O S SE N T ID O S D A C A SA P R Ó P R IA V IV IA N E FER N A N D A D E O LIV EIR A OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA CONDOMÍNIOS HORIZONTAIS POPULARES FECHADOS E NOVAS PRÁTICAS ESPACIAIS EM PRESIDENTE PRUDENTE E SÃO CARLOS Os sentidOs da casa própria Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 1 14/01/2016 21:55:29 Conselho Editorial Acadêmico responsável pela publicação desta obra Eda Maria Goes José Tadeu Garcia Tommaselli Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol Eduardo Paulon Girardi Raphael Fernando Diniz (representante discente titular) Baltazar Casagrande (representante discente suplente) Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 2 14/01/2016 21:55:29 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Os sentidOs da casa própria Condomínios horizontais populares feChados e novas prátiCas espaCiais em presidente prudente e são Carlos Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 3 14/01/2016 21:55:30 © 2015 Editora Unesp Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ O45s Oliveira, Viviane Fernanda de Os sentidos da casa própria: condomínios horizontais populares fechados e novas práticas espaciais em Presidente Prudente e São Carlos / Viviane Fernanda de Oliveira. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-709-8 (recurso eletrônico) 1. Urbanismo. 2. Planejamento urbano. 3. Livros eletrônicos. I. Título. 15-28930 CDD: 711.4 CDU: 711.4 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afiliada: Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 4 14/01/2016 21:55:30 À Yasmin, florzinha linda da dinda. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 5 14/01/2016 21:55:30 Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 6 14/01/2016 21:55:30 AgrAdecimentos Agradecer às pessoas que fazem parte da jornada de trabalho que resultou neste livro é uma mistura de “preciso dizer o quanto vocês são especiais pra mim” com “que eu não me esqueça de ninguém”. De alguma maneira, preciso começar, e não há como não iniciar agradecendo a uma força invisível chamada Deus. Tenho fé e sou grata pelo dom da vida que me concedeu. Aos meus pais, que sempre me apoiaram financeira e moral- mente a estudar. Mesmo quando não tinham muito da onde tirar, fizeram um esforço para pagar o cursinho, e assim consegui ser apro- vada em uma universidade pública, gratuita e de qualidade como a Universidade Estadual Paulista (Unesp). Sem esse apoio inicial eu jamais poderia chegar a uma pós-graduação. Vocês são, sem dúvi- das, minha maior inspiração. Amo vocês. Quero registrar também os sinceros agradecimentos à professora Carminha. A destacada trajetória acadêmica da professora Sposito já é reconhecida por todos, porém esse seu lado humano disposto a colaborar e incentivar é um privilégio acessível a poucos, incluindo nós, do Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Re- gionais (GAsPERR). Obrigada pelos vários “empurrões”: “Vivia- ne, vamos mandar esse projeto de iniciação científica para a Fapesp, sim!”, “Sempre ande com um caderninho e uma caneta na bolsa para Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 7 14/01/2016 21:55:30 8 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA anotar alguma ideia que tiver!”, “Estude para o processo seletivo da pós. É importante você tentar!”, “Saiu uma bolsa de apoio técnico. Você tem interesse?”. Não vou colocar todas as frases importantes que me disse, mas essas são algumas das que de vez em quando re- cordo para pensar no quanto você é especial para mim. Não posso deixar de destacar o cuidadoso trabalho de orientação da professora Eda, que esteve tão presente em todas as etapas da pesquisa que originou este livro, não apenas indicando leituras ou corrigindo textos, mas totalmente por dentro da pesquisa que estava sendo realizada, nas entrevistas, nas reflexões, muitas vezes relem- brando aspectos iniciais presentes nos trabalhos de campo dos quais eu mesma já havia me esquecido. Muito mais do que orientadora, em muitas ocasiões você apontou o caminho quando eu estava mais desesperada. Muito obrigada! À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fa- pesp) e ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universi- dade Estadual Paulista. Obrigada, meus queridos amigos Tiago, André, Carol, Jânio, Gabriel, Marcel e Mari. Devo incluir aqui também os professores Márcio, Everaldo e Arthur, que, durante os cafés entre um trabalho de campo e outro, me ajudaram nas reflexões acadêmicas. Em dife- rentes momentos vocês estiveram presentes: nas comemorações, nos trabalhos de campo, nas conversas sobre Geografia (nas conversas fúteis também) e nos dias em que eu estava desanimada e achava que nada ia dar certo. Obrigada por aguentar esta criatura que chora quando está triste e alegre! Aos moradores que entrevistei, que confiaram em falar sobre seu cotidiano com uma desconhecida e colaboraram indicando outros moradores para serem entrevistados, obrigada! Sem vocês este livro não seria possível. Aos colegas do GAsPERR, por compartilhar , nesse ambiente acadêmico, pesquisas, informações, colaborações, cafés, experiências... E por último, mas não menos importante, meu amor, Bruno. Desde quando faz as perguntas mais diretas (e difíceis de serem res- pondidas) de quem não é da área, até quando fica aos fins de semana Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 8 14/01/2016 21:55:30 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 9 me ajudando na parte técnica (elaboração de mapas, capa, normas) com um sorriso no rosto e me incentivando a fazer o melhor. Não tenho palavras para dizer o quanto você faz diferença na minha vida. Amo você. Hoje, amanhã, para sempre! Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 9 14/01/2016 21:55:30 Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 10 14/01/2016 21:55:30 sumário Agradecimentos 7 Introdução 13 1 Diferentes formas de produção do espaço urbano periférico 27 2 Os sentidos da casa própria 131 3 Da segmentação à fragmentação socioespacial: novas práticas de moradores de condomínios horizontais populares fechados de Presidente Prudente e São Carlos 169 Considerações finais 211 Referências bibliográficas 217 Anexos 225 Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 11 14/01/2016 21:55:30 Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 12 14/01/2016 21:55:30 introdução A produção do espaço urbano nas cidades brasileiras vem ocor- rendo em descontinuidade, com a introdução de espaços residenciais populares abertos e fechados, mas também de espaços residenciais fechados de classe média e elite, em áreas distantes da malha urbana compactada. Esse processo, além de provocar o encarecimento da vida urbana devido à distância dos principais equipamentos e in- fraestruturas, impõe o uso de veículos automotivos como principal meio de deslocamento. Essa extensão do tecido urbano está correla- cionada à ampliação da condição de mercadoria da própria cidade, uma vez que, a cada expansão, há mais terra para ser vendida pelo mercado imobiliário. Aliada à descontinuidade territorial ocorre a segmentação do espaço urbano, que aponta para uma separação dos moradores da ci- dade de acordo com o nível econômico e social, como evidenciam os espaços residenciais fechados de médio e alto padrão, destinados aos segmentos de maior poder aquisitivo, e os espaços residenciais po- pulares abertos e fechados (condomínios), destinados aos segmentos de menor poder aquisitivo. A opção por morar em espaços fechados é justificada com base em argumentos que se diferenciam conforme o perfil socioeconômico dos moradores, tais como a facilidade no Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 13 14/01/2016 21:55:30 14 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA financiamento, a busca por qualidade de vida e por status, além do enfrentamento da insegurança urbana. A partir das entrevistas com moradores e futuros moradores dos condomínios horizontais populares fechados por nós pesquisados − Vista do Vale e Esmeralda, em Presidente Prudente, e Terra Nova São Carlos e Tecumseh Village, em São Carlos −, constatamos que, além das já citadas motivações, essa pode ser uma estratégia para evitar os estigmas sofridos pelos moradores de espaços periféricos nos quais estão localizados os condomínios pesquisados. Buscando evidências de tal processo, realizamos também entrevistas com moradores de dois espaços residenciais abertos, o Conjunto Habi- tacional Jardim Humberto Salvador, em Presidente Prudente, e o Cidade Aracy, em São Carlos, com o objetivo de utilizá-las como contraponto para as novas práticas e representações sociais dos mo- radores e futuros moradores dos condomínios horizontais populares fechados, aos quais este livro direciona-se prioritariamente. São Carlos e Presidente Prudente, ambas situadas no interior do estado de São Paulo, porém com posições distintas na rede urbana, foram as cidades escolhidas devido a dois motivos principais:1 a par- tir delas podemos compreender as particularidades e similitudes dos processos estudados em cidades com posições hierárquicas distintas na rede urbana, além do fato de ter havido uma relevante expansão de condomínios fechados nessas cidades desde os anos 1990. Presidente Prudente é considerada uma cidade média por con- centrar papéis e funções urbanas, atraindo um grande fluxo de pes- soas de cidades vizinhas, que utilizam principalmente o comércio e os serviços oferecidos. Além disso, está distante de outras cidades de mesmo porte, o que reafirma seu poder de atração frente a uma 1 Além disso, a opção por essas cidades ocorreu devido ao fato de ambas fazerem parte do conjunto de seis cidades médias (Presidente Prudente-SP, São Carlos- -SP, Ribeirão Preto-SP, Marília-SP, São Jose do Rio Preto-SP e Londrina- -PR) estudadas pelo projeto temático Lógicas econômicas e práticas espaciais contemporâneas: cidades médias e consumo, no qual estava inserida a pesquisa que originou este livro e cuja relevância para este trabalho poderá ser notada no decorrer do texto. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 14 14/01/2016 21:55:30 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 15 ampla população que reside no Oeste Paulista e no sul do Mato Grosso do Sul. São Carlos está próximo a cidades de maior porte (por exemplo, Campinas e Ribeirão Preto) e também de mesmo porte (tais como Araraquara e Rio Claro). Sposito e Góes (2013, p.36), ao estabelecer as principais diferenças entre Presidente Prudente e São Carlos no que se refere ao seu papel na rede urbana, observam: É notória a maior centralidade interurbana de Presidente Pru- dente, única cidade no Sudoeste paulista, num raio de ao menos 150 km, a oferecer bens e serviços em níveis suficientes para polarizar 57 cidades de menor tamanho populacional e de menor complexidade funcional. Na posição de menor centralidade interurbana está São Carlos, cuja localização muito próxima de outras cidades de porte semelhante ou maior (Araraquara, Americana, Rio Claro, Limeira e Ribeirão Preto) reduz sua capacidade de polarização. Neste livro, outros aspectos, próprios da cidade contemporânea, têm maior importância, como é o caso dos novos processos a partir dos quais seu espaço vem sendo produzido. Destacamos o afasta- mento territorial das atividades ligadas ao consumo, o aumento do uso de veículos automotivos e a melhoria da qualidade dos trans- portes (há um aumento significativo da mobilidade, embora ela seja estratificada), a valorização das novas paisagens urbanas associadas à imagem do moderno (embora cada vez mais estandardizadas) e a ação do Estado associada a interesses econômicos. Desses processos resultam, como atual configuração, os novos centros, subcentros, eixos especializados e, ainda, os centros antigos, além de uma valorização dos espaços privados em detrimento dos espaços públicos, lógicas definidas por interesses das atividades de produção e comercialização, mas também, e cada vez mais, por interesses fundiários e imobiliários. A ideologia do crescimento e do desenvolvimento, sustentando essas lógicas e justificando a ação do Estado, não pode ser desconsiderada. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 15 14/01/2016 21:55:31 16 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Os atuais processos de urbanização, nos quais localizações e distâncias adquiriram importância crescente, passaram a constituir situações de vida urbana, em que o diálogo entre as partes da cidade atenuou-se ou rompeu-se (Lefebvre, 1983). Isso vem sendo aborda- do à luz do conceito de segregação socioespacial, cuja contribuição primordial reside na ênfase conferida ao fato de essa segregação ser uma construção histórica, opondo-se, portanto, à tendência de naturalizá-la (Prévôt-Schapira; Pineda, 2008), como expresso na origem do conceito, que foi desenvolvido no âmbito da Escola de Chicago, “com as contribuições de Burgess (1967[1916]) e McKen- zie (2005[1926])” (Sposito, 2013, p.62), cuja concepção original “refletia o esforço da Ecologia Humana em transpor teorias, leis e dinâmicas próprias das Ciências Naturais para ler o espaço urbano” (Sposito; Góes, 2013, p.283), sendo que “sua origem esteve associa- da à ideia de que o uso residencial do espaço urbano resultaria de um processo de competição entre os citadinos, gerando áreas de grande homogeneidade interna, tanto socioeconômica como cultural” (ibi- dem, p.283). Algumas décadas depois, esse conceito “foi apropriado e repensado por outras perspectivas teóricas, entre elas a reconheci- da como ‘Escola da Sociologia Urbana Francesa’, cuja leitura teve grande importância nos anos 1960 e 1970” (Sposito, 2013, p.62). No decorrer dos anos, ao conceito de segregação foram acrescentados adjetivos para distinguir um processo do outro. Neste livro incorporamos a proposição de Sposito e Góes (2013, p.285) de trabalhar com o conceito de segregação socioespacial, “a fim de torná-lo mais preciso, no sentido de enfatizar que esse proces- so só pode ser compreendido nas articulações e codeterminações en- tre condições sociais e condições espaciais, tanto quanto se expressa social e espacialmente”. Sendo assim, “não é possível pensar numa segregação apenas social, visto que ela é sempre expressa e determi- nada espacialmente” (ibidem, p.285). Portanto, cabe ressaltar que as novas segregações são mais abrangentes, porque não se restrin- gem ao uso residencial do espaço, como, inicialmente, foi concebido o conceito pela Escola de Chicago. As separações socioespaciais se Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 16 14/01/2016 21:55:31 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 17 aprofundam, gerando segmentações muito mais demarcadas no que se refere ao habitat urbano, como os novos empreendimentos imobi- liários muito bem exemplificam. (Sposito, 2013, p.80) A segregação socioespacial, portanto, é um processo e um estado, estabelece-se a partir de um “jogo” social e político. Ocorre em áreas com baixa diversidade social, quando os moradores de determinadas áreas diferenciam-se dos de outras áreas, quando se estabelecem bar- reiras − materiais ou mentais − no plano das representações sociais. Uma população está segregada quando é estigmatizada,2 quando se associa a condição espacial à condição social do sujeito. A segre- gação socioespacial é resultado de formas de discriminação cuja base é espacial. A produção de condomínios fechados3 para a classe média e a elite é uma maneira de se separar, diferenciar os intra e 2 Embora o conceito esteja fortemente associado aos casos mais comuns de se- gregação socioespacial, em que alguns segmentos são radicalmente obrigados a separar-se, há casos em que o caráter negativo, que decorre dessa separação, não está presente, como quando tratamos da autossegregação (enquanto par indis- sociável da segregação), os quais serão retomados no item “Entre a segregação e a autossegregação: condomínios horizontais populares fechados”. 3 Na legislação brasileira vigente há dois tipos de definições que se aplicariam a esses espaços residenciais: condominiais e não condominiais. A definição “con- dominial” aplica-se às glebas que, em seu parcelamento, atendem à Lei Federal n. 4.491, de 16 de dezembro de 1964, cujos preceitos apoiam-se no estatuto da propriedade condominial. Assim, aplica-se essa definição às glebas de terras nas quais edificações de um ou de vários pavimentos são erguidas, mantendo- -se a propriedade privada em dois níveis diferentes: a) propriedades privadas de uso restrito, sejam apartamentos, no caso dos condomínios verticais, sejam re- sidências que combinam um terreno e uma edificação, no caso dos condomínios horizontais; b) copropriedades privadas de uso coletivo das áreas de utilização comum, como vias, calçadas, áreas verdes, de lazer etc., sobre as quais cada condômino tem o direito de propriedade sobre uma fração ideal, proporcional- mente correspondente ao tamanho e/ou preço de sua propriedade individual (Sobarzo; Sposito, 2003, p.39-40). A definição “não condominial” aplica-se aos lotes e imóveis edificados oriundos de glebas loteadas, segundo a Lei Federal n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que estabelece, para aprovação do parce- lamento da terra para uso urbano, exigências relativas à destinação pública de parte da extensão de terra a ser loteada. São áreas voltadas à introdução de vias, calçadas, sistemas de lazer, de proteção ambiental e de uso institucional. Essa Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 17 14/01/2016 21:55:31 18 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA extramuros. Esse novo jeito de morar é pautado pelas novas práticas de consumo e pela idealização da vida cotidiana nesses espaços, esti- mulada principalmente por meio da propaganda e da mídia. A partir desses espaços, que combinam os ideais de segurança e distinção social, emergem novas relações com os demais espaços da cidade, estabelecidas pelos seus moradores, no plano das práticas espaciais cotidianas. Recentemente, tal opção também se oferece à população de baixo e médio poder aquisitivo. A introdução dos condomínios horizontais populares fechados, muitas vezes estimulada por programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida ou o Programa de Arrendamento Familiar (PAR), nos levou a questionar: por que estimular esse tipo de moradia? A quem se voltam prioritariamente os controles próprios desses espa- ços: aos de dentro ou aos de fora? Atualmente, o programa Minha Casa Minha Vida desempenha papel central no que tange ao financiamento de habitações popula- res. Durante a década de 1980, o principal promovedor desse tipo de financiamento era o Banco Nacional da Habitação (BNH), que construía conjuntos habitacionais em locais afastados da malha urbana consolidada. No atual programa governamental, um fato que chama a atenção é o quanto essa localização descontínua ainda se repete, mas atualmente a inserção dos muros reforça e amplia a descontinuidade. As representações sociais dos sujeitos, bem como o papel da mí- dia, na produção de significados e valores de uma sociedade, “dadas as formas como a mídia transforma, e de certa maneira define, a circulação de bens simbólicos em sociedades contemporâneas” (Jo- vchelovitch, 2000, p.92), são elementos fundamentais para a análise proposta. Segundo a mesma autora, as representações sociais representam por excelência, o espaço do sujeito social, lutando para dar sentido, interpretar e construir o modo em que ele se encontra lei já foi modificada várias vezes, sendo que a maior parte das alterações ocorreu por meio da Lei Federal n. 9.785 de 29 de janeiro de 1999. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 18 14/01/2016 21:55:31 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 19 [...] elas oferecem a possibilidade da novidade, da autonomia, da- quilo que ainda não existe, mas poderia existir. Elas são nesse sen- tido uma relação com o ausente e um meio de evocar o possível. É importante ressaltar que não há qualquer tentativa de negar o poder das estruturas sociais. Também não se trata de conferir autonomia à ordem simbólica. Há sim uma relação entre o material e o simbólico. (ibidem, p.41) Assim, o objetivo geral é contribuir com a compreensão da cidade atual em sua complexidade. Ao analisar as recentes transformações urbanas em sua relação com as novas formas de morar, buscamos compreender como o cotidiano dos moradores dos condomínios ho- rizontais populares fechados é influenciado e influencia a produção do espaço urbano dessas duas cidades. Utilizamos a escala do cotidiano como estratégia para compreen- der formas peculiares de resistência, integração e diferenciação que se estabelecem no espaço urbano, considerando-se, além disso, que podem estar em curso novos processos, como a fragmentação socioespacial (Prévôt-Schapira; Pineda, 2008; Saraví, 2008; Sposi- to, 2011; 2013, Sposito; Góes, 2013; Magrini, 2013), e buscamos responder às seguintes questões: física e subjetivamente, como estão configuradas essas áreas? Quais são as expectativas e em que medida elas são contempladas conforme se estabelecem essas residências? Em que medida as práticas cotidianas e os problemas assemelham- -se ou diferem daqueles existentes em espaços residenciais popula- res abertos? Em que medida as regras que costumam ser adotadas nos condomínios horizontais populares fechados influenciam no cotidiano de crianças e jovens moradores? Do ponto de vista do con- sumo do espaço urbano, o que significa morar nessas áreas? Qual é o “pacote” comprado junto com as residências? Em que medida o que é vendido passa a ser desejado e, consequentemente, necessário? Por que há o incentivo desse tipo de residência por parte dos organismos governamentais? Qual a relação entre a localização no espaço urbano e a presença de muros e eventualmente de outros equipamentos e/ ou serviços de segurança? Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 19 14/01/2016 21:55:31 20 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Como forma de tentar responder a essas e outras questões, utilizamos como principal procedimento metodológico as técnicas de entrevistas semidiretivas e a produção de fontes orais. Conside- ramos que nossas opções metodológicas, bem como o referencial teórico, influenciam em diferentes momentos da pesquisa, do início ao fim, desde a produção das informações até a interpretação destas. Ao realizarmos as entrevistas, produzimos informações a partir do referencial teórico, com base no qual orientamos nosso diálogo com o entrevistado. Nessa relação que estabelecemos, produzimos dados que não são neutros, com questionamentos que são fruto de nossa formação teórica e percepção sociocultural. Durante a realização de entrevistas, buscamos assumir um com- promisso com a responsabilidade ética da pesquisa, deixando claro para as pessoas entrevistadas o objetivo de nosso trabalho, que os dados seriam utilizados exclusivamente com a finalidade científica e que a identificação dos entrevistados sempre seria preservada.4 Foram realizadas inicialmente entrevistas não diretivas com moradores de condomínios populares horizontais fechados em Pre- sidente Prudente, com o objetivo de levantar hipóteses, por meio da fala desses sujeitos, sobre os motivos pelos quais optaram por adquirir tais residências. Além disso, fizemos contato com corretores de imóveis para levarmos em conta o que vendem como vantagens de se morar nesses espaços, atendendo “principalmente a finalidades ex- ploratórias” e utilizando-as no “detalhamento de questões/problemas e formulação/organização mais precisa dos conceitos relacionados” (Colognese; Mélo, 1998, p.144). Esses contatos foram realizados informalmente, com a finalidade de se obter elementos para nortear a elaboração de um roteiro para entrevistas posteriores e aprofundar ou redimensionar as hipóteses inicialmente formuladas. De acordo com Thiollent (1987, p.80), “a entrevista não diretiva faz parte dos estudos exploratórios para preparar o questionário-padrão ou é con- cebida como meio de aprofundamento qualitativo da investigação”. 4 Os nomes dos entrevistados citados no texto são fictícios. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 20 14/01/2016 21:55:31 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 21 Com a análise das 32 entrevistas semidiretivas realizadas com citadinos de diferentes faixas etárias, homens e mulheres, buscamos compreender o cotidiano desses moradores, quais as implicações desse tipo de residência em seu dia a dia e como se estabelecem suas relações interpessoais no âmbito do próprio espaço residencial e dos demais espaços da cidade. É importante salientar todas as etapas necessárias à aplicação dessa metodologia: elaboração do roteiro,5 contato com possíveis entrevistados,6 gravação das entrevistas, redação do relatório de campo7 e tratamento dado a essas informações, que se inicia com a transcrição. Assim, a familiaridade com as duas realidades urbanas nas quais se inserem os espaços residenciais pesquisados revelou-se fundamental e foi viabilizada pela articulação desse trabalho com o projeto temático Lógicas econômicas e práticas espaciais contempo- râneas: cidades médias e consumo, que contribuiu tanto para que os contatos necessários ao agendamento das entrevistas fossem feitos quanto para que a familiaridade com as cidades pesquisadas se efetivasse e para que as entrevistas fossem realizadas durante os trabalhos de campo da equipe.8 5 Foram elaborados três roteiros: 1. para futuros moradores de condomínios horizontais populares fechados; 2. para moradores de espaços residenciais populares abertos; e 3. para moradores de condomínios horizontais populares fechados. Os roteiros estão anexados. 6 A intermediação de pessoas conhecidas, que tinham contatos com moradores dos espaços horizontais residenciais populares, abertos e fechados, em Presi- dente Prudente e São Carlos, foi fundamental para a viabilização das entrevistas e para favorecer o estabelecimento de relações de confiança entre pesquisador e entrevistado. 7 Nos relatórios de campo, empregamos um roteiro elaborado por Maria En- carnação Beltrão Sposito, para o projeto temático Lógicas econômicas e práticas espaciais contemporâneas: cidades médias e consumo, no qual registramos so- bretudo informações referentes às condições nas quais a entrevista foi realizada, além de informações iniciais sobre o entrevistado, data e local da entrevista. 8 Nesse sentido, comprova-se a importância das experiências coletivas de pesquisa, proporcionadas pelos grupos de pesquisa, como o Grupo de Pes- quisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR), do qual fazemos parte. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 21 14/01/2016 21:55:31 22 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA A desigualdade que caracteriza as posições entre pesquisador e entrevistado foi levada em consideração, pois sabemos que algumas vezes perguntamos algo que a pessoa não estava preparada para responder, ou que nunca havia formulado um pensamento sobre, ou mesmo tinha atentado para fatos que estavam sendo perguntados. Segundo Thiollent (ibidem, p.83): A desigualdade é inerente a uma situação de comunicação sobre a qual o respondedor não tem controle e permanece separado da interpretação e da utilização social da informação transmitida. Em situação como esta, a não diretividade dissimula, sob máscara de reciprocidade e de liberdade de fala, a hierarquia e a monopolização do saber (aspecto institucional). Nessa relação desigual, buscamos considerar, durante a análise das entrevistas, como, em que contexto, aquilo que transcrevemos havia sido dito, para que não houvesse distorções da fala, ou mesmo uma transcrição “interesseira”, levando em conta apenas os aspectos e respostas que interessassem a nós, enfatizando falas que foram ditas em outros contextos e cortando outras. Estamos conscientes de que, quando fazemos as perguntas, estamos forçando a outra pessoa a falar, “mesmo que de forma dissimulada − o outro (no caso o en- trevistado) a prestar determinada informação” (Colognese; Mélo, 1998, p.151). Além disso, buscamos desenvolver a “atenção flutuante” (Thiollent, 1987, p.91), procurando não ficar mexendo no grava- dor, deixando que as narrativas fluíssem, não privilegiando a priori quaisquer elementos dos discursos, ouvindo o que o entrevistado ti- nha a dizer, sem esboçar opinião a respeito do que estava sendo dito. A transcrição das entrevistas exigiu muita atenção, em função dos desafios inerentes à passagem do oral ao escrito. Para análise, criamos as categorias relacionadas com nossos temas,9 levando em 9 As categorias com base nas quais as transcrições das entrevistas foram organiza- das e analisadas foram: 1. Motivação para mudança de residência; 2. Segurança; Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 22 14/01/2016 21:55:31 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 23 conta as técnicas de codificação propostas por Gibbs (2009, p.60). Segundo ele, “a codificação é uma forma de indexar ou categorizar o texto para estabelecer uma estrutura de ideias temáticas em relação a ele”. Os códigos criados permitem que tenhamos acesso mais fa- cilmente às ideias levantadas nos textos das entrevistas, facilitando a análise e possibilitando o acesso a partes direcionadas daqueles. Após o agrupamento dos códigos, Gibbs (ibidem) sugere a hierar- quização destes, o que permite interpretações a partir das respostas obtidas, análise dos dados das diferentes entrevistas e, assim, o esta- belecimento de uma base de dados. A partir dos relatos orais, dos silêncios, dos gestos, das conversas e dos aspectos objetivos e subjetivos, caracterizamos a vida cotidiana desses citadinos, relacionando-as às escalas mais amplas em que estão envolvidas. De maneira complementar, analisamos o material publicitário produzido sobre os condomínios horizontais populares fechados pesquisados. Desse modo, a partir das entrevistas, busca- mos apreender a escala do cotidiano, como forma de compreender as representações do vivido e imaginado, e assim nos aproximar da maneira como se dá o consumo no espaço urbano. Outro aspecto de suma importância que levamos em considera- ção foram os constantes questionamentos: a metodologia utilizada era capaz de apreender o objeto estudado? Às hipóteses iniciais da pesquisa mantiveram-se, mudaram, ou foram acrescentados outros problemas que de início não pareciam primordiais ou não estavam nítidos? Reafirmamos assim que, qualquer que seja o caminho me- todológico escolhido, a permanente reflexão sobre o que está sendo feito, ou mesmo sobre a necessidade de reestruturação de aspectos que antes não estavam explícitos, é primordial para a realização de 3. Condições de aquisição do imóvel; 4. Valorização; 5. Regras (exclusivamente para residentes em condomínios fechados); 6. Locais de consumo; 7. Trans- portes e distâncias; 8. Contrato social; 9. Participação nas decisões (exclusiva- mente para residentes em condomínios fechados); 10. Lazer; 11. Proximidade entre residências; 12. Vias internas (exclusivamente para residentes em con- domínios fechados); 13. Casa modelo (exclusivamente para residentes em condomínios fechados). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 23 14/01/2016 21:55:31 24 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA uma pesquisa que se preocupa com a ética e a coerência nos resulta- dos obtidos. Desse modo, neste livro nos propusemos, como objetivo geral, contribuir para a compreensão da cidade atual em sua complexidade a partir do estudo de condomínios horizontais populares fechados em duas cidades do interior paulista, Presidente Prudente e São Carlos, sem, no entanto, deixar de atentar para as mudanças recentes ocorridas em espaços residenciais populares abertos. A perspectiva metodológica adotada é a da microescala, do cotidiano dos mora- dores desses espaços residenciais em suas relações com os demais espaços urbanos, em articulação com escalas mais amplas, como a local e a nacional, necessárias à compreensão da política habitacional que influencia diretamente na relação desses moradores com a cida- de e que são designativas de processos gerais. Assim, direcionamos nossa atenção para as novas formas de morar, em sua relação com as transformações urbanas, a partir dos seguintes recortes: 1. condomí- nios Esmeralda e Vista do Vale (fechados) e Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, em Presidente Prudente; 2. condomí- nios Terra Nova São Carlos e Tecumseh Village (fechados) e Cidade Aracy, em São Carlos. A partir das áreas escolhidas, realizamos um esforço de com- preender como se produzem as representações sociais dos morado- res intra e extramuros, e como elas atuam no cotidiano, a partir do consumo de novos espaços residenciais. Embora o foco do livro re- caia nos novos condomínios horizontais populares fechados, a aná- lise das práticas espaciais dos moradores de um espaço residencial popular aberto em cada uma das duas cidades foi importante para a identificação de contrapontos, mas também de semelhanças, em relação às práticas espaciais dos residentes nos espaços residenciais fechados. No primeiro capítulo, “Caracterização das áreas de pesquisa e dos problemas enfrentados pelos moradores”, não apenas caracte- rizamos as duas cidades, os espaços residenciais fechados e abertos que pesquisamos, como forma de contextualizar o leitor, mas intro- duzimos a análise das entrevistas feitas com seus moradores (nossa Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 24 14/01/2016 21:55:31 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 25 principal fonte de pesquisa), com base nos conceitos de segregação e estigma socioespacial, cuja relevância torna-se cada vez mais eviden- te ao longo do texto. Em função da importância da habitação para este livro, realiza- mos no Capítulo 2, “Os sentidos da casa própria”, o debate a respei- to dos sentidos que esta vem assumindo, tanto para as construtoras e incorporadoras imobiliárias quanto para o Estado, via políticas habitacionais, com especial atenção ao papel que assume para os moradores que chegam a adquiri-la, conforme se evidencia nas entrevistas realizadas. Nesse caso, novas fontes de pesquisa foram incorporadas, como os discursos e estratégias de marketing, dis- cursos da presidente da República e de representantes do mercado (imobiliário, de material de construção etc.). Buscando refletir conceitualmente os processos observados empiricamente, discutimos no Capítulo 3, “Da segmentação à frag- mentação socioespacial: novas práticas de moradores de espaços re- sidenciais populares fechados de Presidente Prudente e São Carlos”, o processo de fragmentação socioespacial em curso, a partir das prá- ticas espaciais dos moradores dos condomínios horizontais popula- res fechados, atentando inclusive para as mudanças e permanências a respeito dos conteúdos e significados que essas periferias assumem atualmente com a introdução dos “condomínios pra pobre” (confor- me nos disse uma entrevistada). Nas considerações finais, sem perder de vista os objetivos ini- cialmente propostos e o conjunto de questões que nortearam este trabalho, procuramos sintetizar nossas contribuições sobre o papel e os significados das barreiras (físicas e simbólicas) construídas nas periferias de Presidente Prudente e São Carlos, que criam novas diferenciações, mas convivem com processos que não são novos, de produção desses espaços periféricos, contribuindo para que novos sentidos da casa própria sejam difundidos. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 25 14/01/2016 21:55:31 Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 26 14/01/2016 21:55:31 1 diferentes formAs de produção do espAço urbAno periférico A constituição histórica de São Carlos e Presidente Prudente São Carlos A cidade de São Carlos está localizada na Região Administrativa Central do estado de São Paulo, a 232 quilômetros da capital, 854 metros de altitude, latitude 22º01’03”S e longitude 47º53’27”W. De acordo com os dados do Censo do IBGE do ano de 2010, possui um total de 221.950 habitantes. Em meados de 1850, São Carlos era uma pequena vila, na qual grande parte dos moradores vivia da agricultura. O café foi primor- dial para sua ascensão econômica, propiciando o surgimento e o desenvolvimento do núcleo urbano, e a vila foi elevada à categoria de cidade em 1880. Os primeiros bairros fora da malha urbana cen- tral − Vila Nery, Vila Pureza, Vila Izabel e Vila Prado − surgiram em 1889, constituindo um processo de periferização (Ferreira, 2007). Assim, o surgimento da cidade ocorreu “concomitante à expansão do café, em uma época em que a economia de base agroexportadora, centrada na produção e comercialização do produto, determinava a urbanização no interior de São Paulo” (Dozena, 2001, p.41). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 27 14/01/2016 21:55:32 28 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA A partir da última década do século XIX, passa a desenvolver-se na cidade a atividade industrial, estimulada pela chegada de imi- grantes, que possuíam o conhecimento técnico fabril trazido de seus países de origem e seguiam para a cidade tanto em função das fazen- das de café quanto pelas atividades urbanas (ibidem). Até 1930, “en- traram 19.132 imigrantes em São Carlos. Com isso a população total do município cresceu mais de 330%. E como parte desses imigrantes se fixou na área urbana, aumentou a demanda por moradia e por terrenos na cidade” (Lima, 2007, p.30); “comerciantes e pequenos industriais se estabelecem, organizando uma indústria incipiente e subordinada à economia cafeeira” (Dozena, 2001, p.53). Ainda de acordo com o autor: As moradias alugadas eram a forma predominante de habitação da classe operária e de outros segmentos sociais de baixa renda, e devido ao alto preço destinado ao aluguel, uma parcela da população passou a ocupar espaços que se caracterizavam por condições de higiene precárias, os denominados cortiços. (ibidem, p.100) Em 1940, “mais de 50% da população já vivia na cidade” (Lima, 2007, p.32). Com isso, ocorre a expansão de “uma economia de caráter urbano-industrial, passando a adotar um processo de industrialização que pouco se apoiou na estrutura produtiva rural” (Dozena, 2001, p.53). Com a introdução da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), em 1948, a cidade passa a atrair “profissionais qualificados, provenientes de várias regiões do país, que transferiram residência para o município” (Lima, 2007, p.71). A reestruturação da Rodovia Washington Luís, durante os anos de 1950, além de facilitar a ligação do município com outras cidades vizinhas, permitiu que fosse criado um novo eixo de expansão, di- recionando o crescimento da área urbana, tornando-se, assim, um eixo de atração de loteamento, tendo muitas ruas prolongadas até seu limite (ibidem). Lima (ibidem, p.74-5) caracteriza a expansão urbana da cida- de em três momentos durante o período de 1930 a 1959, sendo o Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 28 14/01/2016 21:55:32 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 29 primeiro deles entre 1930 e 1947, quando houve a introdução de no- vos loteamentos, que resultaram em uma expansão limitada da área urbana. O segundo ocorre a partir da criação de dez parcelamentos entre 1948 e 1949, evidenciando o crescimento da área urbana e piorando as condições de acessibilidade em decorrência do aumento das distâncias entre as novas áreas urbanas e o centro a cidade, sendo que o “primeiro loteamento mais distante e de difícil acesso foi a Vila São José, implantada em 1949 e isolada da malha viária existente. O Jardim Cruzeiro do Sul foi implantado no extremo sul da cidade e também apresentava problemas de acessibilidade” (ibidem, p.93). O terceiro período, durante os anos 1950, foi marcado pela con- solidação da economia industrial e o “grande crescimento da área urbana, com a implantação de loteamentos novos, realizados sob um controle pouco rígido, que deu margem a uma atuação facilitada dos loteadores” (ibidem, p.75). A precariedade ou ausência de rede de infraestrutura marcou o processo de introdução de loteamentos no período de 1930 a 1959: Em muitos casos, o loteador apenas abria as ruas e já começava a vender os lotes, sem colocar asfalto, sarjeta, iluminação pública etc. Isso ocorria principalmente nos loteamentos populares. Normal- mente, a infraestrutura era implantada posteriormente, por meio de rateio dos compradores dos lotes ou por ação da Prefeitura, que era pressionada pela população. (ibidem, p.92-3) Em 1962, os bondes elétricos pararam de circular na cidade, e o transporte coletivo passou a ser feito exclusivamente por ônibus. Como o trajeto não exigia percurso fixo e nem grandes investimen- tos iniciais, tornou-se possível a constituição de linhas ramificadas de transporte em bairros com baixa densidade populacional e mais afastados das áreas centrais. Com isso, o processo de expansão foi adquirindo maior dinamismo, devido à possibilidade de a população dependente de transporte público morar em áreas distantes do cen- tro, o que favoreceu pequenos e grandes investidores imobiliários, mediante a valorização da terra urbana (Lima, 2007; Dozena, 2001). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 29 14/01/2016 21:55:32 30 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA A partir da fundação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em 1968, e do campus da Universidade de São Paulo (USP), em 1972, a cidade consagrou-se no âmbito do ensino univer- sitário, passando a diferenciar-se por seus centros de pesquisa de ba- se tecnológica, o que trouxe impactos positivos. A cidade aos poucos foi ampliando sua vocação industrial para a área de alta tecnologia. Isso se tornou mais evidente nos anos 1980 e 1990, na medida em que aumentavam os laços entre a indústria local e o desenvolvimento de pesquisa de ponta nos laboratórios dessas instituições (Lima, 2007). O crescimento do município é atribuído a uma conjunção de fato- res, tais como a migração de empresas da capital e da área metropoli- tana para São Carlos, além do desenvolvimento de novas indústrias de alta tecnologia, beneficiadas pelos núcleos de pesquisas provenientes das universidades locais, UFSCar e USP (Ferreira, 2007). Em São Carlos, “o crescimento urbano acompanhou o cres- cimento industrial, apresentando índices de urbanização muito expressivos, como em várias outras cidades do estado” (Dozena, 2001, p.51). Além disso, o fato de ser um polo tecnológico favoreceu a atração de empresas, muitas delas transnacionais, como a Faber- -Castell, a Tecumseh e a Volkswagen, fazendo da indústria sua prin- cipal atividade econômica (ibidem). O Escritório Técnico do Plano Diretor, criado pelo Decreto n. 4013/1960, foi responsável pela elaboração do primeiro Plano Dire- tor (PD) para São Carlos e pelo aumento do controle da expansão ur- bana na cidade. Em 1968, a partir da aprovação do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI), uma série de leis de controle de uso e ocupação do solo contribuiu para a expansão concentrada na região central e rarefeita na periferia (Lima, 2007). Porém, a partir de 1972, foi aprovada uma lei federal que regulamentava a ocupação do solo rural nos municípios, atribuindo ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tal controle, que possuía uma definição de zona urbana e rural diferente daquela da lei muni- cipal de perímetro e zoneamento. As definições federais eram menos restritivas e: Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 30 14/01/2016 21:55:32 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 31 Permitia[m] o loteamento de glebas rurais, desde que a gleba estivesse dentro de um raio de até dois quilômetros da linha de perímetro urbano definida pelo município. Apesar de o direito urbanístico prever que a lei mais restritiva é soberana sobre a mais permissiva, a lei federal abriu precedência para o loteamento na zona rural. Essa possibilidade acabou incentivando a realização de um novo tipo de parcelamento da zona rural de São Carlos, a chamada “chácara de recreio”, que se multiplicou pelo município. [...] Essa possibilidade acabou enfraquecendo o controle da administração municipal pelo processo de expansão urbana. É válido lembrar que o controle do limite da área urbana era importante para o município porque as terras rurais urbanizadas dependiam da extensão das redes de infraestrutura e dos serviços públicos até seu limite, o que, dependendo da distância da gleba, poderia ser muito oneroso para o município. Por outro lado, as terras mais distantes do centro eram as mais baratas e interessantes para os loteadores, que tiraram proveito da coexistência das duas leis. (ibidem, p.168) Para a mesma autora, a partir da aprovação da Lei Municipal 7.821/77, que abriu precedência para a ampliação aleatória do perí- metro urbano, nota-se um confronto entre permissividade e controle a partir das legislações introduzidas (como a lei de zoneamento de 1971, que modificou as formas de controle da expansão urbana). Por um lado, o PDDI buscava controlar o uso e a ocupação do solo, e por outro havia a ação dos loteadores, que se valiam de brechas em tais legislações e ausência de fiscalização para lotear à margem da legis- lação urbana recém-introduzida. A Lei n. 7.821/77 desobrigava a atualização do perímetro urbano a cada três anos, facilitando a ação dos loteadores, que poderiam solicitar uma ampliação do perímetro na direção que quisessem parcelar. “Com isso, essa lei se tornou um marco no processo de expansão urbana de São Carlos, não por seu controle, mas, pelo contrário, por seu descontrole. A partir daí, o perímetro foi sucessivamente ampliado” (ibidem, p.168). Em 1978, o perímetro foi modificado pela Lei n. 7926/78; em 1979, pelas leis n. 8056/79 e 8095/79; em 1980, pelas leis n. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 31 14/01/2016 21:55:32 32 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA 8170/80, 8159/1980 e 8529/80. Uma das antecipações mais evi- dentes foi aprovada para a introdução do loteamento Cidade Aracy pela Lei n. 8170/80, na qual o perímetro foi ampliado para envolver o loteamento que seria aprovado dois anos depois desse alargamento (ibidem). Como forma de sintetizar o processo de expansão urbana da cidade, buscamos em Dal Pozzo (2011) um mapa que representa os limites da expansão urbana de São Carlos até 1929 e em quatro mo- mentos posteriores: 1954, 1980, 1996 e 2009 (Mapa 1). Destacamos a localização do bairro Cidade Aracy, que além de ser construído em descontinuidade com a malha urbana compactada, possui uma barreira física − chamada de Encosta Sul no Mapa 1 − que o separa do restante da cidade de São Carlos. A construção de moradias em áreas distantes resultou em proces- sos de especulação imobiliária, devido à criação de vazios urbanos, que intensificam os problemas urbanos locais, como exemplifica Dozena (2001, p.109): Em artigo publicado na Folha de São Paulo por Ferraz (1991), a partir de um estudo específico do caso de São Carlos, o autor chega à conclusão de que a simples reorganização da cidade em padrões de densidade mais elevados (reduzindo-se os vazios urbanos) reduziria também a quilometragem diária do sistema de transporte público de 13.500 para cerca de 4000 quilômetros. Consideramos importante salientar que a ausência de leis e de instrumentos para o controle do crescimento urbano, ao estimular o crescimento territorial do município, concentrou a população mais pobre em áreas distantes, longe de equipamentos de uso coletivo, influenciando, assim, na qualidade de vida dos seus habitantes. O Cidade Aracy, como destacaremos no subitem seguinte (Entre a irregularidade e a regularidade: Cidade Aracy, em São Carlos, e Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, em Presidente Prudente), é um caso exemplar do processo de expansão descontí- nua da cidade. Além disso, o nome e a barreira física que o divide Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 32 14/01/2016 21:55:32 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 33 reforçam a representação social de que se trata de outra cidade. Po- rém, antes, apresentamos a caracterização de Presidente Prudente. Mapa 1 – São Carlos: expansão da área urbana Fonte: Retirado e adaptado de Dal Pozzo (2011). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 33 14/01/2016 21:55:33 34 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Presidente Prudente Presidente Prudente está localizada no extremo oeste do estado de São Paulo e, de acordo com os dados do Censo do IBGE (2010), possui uma população total de 207.625 habitantes. O município foi criado por meio da Lei Estadual n. 1798/21, de 28 de novembro de 1921, e instalado definitivamente em 27 de agosto de 1923. A comarca foi criada em 8 de dezembro de 1922. O nome do município foi escolhido em função da estação ferroviária já existente que levava o nome do ex-presidente Prudente de Moraes (Abreu, 1972). Alguns aspectos foram relevantes para a direção da expansão territorial inicial da cidade, tais como o relevo, que é mais suave na porção oeste, e ainda a porta da estação da estrada de ferro, que era voltada para o mesmo sentido, ou seja, para a Vila Goulart (Sposito, 1983, p.71). Em 1954, foi inaugurada a Rodovia Raposo Tavares, a mais im- portante da região, que possui atualmente uma extensão total de 654 quilômetros e estende-se da capital do estado até o município paulis- ta de Presidente Epitácio, situado às margens do Rio Paraná, divisa com o estado de Mato Grosso do Sul (Marques, 2007). Na década de 1960, novas áreas foram incorporadas à zona ur- bana, como os loteamentos surgidos na zona leste, destinados à po- pulação de baixa renda, sendo muitos deles lotes irregulares (Silva, R. B., 2005). Em 1968, houve a elaboração do primeiro projeto ha- bitacional realizado em Presidente Prudente, por meio da Poupança Continental (com financiamento do Banco Nacional de Habitação), o Parque Continental, situado em uma porção do Jardim Bongiova- ni (Zona Sul), com 142 unidades, permanecendo por dez anos como único conjunto habitacional da cidade (ibidem). Silva (ibidem, p.38) identifica o aumento da comercialização de lotes urbanos, as mudanças na administração pública local e o surgi- mento de setores especializados na produção e venda de loteamentos como determinantes no processo de expansão territorial da cidade: Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 34 14/01/2016 21:55:33 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 35 Após 1972, continuou a expansão para leste e ao sul, rompendo a “barreira” da Rodovia Raposo Tavares (SP-270). A partir desse ano, verifica-se que vários loteamentos foram nascendo em descon- tinuidade à malha urbana, desprovidos de equipamentos e serviços urbanos. Durante a década de 1970 e início de 1980, houve uma expansão territorial descontínua, principalmente para oeste da cidade, maior do que o crescimento populacional, com a produção de imensos vazios urbanos. “[...] entre as décadas de 1970 e 1980, a população da região de Presidente Prudente cresceu apenas 1,2%, enquanto que o Estado de São Paulo apresentou um crescimento expressivo de 39,4%” (Silva, D. V., 2008, p.99). A partir de 1976, a instalação dos núcleos habitacionais da Com- panhia de Habitação Popular (Cohab), da Companhia Estadual de Casas Populares (Cecap) e do Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb) implicou em um crescimento acelerado da área mais a oeste da cidade, para além do prolongamento da Ave- nida Manoel Goulart (Sposito, 1983). Os promotores imobiliários valeram-se da introdução desses grandes conjuntos habitacionais, pois previam que essas áreas iriam valorizar-se (Silva, 2005; Silva, F. C. da, 2008). Com a construção, em 1978, do primeiro conjunto habitacional na porção oeste da cidade (Núcleo Bartolomeu Bueno de Miranda, conhecido como Cohab, com 1.017 unidades habi- tacionais e recursos federais via BNH/Cohab), em descontínuo à malha urbana compacta, ocorreu a valorização de lotes intermédios a essa área, visto que: Nas imediações do conjunto e em áreas mais periféricas, foram criados novos loteamentos e conjuntos habitacionais no decorrer das décadas de 1980 e 1990, que contaram com financiamentos dos go- vernos Federal e Estadual. Tal loteamento direcionou a locação de ou- tros loteamentos populares de iniciativa privada. (Silva, 2005, p.41-3) Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 35 14/01/2016 21:55:33 36 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Em 1980 ocorreu o mesmo processo, porém na porção norte da cidade, com a introdução dos chamados parques Alexandrina e Wa- tal Ishibashi e a construção de unidades do Programa Nosso Teto, que abriu caminho para outras iniciativas, com a “implantação do conjunto habitacional Brasil Novo nos anos 90 e ainda a construção de áreas para lotes urbanizados, como o próprio Brasil Novo, o Jar- dim Morada do Sol, Augusto de Paula e Jardim Humberto Salva- dor” (ibidem, p.44). Em 1982, com o projeto Cecap (zona oeste), foram introduzidas 776 unidades habitacionais, e em 1985, o Jardim Cambuci (zona les- te), com oitenta unidades. “[...] em 1987, 13.184 pessoas se inscreve- ram nos programas para a casa própria na cidade, mas grande parte das pessoas foi excluída por não apresentar comprovação de renda, ou por ter renda familiar baixa ou idade avançada” (ibidem, p.48). Em 1989, havia em Presidente Prudente 42 áreas com ocupações juridicamente irregulares. Tais ocupações tiveram início nos anos 1960 e deram-se, em sua maioria, próximo a áreas bem servidas de equipamentos e serviços urbanos: Zona Leste (próxima ao centro da cidade) e parte da Sudeste. Em junho do mesmo ano, por meio de um Cadastro Técnico Municipal, a prefeitura contabilizou 3 mil residências juridicamente irregulares, o que incentivou a elabora- ção de uma política habitacional específica para essa população, formulada a partir de reuniões com os moradores dessas áreas e secretarias da prefeitura1 (ibidem). Assim, em outubro de 1989, começou a ser executado o “Pro- grama de Desfavelamento”, que visava o assentamento das famílias cadastradas no levantamento socioeconômico realizado anterior- mente pela prefeitura e que tivessem construído suas respectivas 1 De acordo com Silva (2005, p.50), “no mês de março de 1989, primeiro ano da gestão de Paulo Constantino, a Secretaria Municipal da Habitação e do Fundo Municipal de Solidariedade iniciou o cadastramento das pessoas que moravam nos terrenos do patrimônio público municipal. Em agosto de 1989, antes do projeto de desfavelamento constituir-se em forma de lei, a Secretaria da Ha- bitação elaborou o “Projeto Habitacional para população residente em áreas públicas municipais”. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 36 14/01/2016 21:55:33 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 37 residências. Era realizada a venda por financiamento dos lotes com edificação ou financiamento da construção de casas embriões, regu- larizando, assim, a posse e o domínio. Simultaneamente, o programa habitacional “Loteamentos Urbanizados” tinha o propósito de atender famílias que não puderam ser beneficiadas pela introdução do Conjunto Habitacional Ana Jacinta. Os moradores das favelas foram para a porção norte da cidade, onde foram construídos os “Loteamentos Urbanizados” Jardim Morada do Sol e Brasil Novo (introduzidos além do perímetro ur- bano, regularizados posteriormente a partir do Plano Diretor, em 1996) e Parque Shiraiwa, Vila Aurélio e Jardim Paraíso, “o que mos- tra uma nítida intenção do poder público em afastar espacialmente os moradores das favelas, fator que, unido à situação econômica desses indivíduos leva a um contexto de segregação socioespacial” (ibidem, p.52). Em Presidente Prudente houve, portanto, uma expansão terri- torial sem crescimento demográfico de mesma intensidade, a qual foi posteriormente utilizada para promover a valorização de alguns espa- ços em detrimento de outros. De acordo com Melazzo (1993, p.59), se está frente a um processo de crescimento territorial onde a oferta não se constrange às flutuações da demanda exercida no mercado para a aquisição de terras para habitação. A oferta caminha à frente da demanda e o mercado fundiário negocia, a cada momento uma quantidade maior de terrenos, superior aos que serão imediatamen- te ocupados Se tais terrenos não se constituem em imóveis a serem edificados e ocupados [...], a destinação final deve, provavelmente, estar ligada à busca do imóvel como título de valor. Essa expansão descontínua, na qual os conjuntos habitacionais Jardim Humberto Salvador e Ana Jacinta foram construídos em áreas distantes, provocou a constituição de vazios urbanos, alguns loteados posteriormente com preços mais elevados, apropriando-se de investimentos públicos realizados na instalação de infraestrutu- ras e equipamentos (rede viária, esgoto, hospitais, escolas etc.), que Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 37 14/01/2016 21:55:33 38 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA podem ser observados no Mapa 2, que apresenta a expansão descon- tínua da malha urbana da cidade. Mapa 2 – Presidente Prudente: expansão da malha urbana Fonte: Retirado e adaptado de Honda (2011). Assim como em São Carlos, houve em Presidente Prudente um crescimento territorial descontínuo. A transferência de moradores de áreas de favelas para áreas distantes da malha urbana compactada, por meio de programas habitacionais municipais e entregues em condições Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 38 14/01/2016 21:55:34 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 39 precárias, ainda hoje repercute no cotidiano de seus moradores. Entre os espaços residenciais produzidos a partir desses programas, destacamos os conjuntos habitacionais Jardim Humberto Salvador, Augusto de Paula, Brasil Novo e Jardim Morada do Sol (Zona Nor- te), e ainda os Ana Jacinta e Mário Amato (Zona Sul). Sobre esse processo de periferização, Fernandes (1998, p.201) observa que: Essa nova condição de moradia não modifica muito as precárias condições da residência anterior e pode tornar ainda mais difícil a acessibilidade à cidade, por sua localização, transporte coletivo insuficiente e de pouca qualidade e ausência de meios de consumo coletivo. Seria mais adequado distribuir os lotes em áreas públicas de melhor localização e já equipadas, mas essas não seriam visíveis espacialmente. Assim, os dois espaços residenciais populares abertos escolhidos ainda caracterizam-se, principalmente, por concentrar em uma par- te da cidade verdadeiros bolsões de pobreza, sendo em Presidente Prudente o Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, na Zona Norte, e em São Carlos, o Cidade Aracy, na Zona Sul.2 Entre a irregularidade e a regularidade: Cidade Aracy, em São Carlos, e Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, em Presidente Prudente O bairro Cidade Aracy está situado aproximadamente 200 metros abaixo da bacia hidrográfica do Córrego Água Quente, que possui as terras cortadas, de um lado a outro, no sentido noroeste- -sudeste, por uma depressão geográfica bastante íngreme, que traça 2 Atualmente, há áreas ainda mais problemáticas, nas duas cidades. Assim, na escolha das áreas de pesquisa, não nos preocupamos em priorizar as áreas mais problemáticas, mas duas que fossem representativas dessas condições típicas das periferias de Presidente Prudente e São Carlos. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 39 14/01/2016 21:55:34 40 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA uma linha de separação entre suas “terras altas” e “baixas” (Feltran, 2005). Essa barreira física separa o bairro do restante da cidade, garan- tindo um isolamento, ainda que relativo (figuras 1 e 2 e Mapa 3). Figura 1 – Vista da escarpa a partir de quem está no Cidade Aracy, São Carlos Fonte: Viviane Fernanda de Oliveira. Trabalho de campo, out. 2013. Figura 2 – Vista da escarpa a partir de quem está indo para o Cidade Aracy, São Carlos Fonte: Viviane Fernanda de Oliveira. Trabalho de campo, out. 2013. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 40 14/01/2016 21:55:34 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 41 Mapa 3 – Localização do Cidade Aracy e dos condomínios horizon- tais populares fechados em São Carlos Fonte: Cemespp e GAsPERR (2014). Organização: NASCIMENTO, Agnaldo Silva; OLIVEIRA, Viviane F. de. Tanto esse quanto os outros loteamentos introduzidos no sen- tido sudoeste de São Carlos, localizados nas terras baixas da bacia, tiveram origem a partir de um único e grande projeto de ocupação, executado segundo os interesses privados de Airton Garcia, voltado Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 41 14/01/2016 21:55:35 42 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA para os segmentos de baixo a médio poder aquisitivo, ocorrendo simultaneamente a expansão da descontinuidade territorial e o aumento da carência de infraestrutura urbana (Feltran, 2005; Dal Pozzo, 2011). “De duas moradias em 1991, [o bairro] passou a 1.200 − indicando um crescimento habitacional da ordem de 600 vezes” (Dozena, 2001, p.109). O processo de ocupação do Cidade Aracy envolveu irregulari- dades ambientais, além de interesses políticos e econômicos, como caracteriza Poli (2004, p.99-100): Seu processo de implantação e de ocupação envolveu irregu- laridades, sobretudo, de caráter ambiental, bem como interesses econômicos (especulação imobiliária a partir da reserva de cerca de 50% dos lotes que seriam valorizados com a execução de obras públi- cas de infraestrutura urbana) e políticos (promessa de doação e/ou comercialização de lotes a um baixo custo enquanto ato de campa- nha eleitoral) em benefício de seu loteador, Airton Garcia Ferreira, proprietário de imobiliária e ex-vice-prefeito de São Carlos. Com o maior adensamento de sua ocupação, o Cidade Aracy passou a ser frequentemente citado nos noticiários e jornais, por conta da proje- ção ocasionada pela execução de obras de infraestrutura e implanta- ção de equipamentos urbanos de uso público. Tais terras foram compradas por Airton Garcia na virada para os anos 1980, de uma das famílias mais ricas da elite são-carlense, os Pereira Lopes, que tinham ali uma fazenda de produção pecuária. Em meados da mesma década, iniciou-se a “colonização” do lugar (Feltran, 2005). A entrevista que realizamos com Luciana, mora- dora desde o início do bairro,3 é rica em pistas sobre o processo de mudança das terras rurais para urbanas, as doações de meios lotes pelo empresário a quem comprasse outra meia parte e, ainda, a ina- dequação do solo, arenítico, para a construção de residências. 3 Luciana havia residido anteriormente na fazenda da família Pereira Lopes, junto com seus pais, que lá trabalhavam. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 42 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 43 [Onde você morava antes?] Antes eu morava na fazenda, que é o que deu origem ao bairro. [Na fazenda dos Pereira Lopes?] Isso. Antes de morar nessa casa, eu morava lá. Quando eu era bem pequenininha, eu lembro vagamente do meu pai tirando leite no mangueiro, das plantações de café, que era uma grande plantação de café. Se acabou também. Foi se acabando aos pouquinhos. Fazia tudo parte da fazenda. E aos pouquinhos foi se desfazendo [...] [Então você mora desde o início do bairro?] Foi do início do bairro, que era tudo areia. Tinha um vizinho aqui, outro lá, outro acolá, eram bem pouquinhas pessoas. [Foi assim que começaram a dividir as terras, os lotes?] Então, o Airton Garcia, na época, ele fazia assim. Porque foi ele quem loteou. Era... Normalmente ele vendia um terreno e ele dava um. Sabe, ele vendia um e dava um. Eu não sei se, qual que era a ideia dele. [...] Eu fiquei sabendo que ele dava, as pessoas compravam, da Faixa Azul [imobiliária], que era dele. E ele dava o outro. Para algumas pessoas, ele dava alguns terrenos também. Se eu não me engano meu pai ganhou um e deu pra minha tia. Minha tia acabou se desfazendo. Aí ficou só com esse daqui mesmo. [O do seu pai, ele deu também?] Não. Esse daqui eles compraram o terreno inteiro. Foi comprado e na época eles deram um pra ele. Daí ele pegou, deu pra minha tia [...] Eu lembro que era muita areia. Na verdade, isso daqui não tinha que ser loteado, era muita areia, né? Tem muitas casas com rachadura, eu acho que não devia ter loteado, mas tudo bem (risos). [E você po- deria descrever como era o bairro aqui quando mudou? Na verdade, quando você veio pra cá...] Quando eu mudei, eu me lembro que inclusive a minha casa ficou alta. Era muita areia, era tudo aqui. Eu me lembro aprendendo andar de bicicleta naquele monte de areia. Era muita areia mesmo. Difícil achar um lugar onde tinha uma terra firme. [...] Eu lembro que quando eu mudei, tinha o Seu Renato aqui na frente. Dos lados não tinha ninguém. O seu Roberto também estava começando a construir. Tinham bem poucas pessoas aqui, eram bem poucas quando a gente mudou. (Luciana, 30 anos, dona de casa, Cidade Aracy, São Carlos) Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 43 14/01/2016 21:55:35 44 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Para um significativo número de moradores, Airton Garcia ficou conhecido como “pai dos pobres” ou “pai da humanidade”, pois facilitava o pagamento ou mesmo doava lotes para os que desejavam realizar o sonho da casa própria, como narra Luciano, morador há mais de 25 anos, em entrevista com Feltran (ibidem, p.9). Ele foi o pai da humanidade! Pode falá quem quisé... aonde ele pisá de pé eu piso de joelho, ele foi o pai da humanidade! Porque se eu saí daqui pra comprá um terreno lá na cidade, que eu falá assim que eu num tenho 20 cruzêro, que que o cara fala? O senhor vorta, vai trabaiá, ganha o dinhêro depois o senhor vem me procurá eu pra comprá o terreno. Ele não me conhecia, ele nem sabia quem eu era, ele falou assim: o senhor mora em São Carlos? Falei: moro. [...] Ele falou: faz quatro promissória de cinco real cada uma, cinco cruzêro, e dá pra ele aí e já manda o corretor ir mostrá o terreno. Loteando uma área arborizada, o empresário garantiu seu lucro a partir da chegada dos primeiros moradores, pois nenhum investi- mento em infraestrutura havia sido feito. Sua estratégia era simples e eficiente: o empresário vendia meio lote e concedia outra metade ao comprador, desde que este zelasse pelo terreno ao lado. Dessa forma, um lote de 250 m2, que seria vendido normalmente depois de aberto o bairro, foi dividido em dois, antes de qualquer infraes- trutura chegar. Uma família ganhava a metade dele de graça e devia instalar-se imediatamente, ainda antes do loteamento consolidar-se. Em contrapartida, essa família deveria “zelar” pela outra metade de seu terreno − por sua conta, ela deveria desmatar, destocar e manter limpo esse terreno lateral, metade do lote oficial, além de evitar a ocupação dele por outras famílias. Do ponto de vista do proprietário, o preço do lote de 125 m2 em que cada família instalou-se seria abatido dos custos de introdução e manutenção de toda a área. As máquinas abriram as ruas, e o restante ficou por conta dos moradores. Em terra doada, muitos se instalaram sem que houvesse condições mínimas de ocupação, e tra- balharam para melhorar o bairro. Iniciado o processo, ele não parou Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 44 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 45 mais. O lote de 125 m2 ao lado de uma casa já iniciada, com o bairro mais estruturado, depois foi vendido mais facilmente, e por preços melhores, recuperando-se assim o lucro do lote original (ibidem). O loteamento das terras de Airton Garcia, portanto, organizado em grande parte por sua própria imobiliária, não só valorizava imen- samente seu patrimônio, vendido em lotes pequenos, como favorecia a valorização de toda a área da antiga fazenda, que passaria a ser ur- bana, e a contar com a infraestrutura da cidade, realizada pelo poder público ao longo dos anos. Dessa forma, os custos da instalação do bairro foram socializados, porém o lucro gerado por tais terras foram privatizados, ao mesmo tempo em que a representação messiânica de Airton Garcia por parte de muitos moradores garantiu a este um eleitorado cativo fundamental à manutenção do poder econômico e político de seu grupo na cidade, hegemônico pelo menos por duas décadas em São Carlos (ibidem), ainda que reações tenham ocorrido. A criação deste bairro foi bastante complicada, com processos na justiça contra a ocupação da área, de um lado, e, de outro, com a pressão dos moradores que lá já habitavam, incentivada pelo dono do loteamento. (Laisner, 1999, p.68) Corroborando as informações e análises dos autores anterior- mente citados, os moradores que entrevistamos contaram que o pro- prietário do loteamento, Airton Garcia, vice-prefeito da cidade até o ano 2000, doou parte deste a fim de valorizar os lotes e vendê-los posteriormente. Para alguns dos entrevistados, essa doação de ter- renos é entendida como um “ato de bondade” de alguém que tinha maior poder aquisitivo e quis ajudar aos pobres, outros identificam os interesses econômicos presentes em todo esse processo, como mostram as narrativas. Vilma: Então, tem muita gente aí para quem ele doou. Doava meio, depois o outro meio vendia. Foi doado. Muita gente ele doou. [...] Ele deu esse pedaço aqui. Ele repartiu com os pobres. [...] Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 45 14/01/2016 21:55:35 46 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Haidê: E depois começaram a processar ele através dos terrenos que ele andou dando, ajudando as pessoas pobres. Vilma: Ih, isso aí já é política já... Haidê: Porque às vezes ele dava meio terreno. Era um terreno inteiro. Ele dava meio e ele vendia o outro meio. Mais na frente ele fazia a mesma coisa: dava meio e deixava mais meio aqui. Vilma: Ele estava no direito dele, se era dele, ele fazia o que queria. Haidê: É. Fazia o que queria. Só que ele tem não sei quantos processos em cima dele por causa desse negócio que ele andou doan- do muito terreno pras pessoas construir, pras pessoas pobres... A maioria comprou, mas ali no [bairro] Presidente Collor, ali pra cima, tem bastante gente que mora ali tudo com terreno que ele doou, que era gente que não tinha condições mesmo de comprar e pagar. Que nem, quando nós compramos na época, nós levamos cinco anos pra pagar. Eu nem tenho lembrança de quanto era que a gente pagava de prestação daquela vez. Sei que foram cinco anos pra nós pagar. [Pa- gando direto para o Airton Garcia?] Haidê: É. Direto na imobiliária dele que a gente pagava. Era dele a imobiliária, não era? Não sei se ainda é. Acho que é Faixa Azul. É, Faixa Azul. [Mas por que ele era processado? Eu não entendi...] Haidê: Acho que porque os políticos tinham raiva dele. Vilma: [falando baixinho] Porque a turma rouba. Ali, você vê. Era um pedacinho de terra. Era um pedacinho assim. Não tem o cemitério? Era um pedacinho assim. Agora tem duas ruas ali. É não é só lá que acontece, é tudo aqui. É um exemplo que eu estou dando. O que eles fazem? Eles vão alargando a divisa. Vão alargando. O cemitério está enorme, era um pedacinho. Estão alargando, estão tomando parte, tomando parte, porque ninguém vai lá, cortar lá e lotear, perto do cemitério. E estão lá. Então é um exemplo disso. Então começa assim, um rouba um pedacinho do outro, não sei o quê. Porque tem muita coisa clandestina aqui também. E vai assim. Até normalizar tudo isso aí. Haidê: Se for ver, tem parte aí que continua sendo dele. Porque a pessoa só tem o contrato. Tem bastante gente que tem. Eu não Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 46 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 47 fiz. [...] E eles estão em cima, que nem essa semana mesmo passou, porque tem que tirar do nome dele. Cada pessoa que comprou o seu terreno construiu a sua casa. Eu não sei também, porque eu não sei como que tira. Todo mundo vai ter que fazer isso aí. Porque senão, de uma hora pra outra ele morre, continua como se fosse dele. Essas coisas. E não fizeram essas escrituras [...] tem muita coisa que eu acho que ainda na imobiliária lá consta alguma coisa ainda, que é dele. Que fosse como dele. Então já tem gente dando em cima para as pessoas fazerem isso. Não ficar só com a escritura, porque de uma hora pra outra, se ele morrer, ele já está meio idoso também. Então vai complicar mais. (Haidê, 60 anos, dona de casa; Vilma, 58 anos, comerciante, Cidade Aracy, São Carlos) Foi o dono disso tudo aqui, começou a vender uns terrenos, dava alguns. E o pessoal mais carente vinha pra cá, principalmente quan- do ganhava terreno, já construía sua casinha e saía do aluguel. [Ele doava? Você sabe por quê?] Ah... Acho que porque ele tinha muito dinheiro. Ele tem até hoje. [E quem era?] O Airton Garcia. Ele dava um e vendia outro, dava um e vendia outro. E assim ele foi. (Luzia, 42 anos, dona de casa, Cidade Aracy, São Carlos) Então, o Airton Garcia, na época, ele fazia assim. Porque foi ele quem loteou. Normalmente ele vendia um terreno e ele dava um. Sabe? Ele vendia um e dava um. Eu não sei se... Qual que era a ideia dele. [...] Eu fiquei sabendo que ele dava, as pessoas compravam, da Faixa Azul, que era dele. E ele dava o outro. Para algumas pessoas, ele dava alguns terrenos também. [...] Então quer dizer, ele dava. Eu não sei se ele queria popularizar... Queria fazer o bairro crescer, eu não sei qual que foi a ideia dele. Mas era assim mesmo. Às vezes as pessoas compravam um terreno, tipo esse aqui inteiro, ele pegava e dava um ou dois. [Por que ele dava?] Me falaram, me deram uma ideia outro dia. Mas eu até esqueci. Eu nem lembro mais. Porque eu acho que a ideia dele era, tipo assim: quem que vai comprar um terreno onde não tem nada? Vazio, sem vizinho? É até perigoso. Eu acho que a ideia dele era vender mais. Eu dou um aqui, outro ali. As Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 47 14/01/2016 21:55:35 48 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA pessoas constroem e fica mais fácil vender. Deve ter sido isso, né? Imagino eu. [...] Ele tinha um interesse pessoal. É lógico. [...] Algum interesse pessoal ele tinha. Ele não era bonzinho. Ele não era o Papai Noel da vez. Porque esse pessoal conseguiu. Mas no interesse dele, muita gente saiu ganhando. (Luciana, 30 anos, dona de casa, Cidade Aracy, São Carlos) Inicialmente, esse espaço, embora loteado, era desprovido de infraestrutura básica, que só foi concluída anos mais tarde, com as muitas reivindicações dos moradores. Enquanto isso, os moradores tinham que improvisar para realizar suas atividades cotidianas, co- mo narra dona Augusta, moradora desde o início da ocupação. Não tinha nada. [...] O rapaz ia buscar pão pra todos nós na padaria que ficava lá em cima e trazia pra gente. Não tinha água. De vez em quando o bombeiro vinha trazer água. A gente levava as bacias com os pratos pra lavar na mina ali embaixo [...] Mudou tudo. Era só mato isso aqui. Hoje tem asfalto, tem ônibus, tem de tudo aqui. A gente ia levar as meninas na escola. Juntava eu e mais duas vizinhas, e levávamos nossas cinco crianças, por causa do povo que tentava se aproveitar delas, “fazer coisa que não deve”. (Augusta, 78 anos, aposentada, Cidade Aracy, São Carlos) Além da ausência de infraestrutura básica, como asfalto, água e luz, não havia locais para consumo, nem os demais equipamentos de uso coletivo, tais como meio de transporte, escola para os filhos dos primeiros moradores, posto de saúde e equipamentos de lazer. Considerando que há uma escarpa que separa esse espaço residen- cial do restante da cidade, os moradores tinham que atravessar essa barreira física a pé, na maioria das vezes, e improvisar para obter acesso ao ensino básico, como nos contou Luciana, que tinha aula no cemitério. Eu lembro que eu cheguei até a estudar ali naquele cemité- rio. Porque não tinha escola no bairro. Eles pegaram e fizeram o Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 48 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 49 cemitério de escola. Eu estudei a segunda, a terceira e a quarta série no cemitério. [Mas tinha sala de aula lá?] Sala de aula, onde velavam as pessoas. Só que não funcionava, o cemitério era bem parado. [...] Naquela época, tinha um túmulo aqui, outro ali. A gente jogava vôlei perto dos túmulos. Era coisa de louco. Eu estudei a segunda, a terceira e a quarta série ali. A quinta e a sexta [série] foi no Aracy Leite [Escola Estadual]. E na sétima já tinha o CAIC [Centro de Assistência Infantil Comunitária], estava pronto. Foi a primeira es- cola. A primeira escola daqui. Porque eu comecei a estudar aqui no CAIC. Sétima e oitava série. Depois disso, tem o CAIC, tem outra escola ali em cima. Tem a lotérica. Tem mais algumas no [bairro] Antenor Garcia, tem umas quatro ou cinco escolas. (Luciana, 30 anos, dona de casa, Cidade Aracy, São Carlos) Tais aspectos sociais e políticos do Cidade Aracy combinaram-se com os problemas ambientais decorrentes da ocupação da área. Cer- ca de 200 metros ao sul da cidade, dela separada por uma depressão íngreme e a ela conectada por uma única via, foram criados, além do Cidade Aracy I e II, os bairros Presidente Collor de Mello e Antenor Garcia, todos pelo já citado empresário e político Airton Garcia, segundo seus interesses. Todos eles foram introduzidos em área de- limitada pela bacia hidrográfica do Córrego Água Quente, gerando poluição das nascentes, assoreamento, crescimento da erosão nas encostas, descarga de esgoto não tratado nos cursos d’água, ausência de arborização próxima às casas e desmatamento. Mas havia diferenças entre os novos bairros. Enquanto o Cidade Aracy ocupou área de uma antiga fazenda de gado, já desmatada, os primeiros moradores do Antenor Garcia derrubaram a mata ainda preservada de uma área de cerrado (Feltran, 2005). Assim como o Cidade Aracy, o Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, em Presidente Prudente, também não contava inicialmente com infraestrutura básica (Figura 3) e se situa em uma área não contínua à malha urbana, tendo sido aprovado e entregue em 1995, com 1.688 lotes medindo 135 m2 e plantas das unidades Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 49 14/01/2016 21:55:35 50 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA habitacionais com 46,80 m².4 As inscrições para os lotes foram aber- tas a toda a população, desde que obedecidos os seguintes critérios exigidos pela Lei dos Loteamentos Urbanizados. De acordo com o contrato, as pessoas deveriam construir e ocupar o imóvel em dois anos, obedecendo ao projeto de edificação cedido pela Prefeitura Municipal ou a projeto particular e não deve- riam alienar o lote num período de 10 anos. Quando da implantação do loteamento, foram cedidos 1.688 lotes e, anos mais tarde, foram cedidos mais 29 lotes. (Jesus, 2005, p.28) [deveriam] residir no município há mais de 03 anos, não possuir imóvel urbano ou rural, ter família constituída, ser eleitor do mu- nicípio e possuir renda familiar inferior a 4 salários mínimos, que deveriam ser comprovados através de documentação legal. Dentre os inscritos, foi realizado um sorteio e as famílias beneficiadas re- ceberam autorização para lavratura de Escritura de Doação com encargos para a construção e projeto de edificação de 46,80 m². (Pedro, 2008, p.63) Alguns desses moradores eram provenientes de áreas faveli- zadas, porém próximas à área central da cidade (Zona Leste), e passaram a enfrentar dificuldades no acesso ao centro e aos demais espaços urbanos, conforme narra a entrevistada. Eu acho que ficou mais difícil, porque morando lá na Vila Iti [Zona Leste] eu tinha acesso ao calçadão, às lojas, ao médico. Ia tudo a pé. É pertinho. Aqui não, aqui você depende de ônibus. Tudo você depende de ônibus. Por exemplo: médico no HR, se você tem médi- co marcado às 6h, você tem que arrumar um táxi ou alguém pra te le- var. Porque não tem ônibus, o que sai daqui do bairro é às 6 horas, e se está marcado às 6 horas, pra você chegar? Não tem como. (Cícera, 4 Informações obtidas a partir de tabela de Silva (2005, p.56). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 50 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 51 33 anos, dona de casa, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Em função da ausência de infraestrutura, os moradores desloca- vam-se para outros bairros mais distantes em busca de serviços de saúde, como nos contou Marli. Quando eu comecei aqui não tinha, não existia, você tinha que ir ao [Jardim] Guanabara, ao [Jardim] Eldorado, ou no [bairro] CE- CAP, né? Ou no [Conjunto Habitacional] Ana Jacinta, quando os daqui não abriam. Eu saía daqui pra ir lá ao Ana Jacinta porque aqui perto não tinha. Agora não, agora aqui tem perto. (Marli, 37 anos, comerciante, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Aqui, na época, era feio, era chão, era muito barro [...] Aqui no começo só tinha asfaltado a avenida. (Roberto, 48 anos, aposentado e comerciante, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Figura 3 − Vista parcial do Conjunto Habitacional Jardim Humber- to Salvador, em Presidente Prudente, em 1998 Fonte: Jesus (2005). Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 51 14/01/2016 21:55:35 52 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Figura 4 − Vista parcial do Conjunto Habitacional Jardim Humber- to Salvador, em Presidente Prudente, em 2013 Fonte: Viviane Fernanda de Oliveira. Trabalho de campo, dez. 2013. Jesus (2005, p.21) analisou as políticas e diretrizes urbanas com base nas quais a introdução do Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador ocorreu e constatou que, inicialmente, todos os contemplados com lotes receberam a concessão de direito real de uso, uma vez que o loteamento foi introduzido em área pública municipal. Os moradores não eram proprietários do terreno, mas possuíam o direito real de uso deste. Porém, ao contrário do previsto em lei, inúmeros imóveis foram vendidos, ou alugados a terceiros, e justamente por ser proibida a venda, foram firmados “contratos de gaveta”, uma vez que os compradores não possuíam a escritura definitiva do terreno.5 A influência de um famoso político da cidade, Agripino Lima,6 é notória na produção desse espaço residencial periférico, idealizada 5 Ainda de acordo com a autora, “para regularizar esses imóveis, foram criadas duas leis municipais. A de nº 5.992 que autoriza a regularização dos contratos de gaveta e a de n.º 6.043 que reduz o prazo de inaliabilidade (período em que o terreno não pode ser vendido) de 20 para cinco anos” (JESUS, 2005). 6 Agripino Lima é político e empresário. Foi vereador na Câmara Municipal de Presidente Prudente por duas legislaturas (1972/1976 e 1977/1982). Exerceu o mandato de deputado federal de 1986 a 1990; foi deputado estadual (1998 a 2000); vice-prefeito de janeiro de 1988 a dezembro de 1992; de janeiro de 1993 a Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 52 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 53 por alguns e criticada por outros, como identificamos nas entrevistas de Lídia e Roberto. Embora saiba que o loteamento teve origem a partir de um programa habitacional, Lídia atribui a desvalorização por parte de alguns ex-moradores ao fato de ter havido doação, mas considera a doação de materiais de construção realizada por Agripi- no Lima como positiva. Segundo ela, após as denúncias de compra de voto, a população carente de recursos para a construção de suas habitações saiu prejudicada. Opinião diferente tem Roberto, que, embora tenha sido beneficiado com doações, denuncia o caráter elei- toreiro de tal ação, e vai além. Na época foi sorteio aqui, e a gente quem construía. Os terrenos foram doados na época. [Foi daquele programa Lotes Urbanizados, pelo prefeito Agripino?] Pelo Agripino. Daquele outro mandato de- le, anterior, não o segundo. Então ele doou. Inclusive para até alguns moradores, doou cesta de material de construção na época, mas daí caíram em cima e o povo se danou. Mas os que ganharam não deram valor, venderam a troco de banana, logo em seguida. A pessoa que não sabe o quanto custa, não sabe dar valor. [Na época já vinha a casa pronta ou só o terreno?] Não. Só o terreno e a planta. [O resto 1996 e de 2001 a 2007 foi prefeito municipal de Presidente Prudente. Em 2007, ainda prefeito, teve seus direitos políticos cassados por cinco anos. Em 2012 foi candidato a prefeito, porém o seu registro de candidatura foi indeferido pela Procuradoria Regional Eleitoral no Estado de São Paulo por abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social. É proprietário da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), com 14 mil alunos, e ainda de muitos imóveis na cidade de Presidente Prudente. Tem concessão de canal aberto de televisão (TV Fronteira), retransmissora da programação da Rede Globo, do jornal Oeste Notícias (fechado em 2013) e ainda da Rádio Globo de Presidente Prudente, além de ser fazendeiro, com terras no Mato Grosso, que abrigam 25 mil cabeças de gado. Fontes: . . . Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 53 14/01/2016 21:55:35 54 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA você foi construindo?] É. Aos poucos. Ele deu a planta da casa. Foi terreno e planta, doados. (Lídia, 48 anos, auxiliar de enfermagem, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Na época, foi... Quer dizer, eles usaram o nome da prefeitura, mas quem pagou foi o estado. O Agripino só usou o nome da prefei- tura, ela como responsável por doar. Então, na época que o pessoal doou esse terreno, foi usado o nome da prefeitura, foi usado política, mas na verdade, quem pagou foi o Estado. Essa área de terra, quem comprou foi o Estado. [Era um programa do Estado mesmo e a prefeitura utilizou?] É. Na época o Agripino usou o nome dele. [O Agripino é bem popular no bairro, não é?] O Agripino usou, fez campanha [...] usou o lado político, né? Ele comprava os votos. Ele dava cesta básica, o Paulo Lima [filho de Agripino Lima e ex-depu- tado estadual] tem até sacolinha ali, escrito Paulo Lima. [Aquelas de pano?] É. Aquelas de pano. Ele dava cesta básica, igual... Eu mes- mo, quando cheguei aqui, porque eu morava no [Jardim] Vale do Sol. Em um programa da Fundação Agripino Lima... Igual... minha esposa ficou grávida da minha filha caçula, ele disse que ia doar, me deram um berço que eu devia assinar na época R$180,00. Ele ia re- ceber de alguém, né? Eu tive que assinar um recibo que eu recebi no valor de R$180,00. [...] Aqueles prédios do campus II [da Unoeste], aqueles prédios ali é dele, todo mundo sabe que é dele, só que ali foi construído todinho, ali as notas iam todinhas em nome da prefeitu- ra. Ali eu posso dizer porque eu vi as notas, eu vi as notas que ele... Eu tinha gente da família que trabalhava lá na Jomane [empresa que vende areia e concreto na cidade], aí é fácil você construir em nome da prefeitura e a população pagar. (Roberto, 48 anos, aposentado e comerciante, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Dessa forma, por um lado, a remoção de famílias para os distan- tes conjuntos habitacionais, tais como Jardim Humberto Salvador, Augusto de Paula e José Rota, todos localizados nas porções norte Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 54 14/01/2016 21:55:35 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 55 e leste de Presidente Prudente, dificultou a acessibilidade de tais citadinos aos demais espaços urbanos, ao mesmo tempo em que diminuiu a visibilidade referente a esses moradores e seus problemas pelos demais citadinos. Por outro lado, favoreceu a visibilidade dessa administração municipal. Além disso, de acordo com Pedro (2008; 2011), tal ocupação não considerou a morfologia do relevo e as leis de preservação ambien- tal. A parte do fundo de vale ocupada pelo Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador recebe todo o fluxo pluvial dos topos e vertentes. A concentração de água e o aumento da velocidade do escoamento superficial acabam por resultar em processos erosivos como sulcos, ravinas e voçorocas, chegando a invadir algumas resi- dências e alagando parte dos quintais dos moradores. Atualmente, ambos os espaços residenciais populares abertos, Cidade Aracy e Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, em São Carlos e Presidente Prudente, respectivamente, possuem in- fraestrutura básica, além de posto de saúde, escolas,7 praças e linhas de transporte coletivo (figuras 5, 6, 7 e 8). O Cidade Aracy ainda conta com uma importante área de comércio, com minimercado, lojas de calçado, roupa, material escolar, farmácia etc. Em entre- 7 Há sete escolas públicas no Cidade Aracy: 1. Dario Rodrigues (atendimento especializado e pré-escola); 2. Prof. Orlando Perez (ensino fundamental e ensino médio); 3. Afonso Fiocca Vitali Emeb (atendimento especializado, ensino fundamental e educação de jovens e adultos); 4. Maria Alice Vaz de Ma- cedo − Centro Municipal de Educação Infantil (Cemei) EMEI (atendimento especializado, creche e pré-escola); 5. Prof. Marivaldo Carlos Degan (ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos); 6. Arthur Natalino Deriggi (atendimento especializado, ensino fundamental e educação de jovens e adultos), 7. Prof. Ari Pinto das Neves (Ensino fundamental). Disponível em: . Acesso em: 03 jan. 2014. No Conjunto Habitacional Humberto Salvador, há duas escolas públicas: 1. Emei Dr. Carlo Ceriani (creche e pré-escola); e 2. Emei Profª. Juraci Meneses Peralta (pré-escola e ensino fundamental);, e ainda a Escola Estadual Jardim Humberto Salvador, recém- inaugurada em 2014 (atendimento inicial de classes do 6º, 7º, 8º e 9º ano do ensino fundamental e 1º ano do ensino médio). Disponível em: ., Acesso em: 22 jan. 2014; e . Acesso em: 22 jan. 2014. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 55 14/01/2016 21:55:35 56 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA vista8 realizada com o assessor jurídico da Associação Comercial e Industrial de São Carlos (Acisc), Estevam Luiz Muskat, soubemos que houve estímulo ao comércio local. [Essas ações de marketing abarcam apenas as associações ou há campanhas voltadas para certos espaços da cidade, como o centro, por exemplo?] Não. O nosso direcionamento é para todo o comércio de São Carlos. O comércio central, que é o comércio mais forte, evidentemente, mas o comércio dos bairros também. [Promove ações específicas?] Ações específicas para os bairros também. Por exemplo, nós teremos o Dia das Crianças, e essas datas são muito importantes para o comércio porque elas alavancam o faturamento. O Dia da Criança atualmente, depois do Dia das Mães, é um “se- gundo Natal” para os comerciantes. Vocês não conhecem muito São Carlos, mas existem comércios fortes em vários bairros da cidade, e nós promovemos as campanhas. Como crianças gostam de brincar, nós locamos brinquedos em vários bairros da cidade, não só na área central, com o intuito de alavancar as vendas nesses bairros também. [Você poderia citar alguns desses bairros que possuem comércio for- te?] Seria o que nós chamamos de Grande Vila Prado, Santa Felícia, Tijuco Preto e Cidade Aracy. Basicamente seriam esses que pegam os quatro pontos cardeais da cidade. [Seriam subcentros?] Sim, exa- tamente isso. 8 Entrevista realizada por Marcos Timóteo Souza e Viviane Fernanda de Oliveira no âmbito do projeto temático: “Lógicas econômicas e práticas espaciais contem- porâneas: cidades médias e consumo” (03/10/2013), em São Carlos. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 56 14/01/2016 21:55:36 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 57 Figura 5 – Unidade Básica de Saúde no Conjunto Habitacional Jar- dim Humberto Salvador, Presidente Prudente Fonte: Viviane F. de Oliveira. Trabalho de campo, dez. 2013. Figura 6 – Praça no Conjunto Habitacional Jardim Humberto Sal- vador, Presidente Prudente Fonte: Viviane F. de Oliveira. Trabalho de campo, dez. 2013. Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 57 14/01/2016 21:55:36 58 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA Figura 7 – Subcentro no Cidade Aracy, São Carlos Fonte: Viviane F. de Oliveira. Trabalho de campo, out. 2012. Figura 8 – Campo de futebol improvisado, Cidade Aracy, São Carlos Fonte: Viviane F. de Oliveira. Trabalho de campo, out. 2012. A despeito da instalação de equipamentos básicos, há melhorias importantes a se realizar, principalmente no que tange a equipamen- tos de lazer e transporte coletivo. Nesses espaços, as praças e campos Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 58 14/01/2016 21:55:36 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 59 de futebol improvisados são os únicos equipamentos de lazer, vul- neráveis a condições climáticas e a determinados períodos do dia. O deslocamento para outros espaços urbanos torna-se oneroso e/ ou submetido ao limite de horário das linhas do transporte coletivo. Para os moradores desses locais, o deslocamento para o trabalho torna-se quase o único, o que dificulta a participação em atividades de outra natureza, não disponíveis no Jardim Humberto Salvador e no Cidade Aracy, como revelam os entrevistados. [Quais são as áreas de lazer que tem aqui no bairro?] Valéria: Só essa [praça] daqui e a que tem no [Conjunto Habitacional] Augusto de Paula, só. Cícera: Só duas. [Você acha que necessitaria ter mais?] Cícera: É. Aqui tem que ter área de lazer. Valéria: A gente tem que se divertir e ao mesmo tempo ficar doi- do todo mundo junto, porque só tem essa pracinha aqui. [É bastante usada essa pracinha?] Cícera: É. Ainda mais agora no calor. Na hora em que o sol abaixa, umas 17h30, 18horas... Valéria: Fica todo mundo ali jogando bola, até tarde. Uns fazen- do ginástica, outros fazendo caminhada... Aqui é bem movimen- tada. Já teve perigo aqui [...] [E o que vocês acham que falta aqui?] Valéria: Alguma coisa pros jovens, porque não tem nada aqui pro jovem se divertir. Quando tem, é briga. Tem a feira, porque dia de quinta à noite tem a feira, mas aí os jovens ficam lá pra cima, e quan- do pensa que não, dá tiro. Semana passada teve tiro. Roubam a feira. Então quer dizer, pro jovem, aqui não tem nada. Eles têm que sair pra outro bairro, pra show, essas coisas. Porque eles falam que aqui não tem nada. Cícera: Questão de melhoria também, a gente protesta com vereador quando vem. Só promete. Uma área assim, pra gente trabalhar, né? Eu faço tratamento em São Paulo e a gente vai lá e vê aquelas pessoas costurando, com pouquinhas coisas, as pessoas trabalham. Aqui não tem nada. Eles não fazem nada pro povo tra- balhar. Tem o projeto ali embaixo, quando você vai atrás, já não tem Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 59 14/01/2016 21:55:36 60 VIVIANE FERNANDA DE OLIVEIRA mais. Não avisa, não comunica, nem nada. Ou se tem é só pra quem recebe Bolsa Família. Quem não recebe não tem direito a fazer. Eles oferecem o curso. Se você não tem Bolsa Família, você não pode fa- zer. É complicado. Então, fazer alguma coisa assim para as pessoas idosas... Para aqueles que estão na droga, tirar dela, né? Oferece curso aqui dentro pra ele. Valéria: Aqui não tem nenhuma opção para o jovem. (Cícera, Valéria e Fátima, donas de casa, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) Solange: Aqui é difícil a gente sair, fica mais em casa. Lazer não tem. Só se subir lá para o centro. [Quando vai para o centro ou para o serviço, vai de ônibus?] Pedro: Vai de ônibus. E tem que voltar no horário em que os ônibus estão passando, até às 11h. Solange: É. Até às 11h aqui. Se você perder o ônibus que sai de lá da praça às 10h30, 10h20 lá, pronto. Você tem que vir ou a pé, ou... Pedro: Se você tiver dinheiro, você pode vir de mototáxi. Solange: Se não tiver, você vem a pé. Porque o ônibus é R$2,50 e não vai ter R$10,00, R$20,00 pra um carro vir trazer você. Sai caro. Haja dinheiro também, porque você tem que pegar ônibus aqui e você vai pra lá. Se você vai depois do almoço se diverte nada, porque você tem aquele horário pra vir embora. Passou das 22h, já era. Você vem a pé. E onde você vai tem que levar criança. Pra trazer uma criança a pé de lá do centro até aqui, quando você chega, ou você está morta ou aleijada. Então... Solange: O divertimento que tem é ir lá no Parque do Povo quando tem show, aqueles funk pra lá, quem gosta... Ana: Pra quem gosta... Quem tem criança não tem como levar num lugar desses... Solange: Sai caro. Porque, tem a exposição, se não tiver ônibus, tem que ir lá do outro lado da cidade. Tem que pegar dois ônibus pra atravessar. Ônibus apertado, lotado. Então, eu já prefiro ficar em casa. [Então, nas horas de folga, vocês ficam mais em casa?] So- lange: Fico em casa, assistindo televisão, assistindo DVD, alguma Os_sentidos_da_casa_propria__(MIOLO)__Graf_v1.indd 60 14/01/2016 21:55:36 OS SENTIDOS DA CASA PRÓPRIA 61 coisa que eles gostam. (Solange, 43 anos, dona de casa; Pedro, 43 anos, vigilante; Ana, 52 anos, dona de casa, Conjunto Habitacional Jardim Humberto Salvador, Presidente Prudente) [E tem área de lazer no bairro?] Tem pouca. Tem o centro da juventude, que era pra ser o centro da juventude para os adolescen- tes, e no fim veio a escola do Zavaglia, do Jardim Zavaglia, porque o bairro foi montado e não teve a infraestrutura, então os adolescentes perderam esse centro de referência, porque ia ter várias coisas legais para os adolescentes e a piscina, que está fechada há muito tempo. Logo quando entrou essa gestão, eles fecharam, porque tinham algumas irregularidades, mas eles também não conseguiram acer- tar. E agora tem o Proara [Projeto Aracy], que é uma entidade para esportes, que é o futebol para as crianças, mas os meus [filhos], eles não participam. Como eu te falei, os meus dois filhos trabalham e a minha filha faz alguma coisa no samba-rock, que é o Flor de Maio [Grêmio Recreativo Flor de Maio − localizado no centro da cidade]. Os outros três fazem, mas fazem aqui [Casa