UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE MEDICINA Thiago da Silva Domingos Saúde Mental na Atenção Básica: agregando aromaterapia e terapia floral à relação terapêutica Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para a obtenção do título de Doutor em Enfermagem. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eliana Mara Braga Botucatu 2019 Thiago da Silva Domingos Saúde Mental na Atenção Básica: agregando aromaterapia e terapia floral à relação terapêutica Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para a obtenção do título de Doutor em Enfermagem. Área de Concentração: Cuidado em Saúde e Gestão de Sistemas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eliana Mara Braga Botucatu 2019 FICHA CATALOGRÁFICA Thiago da Silva Domingos Saúde Mental na Atenção Básica: agregando aromaterapia e terapia floral à relação terapêutica Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para a obtenção do título de Doutor em Enfermagem. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Eliana Mara Braga (Orientadora) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carmen Maria Casquel Monti Juliani Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Correa Barbosa Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Juliana Rizzo Gnatta Universidade de São Paulo _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sílvia Franco da Rocha Tonhom Faculdade de Medicina de Marília Botucatu, 26 de fevereiro de 2019. DEDICATÓRIA Aos meus pais, Milton e Izaura, exemplos de doação incondicional e a quem atribuo a vida: a vocês, mil vezes! “Divago, quando o que quero é só dizer te amo.” (A. Prado) À Professora Eliana, que me acolheu (como mãe) e me acompanhou! Com você, eu pude aprender coerência nas relações e na vida, levo o aprendizado de ser inteiro e intencional a cada passo. A você, ofereço esse trabalho e meu eterno agradecimento! Ao Lucas, que, com o olhar generoso, desperta o meu melhor. A você, a realização desse projeto. A nós: novos sonhos! A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a mais para um mais de felicidade. André Comte-Esponville Muito eu tenho de agradecer: A Deus, por ser meu sustento em todos os momentos; Aos meus pais, Milton e Izaura, que compartilharam etapa a etapa o desenvolvimento desse estudo e dos dias em Botucatu, a quem agradeço por me aceitarem desde o dia em que nasci, formando-me com amor, respeito e dignidade; À minha sobrinha Júlia e aos meus sobrinhos Caio e Gustavo que vieram à minha vida por meio da minha irmã Daniela e seu esposo Marco Antônio; Ao Lucas Cardoso dos Santos com quem compartilho a vida em nosso cotidiano, tornando as conquistas mais alegres, os desafios mais leves e os projetos para o futuro mais reais; Aos trabalhadores e aos usuários que participaram dessa pesquisa, agradeço por terem dividido comigo a aposta dessa pesquisa, por terem confiado nos objetivos dessa pesquisa e por oportunizarem tamanho aprendizado; Às Professoras Carmem Juliani e Márcia Padovan Otani por aceitarem participar do Exame Geral de Qualificação e pelas contribuições que qualificaram os resultados e a organização desse manuscrito; Às Professoras Juliana Gnatta, Rúbia Alencar, Ruth Turrini, Silvia Bocchi, Silvia Tonhom, e ao Professor Guilherme Barbosa pela disponibilidade de estarem na Banca de Defesa; À Professora Maria Júlia Paes da Silva, uma inspiração no meu caminho; Ao corpo docente do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem que, cada qual a sua maneira, contribuiu para minha formação acadêmica e de atuação do ensino superior; Às Enfermeiras do Departamento de Enfermagem: Meire, Simone e Suzimar. A experiência de trabalhar com vocês trouxe um aprendizado para a vida, daí minha admiração. À equipe técnica do Departamento de Enfermagem: Amanda Lourenção, Angela Martini, Fernando Alcarde, Regina Sacomani e Rosane de Oliveira, agradeço pela confiança e pelo disponibilidade em ajudar; Ao Cesar Guimarães, secretário da Seção Técnica de Pós-Graduação: obrigado pela atenção, presteza e gentileza com que lida conosco; À equipe da Biblioteca da Faculdade de Medicina de Botucatu, em nome da bibliotecária Rosemary Cristina, agradeço pelo trabalho zeloso de revisão de nossas referências; À Suzimar Fusco pelo apoio durante o desenvolvimento da coleta de dados, pela doação dos frascos de floral e pela ajuda no preparo do Rescue Remedy; À Aryadne, ao Marcus, Manuela e Olívia, cujo amor não cabe mais na amizade e a quem tenho como minha família; Ao Evaldo e Gustavo por representarem a generosidade e por se fazerem e se manterem presentes, uma alegria de encontro que vigora; A Fernanda e Aluísio por me acompanharem, também, durante esse percurso com muito carinho e respeito, uma amizade da residência e da enfermaria para vida; Ao Guilherme, Tatiana e Bernardo por serem uma família em Botucatu compartilhando comigo a casa, as ideias, os ideais e as alegrias; À Karyn, Débora, Cristiane, Nadja, Camélia e Juliane que me acolheram como amigo e como enfermeiro, grupo com quem os encontros são sempre permeados de risadas e alegrias; À Fernanda, Filipi, Suelen, Iara, Ricardo, Patrícia, Rômulo, Mariana, Laiz e Marcela, presentes que Botucatu me deu e cuja amizade levarei para sempre; À Maria Paula Pozatti (in memorian) por ter me acolhido em sua casa nos primeiros dias em que estive em Botucatu; Aos estudantes do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu, com vocês aprendo cada dia mais e desfruto da alegria de testemunhar a descoberta de mundo novo; Aos residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Botucatu e do Programa de Residência Multiprofissional Integrada da Faculdade de Medicina de Marília: a esperança de formar trabalhadores para o Sistema Único de Saúde comprometidos pelo cuidado em liberdade; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e ao Programa de Pós- Graduação em Enfermagem – Mestrado Acadêmico e Doutorado: concessão da Bolsa de Doutorado – Demanda Social que possibilitou a dedicação para o desenvolvimento dessa pesquisa, pelo aprendizado construído junto ao Conselho de Pós Graduação na representação discente e pela confiança junto à Comissão de Bolsas; Secretaria Municipal de Saúde – Botucatu pela confiança no desenvolvimento dessa pesquisa e pela ajuda no início da coleta de dados; Faculdade de Medicina de Marília, que sempre será uma morada, agradeço a oportunidade de poder trabalhar junto ao ensino e à assistência; nesse anos pude aprender sobre a potência de saber questionar; Grupo de Estudos em Práticas Alternativas e Complementares da Universidade de São Paulo onde tive contato com pioneiras e referências da pesquisa em Enfermagem nas Práticas Integrativas e Complementares. “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” [...] “Diz-que-direi ao senhor que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.” [...] “Coração cresce de todo o lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe”. João Guimarães Rosa DOMINGOS, T.S. Saúde Mental na Atenção Básica: agregando aromaterapia e terapia floral à relação terapêutica. 2019. 210p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Botucatu, 2019. RESUMO Introdução: O cuidado em saúde mental na Atenção Básica representa um desafio para o sistema de saúde em suas dimensões políticas, organizacionais e técnico-assistenciais. A transposição do modelo biomédico e da fragmentação do cuidado são condições fundamentais para reverter a lógica de atenção à saúde e compor novos arranjos de cuidado. Essa pesquisa procurou agregar dois recursos terapêuticos, Aromaterapia e Terapia Floral, ao Relacionamento Terapêutico para pluralizar o cuidado aos usuários em sofrimento psíquico no contexto da Estratégia Saúde da Família. Objetivos: Compreender a dinâmica do cuidado formal e informal oferecido aos usuários em uso crônico de psicofármacos no contexto do processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família e proporcionar o cuidado em saúde mental por meio da oferta de Aromaterapia e Terapia Floral associadas ao Relacionamento Terapêutico para usuários em uso crônico de psicofármacos. Método: Pesquisa qualitativa realizada em uma Unidade de Saúde da Família de uma município do interior do estado de São Paulo. Ocorreu em duas etapas inter-relacionadas, iniciando pelo referencial microssociológico que incorporou na coleta de dados a observação participante, o diário de campo, as conversas ocasionais, a entrevista etnográfica e a análise documental; foram participantes os trabalhadores de saúde da referida unidade. Na segunda etapa, guiada pelo referencial da pesquisa clínico-qualitativa, participaram usuários da unidade de saúde que faziam uso crônico de psicofármacos devido ao sofrimento psíquico, e consistiu da oferta de Terapia Floral (Rescue Remedy) e Aromaterapia (Lavandula angustifolia e Pelargonium graveolens), ambas associadas ao Relacionamento Terapêutico, desenvolvida por oito semanas. Os dados qualitativos foram tratados segundo a Análise de Conteúdo. Resultados: A fase exploratória desvelou o modelo biomédico operando sobre o processo de trabalho da Unidade Saúde da Família em suas dimensões organizativa e assistencial. Na primeira, a burocratização, a fragmentação, o cuidado individual indiferenciado e centralizado em ações programáticas foram elementos-chave que interferiram no acesso aos serviços que, por sua vez, subordinou-se a um complexo sistema de regulação. As repercussões assistenciais foram observadas na restrição do cardápio de ofertas, guiado pela clínica biomédica, medicalização e medicamentalização, características atribuídas ao cuidado para o usuário em sofrimento psíquico. Nesse contexto, Aromaterapia e Terapia Floral, associadas ao Relacionamento Terapêutico, foram ofertadas e possibilitaram um processo ampliado de autopercepção e autoconhecimento, favorecendo o reconhecimento da consciência corporal e dos padrões emocionais sobre as relações interpessoais dos participantes. Os benefícios comuns às duas modalidades foram resgatar a importância da relação interpessoal para o autodesenvolvimento, acessar um espaço de escuta e reduzir ou interromper o uso de psicofármacos. Considerações Finais: No processo de trabalho da saúde família há um predomínio do modelo biomédico repercutindo sobre as dimensões organizativas e assistenciais. Sob esse modelo, o cuidado em saúde mental para o usuário em sofrimento psíquico é influenciado de modo substancial pela medicalização e prescrição de psicofármacos. As terapia com aromas e florais oferecidas na relação interpessoal constituíram-se em recursos terapêuticos que contribuíram para a efetivação do cuidado em saúde mental baseado na autonomia, corresponsabilidade e vínculo. Descritores: Saúde Mental. Atenção Básica. Práticas Integrativas e Complementares. Relações Interpessoais. Aromaterapia. Terapia Floral. Enfermagem. DOMINGOS, T.S. Mental Health in Primary Health Care: adding aromatherapy and Bach Flowers remedies to the therapeutic relationship. 2019. 210p. Thesis (Doctorate) – School of Medicine, Botucatu, São Paulo State University (Unesp) “Júlio de Mesquita Filho”, Botucatu, 2019. ABSTRACT Introduction: The care in mental health in Primary Health care represents a challenge to the health system in its political, organizational and technical-supportive dimensions. The transposition of both the biomedical model and the care fragmentation is a fundamental condition to reverse the actual approach of health attention and set new arrangements for the service. This research aimed to aggregate two therapeutic resources, Aromatherapy and Bach Flowers remedies, to the Therapeutic Relationship in order to amplify the care offered to the users under psychological distress in the context of the Family Health Strategy. Objective: To understand the dynamics of formal and informal care provided to the users under chronic use of psychotropic drugs in the context of the working process of the Family Health Strategy and provide mental health care through Aromatherapy and Bach Flowers associated with the Therapeutic Relationship to users under chronic use of psychotropic drugs. Method: Qualitative Research carried out in a Family Health Unit in the countryside of São Paulo State. It was performed in two interrelated phases, beginning with the microsociological model which incorporated the participative observation, the health diary, the occasional talks, the ethnographic interview and the documental analysis in its data collecting; the health care workers of the referred unit took part in this phase. In the second moment, guided by the clinical qualitative research model, the patients of this unit who made chronic use of psychotropic drugs due to their psychological distress participated, and it consisted in the offering of Bach Flowers Therapy (Rescue Remedy) and Aromatherapy (Lavandula angustifolia and Pelargonium graveolens), both associated with the Therapeutic Relationship, developed during eight weeks. The qualitative data were treated under the Content Analysis. Results: The exploratory phase unveiled the biomedical model operating the working process of the Family Health Unit and its organization and assistance dimensions. In the first phase, the bureaucratization, the fragmentation, the non differential individual attention, also centered in programmatic actions were key elements interfering in the access to the service which, therefore, was subordinated to a complex system of regulations. The assistance repercussions were observed in the restriction of the offering possibilities, guided by the biomedical practice, medicalization, characteristics of the attention granted to the patient under psychological distress. In this context, Aromatherapy and Bach Flowers Therapy, associated with the Therapeutic Relationship were offered and made it possible an expanded process of self-perception and self-knowledge, favoring the acknowledgment of their body awareness and the emotional standards under the interpersonal relationships of the participants. The benefits which were common to both modalities were the rescue of the importance of interpersonal relationship for self-development, the access to a space for listening as well as the decrease or interruption of psychotropic drugs use. Final considerations: In the working process of Family Health there is a predominance of the biomedical model affecting the operational and assistance dimensions. Under this model, the mental health care offered to the user under psychological distress is substantially influenced by the medicalization and prescription of psychotropic drugs. The therapy with aromas and flowers offered in the interpersonal relationship constituted therapeutic resources which contributed to an effective care in mental health based on the autonomy, co-responsibility and attachment. Descriptors: Mental Health. Primary Health Care. Complementary Therapies. Interpersonal Relations. Aromatherapy. Bach Flowers Therapy. Nursing. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Componentes da Rede de Atenção Psicossocial. Botucatu/SP. 2019 .............. 36 Figura 2. Dos meios de administração à excreção dos óleos essenciais. Botucatu/SP. 2019. ............................................................................................................................ 50 Figura 3. Fluxograma metodológico. Botucatu/SP. 2019. ............................................. 72 Figura 4. Planta do município de Botucatu. Botucatu/SP, 2019. ................................... 73 Figura 5. Área de adscrição e localização geográfica da USF Jardim Aeroporto. Botucatu/SP. 2019. ............................................................................................... 74 Figura 6. Representação esquemática das ferramentas metodológicas aplicadas na produção de dados da fase exploratória. Botucatu/SP. 2019.................................. 84 Figura 7. Cartão postal Cherry Plum (Prunus cerasifera). Botucatu/SP. 2019............... 90 Figura 8. Cartão postal Clematis (Clematis vitalba). Botucatu/SP. 2019. ...................... 90 Figura 9. Cartão postal Impatiens (Impatiens glandulifera). Botucatu/SP. 2019. ........... 91 Figura 10. Cartão postal Rock Rose (Helianthemum nummularium). Botucatu/SP. 2019 .................................................................................................................... 91 Figura 11. Cartão postal Star of Bethlehem (Ornithogalum umbellatum). Botucatu/SP. 2019 ..................................................................................................................... 91 Figura 12. Fluxograma analisador: entradas, processos e saídas do usuário na unidade de saúde. Botucatu/SP. 2019. .................................................................................... 99 Figura 13. Quadro teórico descritivo das categorias e subcategorias. Botucatu/SP. 2019. ............................................................................................................... 119 LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 1. Redes Temáticas de Atenção à Saúde seus objetivos e equipamentos. Botucatu//SP. 2019 ....................................................................................... 29-30 Quadro 2. Principais características do modelo manicomial versus modo psicossocial. Botucatu/SP. 2019 ........................................................................................ 34 Quadro 3. Descrição botânica e terapêutica das cinco flores do Rescue Remedy. Botucatu/SP. 2019 ............................................................................................................. 60-63 Quadro 4. Descrição dos trabalhadores da saúde participantes da pesquisa. Botucatu/SP. 2019 ..................................................................................................................... 76 Quadro 5. Características sociodemográficas dos participantes da intervenção com Aromaterapia (AT). Botucatu/SP. 2019. ........................................................ 78 Quadro 6. Características sociodemográficas dos participantes da intervenção com Terapia Floral (TF). Botucatu/SP. 2019. .................................................................... 79-80 Quadro 7. O uso da Comunicação Terapêutica como técnica de produção de dados na fase clínico-qualitativa da investigação. Botucatu/SP. 2019. ................................. 87 Quadro 8. Ilustração da agenda programática semanal de atendimentos. Botucatu/SP. 2019. ..................................................................................................................... 102 Quadro 9. Ilustração da agenda programática semanal de atendimentos. Botucatu/SP. 2019. ..................................................................................................................... 102 Tabela 1. Características sociodemográficas e perfil farmacoterapêutico dos usuários em uso de psicofármacos (n=337). Botucatu/SP. 2019. .........................................114-115 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABS – Atenção Básica à Saúde ACS – Agentes Comunitários de Saúde AP – Atenção Psicossocial CAIS – Centro de Atenção Integral à Saúde CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CGD – Carga Global de Doenças CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde COFEN – Conselho Federal de Enfermagem DRS – Departamento Regional de Saúde ESF – Estratégia Saúde da Família FAMEMA – Faculdade de Medicina de Marília FMB – Faculdade de Medicina de Botucatu IDATE – Inventário da Ansiedade Traço-Estado MAC – Medicina Alternativa e Complementar MS – Ministério da Saúde MT – Medicina Tradicional MTSM - Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família NCCAM – National Center for Complementary and Alternative Medicine OMS – Organização Mundial da Saúde OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde PACS – Práticas Alternativas e Complementares em Saúde PICS – Práticas Integrativas e Complementares em Saúde PNPIC – Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde PSF – Programa Saúde da Família RAS – Rede de Atenção à Saúde RAPS – Rede de Atenção Psicossocial SAS – Sistemas de Atenção à Saúde SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SES – Secretaria do Estado da Saúde SIA – Sistema de Informação Ambulatorial SUS – Sistema Único de Saúde TALE – Termo de Assentimento Livre e Esclarecido TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UBS – Unidade Básica de Saúde USF – Unidade Saúde da Família WHO – World Health Organization SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 15 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 18 Do Objeto de Estudo à Pergunta de Pesquisa.......................................................... 19 Relevância do Tema e Justificativa do Estudo ........................................................ 20 REFERENCIAIS TEÓRICOS ..................................................................................... 24 Atenção Básica à Saúde na estruturação do Sistema Único de Saúde ...................... 25 A interface Saúde Mental na Atenção Básica à Saúde ............................................ 31 Práticas Integrativas e Complementares em Saúde ................................................. 40 Aromaterapia como recurso terapêutico para o cuidado em saúde mental ............... 46 Terapia Floral como recurso terapêutico para o cuidado em saúde mental .............. 54 OBJETIVOS ................................................................................................................. 67 MÉTODO ...................................................................................................................... 69 Referencial metodológico ...................................................................................... 70 Local da pesquisa: o espaço geográfico .................................................................. 72 Procedimentos éticos ............................................................................................. 75 Participantes .......................................................................................................... 75 Fase Exploratória: Inserção no Cenário e Procedimentos para Produção de Dados . 81 Fase clínico-qualitativa: oferta de Aromaterapia e Terapia Floral ........................... 84 Análise de dados .................................................................................................... 92 RESULTADOS ............................................................................................................. 94 Estratégia Saúde da Família: a análise do Processo de Trabalho e a Produção de Cuidado para o usuário em sofrimento psíquico .................................................... 95 Categoria 1 – O Processo de Trabalho na Estratégia Saúde da Família sob análise: reconhecendo os processos microrregulatórios e a burocratização .... 95 Categoria 2 – Produção de Cuidado em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família ....................................................................................................... 108 Aromaterapia e Terapia Floral: Recursos Terapêuticos para a Produção de Cuidado ao usuário em sofrimento psíquico na Estratégia Saúde da Família ..................... 118 Categoria 1 – O sofrimento psíquico medicalizado: dos motivos para o consumo de psicofármacos às reflexões acerca de sua função .................................... 119 Categoria 2 – Aromaterapia e Relacionamento Interpessoal Terapêutico: da consciência corporal às relações interpessoais ............................................. 123 Categoria 3 – Terapia Floral e Relacionamento Interpessoal Terapêutico: da relação intrapessoal à disponibilidade para o outro ...................................... 126 Categoria 4 – Aromaterapia e Terapia Floral: dimensões comuns como recursos terapêuticos associados ao relacionamento interpessoal............................... 130 DISCUSSÃO ............................................................................................................... 135 O Processo de Trabalho na Estratégia Saúde da Família: as implicações do modelo biomédico na atenção à saúde .............................................................................. 136 Uso de psicofármacos na Estratégia Saúde da Família: medicalização e medicamentalização ............................................................................................ 144 As contribuições das Práticas Integrativas e Complementares para as dimensões organizativas e assistenciais ................................................................................. 146 Aromaterapia associada à massagem para o alívio do sofrimento psíquico ........... 151 Terapia Floral para o alívio do sofrimento psíquico .............................................. 154 Contribuições para Saúde e Enfermagem: assistência, ensino e pesquisa .............. 157 Limitação do estudo ............................................................................................. 158 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 160 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 165 ANEXOS e APÊNDICES ........................................................................................... 195 Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa ................................... 196 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Trabalhador ................................ 201 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Usuário ....................................... 202 Termo de Assentimento Livre e Esclarecido ........................................................ 203 Questionário Sociodemográfico – Trabalhador ..................................................... 204 Modelo de Convite para Oferta de Terapia Floral e Aromaterapia ........................ 206 Questionário Sociodemográfico – Usuário ........................................................... 207 APRESENTAÇÃO 16 | Apresentação “O que vale são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem se misturam. Contar seguindo, alinhavado, só mesmo com as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir.” João Guimarães Rosa A motivação para os estudos sempre esteve em mim. A inquietação para o aprendizado em profundidade sempre me colocou na busca de possibilidades para aprimorar minhas ações. Isso não foi diferente quando me inseri na graduação em Enfermagem, entre os anos de 2005 e 2008, na Universidade de Marília. Concomitante à formação profissional, atuei como escriturário do Laboratório Morfofuncional da Faculdade de Marília (FAMEMA) e a oportunidade de trabalhar nesse setor durante minha graduação foi decisiva para o rumo e para o aprofundamento nas questões da atenção e do ensino em saúde. Dois anos após concluir a graduação (2010), o cuidado em saúde mental chegou à minha carreira profissional por meio da experiência como enfermeiro da Unidade de Internação Psiquiátrica no Hospital das Clínicas da FAMEMA. Por intermédio de um processo seletivo, de escriturário tornei-me enfermeiro na mesma instituição que me empregara durante a graduação. Nessa ocasião, uma terceira unidade estava sendo incorporada ao referido Complexo Assistencial – (HC3 - São Francisco). Nessa implementação, projeto institucional, a intenção e as pessoas com quem me coloquei em contato foram constitutivas: clínica ampliada e compartilhada, integralidade, equipe de referência e apoio matricial, cogestão e humanização foram assuntos estudados, debatidos, discutidos e praticados. Inquieto pelo papel do enfermeiro na assistência em saúde mental ao usuário em quadro agudo procurei referências teóricas que pudessem transformar a prática subordinada ao modelo biomédico objetivando autonomia e cuidado por meio da ação da equipe de Enfermagem. O relacionamento terapêutico se inseri nessa ocasião, foi na experiência de relações genuínas com o usuário em quadros agudos de sofrimento psíquico que pude vivenciar a potencialidade da comunicação terapêutica e da escuta. Por meio da atuação da Internação Psiquiátrica que fui convidado a compor o quadro de preceptor de núcleo (Enfermagem) junto ao Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde Mental (FAMEMA). Com essa oportunidade, pude me inserir do circuito da formação em saúde, o que me instigou a observar a satisfação em trabalhar 17 | Apresentação nesse campo. Como consequência pude participar da especialização lato sensu “Educação em Saúde para Preceptores do SUS”, uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Sírio Libanês. A experiência com a graduação em Medicina e Enfermagem da FAMEMA veio mais tarde, no ano de 2015, por meio da participação na Unidade de Prática Profissional. O desejo de continuar a formação acadêmica levou-me, entre os anos de 2012 e 2014, ao Mestrado Profissional em Enfermagem na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB). Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) e os saberes que decorreram desse campo em minha formação acadêmica e profissional devo ao encontro com a Prof.ª Dr.ª Eliana Mara Braga que, pela via da disponibilidade, acolheu-me como orientado. As oportunidades que vieram dessa relação, como a participação no Grupo de Pesquisas em Práticas Alternativas e Complementares na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, acarretaram em mais aprendizado sobre o desenvolvimento de pesquisas com PICS. Com a dissertação de mestrado, encontramos resultados positivos no alívio da ansiedade em um contexto de Internação Psiquiátrica em Hospital Geral com o uso de Aromaterapia (Domingos, 2014), por meio de óleos essenciais de lavanda e gerânio. Incitados pela arguição realizada pelas Prof.ª Dr.ª Maria Júlia Paes da Silva e Prof.ª Dr.ª Maria Alice Ornellas Pereira naquela ocasião e animados pelos resultados obtidos, iniciamos a reflexão e o desejo de ampliar o acesso desses recursos terapêuticos para espaços de cuidado no território. O ingresso no doutorado ocorreu em 2015, fruto da parceria com a Prof.ª Eliana com o projeto de utilizar as PICS para o cuidado do usuário em sofrimento psíquico na Atenção Básica à Saúde (ABS). No ano de 2016, por concessão da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, tornei-me bolsista e pude desfrutar da dedicação exclusiva para a efetivação desse projeto. Nesses últimos anos, o Programa de Pós-Graduação em Enfermagem tem oportunizado extenso aprendizado por meio da Representação Discente no Conselho do Programa e na Comissão de Bolsas. Finalizo a apresentação do percurso profissional e acadêmico utilizando-me da Postura do Não Saber: “receber com reverência (e gratidão todas as oportunidades que me foram dadas), oferecer com generosidade (os resultados da pesquisa desenvolvida durante o doutorado)”. INTRODUÇÃO 19 | Introdução Do Objeto de Estudo à Pergunta de Pesquisa “Todo ponto de vista é a vista de um ponto.” Leonardo Boff. Essa pesquisa se concretiza na intersecção de três fenômenos sociais e institucionais complexos do campo da saúde - ABS, Atenção Psicossocial (AP) e PICS, cujas discussões e operacionalização vêm ganhando espaço na academia e no cotidiano do trabalho em saúde. Contudo, concordamos com um ensaio reflexivo ao defender a incipiente relevância social, cultural, tecnológica e institucional da referida tríade para a construção de rede sócio-técnicas e práticas partilhadas (Tesser; Sousa, 2012). Em uma análise de suas características sinérgicas, a ABS, a AP e as PICS possuem diversas intersecções que sustentam a aposta desse estudo. Nesse sentido, reservam em comum: críticas ao modelo de cuidado baseado na clínica anátomo-patológica, caráter contra- hegemônico e desmedicalizante, o objeto de trabalho centrado na pessoa inserida no território, os meios do trabalho marcados pela heterogeneidade e pela multiplicidade de ações e estratégias, os objetivos com enfoque no cuidado com vistas à autonomia e emancipação, o relacionamento guiado pela horizontalidade, corresponsabilidade e vínculo (Tesser; Sousa, 2012). Sob essa perspectiva, a potencialidade para o cuidado em saúde de um objeto de estudo com essa composição é inquestionável. O contorno que se observa na prática dos serviços, todavia, é outro: relações entre trabalhadores e usuários verticalizadas e atravessada pela incorporação da tecnologia material, longas filas de espera para atendimento seja nos serviços da ABS ou na atenção hospitalar, a efetividade das ações não corresponde à satisfação do usuário, trabalhadores com altas taxas de adoecimento devido causas ocupacionais, entre outros inúmeros fatores negativos que fazem parte da realidade do cuidado oferecido aos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS). Buscar uma causa que justifique tantas fragilidades seria assumir um equívoco de simplificação e diante do pensamento complexo seria imaturo errar por metonímia. Para o escopo desse estudo, enfoca-se uma perspectiva mais pragmática: o modelo de atenção à saúde. Diversos modelos coexistem para organizar a atenção à saúde, contudo, a predominância do modelo biomédico é consenso e tem sustentado uma crise no setor saúde. A referida tríade se propõe ir de encontro ao modelo biomédico hegemônico para avançar na implementação de modos e arranjos de organizar a assistência que retome como finalidade a produção de saúde e sujeitos, co-construtores do cuidado. 20 | Introdução Nesse horizonte normativo, a ABS é o alicerce, propondo um modelo contra- hegemônico, guiado pela vigilância à saúde dos usuários, garantindo o cuidado capilarizado, ordenado e coordenado; guiado pela humanização, integralidade e longitudinalidade. Em consonância, a AP propõe a seu modo descontruir o saber e o cuidado psiquiátrico-manicomial, devolvendo o usuário que recebeu diagnóstico psiquiátrico (aqui colocado sob questionamento) ao território e que, em última instância, será cuidado na ABS de maneira compartilha, não necessariamente, com serviços especializados de base territorial e comunitários. Na desconstrução de modelos, as PICS inseridas sobretudo na ABS representam modalidades terapêuticas que fogem à ordem da ciência positivista e cartesiana, propondo autonomia, horizontalidade e múltiplos saberes ao cuidado (Starfield, 2004; Tesser; Sousa, 2012). Esse estudo tem a proposição de desenvolver uma proposta de cuidado sob o arranjo da AP operacionalizando recursos das PICS no território da ABS para responder às necessidades de saúde do usuário em sofrimento psíquico. A esse crescente fenômeno, tomamos por definição a proposta do Caderno da Atenção Básica – Saúde Mental: trata-se de uma vivência de ameaça ou de ruptura da identidade/unidade da pessoa, compreendida em um sistema aberto de dimensões interdependentes relativamente estáveis, mas dinâmicas em busca de transformações (Brasil, 2013). Assim, configuramos uma intersecção entre três campos convergentes de atuação do SUS que representa nosso ponto de vista, desse lugar, questionamos: “De que modo a oferta de Terapia Floral e Aromaterapia, associadas ao Relacionamento Terapêutico, pode subsidiar uma ampliação do cuidado ao usuário em sofrimento psíquico no contexto da ABS?” Relevância do Tema e a Justificativa do Estudo As PICS foram institucionalizadas no SUS no ano de 2006, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC), contudo desde a década de 80, há registros de experiências brasileiras na esfera pública. O aumento significativo de ações, programas e políticas a nível estadual e municipal ocorreram após a aprovação da Portaria GM/MS 971, de três de maio de 2006 (Brasil, 2018a, 2006). Uma análise entre os anos de 2008 e 2016 permitem afirmar que houve um intenso movimento de expansão das PICS dos serviços públicos. Numericamente, em dezembro de 2008 havia 1.226 serviços cadastrado distribuídos em 147 municípios, já no ano de 2016, essa 21 | Introdução cifra aumentou em 569%, atingindo 6.081 serviços em 1.057 municípios que representou um aumento percentual de 719% (Amado et al., 2017). As PICS no SUS vêm ampliando a atuação brasileira no âmbito internacional devido a implantação majoritária nos serviços da ABS de maneira complementar e integrada à medicina convencional (Amado et al, 2017). Isso representa que 78% da oferta de PICS está concentrada na Estratégia Saúde da Família (ESF) e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), 16,7% está no contexto da atenção de média complexidade e 3,4%, na atenção hospitalar e alta complexidade (Tesser; Sousa; Nascimento, 2018). Mesmo com o cenário de ampliação das PICS do SUS, o diagnóstico situacional aponta oferta insuficiente, pois, o número de serviços e o quantitativo de ações são irrisórias para a dimensão do sistema público de saúde brasileiro (Tesser; Sousa; Nascimento, 2018). Devem ser consideradas como uma forma de promover saúde e sua oferta representa uma garantia de direitos ao usuário ao ter uma escolha entre diferentes abordagens de cuidado às suas necessidades de saúde (Amado et al., 2017). Nesse sentido a Carta Atualizada de Direitos e Deveres da Pessoa Usuária do SUS dispõe “o direito à escolha de tratamento, quando houver, inclusive as práticas integrativas e complementares de saúde, e à consideração da recusa de tratamento proposto” (Brasil, 2017a). Além do desafio de ampliar o acesso, compreende-se que a concepção dos trabalhadores e dos gestores são fatores que influenciam nas ações oferecidas para o cuidado à pessoa, desse modo, a formação em PICS corresponde a um segundo desafio, determinante para a ampliação da oferta dessas modalidades no SUS, uma vez que a implantação em locais onde os gestores estão sensibilizados no tema delimita a institucionalização e torna a oferta pontual (Amado et al., 2017). No contexto do cuidado em saúde mental, a magnitude da problemática que justifica esse estudo será feita de modo quantitativo devido à ausência de estudos que observassem o impacto do sofrimento psíquico em suas diversas expressões seja sob a ótica do usuário ou do trabalhador. Assim, aspectos epidemiológicos evidenciam concretamente a gravidade dos problemas de saúde relacionada aos transtornos mentais no Brasil. No mais recente estudo investigando a Carga Global de Doenças (CGD), verificou-se que 9,5% do total da carga de doenças decorre desses transtornos, sendo os depressivos e ansiosos os maiores responsáveis por essa taxa. Além de responder por, aproximadamente, um décimo da carga de doenças, os transtornos mentais subiram da sexta para a terceira posição no ranking da CGD, sendo antecedidos por doenças cardiovasculares e oncológicas (Bonadiman et al., 2017). 22 | Introdução O cenário, no entanto, não é recente. Desde 1990, os transtornos mentais representam a principal causa de incapacidade da população brasileira. A situação que chama a atenção na pesquisa de 2015, refere-se ao aumento nos índices dos transtornos depressivos e ansiosos que contribuíram para a taxa de anos vividos com incapacidade, respectivamente, 37% e 30%, com pico nas faixas etárias dos 30 aos 34 anos, e 40 aos 44 anos (Bonadiman et al., 2017). Entre as mulheres, verificou-se que há um predomínio de depressão maior, ansiedade e as dores lombares como as principais causas de anos vividos com incapacidade. Para homens, a depressão maior ocupou o segundo lugar e a ansiedade, oitavo. Atenta-se que o abuso de substâncias (álcool e outras drogas) representou a quarta e a quinta causa de anos vividos com incapacidade. Mesmo diante de uma ampla transição demográfica no país, os transtornos mentais são problemas centrais a serem incluídos nas agendas do planejamento das políticas públicas de saúde (Marinho; Passos; França, 2016). A demanda de saúde mental na ABS foi qualificada pelos trabalhadores como grande e diversificada, sendo motivo de angústia por exigir um caráter compreensivo que escapa às condutas mecanizadas e às abordagens de tipo queixa-conduta. Outro fator que contribuiu para a complexidade desse tipo de demanda foram as características do território muitas vezes demarcado pela precariedade e vulnerabilidade social (Campos et al., 2011). Foi observado a articulação entre saúde mental e ABS, o distanciamento da corresponsabilização visto pela lógica do encaminhamento e pela escassa utilização de projetos compartilhados, são as principais características dessa situação. Em uma análise dos serviços que possuem equipes de saúde mental inseridas na ABS, foi observado um estranhamento marcado por uma dupla defesa: a equipe da ABS procura delegar os casos de sofrimento psíquico para a equipe especializada; em contrapartida, a equipe especializada pressionando a ABS para se responsabilizar pelos casos de sofrimento psíquico. Na periferia dessa fragilidade, encontra-se o usuário sem saber a quem ou a qual equipamento recorrer para o atendimento de suas necessidades de saúde (Campos et al., 2011). Na angústia de responder aos problemas de sofrimento psíquico e às necessidades do usuário, os trabalhadores da ABS, com baixas taxas de qualificação, recorrem à prescrição de psicofármacos. As altas taxas de entrega dessa classe de fármacos, o longo período de utilização, a ausência de acompanhamento e carências de outras alternativas terapêuticas são motivos que configuram a prescrição indiscriminada de psicofármacos na ABS (Campos et al., 2011; Rocha et al, 2018). 23 | Introdução Pelo prisma do usuário, o uso de psicofármacos é permeado por um conhecimento leigo que ganha controle à medida que alteram a dose prescrita de acordo com seu nível de bem estar. Desconhecimento acerca do motivo do tratamento e sua duração estão estritamente atrelado à dificuldade de comunicação estabelecida com o trabalhador da saúde cuja habilidade de traduzir o conhecimento especializado ao nível de compreensão do usuário que possui distintos níveis socioeconômicos e culturais (Campos et al., 2011). Desde o início da trajetória dessa pesquisa, vivenciamos diversas modificações nas políticas públicas de saúde. No campo das PICS, observamos uma ampliação nos últimos dois anos. Contudo, o acontecimento mais evidente para essa investigação ocorreu em março de 2018, momento em que o Ministério da Saúde (MS), com mais uma ampliação no conjunto dos recursos terapêuticos, incluiu explicitamente as duas práticas complementares que selecionamos para esse estudo: Aromaterapia e Terapia Floral. Dessa forma, compreendemos que, explicitamente instituídas nas PICS, seja o momento oportuno de sistematizar e discutir experiências de aplicação efetiva no cuidado (Brasil, 2017b, 2018b). REFERENCIAIS TEÓRICOS 25 | Referenciais Teóricos Atenção Básica à Saúde na estruturação do Sistema Único de Saúde Com fundamentação em diretrizes internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a ABS tem sido o espaço protagonista nos processos de reestruturação, fortalecimento e racionalização dos sistemas públicos de saúde e representa a aposta central para produzir a transformação e a regulação dos Sistemas de Atenção à Saúde (SAS), buscar o acesso universal e a proteção social em saúde (Almeida, 2018; Cecílio; Reis, 2018). A definição política de compor para o Brasil um sistema de saúde público remonta as décadas de 1970 e 1980, constituindo um movimento social complexo, a Reforma Sanitária. Nesse período, o país imerso em intensa movimentação social, política e cultural lutava pela redemocratização e pela reconquista de seus direitos cidadãos (Pennafort et al., 2012). A construção do SUS representou a garantia de direitos dos cidadãos brasileiros instituindo o direito à saúde como dever do Estado (Brasil, 1990). Associado a isso, os referidos órgãos internacionais promoviam encontros que discutiam o destino e as ações prioritárias para a saúde no contexto mundial. São exemplos dessas discussões, a Alma-Ata, fruto da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde no ano de 1978, e a Carta de Ottawa, no Canadá em 1986, escrita a partir da 1ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (Brasil, 2002). À primeira são atribuídos os elementos que, posteriormente, seriam incorporados na ABS: “a educação em saúde; o saneamento básico; o programa materno-infantil, incluindo imunização e planejamento familiar; a prevenção de endemias; o tratamento apropriado das doenças e danos mais comuns; a provisão de medicamentos essenciais; a promoção de alimentação saudável e de micronutrientes; e a valorização das práticas complementares.” (Mendes, 2015. p. 30. Grifo do autor). Antes disso, no ano de 1920, o Relatório Dawnson elaborado pelo governo inglês com o intuito de contrapor o modelo americano flexneriano, constitui-se o primeiro documento que sinaliza a regionalização no âmbito da saúde comunitária, distinguindo-se três níveis de atenção à saúde: Centro de Saúde Primário, Centro de Saúde Secundário e Hospitais-Escolas. Ainda na Inglaterra, no ano de 1948, como repercussão desse documento houve a criação do National Health Service garantindo acesso universal, gratuito e integral aos serviços (Ministry of Health, 1920; Conill, 2008). 26 | Referenciais Teóricos Sete ciclos históricos podem ser identificados no movimento brasileiro de implantação de serviços caracterizados como ABS estando sob grande influência das recomendações internacionais. O primeiro ciclo correspondeu à implantação dos Centros de Saúde criados pela Universidade de São Paulo na lógica do modelo dawnsoniano quando da década de 1920. A implantação do Serviço Especial de Saúde Pública, na década de 1940, consolidou o segundo ciclo. As Secretarias Estaduais de Saúde (SES) organizadas no ano de 1965, marcaram o terceiro ciclo da ABS no Brasil e se caracterizaram pelos programas verticalizados voltados à saúde materno-infantil e doenças infecciosas. Em 1970, ocorreu o movimento de extensão da cobertura, por meio do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento Básico, primeiramente, concentrado na região nordeste e em seguida, no país. Crise da Previdência Social e a instituição das Ações Integradas de Saúde, na década de 80, impactaram no quinto ciclo de implantação, caracterizado pela incorporação da cultura médica nos serviços comunitários. O penúltimo ciclo ocorreu com a institucionalização do SUS e do direito à saúde. O final desse histórico se deu no ano de 1994, pelo Programa Saúde da Família (PSF), e se estende ao contexto contemporâneo (Mendes, 2015). Anterior à implantação do SUS, enquanto um sistema público e universal de saúde, o modelo de atenção aos brasileiros correspondia a um conjunto de ações programáticas indiscriminadas e universais com ênfase para a prevenção de doenças infeccionais, as campanhas vacinais e o controle de endemias são as duas ações mais características. No âmbito da recuperação da saúde, atenção hospitalar especializada privada representava o principal serviço que atendia aos beneficiários do sistema previdenciário e seus dependentes, à população sem contribuição restavam os hospitais de caráter filantrópico. Ressalta-se o caráter não universal, vinculação entre desenvolvimento econômico do Estado e disponibilidade de serviços saúde (Souza, 2002). As primeiras experiências que hoje são identificadas sob a denominação da ABS foram iniciadas por ações pontuais e isoladas dispersas em algumas regiões do Brasil. Uma delas, no ano de 1974, no Rio Grande do Sul, com o objetivo de implantar um programa de residência médica em saúde comunitária. Houve uma pequena expansão com o surgimento de dois outros programas em Recife e no Rio de Janeiro. Concomitante à Conferência de Alma- Ata, assistia-se uma expansão de ações desarticuladas pelo Brasil, sendo que muitas desertaram por escassez de recursos financeiros e dificuldades políticas - marcas da década de 1980 (Conill, 2008). 27 | Referenciais Teóricos O PSF surge como instrumento para ampliação do acesso ao SUS, e por isso, sua implantação estava atrelada a áreas de risco e vulnerabilidade social. Mesmo após um período de críticas provenientes de órgãos financiadores internacionais de vertente econômica neoliberal, o PSF se consolidou, inaugurando no país mais uma etapa do movimento de reforma sanitária (Mendes, 2011). Assim, no ano de 2010, tendo como desafio atender com maior resolubilidade os problemas mais prevalentes da população e de ampliar suas fronteiras de atuação, tornou-se o eixo estruturante para o modelo de atenção à saúde sendo denominada como ESF (Brasil, 2017c). No percurso de implantação e consolidação da ABS e da ESF, são identificadas três interpretações na prática social desses serviços. Uma delas, refere-se à atenção primária seletiva e consiste em um programa específico com uso de tecnologias simples, de baixo custo, ofertas por meio de profissionais de baixa qualificação e pouco referência com níveis de maior densidade tecnológica. O nível primário do SAS, muito comum em países desenvolvidos, corresponde a uma segunda interpretação que está vinculada à ideia de porta de entrada do sistema, respondendo com resolubilidade às principais formas de adoecimento da população. A última interpretação, relaciona-se com a atual intencionalidade política e sanitária no Brasil que é a ABS como parte e também organizadora do SAS, ou seja, um arranjo que pretende apropriar, reorganizar e recombinar todos os recursos de saúde para atender as demandas, as necessidades e as representações da população (Mendes, 2015). Sob essa égide, a razão de ser dos SAS está em dar deliberadamente respostas às necessidades de saúde dos cidadãos operando em coerência com as reais condições de saúde. Nesse sentido, uma descrição superficial da realidade brasileira evidencia uma rápida transição demográfica e uma tripla carga de doenças representada por condição agudas e infecciosas não superada, uma parcela importante de condições atreladas à causas externas e uma presença maciça de condições crônicas. Com isso, a realidade brasileira indicou a necessidade de superar a fragmentação representada pela organização hierárquica piramidal que modelava o SUS, abrindo a discussão em torno das modelagens poliárquicas que caracterizam as Redes de Atenção à Saúde (RAS) (Mendes, 2011). Esse modo de organizar o SUS, foi estabelecido institucionalmente por meio da Portaria 4.279, de 30 de dezembro de 2010, que dispõe as diretrizes de composição das RAS e as define como: “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”. Com isso, a ABS passa a ser considerada 28 | Referenciais Teóricos coordenadora e ordenadora do cuidado aos usuários em uma organização horizontal, centrada nas necessidades de saúde ofertando atenção integral e longitudinal, para isso, interligando os diversos serviços e as ações em saúde (Brasil, 2010a). Nesse cenário, são mapeados os sete atributos e as três funções da ABS na operacionalização de sua função junto à RAS. Entre os atributos, quatro são considerados essenciais: (1) constituir-se como primeiro contato: discute-se acesso e uso dos serviços para cada novo problema ou novo episódio para os quais se procura atenção à saúde; (2) longitudinalidade, corresponde ao aporte regular de cuidado e uso consistente durante o tempo, marcado por um relacionamento de confiança mútua e humanização entre equipe e usuários; (3) integralidade tem três sentidos, atender às necessidades da população no que se refere à promoção, prevenção, reabilitação, cura, cuidado e paliação; ser capaz de ofertar serviços em outros pontos de atenção à saúde, em geral, entre aqueles com maior densidade tecnológica; e reconhecer o adoecimento como um processo multidimensional; e (4) coordenação, enquanto capacidade de garantir continuidade da atenção identificando problemas que requerem acompanhamento e exercer o papel de centro de comunicação da RAS (Starfield, 2004; Mendes, 2011, 2015). Entre os atributos derivados, relaciona-se o foco na família que deve ser considerada como unidade social pela equipe de saúde para que suas intervenções ocorram de forma singular conhecendo seus problemas de maneira integral. O segundo atributo derivado discute sobre a orientação comunitária da ABS, reconhecendo as necessidades da família inseridas em um contexto físico, econômico e social, para isso, a equipe de saúde utiliza a análise situacional das necessidades da população adscrita propondo ações na perspectiva populacional integradas às ações intersetoriais. Por fim, a competência cultural como atributo que respeita as singularidades culturais da população exercitando em uma relação horizontal (Starfield, 2004; Mendes, 2011, 2015). Resolubilidade é a primeira das três funções da ABS na RAS, define-se como a capacidade de atender a 90% das necessidades da população adscrita de forma resolutiva e capacitada, aspecto subsidiado pela capacidade cognitiva e tecnológica das equipes de saúde. Uma segunda função é constituir-se o centro de comunicação da RAS operando na ordenação de fluxos e contra-fluxos de pessoas, produtos e informações entre os diferentes equipamentos da RAS. A responsabilização, terceira função, corresponde ao conhecimento e relacionamento íntimo com a população adscrita que ocorre por meio da territorialização e gestão de base populacional (Starfield, 2004; Mendes, 2011, 2015). 29 | Referenciais Teóricos A partir do Decreto nº 7.508, de 28 de julho de 2011, que regulamenta a Lei n.º 8.080/90, ocorreu a definição de acesso universal dos serviços dos SUS, de modo igualitário ordenando às ações e serviços de saúde consolidados em uma rede regionalizada e hierarquizada. Associado a esse arcabouço, uma análise das condições de saúde da população brasileira identificou o que se chama de tripla carga tripla de doenças, ou seja, a junção de uma agenda não concluída de problemas de desnutrição, infecções e problemas de saúde reprodutivos, ao qual se sobrepõe os desafios das doenças crônicas não transmissíveis e seus fatores de risco, e o crescimento de problemas de saúde relacionados causas externas e situações de violências. Diante disso, foram priorizadas a implementação e implantação de cinco Redes Temáticas de Atenção à Saúde no SUS (Brasil, 2011a, 2014), conforme o Quadro 1, a seguir: Quadro 1. Redes Temáticas de Atenção à Saúde, seus objetivos e equipamentos. Botucatu/SP. 2019. Rede de Atenção à Saúde Objetivo Equipamentos Rede Cegonha Assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis Pré-natal; parto e nascimento; puerpério e Atenção Integral à Saúde da Criança; sistema logístico: transporte sanitário e regulação Rede de Atenção à Urgência e Emergência Articular e integrar todos os equipamentos de saúde, objetivando ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral aos usuários em situação de urgência e emergência nos serviços de saúde, de forma ágil e oportuna. Promoção e prevenção; Atenção Primária: unidades básicas de Saúde; UPA e outros serviços com funcionamento 24 horas; SAMU 192; portas hospitalares de atenção às urgências; leitos de retaguarda; Atenção Domiciliar e hospitais-dia Rede de Atenção Psicossocial Criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS Ampliação do acesso à Rede de Atenção Integral de Saúde aos usuários de álcool, crack e outras drogas; Qualificação da rede de Rede de Atenção Integral de Saúde; Ações intersetoriais para reinserção social e reabilitação; Ações de prevenção e de redução de danos e Operacionalização da rede 30 | Referenciais Teóricos Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência Criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com deficiência temporária ou permanente; progressiva, regressiva, ou estável; intermitente ou contínua, no âmbito do SUS. Atenção Básica; atenção especializada em reabilitação auditiva, física, intelectual, visual, ostomia e em múltiplas deficiências e atenção hospitalar e de urgência e emergência. Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas Estabelecer diretrizes para a organização de linhas de cuidado, considerando doenças crônicas as que apresentam início gradual, com duração longa ou incerta, em geral, apresentam múltiplas causas e cujo tratamento envolva mudanças de estilo de vida, em um processo de cuidado contínuo. Atenção Básica; atenção especializada (ambulatorial especializada; hospitalar e urgência e emergência); sistemas de apoio; sistemas logísticos e regulação Fonte: Brasil, 2011a, 2014. Como pode ser observado no Quadro 1, no modelo de atenção saúde que organiza a RAS no Brasil, a ABS é onipresente nas redes. Considerando que a ESF é a unidade funcional prioritária para a organização dos serviços do SUS, espera-se que impulsione a mudança no modo de produção do cuidado e seja capaz de abordar as condições de saúde dos indivíduos na articulação entre singularidade no âmbito familiar e comunitário. Há mais de vinte anos que a ESF, em seu grau máximo de capilaridade, tem representado a aposta para a operacionalização dos princípios e diretrizes que regem a ABS e o SUS (Brasil, 1990, 2017c). Contudo, os desafios que o SUS e, por consequência a ESF, precisam transpor são inúmeros e perpassam as dimensões político-institucional, organizacional e técnico-assistencial de maneira isoladas e inter-relacionadas (Teixeira, 2003). De interesse a esse estudo, nessa última dimensão, observa-se a coexistência de dois modelos de atenção que ora se complementam e ora se opõem: o modelo biomédico hegemônico, caracterizado, em geral, pela dissociação do contexto social, econômico e cultural sobre as condições de saúde, pelo enfoque na doença, na dimensão biológica, na intervenção médico-hospitalar com alta densidade tecnológica material. Em antítese, o modelo contra-hegemônico, voltado para a lógica da vigilância à saúde, tomado como horizonte normativo para o SUS por meio da ESF (Fertonani et al., 2015; Esmeraldo et al., 2017). Com a implantação das RAS, inquestionáveis avanços foram observados para as duas primeiras dimensões dispostas anteriormente, todavia, os desafios inseridos na dimensão técnico-assistencial têm sido tanto maiores quanto. Na intersecção desse objeto de estudos, é 31 | Referenciais Teóricos possível apontar duas interfaces que serão discutidos posteriormente, a interface saúde mental e ABS, e a incorporação das PICS. A interface Saúde Mental na Atenção Básica à Saúde Antes de abordar os desafios na micropolítica dessa interface, optou-se por compor uma breve narrativa histórica que elucide a defesa pelo cuidado em liberdade e pela AP, compreendida aqui, como cuidado à pessoa em sofrimento psíquico no território. Pretende-se ainda avançar no entendimento das convergências entre essas duas políticas, principalmente, no que concerne às características contra-hegemônicas da AP e ABS. No que se refere às políticas de saúde mental, foi também no final da década de 80 e início da década de 90, que a OMS, comprometida com lema da Conferência de Alma-Ata - Saúde para todos no ano 2000, elaborou um dos primeiros documentos tratando sobre a inserção da saúde mental na ABS, relacionando-a à questão do impacto direto aos custos e efetividade dos serviços de saúde, e da sua utilidade, uma vez que a saúde mental e emocional dos usuários não pode ser fragmentada de outras esferas da vida (Organização Mundial da Saúde, 1990a; Brasil, 2002). A importância da referida interface está atrelada às melhorias no funcionamento dos serviços, no desenvolvimento socioeconômico, na promoção da qualidade de vida e da saúde mental e emocional das populações adscritas. Ações que atuam sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das pessoas em sofrimento psíquico não devem ser interpretadas como mais uma atribuição profissional dentro de uma agenda túrgida de responsabilidades, mas, um componente que carrega o potencial de conferir maior resolubilidade aos serviços que compõem a ABS (Organização Mundial da Saúde, 1990a; Brasil, 2002). Nessa mesma década, ao reconhecer a ABS como um modelo de reorganização da atenção à saúde, a OMS intervém diretamente sobre as políticas de atenção à saúde mental por meio da Declaração de Caracas. Primeiro, identificando que o modelo hospitalocêntrico predominantemente vigente na época, promove o isolamento da pessoa o que impede seu desenvolvimento no convívio social e abarca a maior parcela dos recursos humanos e financeiros destinados à saúde mental, desse modo, dificultando a implementação de uma política de atenção convergente para os propósitos da Conferência de Alma-Ata (OMS, 1990b; Brasil, 2004; Hirdes, 2009). 32 | Referenciais Teóricos Por conseguimento e diante dessa problemática, os governos e os programas na área de saúde mental e psiquiatria foram orientados a reestruturar sua organização, inserindo seu equipamentos na ABS e, concomitantemente, desencorajando o enfoque centralizador dado ao hospital psiquiátrico. Nesse momento as políticas de formação de recursos humanos começaram a se voltar à capacitação em torno de serviços comunitários abertos e internações em hospitais gerais (OMS, 1990b; Hirdes, 2009). O modelo assistencial prestado no Brasil à pessoa em sofrimento psíquico passou a ser enfaticamente criticado a partir da década de 1970, sob influência do movimento da Reforma Psiquiátrica Italiana e imbricado em um cenário social, político, econômico e cultural determinante para a redemocratização do país (Brasil, 2005; Alves; Guljor, 2008; Barroso; Silva, 2011). Nesse contexto, diversos atores sociais diretamente envolvidos e organizado no Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) apresentaram suas denúncias às formas desumanas de cuidado oferecido às pessoas em sofrimento psíquico. Assim, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira começa a ser discutido publicamente, repercutindo em mudanças na organização dos serviços de saúde mental e psiquiatria (Brasil, 2005; Barroso; Silva, 2011). Com a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental e o 2º Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental houve a proposta de elaborar comissões que se propunham a discutir o rumo da assistência às pessoas em sofrimento psíquico no país, período em que o modelo comunitário e a desinstitucionalização ganharam força (Alves; Guljor, 2008; Barroso; Silva, 2011). Avançando em sua compreensão, toma-se a Reforma Psiquiátrica como um processo social complexo ainda contemporâneo, ou seja, constitui-se de dimensões simultâneas e inter-relacionadas nem sempre convergindo para um mesmo posicionamento. Costuma-se atribuir a esse movimento social quatro dimensões definidoras (Amarante, 2007): (1) teórico-conceitual: ou epistêmica, pois, refere-se aos questionamentos dos saberes hegemônicos que sustentam as concepções em torno da doença mental, do transtorno psiquiátrico, do louco, entre outros e que estão relacionados ao saber psiquiátrico e à racionalidade científica positivista; (2) técnico-assistencial: está relacionada às práticas, uma vez que as concepções dos trabalhadores e gestores mobilizam seus fazeres, essa dimensão está intimamente ligada à anterior, pois, compreende o modo de produzir cuidados 33 | Referenciais Teóricos em saúde mental. As críticas estão em torno da reprodução da assistência baseada no modelo manicomial pelos serviços e pelos trabalhadores; (3) político-jurídica: constitui um grande desafio da Reforma Psiquiátrica, pois, pretende avançar no arcabouço legal que possibilite autonomia da pessoa em sofrimento psíquico, vai ao encontro do regaste dos direitos humanos uma vez que o aparato teórico-conceitual pela via da alienação, esvaziou a noção de sujeito de direitos. A Lei 10.216, também conhecida como Lei Paulo Delgado, é sua principal representante (Brasil, 2004); e (4) sócio-cultural: tem como objeto de ação a sociedade e os objetivos de mobilizar o lugar do louco no território, provocar o imaginário social no entorno da loucura que tem sido responsável pela perpetuação do estigma e do preconceito. Uma das conquistas mais simbólicas nessa dimensão é o Dia da Luta Antimanicomial, 18 de maio, que faz alusão ao Congresso de Trabalhadores de Serviços de Saúde Mental que ocorreu no ano de 1987 na cidade de Bauru/SP. Dessa forma, a transformação do tratamento e da assistência em saúde mental tem por base uma revisão em profundidade do aparato do saber psiquiátrico que implica, diretamente, na ressignificação do cuidado que opera a partir de premissas como a liberdade em negação ao isolamento, integralidade em substituição à seleção e à fragmentação, enfrentamento do risco social em contraposição ao modelo nosológico e ao diagnóstico, conceito de direito sobre a noção de reparo, cuidado sobreposto à cura e exercer o papel de agenciador ao invés de referenciar (Alves; Guljor, 2008). Diante de permanentes transformações, a AP vai ao encontro da construção de um campo multidimensional, interdisciplinar, interprofissional e intersetorial, componente fundamental da integralidade do cuidado social e da saúde em geral. E ainda se constitui inserido e transcendente ao campo da saúde atingindo os direitos humanos, a assistência social, a educação, a justiça, o trabalho, a economia solidária, a habitação, a cultura, o lazer, os esportes etc (Brasil, 2010b). Do mesmo modo que observado nos aspectos da ABS, a AP conta com modelos contrapostos, denominados, modelo manicomial e modelo de AP, cujas características foram sintetizadas na Quadro 2 (Yasui, 2010): 34 | Referenciais Teóricos Quadro 2. Principais características do modelo manicomial versus modo psicossocial. Botucatu/SP. 2019. Modelo Manicomial ◄Atributos► Modo Psicossocial Doença Mental ◄Objeto► Existência-sofrimento Neurociências ◄Pressuposto Teórico► Transdisciplinaridade Isolamento ◄Ações► Diversidade Biologicista ◄Estratégias► Multiplicidade de Saberes Médico no Hospital ◄Agentes e Locais► Coletivos em Rede Exclusão e Violência ◄Práticas Sociais► Inclusão e Solidariedade Fonte: Yasui, 2010. Um dos marcos políticos importantes desse movimento da Reforma Psiquiátrica para consolidação do modo de AP, é representado pelo Projeto de Lei n.º 3.657/1989, elaborado pelo deputado Paulo Delgado e que dispunha sobre a extinção gradual dos manicômios associada à substituição por outros recursos assistenciais comunitários. No entanto, só após doze anos de tramitação, esse referido projeto foi promulgado na Lei n.º 10.216/2001. Esse tempo leva à reflexão de como a Reforma Psiquiátrica brasileira se constitui na atualidade, um complexo processo sócio-político e intersetorial, trazendo à sociedade discussões e uma multiplicidade de ações, atores e instituições (Brasil, 2005; Hirdes, 2009; Barroso; Silva, 2011). A Portaria n.º 224, publicada pelo MS em janeiro de 1992, dividiu o atendimento em saúde mental em dois blocos, hospitalar e comunitário. No primeiro bloco, inseriam-se a internação hospitalar e a internação-dia, como recurso intermediário da internação integral com prazo estipulado de 45 dias. No bloco hospitalar houve o primeiro avanço nos serviços comunitários regulando os Centros de Atenção Psicossociais (diferem dos moldes da Portaria n.º 336/2002) e Núcleos de Atenção Psicossociais. A instituição de equipes multiprofissionais e ações psicossociais de caráter individual e grupal (Brasil, 2004). A década de 1990 foi um período de ampliação e consolidação das quatro dimensões que compõem a Reforma Psiquiátrica brasileira. Houve um movimento político de incentivo para ampliação dos serviços extra-hospitalares para subsidiar a remuneração aos serviços alternativos à internação, concomitante, ao enrijecimento das regras para funcionamento dos hospitais psiquiátricos de caráter manicomial que desencadeou fechamento de algumas dezenas e redução de milhares de leitos (Tenório, 2002). 35 | Referenciais Teóricos No ano de 2002, a Portaria n.º 336 publicada em 19 de fevereiro, estabeleceu os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), suas tipologias e seus recursos humanos. Um panorama nacional mostrou que esse serviço passou por uma expansão levando ao aumento da cobertura em cidades de pequeno porte, o que sinaliza um processo de interiorização. No ano de 2014, o Brasil contava com 2.209 CAPS implantados perfazendo uma proporção de 0,86CAPS/100.000 habitantes, considerada muito boa (melhor menção) (Brasil, 2015). No entanto, além de discutir a implantação desses serviços, que foram considerados a alma da Reforma Psiquiátrica brasileira e atualmente correspondem à Atenção Estratégica da RAPS; a qualidade e a efetividade dos serviços precisam ser seriamente pensadas. É necessário olhar criticamente para a estrutura, a gestão, o processo e a organização do trabalho, a qualidade da clínica na atenção às crises, a inserção no território, a ação intersetorial, a articulação dinâmica com a ABS. Nesse movimento, reforça-se a construção diária por meio da elaboração de novas perspectivas, discussão e ação que incluam a participação ativa dos usuários e familiares representando a garantia do aperfeiçoamento, da expansão e da permanência desses serviços (Brasil, 2010b). Entre 2007 e 2010, a Portaria GM 154/08, recomendando a inclusão de profissionais de saúde mental junto às equipes do Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF), foi a ação que mais representou avanço na interface AP e ABS, e por isso há a necessidade de um monitoramento crítico. Em 2014, contava-se com 3.898 equipes de NASF distribuídos entre 39.228 equipes de ESF. Vale considerar ainda que, dos 8.712 municípios abaixo de 15.000 habitantes que não possuem população para CAPS, encontra-se 1.671 equipes de NASF, situação está que aponta para a necessidade de ampliação da cobertura em municípios de pequeno porte (Brasil, 2015). A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi instituída como uma das redes temáticas prioritárias por meio da Portaria n.º 3.088, de 23 de dezembro de 2011, destinada para o cuidado de pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no SUS. Reorganizou a assistência por meio da incorporação de serviços relacionados entre si de forma horizontal e propôs como objetivos: ampliação do acesso à AP, promover vinculação das pessoas em sofrimento psíquico nos serviços e garantir a articulação e a integração entre os equipamentos. A Figura 1 dispõe os serviços que constituem a RAPS (Brasil, 2011b). 36 | Referenciais Teóricos Figura 1. Componentes da Rede de Atenção Psicossocial. Botucatu/SP. 2019. Fonte: Brasil, 2011b. Desse modo, identifica-se que há um esforço dedicado à expansão e ao fortalecimento dos serviços da AP. É notório que o movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira repercutiu em uma reconfiguração da demanda no âmbito da ABS que passou a incorporar ações de cuidado em saúde mental. Uma lacuna pode ser observada na formação dos trabalhadores diante dessa nova necessidade de saúde que se constrói. A responsabilização pelo cuidado em saúde mental na ABS não foi acompanhada por ações educativas e formativas, necessidade que só recentemente vem sendo contemplada com a atuação do NASF. Em quatro grandes capitais brasileiras - Fortaleza, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, foi rastreada, entre usuários da ESF, uma alta proporção na prevalência de Transtorno Mental Comum, Ansiedade e Depressão (respectivamente 53,3%, 39,5% e 25,3% em São Paulo) associada à população feminina, desempregada com baixos níveis de escolaridade e renda. Mesmo considerando as limitações desse estudo, cerca de 50% da população estudada têm fatores de risco para o desenvolvimento de algum transtorno mental, situação que deve ser interpretada como prioridade nas políticas de saúde do país. Diante dessa problemática, é importante que as equipes da ESF estejam conscientes da extensão dos problemas psicossociais e atuem no sentido de construir ações que vão ao encontro dessas necessidades (GONÇALVES et al., 2014). 37 | Referenciais Teóricos Considerando ainda aspectos epidemiológicos dos transtornos mentais no âmbito da ABS, em um estudo de coorte transversal com 712 gestantes distribuídas entre dezoito Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região sul do Brasil foi observado a prevalência de 41,7% de prováveis transtornos psiquiátricos, dentre eles citam-se depressão maior, ansiedade generalizada e pânico. Além disso, as condições de não trabalhar ou estudar, não morar com companheiro e ter dois filhos ou mais estiveram associadas ao aumento do risco (Almeida et al., 2012). A situação não é diferente na população pediátrica em que, por meio de um questionário de rastreamento, foi encontrada uma porcentagem de 25,3% de escore indicativo de problemas de saúde mental na faixa etária de cinco a 11 anos de idade. No contexto da ABS, foi observado ainda que os pediatras possuem baixa sensibilidade diagnóstica indicando limitações na atuação de trabalhadores dessa especialidade. Isso se evidenciou ao analisar as hipóteses diagnósticas que se concentraram nos transtornos específicos do desenvolvimento ou área somática e quando a alta sensibilidade dos pais não se constituiu um fator de modificação da postura investigativa por parte do profissional. Reforça-se a consulta médica centrada na queixa e a resolução configurada por orientações e encaminhamentos (Tanaka; Ribeiro, 2009). As intervenções de acolhimento e as orientações são menos valorizadas, no entanto, as mais praticadas e quando associadas à visita domiciliária promovem o vínculo e a acessibilidade da família e do usuário inseridos em seu contexto de vida, o que representa a territorialização no seu contexto mais capilar (Arce; Sousa; Lima, 2011). Trabalhadores da equipe da ESF centralizam no acolhimento a ação de cuidado aos usuários com transtornos mentais. Mesmo com a especificidade do núcleo de cada profissão em relação à clínica, são comuns a escuta ativa e a comunicação efetiva importando a atuação profissional para o terreno das tecnologias leves. Esse movimento gera uma alteração na lógica da produção de cuidado que passa a ser marcada pela subjetividade que por sua vez valoriza a linguagem, os sentimentos, os sentidos e os espaços para o diálogo e para a escuta qualificada. A construção do cuidado deixa de ser para o outro e passa a ser com o outro, baseada em projetos de vida comprometidos com a realidade das pessoas (Magalhães et al., 2012). O encaminhamento de casos a locais da rede de cuidados que ofereçam especialista em saúde mental continua sendo a atuação mais representativa de eficácia para os profissionais e para a população atendida nos equipamentos da ABS. Além de essa ação representar um esforço dos profissionais em inserir os usuários nos diferentes equipamentos da sociedade, 38 | Referenciais Teóricos evidencia ainda a abrangência do campo social intrínseco à saúde mental (Tanaka; Ribeiro, 2009; Arce; Sousa; Lima, 2011; Pinto et al., 2012). Atividades em grupo, para as pessoas em sofrimento psíquico, têm sido um instrumento explorado no âmbito da ABS por possibilitar a troca de experiências de vida e conhecimentos, local de produção de subjetividades e subsídios para o processo de inclusão e de reabilitação social dos indivíduos em sofrimento psíquico. No entanto, esse resultado está subordinado à competência de o profissional coordenar grupos e utilizar-se, durante o planejamento, dos interesses das pessoas participantes (Magalhães et al., 2012). As dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores da ABS em relação à demanda de saúde mental gira em torno da ausência de redes de cuidados articuladas nos territórios, incluindo número restrito de CAPS. Em relação ao encaminhamento, uma das ações mais praticadas pelos profissionais, o número de vagas oferecido aos serviços especializados em Saúde Mental é marcadamente menor que a demanda identificada pelas equipes; essa realidade leva a equipe vivenciar frequentemente um conflito que infringe princípios éticos profissionais e do SUS (Arce; Sousa; Lima, 2011). Essa realidade foi observada em um estudo avaliativo com profissionais da ABS que atribuem à demanda de saúde mental sentimentos de angústia que estão associados à complexidade dos casos que em sua maioria tange à vulnerabilidade social. Nesse contexto, as limitações na resolubilidade de uma abordagem clínica tradicional, tipo queixa-conduta, ficam ainda mais evidentes (Campos et al., 2011). A desinstitucionalização, uma das repercussões da Reforma Psiquiátrica brasileira, acarretou em um incremento na demanda de saúde mental nos serviços comunitários, a qualidade do cuidado prestado a essa população, entretanto, não acompanhou esse crescimento. Essa realidade desencadeia uma lógica de encaminhamentos para serviços especializados, organizando um contra-fluxo ao proposto nas políticas de saúde mental e distorcendo a função dos dispositivos da AP, além de reforçar uma lógica irresponsável de encaminhamentos na RAS (Machado; Camatta, 2013). A centralização da figura do médico nas ações de Saúde Mental na ABS desvaloriza a importância das ações de outros profissionais e gera incertezas relacionadas às intervenções executadas. Esse reducionismo dos profissionais que dificulta o compartilhamento de ações reforça o processo de medicalização social (Arce; Sousa; Lima, 2011; Magalhães et al., 2012). Em relação à formação dos profissionais da ABS em Saúde Mental, um estudo demonstra que treinamentos bem estruturados com utilização de metodologias ativas têm 39 | Referenciais Teóricos eficácia comprometida devido à influência das ações programáticas e das demandas que surgem considerando o perfil epidemiológico do país (Gonçalves et al., 2014). Essas ações também foram apontadas como fatores que dificultam a concretização de abordagens mais integralizadas, pois, cerceiam a possibilidades de os trabalhadores atuarem considerando a exploração dos recursos da comunidade (Pinto et al., 2012). A falta de capacitação, juntamente com a precariedade da estrutura física e insuficiente número de profissionais são fatores que também estão relacionados à desorganização da prestação de assistência de saúde mental. Os profissionais da ABS responsabilizam a equipe do CAPS ou NASF quanto à capacitação no que se refere à saúde mental (Pereira et al., 2012). A concepção dos trabalhadores da ESF, da pessoas em sofrimento psíquico e seus familiares em torno do matriciamento opera práticas inovadoras em focos multidisciplinares de atuação. Demonstram-se melhorias na articulação do cuidado dinamizando a comunicação entre CAPS e ESF, e permite a elaboração de abordagens clínicas que se constituíssem horizontais possibilitando a subjetivação do usuário. Há também, apontamentos que caracterizam dificuldades de operacionalização, como a formação e a concepção dos trabalhadores em relação à demanda de saúde mental. Nota-se uma carência de conhecimentos básicos nos aspectos subjetivos do cuidado, manejo das crises, relacionamento interpessoal e no instrumental terapêutico (Pinto et al., 2012; Machado; Camatta, 2013). O matriciamento tem sido um arranjo de organização dos serviços de saúde em que duas equipes colocam-se em apoio em relação às demandas do trabalho em saúde. Desse modo, uma equipe conhecida por equipe de apoio matricial oferece retaguarda especializada, suporte técnico, vínculo interpessoal e apoio institucional na construção de projetos terapêuticos que estão sob responsabilidade de outra equipe, que se denomina equipe de referência. Esse tipo de organização corresponde a uma tecnologia em saúde que aproxima as equipes do modelo ampliado de saúde, servindo de orientação entre as ações integradas do NASF e equipes da ESF (Chiaverini, 2011). Após ter apresentado o resgate histórico e o arcabouço político que sustentam a interface entre SM e ABS, pode-se identificar, por meio das pesquisas realizadas na ABS investigando o desenvolvimento do cuidado psicossocial, avanços quanto à organização das equipes e na implementação de tecnologias relacionais. Mas também é possível, discutir fragilidades que estão em torno das concepções e das ferramentas utilizadas no processo de trabalho ainda atreladas ao modelo biomédico, bem como, afirmar que há uma distância entre 40 | Referenciais Teóricos o desenvolvimento e implantação de políticas e sua real efetivação da dimensão assistencial. Nesse sentido, parte-se para a apresentação do último referencial teórico: as PICS reafirmando a aposta de que sua implementação nos serviços da ESF podem favorecer a reversão do modelo de atenção e auxiliar as ações no desempenho e no exercício do cuidado psicossocial. Práticas Integrativas e Complementares em Saúde Retomando a discussão na década de 1970, resgata-se um movimento iniciado pela OMS em nível mundial para o desenvolvimento das Práticas Alternativas e Complementares em Saúde (PACS) por meio do Programa de Medicina Tradicional em que incentivou seus países-membros a organizar e a inserir em seus sistemas de saúde o uso racional das Medicinas Tradicionais (MT) e Medicina Alternativa e Complementar (MAC). Posteriormente, em 2005 esse posicionamento foi reforçado com a publicação do documento intitulado Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005 (World Health Organization, 1978, 2002, 2004, Brasil, 2006). No Brasil, uma análise da introdução de outras racionalidades médicas aponta para três fatores que se iniciaram entre as décadas de 60 e 70. O primeiro, um amplo contexto social, reconhecido como movimento contracultural, liderado pela juventude da época na busca de novas possibilidades terapêuticas, o que desencadeou a importação de sistemas exógenos de crenças e orientações, principalmente, de origem oriental (Souza; Luz, 2009). Um segundo fator se refere à crise na saúde, cenário que ainda na atualidade tem sido interpretado como um fenômeno que modifica as práticas de cuidado. Naquele momento têm suas origens em questões sociais, como a epidemiologia do mal-estar, e econômicas – internacionalização capitalista agravando as desigualdades. O terceiro fator, mais circunscrito, relaciona-se à crise da medicina, resumidamente ilustrada pela ineficácia de formação de profissionais resolutivos, pela competição da hegemonia no campo da saúde, pelas relações conflituosas entre médico e paciente, e pelas rupturas epistemológicas na construção histórica do saber e da prática da biomedicina (Souza; Luz, 2009; Pinheiro; Luz, 2010). Ao observar mais detalhadamente, é possível reconhecer diversas situações comuns que impulsionaram, na década de 60, as referidas crises do setor saúde e médico, dentre elas: mudança no perfil de morbimortalidade, diminuição da incidência de doenças infectocontagiosas, aumento das doenças crônico-degenerativas, aumento da expectativa de 41 | Referenciais Teóricos vida, crítica à assimetria da relação médico-paciente, maior orientação quanto aos limites da medicina tradicional, insatisfação com o funcionamento dos sistemas de saúde e maior esclarecimento quanto aos efeitos colaterais e intervenções cirúrgicas (Otani; Barros, 2011). A década de 80 contou com ações pontuais que contribuíram para o avanço de algumas racionalidades médicas no Brasil, bem como, sua institucionalização. A homeopatia foi a primeira, em 1985, por meio de um convênio com o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto Hahnemaniano do Brasil. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), foi deliberada introdução de práticas alternativas de assistência à saúde no âmbito dos serviços de saúde, possibilitando ao usuário o acesso democrático de escolher a terapêutica preferida. Dois anos mais tarde, a Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação fixou normas e diretrizes para o atendimento em homeopatia, acupuntura, termalismo, técnicas alternativas de saúde mental e fitoterapia (Brasil, 2006; Pennafort et al., 2012). Posteriormente, a partir de 1995 outras ações foram instituídas, como o Grupo Assessor Técnico-Científico em Medicinas Não-Convencionais. Na 10ª Conferência Nacional de Saúde (1996), foi aprovada a incorporação ao SUS de práticas de saúde como a fitoterapia, acupuntura e homeopatia, contemplando as terapias alternativas e práticas populares. Em seguida, na 11ª Conferência Nacional de Saúde, recomendou-se a introdução na ABS de práticas não convencionais de terapêutica como acupuntura e homeopatia. Foi no ano de 2003 que conformou-se o Grupo de Trabalho no MS, com o objetivo de discutir a formulação de uma política de práticas não convencionais para o SUS (Brasil, 2006). Assim, inúmeros movimentos e iniciativas foram se acumulando no Brasil e culminaram, em última instância, na PNPIC publicada no ano de 2006. Com isso, há uma delimitação sobre o campo das PICS envolvido em sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos voltados para estimular a inserção de mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde, utilizando tecnologias eficazes e seguras, tendo como fundamentos: a escuta acolhedora, o vínculo terapêutico e a integração do ser humano com o ambiente e a sociedade. Propõe ainda a ampliação da compreensão do processo saúde-doença e a promoção do cuidado humano enfatizando a autonomia (Brasil, 2006). A nível federal, o SUS instituiu o apoio e o incentivo para a oferta desses recursos terapêuticos à população e tem na ABS a ênfase de sua implantação, sendo majoritária na tímida oferta das PICS, situação que representa um acerto na priorização desse local por parte da 42 | Referenciais Teóricos PNPIC, considerando as diretrizes da longitudinalidade, do acesso facilitado e da proximidade territorial, em tese, permitidos pela ABS (Tesser, 2010a). Ademais, é o ambiente esperado para sua operacionalização, com o intuito de concretizar a ideia de pluralismo nos cuidados de saúde a partir da ampliação e facilitação do acesso às PICS. A sua inserção na ABS é reforçada por proporcionar práticas de promoção da saúde e utilizar abordagens para lidar com o cuidado de sofrimentos difusos ou localizados para os quais a biomedicina apresenta severos limites e problemas (Helman, 2009; Souza; Luz, 2009; Tesser 2010a). Os desafios para a consolidação e gradativo avanço da inserção das PICS na ABS giram em torno da disponibilidade de profissionais especializados nas equipes de ESF, da organização de serviços de referência dessas racionalidades, da sistematização de experiências exitosas enfatizando a contribuição dessas medicinas para a humanização e integralidade do cuidado, do fornecimento de insumos por parte dos órgãos públicos e da disponibilidade dos profissionais articularem-se na prática dos serviços de saúde alcançando um processo de cuidado híbrido e sincrético (Tesser, 2009, 2010a). Nesse sentido, a PNPIC propõe-se ao fortalecimento das iniciativas já existentes, pois, sua institucionalização no SUS, publicada posteriormente, vem ao encontro de favorecer ações pontuais já implantadas nas comunidades otimizando seus recursos sejam humanos ou técnicos (Brasil, 2006). Isso reforça a importância e a convergência das PICS serem implantadas junto à ABS, e consequentemente, demanda apoio institucional e dos gestores no comprometimento da expansão social destas, influenciando a cultura dos usuários e profissionais em um movimento que desconstrói uma visão unificada de medicina que reduz as possibilidades de cuidado comunitário à saúde (Tesser; Sousa, 2012). A Medicina Convencional ou Alopática tem sido fonte crescente de insatisfação populacional, pois, dicotomiza o cuidado com a especialização, tecnificação e padronização da medicina, evidenciando uma lacuna em relação à integralidade da assistência prestada. Diante disse, discute-se uma crise no âmbito da saúde – sanitária e médica, que vem alterando as relações tradicionalmente fundamentadas na clínica baseada na racionalidade médica ocidental (Otani; Barros, 2011; Pennafort et al., 2012). Nesse movimento, atenta-se para a tendência de objetificar os problemas de saúde, assim como, a história trazida pelos usuários, mesmo reconhecendo a existência de uma vertente psicossomática ou psicogênica nas etiologias. Essa característica reforça a ruptura e a desarmonia na relação médico-paciente e imprime a marca biológica sobre as representações 43 | Referenciais Teóricos sociais do adoecimento e sua causa, e do processo de saúde, cuidado e recuperação (Silva; Tesser, 2013). Em contrapartida, as PICS concebem a doença amplamente, resgatando dimensões socioculturais e emocionais, de forma que há um distúrbio no equilíbrio energético do sujeito antecedendo as alterações a nível orgânico. Essa característica pode ser acessada quando se analisaram as concepções e os saberes de enfermeiros que aplicam esses recursos terapêuticos no contexto hospitalar, observando na prática a ampliação da compreensão sobre o usuário hospitalizado, assim como, sobre o problema de saúde enfrentado por meio da utilização de conceitos como energia vital e cosmos conferindo maior dinamismo e complexidade ao adoecimento (Melo et al., 2012; Pennafort et al., 2012). Além de tencionar os limites da compreensão sobre o processo de adoecimento, as PICS reservam convergências com a promoção à saúde. A utilização de recursos terapêuticos voltados para o cuidado às pessoas e às suas relações procura realizar o humano enquanto tal, por meio de um processo de transformação religando-o com o cosmos, com o mundo e com os outros. Essa prática tangencia o empowerment comunitário, ou seja, o fomento do cidadão mais atuante, a sociabilidade e a construção de redes de apoio comunitárias. Outro ponto de interligação com a promoção à saúde reside no âmbito pedagógico, primeiro pelo fato de que os recursos terapêuticos das PICS estruturarem uma visão mais positiva da saúde, implicando em aprendizado disciplinado e organizado para a prática das técnicas. Consequentemente, possibilita o autoconhecimento e crescimento das pessoas, ao ressignificar experiências advindas com o adoecimento, sofrimento e cura. (Tesser, 2009). Desse modo, considera-se que os praticantes e terapeutas em contato com esses recursos terapêuticos podem viver em si mesmos experiências que os possibilitem desenvolver razoável grau de sabedoria, prática, ética e solidariedade. Isso reforça com maior sustentação do empowerment comunitário e marca as relações profissionais, contando com uma inserção colaborativa e de apoio, suscitando menos corporativismo (Tesser, 2009). As PICS têm como características definidoras a relação terapêutica entre profissional e usuário como fundamento, a abordagem do usuário como um todo, práticas e técnicas orientadas para a cura, participação ativa do paciente no tratamento exploração de meios terapêuticos simples, construção da autonomia do usuário como princípio e avançando o conceito de complementaridade entre as racionalidades médicas (Otani; Barros, 2011; Pennafort et al., 2012). 44 | Referenciais Teóricos Reforçando a proposta complementar, o termo Medicina Integrativa propõe uma combinação da medicina convencional e alternativa com uso de evidências, mantendo o objetivo de pluralizar as formas de tratamento aos pacientes. Em seus pressupostos, esse conceito guarda afinidade com temas importantes na saúde brasileira como integralidade, humanização, construção de evidências científicas e mudanças na educação em saúde. De forma que seu maior desenvolvimento carrega a potencialidade de impulsionar mudanças no sistema de saúde a longo prazo, favorecendo a criação de serviços integrados, com diminuição de custos, aumento das ações de prevenção e promoção à saúde (Otani; Barros, 2011). O desenvolvimento das PICS no âmbito mundial permite uma análise aprofundada quanto aos fatores que limitam sua maior utilização, dos quais: escassas evidências científicas associadas a maiores investigações quanto à prática segura, indicações específicas para determinadas condições de saúde e a comparação de seus resultados junto aos padrões biomédicos, hegemonia da racionalidade biomédica na formação, na concepção e nas práticas organizacionais e institucionais (Sousa et al., 2012). Contudo, nota-se um aumento no número de publicação de estudos sobre as práticas alternativas e complementares entre os anos de 2000 e 2005, com maior concentração nos Estados Unidos, tendo como primeiros autores médicos realizando, principalmente, revisões de literatura (Otani; Barros, 2011). Em um estudo com enfermeiros da atenção hospitalar, a formação marcada pelo modelo biomédico se constituiu um desafio frente à aplicação das PICS. Diante das limitações observadas pelo modelo biomédico durante a prática profissional, procuram por uma perspectiva do cuidado que possibilite a interligação de métodos e tecnologias que reposicionem o usuário resgatando o comprometimento e a corresponsabilidade (Melo et al., 2012). Uma análise em municípios que ofertam atendimentos alinhados às práticas dispostas na PNPIC nos serviços do SUS demonstrou que os bancos de dados, Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) e Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA), possibilitam visualizar quais recursos terapêuticos são oferecidos, no entanto, sem detalhamento, devido às suas inconsistências e das portarias que os fundamentam. Aponta-se que a oferta cadastrada nesses bancos de dados é maior que a capacidade operacional dos profissionais cadastrados sugerindo que há profissionais exercendo as PICS sem registro no sistema (Sousa et al., 2012; Amado et al., 2018). Observa-se, com base nos bancos de dados, uma característica brasileira peculiar que se refere à predominância da oferta de práticas corporais nos sistemas públicos, porém a 45 | Referenciais Teóricos produção de estudos brasileiros que enfatizam essas atividades no âmbito da ABS é escassa. Em relação à acupuntura foi percebido um aumento da oferta a partir da abertura da licença profissional (Sousa et al., 2012; Amado et al., 2018). Ainda assim, limitações delineiam a oferta desse atendimento ao usuário no SUS, como demora nas filas e tratamento determinado por número de sessões (Silva; Tesser, 2013). Um estudo realizado na ABS e no nível secundário do SUS apontou para um importante resultado em relação à eficácia da acupuntura, pois, mais da metade da po