unidos, façamos, Nesta luta final. Uma terra sem amo, A internacional! [Refrão do hino “A Internacional”] 15 Introdução História(s), memória(s): um macaréu de imagens ou sobre a “nuvem sem contorno” no céu. Somos el tiempo. Somos la famosa parábola de Heráclito el Oscuro. Somos el agua, no el diamante duro, la que se perde, no la que reposa. Somos el río y somos aquel griego que se mira en el rio. Su reflejo cambia en el agua del cambiante espejo, en el cristal que cambia como el fuego. Somos el vano río prefijado, rumbo a su mar. La sombra lo ha cercado. Todos nos dijo adiós, todo se aleja. La memoria no acuña su moneda. Y sin embargo hay algo que se queda y sin embargo hay algo que se queja. [Jorge Luis Borges] 16 ... sobre o macaréu de imagens... Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – não é uma progressão, é uma imagem, que salta. – Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem. [Walter Benjamin. Passagens] Figura 1: pororoca no rio Araguari (Amapá) Fonte: Ricardo Macario1. Diz-se que quando as águas de um rio se encontram com o mar, ouve-se um grande estrondo e “as árvores são arrancadas como se fossem palitos”, segundo o relato de Jacques Cousteau. Desse encontro, tudo é arrastado: os barquinhos que flutuam inocentes, plantas, animais... nada é perdoado. As grandes ondas se levantam e, muitas vezes, coisas que haviam sido engolidas são regurgitadas – vemos destroços, vestígios, fragmentos, pedaços de uma embarcação que 1 Essa imagem pode ser encontrada em: http://www.waves.com.br/arquivo/sonho-e-pesadelo-no-rio-araguari/. Acesso em: 12 maio 2019. http://www.waves.com.br/arquivo/sonho-e-pesadelo-no-rio-araguari/ 17 sucumbiu... esse fenômeno é conhecido como pororoca ou macaréu. Pororoca “tem origem tupi (poro+roka)2” numa tentativa de traduzir em palavras toda essa vertigem. Benjamin, na epígrafe dessa introdução, fala do choque do passado com o agora que formam constelações. O “borbotar de imagens”, escreveu Rita num sensível texto, reivindicam um lugar, uma narração... escrever histórias: de início, Rita se ocupa em nos lembrar que a construção de histórias trata da articulação entre tempo, palavras, imagens – ainda que possa nos “parecer óbvio, especialmente dizer que as escrevemos com palavras [...]”. Mas o que talvez mais tenhamos esquecido é que outro significado essencial da escrita é “dar sentido ao que somos, ao quem somos, ao que entendemos do mundo, ao que realizamos por esse entendimento” (BREDARIOLLI, 2014, p. 1-2). Ou ainda, em outras palavras: O caminho da escrita se faz na produção de um modo de existir. Que vai se dando pela escuta de seus sinais, seus pontos nem sempre claros de repouso, de suportar os tombamentos que ela provoca, seus golpes de rebeldia, de encarar os próprios dogmas, de aguentar ver a nossa moralidade escancarada, o autoritarismo revelado, o jeito de buscar conforto estampado nas palavras viciadas que usamos, o automatismo que chamamos de ‘eu penso assim’, ou ‘na minha opinião’, ou ‘estou exercendo a minha liberdade de expressão’, no jeito apressado de inchar e esvaziar a imaginação com um excesso de referências, de citações, de nos prepararmos para o supostamente novo, tentando antecipá-lo, querendo dar forma para algo que escapa, foge, malogra” (TEIXEIRA, 2018, p. 43). Perceber esses encontros de memórias – o macaréu de imagens, “movimentos temporais, desenhos criados pela disposição dos eventos no espaço da escrita – ou da fala – condicionados às nossas formas de concepção, às convenções estabelecidas e apreendidas sobre o tempo” que, dessa forma, nos ajudam “assim descrever constelações, próximas ao movimento da memória, próximo daquele da imaginação, definido pelas analogias ou associações, em continuidades ou rupturas [...]” (BREDARIOLLI, 2014, p. 3) – me fez lembrar de uma outra imagem que Giorgio Agambem nos oferece quando define o que é ser contemporâneo. Segundo ele, o “contemporâneo é aquele que mantém fixo olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. [...] Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (2009, p. 62-63). Gostaria de utilizar essa imagem, porém, para a construção do sentido que concerne a raiz desta nossa narrativa: ver entre os sucessivos choques das águas, olhar para espaço que há entre as estrelas dessa constelação de imagens, ainda que possamos supor não existir ali um lugar possível... é dessa profusão de águas que desembocam do rio ao mar, é do turbilhão caminhando em sua 2 ABRAHÃO et al. Efeito pororoca na educação permanente em saúde: sobre a interação pesquisa-trabalho. Rev. Bras. Enferm [Internet]. 2018; 71 (Suppl. 4): 1768-73. [Thematic Issue: Education and teaching in Nursing]. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0462. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0462 18 superfície “que faz ressurgir corpos esquecidos pelo rio ou pela geleira mais acima, corpos que ela ‘restitui’, faz aparecer, torna visíveis de repente, mas momentaneamente: eis ai seu aspecto de choque e de formação, sempre aberta, como diz tão bem Walter Benjamin” (DIDI- HUBERMAN, 2010, p.171)3. Trago a imagem do rio e do mar, de suas perturbações, das terras que se reviram a partir de suas insurgências e que colocam à luz do sol memórias e marcas que não tem uma origem certa, mas que se revelam pela linguagem. Este trabalho trata de anarquismo e das suas relações com a educação. Mais ainda: esse trabalho trata do anarquismo em São Paulo e de como sua cultura se propôs a fundar duas escolas que, hoje, raramente são vistas ou encontradas nas narrativas oficiais da história da educação. Ou como essa própria cultura marginalizada produziu uma arte e uma relação com o ensino de artes – talvez – dissidente ao currículo oficial. Imagens que surgem do passado4, ao lado do meu ontem e do meu hoje5. Narrar uma história que não se funda num tempo linear, não nasce num espaço “homogêneo e vazio”, mas sim num “tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1994, p. 229). Nessa noção de tempo, o passado não é invocado, mas ele nos aparece por imagens e que “se fundem à ordem da imaginação à da memória” (BREDARIOLLI, 2014, p. 7) e o “retorno” a ele nem sempre significa “um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (SARLO, 2007, p. 9) que se dá no instante em que imaginação e memória se articulam e constituem essas imagens que escapam diante de nós na qual Benjamin as concebe como dialéticas6. A “verdadeira imagem do passado” (BENJAMIN, 1994, p. 224) que aparece diante de nós – veloz, relampejante – rompe com a lógica do discurso histórico progressista de “evolução”: a imagem dialética salta do encontro que não se fixa entre passado e presente, sem formas definidas, mas se configura como nesse lugar da vigília, ou seja, o ponto que não é a realidade nem o sonho, mas é o entre que se permite a várias camadas de tempo – uma história onde os “caminhos se bifurcam” ou 3 “Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança, nem às palavras” (GAGNEBIN, 2009, p. 55). 4 “O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direito de vida, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum” (SARLO, 2007, p. 9). 5 “A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a essas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2009, p. 55). 6 “Então compreendemos que a imagem dialética – como concreção nova, interpretação “crítica” do passado e do presente, sintoma da memória – é exatamente aquilo que produz a história” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 177). 19 dos infinitos corredores de estantes de livros que não se repetem jamais (a Biblioteca de Babel) de Jorge Luis Borges. Existe uma experiência da dialética totalmente singular. A experiência compulsória, drástica, que desmente toda “progressividade” do devir e comprova toda aparente “evolução” como reviravolta eminente e cuidadosamente composta, é o despertar do sonho. Para o esquematismo dialético, que está na base dessa ocorrência mágica, os chineses encontraram em sua literatura de contos maravilhosos e novelas a expressão mais radical. E assim apresentamos um método novo, dialético, de escrever a história: atravessar o ocorrido com a intensidade de um sonho para experienciar o presente com o mundo da vigília ao qual o sonho se refere! (E cada sonho refere-se ao mundo da vigília. Todo o anterior deve ser perscrutado historicamente) (BENJAMIN, 2009, p. 916). Desse estado de vigília, há um movimento – o ruído da pororoca – de memórias pessoais que se confundem no turbilhão da história. Essa noção de história que nos devolve o nosso lugar de sujeito histórico e a nossa responsabilidade sobre ela. Acredito que pesquisa e história de vida pessoal estão intimamente ligadas. Não creio numa pesquisa neutra: se história, como fala Benjamin, é o que confere o reconhecimento a vida [“Pois é a partir da história (e não da natureza – muito menos de uma natureza tão imprecisa quanto a sensação ou a alma) que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida” e a tarefa da(o) filósofa(o) é “compreender toda a vida natural a partir da vida mais abrangente que é a história” (2013, p. 105)7], penso que na pesquisa historiográfica assumir nossas próprias lembranças e memórias como componente dessas outras histórias – sejam elas oficial ou não – é parte do nosso trabalho. Quem muito bem traduz essa relação é Didi-Huberman (2017a, p. 90), quando afirma, numa entrevista, que “[...] ao escolher um domínio de pesquisa, confrontamo-nos com alguma coisa que, na vida íntima, fatalmente nos tocou”. Em outras palavras: Não há evocação [da lembrança, da memória] sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. Aturada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (BOSI, 1994, p. 81). Essa história começou quando eu era criança... sentado num sofá, de pernas cruzadas, óculos na ponta do nariz – os aros dourados carregando a velha miopia – lia avidamente; ocupava seus horários livres nas leituras de livros que eu não conseguia imaginar sobre o que falavam. Às 7 “Nesta linha de raciocínio uma questão que se coloca para o historiador é observar quem produz uma dada linguagem, para quem produz, como a produz e quem a domina. Tudo isso coloca a questão da luta pelo direito à expressão e da luta dos dominados pelo direito de se apresentar na cena histórica, como sujeitos. Daí decorre para o historiador a necessidade de não ver a linguagem como neutra ou despolitizada [...]. Pensar separadamente história/linguagem levaria a situar separadamente história, linguagem, ideologia, poder, trabalho etc” (VIEIRA; KHOURY; PEIXOTO, 1996, p. 20). 20 vezes eram livros finos, com páginas amareladas; outras vezes eram livros grossos. Meu pai me contava histórias de pessoas pobres, pessoas que passavam fome, de pessoas que trabalhavam demais... e falava de pessoas que reivindicavam justiça e igualdade para todas(os); contava histórias da Revolução Russa como se fosse um conto de fadas. Às vezes eu não entendia nada; às vezes eu entendia e ficava triste. E ali, aos seus pés, nossos mundos aparentemente distantes se tocavam: eu criando outros universos com alguns brinquedos e meu pai na sua contação de histórias que anos mais tarde eu viria saber que haviam acontecido... ... quando me alfabetizei, um dos primeiros livros que ganhei de meu pai se chamava “Conheça Marx”. Era um livro já usado, sem capa, mas que explicava os principais conceitos do marxismo de forma muito simples e completa como história em quadrinhos. Não tinha entendido nenhuma palavra do que estava ali; mas não me importava... ...(Suspeito que meu pai nem imagine que esse seu modo de agir refletia alguma das características pressupostas na educação libertária: a importância da família na formação da criança, oferecer a história como ferramenta para a consciência de classe – falarei sobre esses pontos no capítulos I e II... minha mãe também foi importante nesse processo do meu sentimento de classe quando eu era pequeno: ela passava as tardes costurando e contando suas memórias de infância e da vida adulta difícil – o modo de como tecia os fios que se intercalavam com suas narrativas hoje me evocam a imagem de Aracne que, segundo a mitologia grega, sendo uma excelente tecelã, desafiou a deusa Diana e acabou condenada a tecer longos fios brancos pelo resto da vida... hoje minha mãe deixa cair pelos seus ombros seus cabelos brancos, marcas da idade e do tempo a costurar, tecer, moldar...)8... Mas só na universidade que tomei contato e me reconheci como anarquista. E as inquietações que movem este trabalho nasceram no final da graduação numa polêmica que foi aberta após uma greve – em 2014 – onde surgiu um debate sobre educação libertária entre alunas(os) e professoras(es); os discursos proliferados por essas(es) últimas(os) estavam recheados de equívocos históricos e conceituais sobre o tema e, em geral, a reprodução e o uso desses lapsos 8 Nessa mesma imagem de tecer e desenrolar, recorro também ao mito de Ariadne que, para escapar do labirinto em que estava presa, desemaranhou através do seu novelo longos fios para que Teseu pudesse guiar-se até ela sem se perder. Ao costurar e contar suas histórias, minha mãe permitia que eu pudesse me enveredar pelos corredores labirínticos de sua memória ao mesmo tempo em que ela mesma produzia uma narrativa e (re)criava imagens através desse desenrolar do novelo. Em outras palavras: “Para nos aproximarmos dos mistérios da felicidade no êxtase teríamos de refletir sobre o fio de Ariadne. Que prazer no simples ato de desenrolar um novelo! Um prazer que tem afinidades profundas, quer com o do êxtase, quer com o da criação. Avançamos, mas, ao avançar, não só descobrimos os meandros da caverna em que nos aventuramos, como também desfrutamos dessa felicidade do descobridor apenas através daquela outra que consiste em desenrolar um novelo. Essa certeza que nos é dada pelo novelo engenhosamente enrolado que nós desenrolamos – não será essa a felicidade de toda produtividade, pelo menos daquela que tem forma de prosa? [...]” (BENJAMIN, 2017, p. 140). 21 constituíram de argumentos para falas reacionárias que não conciliavam com a concepção de anarquismo e suas ideias sobre educação. Na época, me perguntei como pessoas que ocupam cargos de pesquisadoras e pesquisadores dentro da universidade ainda reproduzem preconceitos a respeito de um conceito como anarquismo? Seria má fé? Seria reflexo das fortes estruturas epistemológicas marxistas que sustentam a universidade (uma vez que entre as correntes ideológicas de esquerda, marxismo e anarquismo se rivalizam)? Ou seria consequência de uma historiografia que fabrica determinados tipos de narrativas que mantém uma lógica de exclusão? Mas até que pontos todas essas questões não estavam imbricadas? E, por fim, saber da existência de experiências educacionais libertárias no Brasil, no interior de sua história, ainda tornou todos esses questionamentos mais incômodos – que acabou somando-se ao fato de que em minha formação universitária – no curso de licenciatura em Educação Musical – essas histórias e experiências continuavam omissas, relegadas ao esquecimento em detrimento a certa celebração aos saberes europeizados... A dificuldade de falar sobre anarquismo e educação libertária nos indica que, nas palavras de Marilena Chauí, “uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos” (CHAUÍ, 1994, p. 19). Curiosamente, minha pesquisa inicial nesse período – que se materializou no meu Trabalho de Conclusão de Curso – não pretendia ser historiográfico; tentei investigar mais uma “didática” subversiva ou, como escrevi na época, “uma concepção e prática de ensino que me satisfizesse como professor – ou ainda, educador em formação” (PINTO, 2015, p. 9). Mais à frente, prossegui: “Eu deveria buscar novas bases para me fundamentar como professor? Buscar uma ‘pedagogia da segurança’? Ou eu deveria me aventurar numa ‘pedagogia do risco’?” (PINTO, 2015, p. 11). Para responder essas questões, inevitavelmente o trabalho se tornou historiográfico: a pesquisa mostrou a escassez de uma bibliografia sobre educação anarquista e sua história, principalmente no Brasil. Foi dessa forma que tomei contato com as Escolas Modernas de São Paulo, na qual me debrucei a investigar tanto naquela época e que me mobilizou por suas imagens abertas... Agora, esse trabalho trata de duas narrativas de uma perspectiva histórica marginal: a primeira delas, sobre a atuação de duas experiências pedagógicas anarquistas fundadas na cidade de São Paulo entre os anos de 1913 a 1919. As Escolas Modernas, como eram chamadas, abriram e se organizaram graças a mobilização da classe trabalhadora urbana ainda em formação, constituídos principalmente por mulheres e homens imigrantes europeus que trouxeram consigo a ideologia anarquista para o Brasil já nos anos finais do século XIX. Perseguidas(os), 22 marginalizadas(os), vítimas de preconceitos históricos e sociais que foram reforçados em nosso país, a cultura anarquista dos bairros operários – no caso, de São Paulo – se viu forçada a criar espaços de resistência que, ao mesmo tempo, fossem condizentes com a ideologia. Logo, a abertura de escolas assumidamente anárquicas em cidades com focos de industrialização, foi estimulada em nosso país – prática que já tinha se disseminado na Europa com experiências significativas que se tornaram referências para educadoras e educadores brasileiros. Dentre essas experiências, a Escuela Moderna de Barcelona¸ idealizada e dirigida pelo catalão Francisco Ferrer, talvez tenha sido a que mais reverberou não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. Em termos gerais, podemos considerar que esse impacto pode ter sido ocasionado pela intensa propaganda das ideias de Ferrer – ele mesmo, ainda em vida, após o fechamento da Escuela em 1906, se engajou em divulgar suas ideias e sua experiência viajando pela Europa ministrando palestras, publicando jornais e em jornais, publicando um livro sobre a Escuela... seu fuzilamento também foi um outro fator de peso para o movimento anarquista e a reação diante do “assassinato” de Ferrer – o que é bem verdade, já que ele foi condenado a morte sem nenhuma prova (em 1911, o estado espanhol reconheceria que matou Ferrer injustamente) – foi se ocupar em fundar escolas a partir da modelo espanhola... Dos cacos dessa história, nossa segunda narrativa é uma tentativa de juntar parte desses vestígios que pudessem nos falar sobre o ensino de artes nas Escolas Modernas de São Paulo. Contar e recontar para lembrar, mas também para tentar imaginar como essas experiências subversivas se contrapunham ao seu contexto, sobretudo no campo das artes, numa época em que se privilegiava o desenho técnico/geométrico no currículo. Olhar para a cultura anarquista paulistana e tentar encontrar aquilo que a história oficial do ensino de artes deixou escapar não deixa de refletir uma tentativa de ruptura com um discurso que ainda – assim como em outras histórias – “é deixado de lado como algo que não tem importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer” (GAGNEBIN, 2009, p. 54). A história, o tempo, a memória, a linguagem – todos estes componentes são um campo de batalha em constante tensão. Em suas reflexões a respeito de memória, Le Goff (2013, p. 435) – ao falar sobre memória coletiva – escreve que “[ela] é não somente uma conquista, é também um instrumento e objeto de poder”. A historiografia, enquanto metodologia desse trabalho, me trouxe outra questão: pensar sobre a linguagem e escrita na qual ela pudesse se inscrever. Para tanto, precisava refletir também sobre a figura da historiadora/historiador. Jeanne Marie Gagnebin pensa a historiadora/historiador como uma/um narradora(or). Porém, trata-se de uma/um narrador(or) 23 “muito mais humilde, bem menos triunfante” (GAGNEBIN, 2009, p. 54). Trata-se de “uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas” (GAGNEBIN, 2009, p. 54). Como transmitir as ruínas? Como falar das migalhas? Ulpiano Menezes, ao falar sobre a nossa necessidade de representarmos o que sentimos, lembra de Cornelius Castoriadis, que dizia o ser humano ser caracterizado não só fundamentalmente por sua racionalidade, mas por sermos “seres dependentes da imaginação”: Mais radicalmente ainda, diz ele [Cornelius]: “a imaginação é o que nos permite criar um mundo, ou seja, apresentarmos alguma coisa, da qual sem a imaginação não poderíamos nada dizer e, sem a qual, não poderíamos nada saber” (MENEZES, 2008, p. 26). No terceiro capítulo, trouxe para a nossa narrativa uma mancha. Dentre os documentos trabalhados, havia uma mancha que, em princípio, nos apresenta como um cavalo. Porém, como afirmar? Seria mesmo um cavalo ou uma mancha pura? Como situar essa mancha e sua história a linguagem? É preciso então imaginar para conhecer, como diz Didi-Huberman – ideia que em vários momentos retomaremos em nosso trabalho por sua potência. Construímos e reconstruímos formas para aquilo que queremos entender, para aquilo que para nós é indecifrável. Ver a mancha9 e tentar estabelecer um sentido a ela (não uma verdade!) me faz lembrar, mais uma vez, das palavras de Ulpiano Menezes, que traz a definição de ficção: Em latim há um verbo interessante, fingo (seu particípio passado é fictus, donde vem o substantivo fictio, ficção). Fingo, de início, indicava a ação do oleiro, que modelava potes, telhas e outros artefatos cerâmicos, mas que passou também a modelar imagens, placas com relevos. Ficção, portanto, etimologicamente, não se opõe a verdade: designa as figuras (palavra da mesma família de fingo) que modelamos, para dar conta da complexidade e vastidão infinitas do mundo (MENEZES, 2008, p. 27-28). Como olhar para os estilhaços das águas da pororoca da história e conhecer seus interstícios sem não se abrir a ficção? Como falar da nuvem sem contorno sem não olhá-la como uma criança que ao ver as nuvens do céu associa suas formas a inúmeros outros significados? 9 Talvez a mancha trabalhe “simplesmente no visual, não no textual. Será que um intelectual é realmente capaz de entender que não se recorra, que não se volte forçosamente ao texto? Que possa fazer o registro das imagens sem ressentir necessariamente a privação das palavras? Que se possa passar sua vida compondo imagens sem sentir a necessidade de falar delas?” (MARESCA, 2011, p. 38). 24 ... sobre a “nuvem sem contorno10” ... Figura 2: Projeto para a construção de um céu. Desenho 27. Fonte: Carmela Gross. Dos céus de Carmela Gross11, as densas nuvens nos parecem, ao mesmo tempo, transparentes assim como às águas do rio; águas da pororoca – por quê não? – que desses encontros selvagens transformaram-se em nuvens; águas que escorregavam de nossas mãos e que agora escapam de nossos olhos, pois “Ora, o que se pode conhecer de uma nuvem senão adivinhando-a e sem nunca apreendê-la inteiramente?” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 10-11). Ao falar de história da arte, Didi-Huberman evidencia a dificuldade da historiadora/historiador, deparar-se com um “objeto circunscrito” – daí a imagem da “nuvem sem contorno” que se fixa no céu como ao de Gross: não sabemos com exatidão de sua forma, mas podemos mais ou menos ver os seus relevos, as luzes e as sombras que se sobrepõem em camadas finas ou grossas, pequenos ou grandes espaços abertos... nuvens que, para Benjamin, pode anunciar a tempestade que “impele irresistivelmente” o anjo da história “para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o 10 DIDI-HUBERMAN, 2013. 11 “Projeto para a construção de um céu”, 1980. Disponível em: https://carmelagross.com/portfolio/projeto-para- a-construcao-de-um-ceu/. Acesso em: 09 maio 2019. https://carmelagross.com/portfolio/projeto-para-a-construcao-de-um-ceu/ https://carmelagross.com/portfolio/projeto-para-a-construcao-de-um-ceu/ 25 amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso” (1994, p. 226, Tese 9). Num tocante ensaio sobre Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin, ao discorrer sobre essa famosa tese sobre história12, escreve: Essa alegoria nos ensina duas coisas. Primeiramente, a história também é algo que poderia ter sido completamente diferente; o que era possível e não se realizou, não por fraqueza ou incapacidade, como pretenderia um pragmatismo otimista, mas porque a dominação impôs-se. As ruínas da história acuam e continuam a crescer. O historiador não pode, entretanto, como o anjo da alegoria, deter-se para contemplar o espetáculo, mesmo que quisesse “demorar-se um pouco”. Tal contemplação faria certamente justiça à “tradição dos oprimidos”, como a chama Benjamin, e criaria outra memória que não a dos livros de história. No entanto, e aí reside o segundo aspecto da alegoria, o anjo da história é empurrado à frente pelo vento do Paraíso; deve continuar a avançar apesar de sua tristeza, necessidade que Benjamin denomina de “progresso”, numa oposição irônica à doutrina socialdemocrata do progresso. O historiador materialista não pode, assim, contentar-se em colecionar os fatos do passado, devendo também ser fiel à história presente, porque é apenas através dela que o passado poderá talvez, algum dia, alcançar sua libertação (2018, p. 77). Respeitar a volubilidade das nuvens; coletar as ruínas que restam a nossos pés e conciliá-las com o presente. Difícil e solitária a tarefa da pesquisa historiográfica. Essas perspectivas reconfiguraram a importância do documento – ou ainda, de imagens arquivos, como designa Didi-Huberman13. Para podermos contar minimamente a(s) história(s) das Escolas, recorremos a alguns acervos que preservam alguns dos seus arquivos que ainda resistem. Estar diante desses documentos exige algumas considerações que partem desses pressupostos do que acreditamos em pesquisa em história. Críticas em relação ao documento aparecem em Michel Foucault e Michel de Certeau que, “graças a estes, a certeza inicial do historiador positivista perdeu, por assim dizer, a sua inocência: eles tinham mostrado como o arquivo não era de modo nenhum o reflexo imediato do real, mas uma escrita provida de sintaxe [...] e de ideologia [...]” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 132)14. Nas próprias palavras de Foucault: [...] o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. [...] a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalha-lo no 12 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele se vê numa catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 1994, p. 226). 13 Cf.: DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 115-149: Image-archive ou Image-apparence. Colacionaremos o original francês com a tradução portuguesa: 2012. 14 “Ceux-ci avaient díniaisé, pour ainsi dire, la certitude première de l’historien positiviste: ils avaient montré que l’archive n’était en rien le reflet immédiat du réel, mais une écriture douée de syntaxe [...] et d’idéologie [...]”. 26 interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em vários níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (2017, p. 7-8). Como nos indica tanto Didi-Huberman quanto Foucault, essa reconfiguração do documento coloca-o num estatuto em suspensão, em contraposição a uma leitura absoluta de sua imagem enquanto prova – lida pelos historiadores positivistas ou pelo historicismo (como indica Benjamin). A origem etimológica de documento pode bem nos elucidar seu uso nesse sentido: deriva-se da palavra latina docere (ensinar) que “evoluiu para o significado de ‘prova’ e é amplamente usado no vocabulário legislativo” (LE GOFF, 2013, p. 486). Para as/os positivistas, o “documento [...] será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica” e nessa linha ele “afirma-se como um testemunho escrito” (LE GOFF, 2013, p. 486)15. Esse movimento de ampliar o conceito de documento nos procedimentos historiográficos não foram exclusivos de Foucault. Febvre, um dos fundadores da revista Annales d’Historie Économique et Sociale (1929) escreveu um texto onde amplia a noção de documento: A história faz-se com documentos escritos, sem dúvidas. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entreajuda que supre a ausência do documento escrito? (FEBRE apud LE GOFF, 2013, p. 490). As discussões a respeito do arquivo, do documento e da imagem se ampliaram cada vez mais e foram decisivas para a construção da nossa narrativa. Outra referência nossa que contribuiu significativamente para esta pesquisa no que se refere a pensar o documento/imagem foi o filósofo francês Georges Didi-Huberman, sobretudo em seu debate com cineasta Claude Lanzmann, autor do filme Shoah, cuja película dura cerca de nove horas. 15 Mas a frente, Le Goff continua: “Com a escola positivista, o documento triunfa. O seu triunfo, como bem o exprimiu Fustel de Coulanges, coincide com o do texto. A partir de então, todo o historiador que trate de historiografia ou do mister de historiador recordará que é indispensável o recurso do documento” (2013, p. 489). 27 Numa entrevista, o cineasta fala: “Eu sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação. Elas petrificam o pensamento e matam todo o poder de evocação16”. O primeiro contraponto que Didi-Huberman estabelece é o estatuto que Lazmann confere ao arquivo: “imagens sem imaginação”. A “nuvem sem contorno” pode permanecer indecifrável no céu: apenas uma massa amorfa e que nada nos diz; nos olhos de uma criança, porém, essa mesma nuvem pode adquirir novas formas, ganhar sentidos, ressignificar-se... recorro aqui novamente a imagem das nuvens porque olhar é imaginar. Ou, nas palavras de Didi-Huberman: “para saber, é preciso imaginar-se17”. Todo esse processo e relação com o documento evidencia o trabalho de elaboração constante – na qual Lanzmann, segundo Didi-Huberman, parece prescindir – que se exige da historiadora/historiador. O “arquivo – massa frequentemente inorganizada de início – só se torna significante ao ser pacientemente elaborado” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 124)18. Para finalizar a exposição sobre as considerações a respeito da noção de documento, gostaria de indicar outra linha de raciocínio que procura afastar a ideia de que o arquivo possa ser a fonte ou a origem de uma história. Essa discussão partiu de um outro trabalho de Didi-Huberman a partir das considerações que, mais uma vez, Walter Benjamin elabora e que evidencia a sua ideia de história como um conhecimento sempre em aberto, sujeito a ser revirado e explorado e a historiadora/historiador diante dela deve operar num trabalho arqueológico19. Recorrendo a 16 Nessa mesma parte da entrevista encontra-se no livro de Didi-Huberman (“Images malgré tout” no original; “Imagens apesar de tudo” no português). Utilizaremos a entrevista em seu original e compararemos com a tradução para o português, estabelecendo dessa forma uma tradução nossa em particular. Esse trecho, no original: “J’ai toujours dit que les images d’archive sont des images sans imagination. Elles pétrifient la pensée et tuent toute puissance d’évocation” (LANZMANN, “Le monumento contre l’archive?”, p. 274. Ver também: “DIDI- HUBERMAN, 2003, p. 120. Na tradução para o português: DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 124). 17 “Pour savoir, il faut s’imaginer” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 141). 18 “[...] l’archive – masse solvente inorganisée ao départ – ne devient signifiante qu’à être patiemment élaborée”. 19 “A linguagem fez-nos perceber, de forma inconfundível, como a memória [Gedächtnis] não é um instrumento, mas um meio, para a exploração do passado. É o meio através do qual chegamos ao vivido [das Erlebte], do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria [Sachverhalt]– espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas ‘matérias’ mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas de todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do colecionador. E não há dúvida de que aquele que escava deve fazê-lo guiando- se por mapas do lugar. Mas igualmente imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tateante no escuro reino da terra. E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exato em que guarda as coisas do passado. Assim, o trabalho da verdadeira recordação [Erinnerung] deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exata do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes” (BENJAMIN, 2017, p. 101). 28 uma passagem de Benjamin sobre “origem20”, Didi-Huberman chama a atenção para três pontos da ideia de “origem” prescrita pelo filósofo alemão. Em primeiro lugar, a noção de que origem “não é um conceito”, mas um “paradigma histórico”. Segundo, que origem “não é a fonte”, mas “um turbilhão num rio”. E, por fim, a origem é um “sintoma”: Primeiramente, a origem não é um conceito, discursivo ou sintético, à maneira como o considerava um filósofo neokantiano como Herman Cohen, por exemplo. Ela não é uma estrita categoria lógica porque paradigma histórico, “inteiramente histórico”, insiste Benjamin, que aparece aí também separar-se de Heidegger. Em segundo lugar, a origem não é a “fonte” das coisas, o que nos afasta tanto das filosofias arquetipais quanto de uma noção positivista da historicidade; a origem não é uma “fonte”, não tem por tarefa nos contar “a gênese das coisas” – o que aliás seria muito difícil –, nem suas condições eidéticas supremas, embora ela esteja fora de toda fatualidade evidente [...]. A entender claramente Benjamin, compreendemos então que a origem não é nem uma ideia da razão abstrata, nem uma “fonte” da razão arquetipal. Nem ideia nem “fonte” – mas “um turbilhão no rio”. Longe da fonte, bem mais próxima de nós que imaginamos, na imanência do próprio devir – e por isso ela é dita pertencer a história, e não mais metafísica –, a origem surgem diante de nós como um sintoma (DIDI- HUBERMAN, 2013, p. 171). Quando assumimos essas posições acerca de documento, compreendemos que tanto visitar os acervos quanto estar diante desses arquivos, não nos colocamos a buscar a nascente do rio em turbilhão. Nos acervos – no qual falaremos a seguir – e diante dos arquivos – frágeis e escassos, mas ainda assim potentes – nos exigiu mais do que uma leitura absoluta e fechada, mas uma extrapolação de qualquer hermetismo. A imaginação diante desses documentos era necessária. Diante desses arquivos, ou ainda, diante dessas imagens da história, a “imaginação” propiciou “o rearranjo do já conhecido, do já realizado, pelo exercício de relações, que motivam a ativação de nosso repertório imagético, em um movimento de montagem e remontagens, impulsionado – e também impulso – pelas correspondências, analogias, choques” (BREDARIOLLI, 2014, p. 6). Como dissemos anteriormente: é aceitar a volubilidade das nuvens. É entende-las como formas que se expandem e se retraem; formas que se precipitam ou tornam-se densas sobre nós; não podemos vê-la em sua totalidade porque sempre alguma coisa escapa de nosso olhar, mas cada vez que a olhamos, mais do que escapar de nós, elas se reconfiguram – o tempo da história e seus vestígios são como essas formas que muito nos dizem, mas nunca em absoluto. É preciso sempre se reposicionar e compreender que uma chuva não cai sobre nossas cabeças de uma 20 “A origem, embora sendo uma categoria inteiramente histórica, nada tem a ver porém com a gênese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas sim o que está em vias de nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no rio do devir, e ela arrasta em seu ritmo a matéria do que está em via de aparecer. A origem jamais se dá a conhecer na existência nua, evidente, do fatual, e sua rítmica não pode ser percebida senão numa dupla ótica. Ela pede para ser reconhecida, de um lado, como uma restauração, uma restituição, de outro lado como algo que por isso mesmo é inacabado, sempre aberto. [...] Em consequência, a origem não emerge dos fatos constatados, mas diz respeito à sua pré-história” (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 170). 29 única nuvem, mas sim de várias cuja origem, por mais que nos possa intrigar, nunca saberemos com exatidão – só podemos antever os dias de chuva ou de sol por previsões... O discurso final do historiador do congresso distópico presente no epílogo do romance “O Conto da Aia” consegue traduzir essa relação da historiadora/historiador com o passado e com relação ao documento. Sem saber o desfecho que a aia teve – o final da narrativa da personagem não é uma conclusão, mas é uma suspensão: coloca-nos no lugar movediço onde tudo é possível, precisamos imaginar... – e diante de um documento “mudo21”, o personagem/historiador conclui: Como todos os historiadores sabem, o passado é uma enorme escuridão, e repleto de ecos. Vozes podem nos alcançar a partir de lá; mas o que dizem é imbuído da obscuridade da matriz da qual elas vêem; e, por mais que tentemos, nem sempre podemos decrifrá-las precisamente à luz mais clara de nosso próprio tempo (ATWOOD, 2017, p. 366). *** Visitamos três centros de memória que são responsáveis em preservar esses documentos que ainda sobrevivem: a Unidade Especial de Informação e Memória, da UFSCar (UEIM), o Centro de Memória da Educação, localizado na FE USP (CME) e o Centro de Documentação e Memória, da UNESP (CEDEM). O primeiro abriga boa parte do acervo bibliográfico e documental de João Penteado, mais especificamente das Escolas Modernas n. 1, como diários e cadernos, além parte da biblioteca delas. O CME compartilha outra parte desse mesmo acervo – que foi divido com a UFSCar – e nele se encontram os jornais produzidos pelas Escolas – como “O Inicio” e o “Boletim da Escola Moderna” – cartas pessoais, fotografias (das outras escolas dirigidas por Penteado subsequentes às Escolas), além de móveis que faziam parte delas. Para que pudéssemos reproduzir os documentos nas quais fotografamos e transcrevemos aqui, solicitamos um pedido de autorização de uso da imagem (ANEXO 1). Por fim, o CEDEM nos ofereceu jornais, periódicos e opúsculos produzidos pela imprensa anarquista paulistana no período de nossa pesquisa. Nossa narrativa é dividida em três capítulos. No primeiro, buscamos contextualizar de forma ampla a República Velha, a formação de uma classe operária em São Paulo – decorrência a tentativa de modernização econômica do Brasil, de forma geral, com a industrialização, ainda que nossa economia fosse esmagadoramente agrária – e a chegada do anarquismo com as/os imigrantes; finalizamos essa primeira parte com algumas breves considerações sobre educação 21 “Nosso documento, embora à sua própria maneira seja eloquente, quanto a essas questões é mudo” (ATWOOD, 2017, p. 366). 30 libertária, apontando alguns textos e experiências ocorridas na Europa e no Brasil e que contribuíram para a história das Escolas Modernas de São Paulo. Procuramos trazer, ao longo dessa primeira parte, como o anarquismo também se formava nos países da América Latina. O segundo capítulo é dedicado as Escolas Modernas de São Paulo. Nela procuramos identificar suas principais características a partir das análises dos documentos que tínhamos em mãos. Procuramos colacionar o que foi possível depreender dos arquivos das Escolas com as ideias de Francisco Ferrer e da experiência da Escuela Moderna, bem como outras experiências que foram referência, como é o caso da Iasnaia Poliana, de Léon Tolstói. Essa interlocução não teve pretensão de provar ou comprovar que as Escolas Modernas seguiram estritamente as ideias de Ferrer ou Tolstói. Ao contrário, estabelecer essas conexões foi importante na medida em que ela potencializou os documentos que encontramos, que as Escolas procuram respeitar o seu próprio contexto e, sobretudo, que essas montagens entre os documentos abrem mais fissuras e fraturam qualquer noção absoluta de verdade histórica. Por fim, o terceiro capítulo é uma continuação da história das Escolas, mas agora o nosso olhar focou na possível presença do ensino de artes no interior delas. Nossa narrativa ainda continuou na confrontação com os documentos e num exercício de imaginação do que eles estavam (ou não) tentando falar sobre o assunto. Procuramos identificar ao menos três linguagens artísticas: o desenho, a música e o teatro. Partimos desses três porque foram os indícios que mais apareceram de forma explícita nos arquivos das Escolas e nos jornais: o desenho é indicado como parte do conteúdo pedagógico e chegamos a encontrar o nome de uma professora da matéria. A música aparece com mais recorrência nas descrições das festas. Encontramos também um caderno intitulado “Hinário da Escola Moderna n. 1”, um caderno com as letras de hinos que pertence a João Penteado e o nome de um professor de música, entre outras pistas... o teatro – ou melhor, o teatro social – também aparece nos relatos das festas das Escolas (as “quermesses” e bailes) e ainda, presente no CME, trouxemos para a nossa discussão uma pequena peça de teatro manuscrita a mão no verso de um convite da Escola Moderna n. 1. Procuramos articular esses documentos com os outros arquivos que nos indicavam como a cultura anarquista se organizava no interior da classe trabalhadora. Algumas observações a respeito da escrita são necessárias para a leitura do texto: ao reproduzirmos os textos da época, com a grafia vigente, procuramos respeitá-la, transcrevendo- as em itálico para que se pudesse diferenciar da grafia atual. Procuramos também trazer uma linguagem inclusiva, de modo que o feminino e o masculino das palavras fossem respeitados. Priorizamos o feminino e procuramos colocar entre parênteses o artigo masculino das palavras. 31 Capítulo I Lembranças de São Paulo: República Velha, Anarquismos, Educação Libertária... Sonha-se de modo muito diferente de acordo com a região e a rua, e principalmente, de acordo com as estações do ano e o tempo. O tempo de chuva na cidade, em toda sua doçura astuta e sua tentação de abrigar-se na mais tenra infância, só é compreensível à criança de uma cidade grande. Naturalmente, ele nivela o dia e em tempo de chuva pode-se fazer a mesma coisa dia após dia, jogar baralho, ler ou discutir, enquanto o sol sombreia as horas de forma bem diferente e também é menos propicio ao sonhador. Por isso, é preciso ocupar-se o dia todo desde as primeiras horas da manhã, é preciso, antes de mais nada, levantar cedo para a consciência tranquila para o ócio. [Walter Benjamim. Passagens Parisienses I] 32 ... alguns apontamentos sobre o Brasil e a São Paulo da República Velha... Felizmente, de todas as obras de arte da humanidade, a cidade é a principal obra de arte; e felizmente é uma obra de arte aberta e inconclusa; então é difícil a arte de construção do espaço público – que é coletivo, né – passar por esse reconhecimento, por essa crítica e nós nos reiventarmos cotidianamente22. Numa camada nem tão profunda de São Paulo, quase como uma segunda pele, correm os rios que um dia viviam a céu aberto e que até mesmo serviam para pesca. Rios que serpenteavam a geografia da cidade em construção; rios que nas chuvas se esparramavam por todos os lados e inundava vilas e bairros; rios que por muito tempo foram esgoto a céu aberto; rios que agora fazem parte de uma cidade invisível, mas que às vezes sangram pelos bueiros em dias de tempestade; rios que sobre eles andamos sem sentir seus zigue-zagues sob nossos pés; rios que forçosamente foram enterrados em nome da modernidade. Esta história não é sobre os rios que cortavam São Paulo – apesar deles, eventualmente, aparecerem em nossa narrativa. O que vamos contar, porém, é a história de tantas outras histórias que, assim como esses rios, foram enterrados, estilhaçados, esquecidos e que flutuam em cacos na superfície dessas águas agora sujas. Histórias que precisam ser partilhadas. E que ao transmiti-las, acreditamos oferecer a oportunidade de sepultar tantos nomes e memórias que não tiveram direito ao luto, excluídos das narrativas oficiais, contada pelas(os) vencedoras(es)23. Nossa história começa lá nos distantes bairros operários paulistanos situados às margens do rio Tietê e recortado pelas malhas ferroviárias da São Paulo Railway e a Sorocabana24. 22 Transcrição de uma das falas do documentário “Entre Rios – a urbanização de São Paulo”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc. Acesso em: 01 maio 2019. 23 “Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua ‘narrativa afirma que o inesquecível existe’ mesmo se nós não podemos descrevê-los. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro” (GAGNEBIN, 2009, p. 47). 24 “Não resta dúvida que as principais áreas industriais acompanham as vias-férreas: Brás, Belenzinho, Tatuapé, Comendador Ermelindo e São Miguel Paulista, ao longo dos trilhos da “Central do Brasil”; ainda o Brás, Parí, Mooca, Ipiranga, São Caetano do Sul e Santo André, acompanhando a Santos-Jundiaí; Barra Funda, Água Branca, Lapa e Osasco, servidas tanto por esta via-férrea, como pela “Sorocabana”. Mas, inegavelmente, foi a função industrial, mais do que outro qualquer fator, que ocasionou seu crescimento e sua expansão em área. O fato de terem as estradas de ferro aproveitado os vales, onde os terrenos podiam ser obtidos a baixos preços por não serem apreciados como locais de residência, atraiu a instalação de estabelecimentos fabris” (PETRONE, 1955, p. 129). https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc 33 Esses bairros tão longínquos na época se erguiam em casinhas simples, geminadas umas às outras, sem nenhum jardim a frente. Enfileiram-se em grandes blocos, formando quarteirões que se misturavam com as fábricas de pequeno e grande porte que se levantavam contra o céu... de forma geral, as “fabriquetas” se confundiam quase sempre com as próprias residências, já que elas demandavam espaços não muito amplos como uma garagem ou um quintal. Em contrapartida, as grandes indústrias erigiam-se cinzentas, com muros largos e altos, de portões pesados e chaminés que descarregavam no ar as negras fumaças que embaciavam as ruas sujas e tornavam-nas mais lúgubres... esses bairros eram habitados em sua maioria por trabalhadoras e trabalhadores dessas fábricas que começaram a surgir na então São Paulo nos fins do século XIX e que viveria uma explosão demográfica já no início do século – mas isso nós contaremos daqui a pouco25. A jornada de trabalho diária era árdua: de forma geral, entrava-se às 6h da manhã e eventualmente poderia sair às 19h ou 20h da noite – ou seja, uma carga horária que invariavelmente ultrapassava às 13h. Havia, porém, espaços muito pequenos para o almoço e para o café da tarde, com duração máxima de 15 minutos. Difícil também, ao que parece, era sobreviver nessa rotina: as idas ao banheiro eram reguladas, as(os) funcionárias(os) eram vigiadas(os) para que não conversassem entre si, podiam sofrer agressões físicas caso descumprissem as regras da empresa... o ambiente insalubre a qual essas(es) trabalhadoras(es) eram expostas(os), sem nenhuma proteção, a exclusão social, os baixos salários... crianças, desde a mais tenra idade, já ingressavam no trabalho para ajudar na renda familiar e sofriam as mesmas agressões, assim como a presença de mulheres – até mesmo grávidas – era comum e, por consequência, o salário desses grupos eram ainda mais baixos que o ordenado dos homens. Das lembranças do Brás e Belenzinho sobreviventes dessa época, há o livro de Jacob Penteado – nome que não guarda nenhum parentesco com o nosso outro protagonista que em breve aparecerá nessa história, João Penteado. Em Belenzinho, 1910: retrato de uma época, Jacob compartilha conosco suas lembranças dos tempos em que morou e trabalhou nesse bairro. Suas 25 O trabalho de Pasquale, que citamos anteriormente, nos oferece belíssimas descrições de como eram os bairros operários e centrais de São Paulo no início do século XX. Essa imagem é oferecida também no mesmo artigo e, ainda, “no que se refere à paisagem urbana”, Pasquale destaca que “em São Paulo, não se formaram áreas tipicamente industriais, exclusivamente ocupadas por fábricas. Sendo o parque industrial paulistano caracterizado pelo predomínio de fábricas de tamanho médio e pequeno, destinadas principalmente à transformação, o que se presencia é a intercalação de estabelecimentos fabris no meio de residências proletárias e, consequentemente, o aparecimento de verdadeiros bairros mistos, industriais e residenciais a um só tempo” (PETRONE, 1955, p. 130). Vislumbrar essas imagens – que não deixam de ser ficcionais, já que Pasquale reforça que usava como referência plantas e mapas da São Paulo da época para construir sua narrativa – são fundamentais no exercício de pensarmos que território a classe operária paulistana e, mais a frente, as Escolas Modernas de São Paulo iriam habitar. 34 lembranças contribuem de forma mais poética com os dados que nos são fornecidos pelo quadro em que a classe operária dessa Paulicéia se encontrava. Enquanto vidreiro, ele nos conta: O horário, ali [na “Fabriquinha”], era o seguinte: entrada às seis horas; às sete e meia, um intervalo de quinze minutos, para o café; das onze horas ao meio-dia, almoço. O segundo período ia das doze às dezesseis, com outro intervalo de quinze minutos, para a merenda, às catorze horas. Trabalhava-se, pois, nove horas por dia, inclusive aos sábados. E, quando havia muitas encomendas, também aos domingos, das seis às doze. As “oito horas” representavam, ainda, uma desejada e longínqua conquista, que viria somente anos depois, após muita luta pelas ruas e espancamento de operários pela polícia (PENTEADO, 1962, p. 117). Ainda em suas memórias, Jacob nos compartilha os maus tratos que sua classe de vidreiros sofria por patrões – e ressalta que esses tipos de situações eram “muito comuns, naquele tempo” (PENTEADO, 1962, p. 118). A violência física era tão comum – Jacob trabalhou na Cristaleira Itália (a “Fabriquinha”, como ele mesmo chama) – assim como os casos de consumo de bebida alcóolica tanto entre os adultos quanto entre as crianças, dentro das fábricas, parecem ter-lhe marcado profundamente26. Findo o dia, aos poucos, as ruas se preenchiam por bondes, bicicletas, ônibus, trens suburbanos abarrotado de gente... as pequenas casas voltavam a ser ocupadas, os bares e botecos acolhem a freguesia de sempre “e, finalmente, ao padrão de vida geralmente baixo da população que ali vive, que bem pode ser simbolizado pela imundice das calçadas, pelo aspecto desleixado das crianças e pela sordidez das habitações, muitas delas de caráter coletivo, miseráveis ‘cortiços’ da grande metrópole” (PETRONI, 1955, p. 130-131). O retrato que Jacob nos oferece, assim 26 Muitos dos vidreiros, principalmente os estrangeiros, usavam e abusavam das bebidas alcóolicas, de preferência a cachaça, que tomavam misturadas com outras bebidas, geralmente o fernet, sambuca, tamarindo e demais ingredientes. Outros preparavam-na com ervas, que reputavam medicinais, ou com as frutas silvestres que então abundavam nas redondezas, tais como uvaia, carapiá, sucupira, cambucí, joá, etc. E bebiam a pinga como se fora água. Um deles, um português, chamado João de Almeida, alcoólatra inveterado, durante o dia, várias vezes, mandava um menino ir buscar bebida na venda mais próxima, pois já se encontrava naquele estado em que o viciado não pode parar de ingerir a droga. Quando o menino voltava, de garrafa cheia, o português olhava para ele, com seus olhos congestionados, meio desconfiado, e interpelava-o duramente, após proferir palavras das mais obscenas: - Dize-me cá, ó rapaz! Tu bebeste? - Não... não senhor... – tartamudeava o menino, todo trêmulo e assustado, antevendo, já, uma punição qualquer por crime que não cometera. - Não bebeste mesmo? – insistia o monstro. - Não bebi, não, posso jurar... – respondia o pobrezinho. - Bem, não precisas jurar. Basta-me cheirar-te a boca. Abre-a! – intimava, furioso. Isso era comum, pois, caso os meninos tivessem bebido, coisa que, muitas vezes, até nós fazíamos, com aquela curiosidade tão própria da idade, o “crime” seria denunciado pelo hálito. Alguns dos vidreiros sorriam ante a falta, outros limitavam-se a dar algum pescoção no garoto, mas o repugnante João de Almeida era realmente um perverso, um sádico. Mal o menino escancarava a boca, bafejando, escarrava-lhe pela goela adentro (PENTEADO, 1962, p.122-123). 35 como de outras narrativas sobreviventes, é de uma população que irá ser enquadrada como marginal, na acepção negativa da palavra – porém, trata-se de vidas precárias27. O que ninguém imaginaria, talvez, é que diante desse cenário opressivo – das casinhas resistentes às longas jornadas de trabalho – a insatisfação e o mal-estar social transbordassem e que o anarquismo, enquanto ideologia social, ganhasse espaço na formação política operária paulistana. Porém, para se falar em anarquismo aqui no Brasil – e especialmente, o porquê falarmos de anarquismo – faremos um recuo para contextualizarmos o quadro político e econômico que gerou esse surtou industrial – ainda que mínimo e muito bem especializado - e que levou, em suas consequências, o surgimento dessa classe obreira em São Paulo com demandas que não iriam se diferenciar das questões já debatidas e enfrentadas em países industrializados da Europa, por exemplo28. “De início”, escreveu Petrone (1955, p. 140), “ampliou-se a área do Belenzinho e da Mooca, graças aos três fatores conjugados: o desenvolvimento industrial, as correntes imigratórias e da via-férrea”. O primeiro fator levantado por Petrone – desenvolvimento industrial – pode ser verificado desde os anos finais do século XIX. O fenômeno industrial não foi exclusivo de São Paulo, 27 Eventualmente, ao longo da narrativa, empregaremos duas palavras para nos referirmos a classe operária e as(aos) anarquistas paulistanas: enquadramento e vidas precárias. Tratam-se de dois conceitos filosóficos trabalhados por Judith Butler e nos ajudam a compreender o tributo ontológico que trabalhadoras(es) anarquistas configuravam (e configuram) nos discursos conservadores. Se enquadramento é uma construção imagética e do lugar em que esses sujeitos serão forçosamente fixados na ordem do discurso, vidas precárias – ou precariedade – revela as condições que esses sujeitos enquadrados vivem. Sobre enquadramento, escreve: “Como sabemos, to be framed (ser enquadrado) é uma expressão complexa em inglês: um quadro pode ser emoldurado (framed), da mesma forma que um criminoso pode ser incriminado pela polícia (framed), ou uma pessoa inocente (por alguém corrupto, com frequência a polícia), de modo que cair em uma armadilha ou ser incriminado falsa ou fraudulentamente com base em provas plantadas que, no fim das contas, ‘provam’ a culpa da pessoa, pode significar framed. Quando um quadro é emoldurado, diversas maneiras de intervir ou ampliar a imagem podem estar em jogo. Mas a moldura tende a funcionar, mesmo de uma forma minimalista, como um embelezamento editorial da imagem [...]. Esse sentido de que a moldura direciona implicitamente a interpretação tem alguma ressonância na ideia de incriminação/armação como uma falsa acusação. Se alguém é incriminado, enquadrado, de modo que o seu estatuto de culpado torna-se a conclusão inevitável do espectador”. Uma vez compreendido a questão do enquadramento, Butler irá nos revelar, por exemplo, como o racismo e questões econômicas são retrabalhadas de forma que as relações de poder fabriquem imagens de sujeitos que podem ser excluídos da sociedade. Dessa forma, como veremos ao longo da nossa história, enquanto classe e movimento social, o operariado paulistano enquadrou-se na imagem do criminoso e o quanto isso seria suplantado pelas instituições. Já em “vida precária”: “Afirmar que uma vida é precária exige não apenas que a vida seja apreendida como uma vida, mas também que a precariedade seja um aspecto do que é apreendido no que está vivo. Do ponto de vista normativo, o que estou argumentando é que deveria haver uma maneira mais inclusiva e igualitária de reconhecer a precariedade, e que isso deveria tomar forma como políticas sociais concretas no que diz respeito a questões como habitação, trabalho, alimentação, assistência médica e estatuto jurídico” (BUTLER, 2018, pp. 23-30). 28 “Em La Battaglia, em 1911, [Orestes] Ristori comparou a situação brasileira com a da Europa: ‘A jornada de trabalho, aqui, como em qualquer país, vai de 10 a 13 ou 14 horas por dia; os salários não são os melhores do que os da Europa, quando se considera que o preço dos gêneros e da moradia é aqui mais alto. A vida horrorosa, infernal das fazendas é desconhecida na Europa. O trabalhador dos campos trabalha aqui quatorze a quinze horas por dia e vive em imundas pocilgas de barro’” (DULLES, 1977, p. 20). Cf: RODRIGUES, 1969, p. 306-307. 36 como pode parecer de início, mas irão surgir fábricas em Salvador, em algumas cidades mineiras, assim como na então capital federal, Rio de Janeiro29. Essa pequena revolução industrial em nosso país não deixa de ser reflexo das novas relações de produção, consumo e trabalho que a Europa já experimentava há um bom tempo30. Enquanto Império, ainda mantínhamos uma política oligárquica, dependente duma economia agrária – sobretudo no café – e na exploração de mão-de-obra escrava que, no derradeiro ano de 1888, com a Lei Áurea, nos tornamos o último país da América Latina a abandonar esse tipo de trabalho. No caso de São Paulo, o desenvolvimento do capital industrial – ainda que não viria a superar o agronegócio – se deveu, sobretudo, por conta da libertação das(os) escravas(os), “embora se esboçasse desde a década de 1870” (FAUSTO, 2018, p. 161). As fontes historiográficas consultadas estão de acordo que esse “surto” industrial no estado de São Paulo se deve graças ao café: Os negócios do café lançaram as bases para o primeiro surto da indústria por várias razões: em primeiro lugar, ao estimular as transações em moeda e o crescimento da renda, criou um mercado para produtos manufaturados; em segundo, ao promover o investimento em estradas de ferro, ampliou e integrou esse mercado; em terceiro, ao desenvolver o comércio de exportação e importação, contribuiu para a criação de um sistema de distribuição de produtos manufaturados; em quarto, ao promover a imigração, assegurou a oferta de mão de obra. Por fim, o café fornecia, através das exportações os recursos para importar maquinaria industrial (FAUSTO, 2018, p. 161- 162). Na mesma linha, Leôncio Basbaum também nos chama a atenção para outros fatores decisivos na constituição dessa nova relação capitalista que passaríamos a experimentar, segundo ele, num período de trinta anos, ou seja, entre 1895 a 1925. Em suas palavras: a) o primeiro desses fatores favoráveis foi a abolição da escravidão. Em primeiro lugar, a libertação de certa de 750 mil escravos, sem contar os que já havia alguns anos e tinham se emancipado ou por si mesmos ou por efeito de libertações parciais, pôs a disposição do capitalismo e em particular da indústria, uma grande massa de braços livres, aumentando assim a superpopulação relativa, condição de grande importância para o desenvolvimento industrial. Esse aumento relativo da população teve por sua vez, como primeira consequência, o barateamento da mão-de-obra nas cidades, enquanto aumentava o mesmo custo no campo. Os ex-escravos que vinham para as grandes cidades à procura de serviço, não conhecendo o valor do dinheiro e ultrapassado de muito em número às necessidades 29 “O crescimento industrial deve ser visto em uma perspectiva geográfica mais ampla, abrangendo várias regiões, especialmente o Rio de Janeiro e São Paulo. As poucas fábricas que surgiram no Brasil em meados do século XIX destinavam-se principalmente a produzir tecidos de algodão de baixa qualidade, consumidos pela população pobre e pelos escravos. A Bahia foi o primeiro núcleo de atividades no ramo, reunindo cinco das nove fábricas existentes no país em 1866. Considerando-se o número de unidades fabris, Minas Gerais assumira o primeiro lugar, mas o Distrito Federal concentrava as fábricas mais importantes. Excluindo-se a agroindústria do açúcar, em 1889 ele detinha 57% do capital industrial brasileiro” (FAUSTO, 2018, p. 161). 30 “Quando o capitalismo começa a desenvolver-se no país [Brasil], já este sistema econômico-social dominava a Europa e parte da América” (BASBAUM, 1976, p. 90). 37 imediatas de mão-de-obra, empregavam-se a qualquer preço, enquanto se criava um exército de mão-de-obra de reserva, que se transformou posteriormente numa camada de marginais, sem emprego, sem ofício, sem oportunidade de ganhar a vida. [...] b) O segundo dos fatores favoráveis foi o aumento da imigração e da população em geral [...]; c) O terceiro desses fatores foi o aumento rápido do mercado interno em virtude do aumento natural e rápido da população, reforçado pela imigração. Além disso, os escravos, passando a assalariados, se transformavam em consumidores. d) Finalmente a guerra mundial de 1914-18 teve do mesmo modo, e em alto grau, efeito favorável para o desenvolvimento do capitalismo [...] (BASBAUM, 1976, p. 92-93). Das considerações expostas por Basbaum, nos deteremos brevemente nos tópicos a) e b) por eles estarem imbricados de certa forma na construção da nossa narrativa. Não deixamos de observar que, durante nossas pesquisas, o estímulo da imigração se deveu, sobretudo, como parte de um programa de substituição de mão-de-obra que, até então, era negra. Se também é consenso de boa parte das pesquisas relacionadas a esse período histórico de que a imigração desempenhou um papel decisivo de protagonismo nas novas relações de trabalho aqui no Brasil, a divergência surge quando se trata do emprego da palavra substituição. Crítica às narrativas históricas do trabalho no Brasil, Silvia Lara aponta que o processo de exclusão da(o) trabalhadora(or) escrava(o) negra(o) nessa historiografia já começa quando ela é contada a partir da abolição e é automaticamente relacionada “com a história do trabalho livre (assalariado), a história social do trabalho no Brasil” contendo “em si mesma, um processo de exclusão: nela não figura o trabalhador escravo” (LARA, 1998, p. 26). Em outras palavras – e na própria voz de Lara: A oposição irreconciliável entre escravidão e liberdade cristalizou-se como um postulado quase sempre inquestionado, e o final do século XIX passou a configurar o assim chamado período da substituição do escravo (negro) pelo trabalho livre (branco e imigrante), o “período da transição”, da “formação do mercado de trabalho livre” no Brasil. Abordadas nos capítulos finais das obras sobre escravidão (quando não são tematizadas em si mesmas, em obras específicas sobre a abolição) ou em capítulos introdutórios sobre a história dos trabalhadores em geral ou dos operários em particular, as últimas décadas do século XIX constituem o marco cronológico que separa o conjunto de obras sobre a escravidão daquele sobre o “trabalho livre”: entre os dois há um hiato, quase um abismo – e a história dos trabalhadores no Brasil torna- se cativa de uma ruptura radical (1998, p. 26-27). Essa observação extremamente necessária e urgente para se (re)pensar a historiografia do Brasil também é capital para nossa narrativa por alguns motivos. Primeiro, do ponto de vista histórico, Basbaum – e mesmo Boris Fausto31 – chamam a nossa atenção para dois pontos: a) nossa 31 Boris Fausto (2016, p. 35-36) escreve: “A ampliação do mercado de consumo rural através da substituição dos escravos pelos imigrantes assalariados é um tema aberto e controverso. Sem dúvida, não se pode dar a esse fator importância exagerada, considerando que o processo de incremento da divisão do trabalho era anterior à entrada das grandes levas migratórias e que os imigrantes tinham uma forte tendência a poupar. Não parece desprezível, ainda assim, o papel do imigrante na ampliação do mercado rural, vinculada à possibilidade de obter excedentes 38 economia não deixou de ser agrária; ao contrário, o café representava 70% da nossa economia de exportação; b) o fluxo imigratório europeu começou no final do século XIX, antes da abolição; quando passamos por essa reconfiguração do nosso capitalismo com uma leve abertura a industrialização, essa relação entre trabalho livre e assalariado também conquistou o campo, ainda que em condições precárias32. Em outras palavras: negras(os) e imigrantes configuraram e conviveram lado a lado nas novas relações sociais de trabalho e, recorrendo novamente a Silvia Lara, certamente encontraremos trabalhadores escravos e imigrantes, negros e brancos de várias cores, homens e mulheres com experiências diversas que, em situações de lazer ou trabalho, em espaços públicos ou domésticos, construíam suas vidas – enfrentando uma arena social que se transformava cada vez mais rapidamente e na qual as “regras” eram diferentes daquelas em que haviam aprendido a lutar (1998, p. 37). Sendo assim, entramos no segundo fator que contribuiu não só para o desenvolvimento do nosso capitalismo industrial, mas para os nossos bairros operários em questão – Brás e Belenzinho – e que trouxeram consigo o anarquismo: a imigração. “A imigração em massa”, segundo Fausto, “foi um dos traços mais importantes das mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil a partir das últimas décadas do século XIX” (2018, p. 155). Voltando para as memórias de Jacob Penteado, um dado interessante que ele nos fornece é de que segundo “um balanço realizado por Antônio Francisco Bandeira Junior, em 1901, a população operária, em São Paulo, era de 50.000 almas, italianos, na sua maioria, não havendo nem dez por cento de brasileiros” (PENTEADO, 1962, p. 139). Quanto ao que se refere aos números do fluxo imigratório, é curioso observar o quanto as informações se divergem. Segundos os dados, de “1820 a 1920”, ou seja, num período de cem anos, “entraram no Brasil 3.642.382 imigrantes” (BASBAUM, 1976, p. 142). Ainda em termos numéricos, entre os anos de 1871 e 1920, entraram 3.390.000 imigrantes (MARAN, 1979, p. 13). Já entre 1887 e 1930, considerando os dados trazidos por Boris Fausto, temos “cerca de 3,8 milhões de estrangeiros” (FAUSTO, 2018, p. 155). Novamente, dois pontos comuns são verificados nas narrativas do período: primeiro, a predominância da imigração italiana, como já nos chamou a atenção Jacob Penteado; segundo, agrícolas através do plantio de gêneros – sobretudo nos contratos de formação do café –, os quais eram vendidos nas cidades, aumentado a capacidade de consumo. Lembrando também que a força de trabalho estrangeira não veio apenas substituir a mão de obra escrava, mas representou um grande aumento do potencial de trabalho, destinado a atender os requisitos de uma economia em plena expansão”. 32 “[...] para evitar o abandono das plantações pelos escravos agora libertos, criaram-se diferentes tipos de relações de produção: os escravos se transformaram do dia para a noite em assalariados, a receber pagamento em dinheiro, que gastavam onde podiam e como queriam. Pelo menos a princípio, durante algum tempo. Depois as condições no campo se foram modicando naturalmente, o assalariado foi se transformando gradativamente em parceiro, rendeiro ou semiescravo, e o dinheiro em vales de barracão” (BASBAUM, 1976, p. 93). 39 a explosão demográfica de São Paulo, receptora (mas não a única) da grande maioria desse fluxo imigratório. Território de nossa narrativa, São Paulo, nesse período, “começava a se definir como centro urbano, tornando-se gradativamente o grande mercado distribuidor de produtos e de mão de obra” (FAUSTO, 2016, p. 35). A extinção total do sistema escravagista, foi essencial para a expansão do capitalismo paulistano33, facilitando a entrada das(os) imigrantes que desempenhariam um papel crucial nessa industrialização, seja “pela ampliação do mercado de trabalho e de consumo; pela preferência em inverter a poupança no setor comercial e industrial, tendo em conta as dificuldades impostas ao acesso à propriedade da terra; pelo impulso dado ao crescimento da cidade de São Paulo” (FAUSTO, 2016, p. 35). Em relação a esse crescimento de São Paulo, sobretudo no período de 1890 a 1900, em consulta ao censo disponibilizado no site da Secretaria Municipal de Urbanismo, em 1890 a cidade possuía 65.000 habitantes. Em um expressivo contraste, o ano de 1900 São Paulo chegou a 240.000 habitantes34. Tudo indica que esse crescimento populacional em pouco tempo se deve não só ao fluxo imigratório, mas também pela migração interna pós abolição35, como já falamos aqui, ainda que em linhas gerais. Esse crescimento populacional em São Paulo – e no Rio de Janeiro esse fenômeno aconteceria, ainda que em menor grau – “se liga diretamente à forma pela qual se resolveu o problema da força de trabalho na empresa agrícola cafeeira”. Segundo Fausto (2016, p. 42-43), o “suprimento de trabalhadores sobretudo até os primeiros anos do século XX foi abundante em razão de três fatores”, na qual aponta: “a crise crônica no campo, em várias regiões da Itália; o fato de que a imigração para o estado de São Paulo foi em larga medida 33 Tanto Leôncio Basbaum quanto Maran fazem uma mesma observação. No primeiro, lemos: “O Brasil entretanto foi dos menos aquinhoados [em relação a imigração no século XIX], pois durante muitos anos os imigrantes evitavam o nosso país não apenas por causa do clima e da febre amarela, como por causa da escravidão. O braço imigrante não podia concorrer com o braço escravo” (BASBAUM, 1976, p. 142). No segundo autor, lemos: “Até o final do século XIX, a sociedade escravagista brasileira não oferecia atrativos para a imigração. O imigrante europeu preferia tentar a sorte em outros lugares onde não tivesse que competir com o trabalho escravo. Ora, no Brasil, os escravos não tinham qualquer interesse em contratar a força de trabalho europeia” (MARAN, 1979, p. 13). 34 Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Disponível em: http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1890.php e também em: http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1900.php. Acesso em: 02 Maio 2019. 35 “Embora faltem dados da migração rural-urbana da época, é bastante plausível a hipótese de que uma parcela significativa dessa sobrepopulação se transferiu para os centros urbanos, tendo em conta as fases de depressão do setor cafeeiro e de acesso à propriedade da terra” (FAUSTO, 2016, p. 43). Porém, nas páginas seguintes, o autor afirma que esse fluxo migratório não diz respeito as(aos) negras(os) que, apesar de tudo, mantinham-se no campo: “Nos anos de desagregação do sistema escravista, parece ter ocorrido um fenômeno distinto do verificado em São Paulo, onde ao que tudo indica a Abolição não provocou um grande fluxo de negros do campo para a cidade, havendo mesmo referências a um retorno de certo vulto de antigos escravos do estado de São Paulo para regiões do Norte, de onde haviam sido arrancados em decorrência do tráfico interno. O fato se explica, aliás, entre outras razões, pela avassaladora presença dos imigrantes externos e seu preenchimento das melhores oportunidades ocupacionais” (FAUSTO, 2016, p. 43). http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1890.php http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1900.php 40 subsidiada, permitindo aos fazendeiros adequar a oferta a seus interesses, a consciência cristalina desses interesses por parte da burguesia do café”. O fato é que, em resumo, a empresa cafeeira estimulou o processo de industrialização em São Paulo em larga escala, ainda que essas indústrias estivessem distribuídas desigualmente pelo estado36. E, como apontou como último fator de expansão de São Paulo, a malha ferroviária construída entre São Paulo e as cidades estratégicas – no que se refere ao café – ampliou ainda mais o fluxo de pessoas entre capital do estado e o interior. Num recorte mais específico, no que se refere a cidade de São Paulo e a classe trabalhadora fabril, os dados demonstram que a maioria das fábricas eram ocupadas por imigrantes, em especial a italiana. Como vimos anteriormente, Boris Fausto nos apontou que a grande leva de imigrantes italiano