LUÍS FERNANDO CAMPOS D’ARCADIA UT PICTURA POESIS: a poesia vulgar “pintada” por Antônio da Fonseca Soares ASSIS 2012 LUÍS FERNANDO CAMPOS D’ARCADIA UT PICTURA POESIS: a poesia vulgar “pintada” por Antônio da Fonseca Soares Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social. Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes ASSIS 2012 D243p D’Arcadia, Luís Fernando Campos. Ut pictura poesis : a poesia vulgar "pintada" por Antônio da Fonseca Soares / Luís Fernando Campos D’Arcadia. Assis : [s.n.], 2012. 136 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, campus de Assis, 2012. Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes. 1. Poesia portuguesa – século XVII. 2. Retórica. 3. Poética. 4. Soares, Antônio da Fonseca, 1631-1682. I. Autor. II. Título. CDD – 869.109 Ficha catalográfica elaborada por: Milene Rosa de Almeida - CRB-8/8264 AGRADECIMENTOS À agência Capes, pelo financiamento de minha pesquisa. A todos os funcionários ligados ao Programa de Pós-graduação da FCL de Assis. Aos professores Luiz Roberto Velloso Cairo, Álvaro Santos Simões Júnior, Antonio Roberto Esteves, Ana Maria Carlos, Cleide Antonia Rapucci, Maria Lidia Lichtscheidl Maretti e Odil José de Oliveira Filho, que contribuíram para nosso crescimento como pesquisador durante os trabalhos das disciplinas cursadas. Aos professores Mirtes Rocha Rodrigues e Gilberto Figueiredo Martins pelas valiosas correções e sugestões para o exemplar de qualificação. Aos professores Odilon Helou Fleury Curado e Ricardo Magalhães Bulhões pelas recomendações a essa versão final do trabalho. A meu orientador Carlos Eduardo Mendes de Moraes pelo apoio inestimável desde o primeiro ano de graduação. Aos amigos e colegas do grupo de pesquisa A escrita no Brasil colonial e suas relações, André da Costa Lopes e Heloiza Brambatti Granjeiro. Aos amigos Henrique Sérgio Silva Correa, Kátia Isidoro de Oliveira, Luana Aparecida Almeida e Maurílio Mendes da Silva. A minha namorada Mariana. E, acima de tudo, à minha família, meu pai Antônio D’Arcadia, minha mãe Claudete Maria de Campos D’Arcadia e minha irmã Mariana Campos D’Arcadia. D’ARCADIA, Luís Fernando Campos. Ut pictura poesis: a poesia vulgar “pintada” por Antônio da Fonseca Soares. 2012. 136 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2011. Resumo Esse trabalho visa ao exame da poesia contida no manuscrito 2998 da sala de reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, da autoria do português Antônio da Fonseca Soares (1631-1682). Conhecido principalmente por sua obra sacra, a qual assinava como Frei Antônio das Chagas, o seu legado vulgar constitui, igualmente, importante acervo para os estudos da poesia de expressão lusófona. Assim, elegemos esse veio menos conhecido para propor a ampliação dos estudos acerca da produção literáriada época, assim como para rever modelos e métodos de estudo que podem vir a incluir seu nome no cânone dos estudo literários dos seiscentos. O aspecto cantral desse nosso estudo é a descrição. Elementos que permeia grande parte dos 104 romances desse corpus, no sentido de procurar compreender a prática descritiva do autor e, ainda, a medida do possível, demonstrar elementos básicos que explicitaram as diretrizes que um autor do século XVII tinha em mãos para a construção de poemas descritivos em geral. Para tal recorremos a discussões em torno das disciplinas de Retórica e Poética, desde a herança clássica, no princípio ut pictura poesis, com Aristóteles, Horácio, Cícero e Quintiliano, passando pelo tratamento dado à descrição passando pelo tratamentos dado à descrição na retórica de preceptistas seiscentistas, notadamente Tesauro, Cesare Ripa e Antonio Sebastião de Santo Antônio, até a autores atuais que trataram do assunto, como João Adolfo Hansen, Francis Cairns e Maria do Socorro Fernandes Carvalho. Palavras-chave: Poesia portuguesa – séc. XVII; Retórica; Poética. D'ARCADIA, Luís Fernando Campos. Ut pictura poesis: vulgar poetry “painted” by Antônio da Fonseca Soares. 2012. 136 f. Dissertation (Master of Literature) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2011. Abstract This dissertation intends to exam the poetry of the manuscript 2998 of the reserved collection of the General Library of the University of Coimbra, attributed to the Portuguese author Antônio da Fonseca Soares (1631-1682). Primarily known for his religious work, writing as Frei Antônio das Chagas, his legacy as a worldly author is important for the comprehension of “vulgar” lusophone expression. The focus of the study is the descriptive procedure within the 104 romances of the corpus, in order to understand poetics of the author, as well as to demonstrate some of the guidelines of description available to seventeenth century authors in general, when that is possible. For that we examine some of the aspects surrounding the disciplines of Rhetorics and Poetics, starting at the classical heritage, in the ut pictura poesis principle, then going through the rhetorical work of seventeenth century authorities, ending in the theoretical approaches of modern scholars. Keywords: Portuguese poetry – 17th century; Rhetoric; Poetics. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………….. 8 1 ANTONIO DA FONSECA SOARES E SUA PRODUÇÃO............................. 12 1.1 DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DA ANTÔNIO DA FONSECA SOARES E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FILOLÓGICAS ................................................. 12 1.2 A FORTUNA CRÍTICA DE ANTONIO DA FONSECA SOARES ......………. 21 1.3 O SÉCULO XX …………………………………………………………………… 27 2 A DESCRIÇÃO EM ANTÔNIO DA FONSECA SOARES: A POESIA “VULGAR” E SUA HERANÇA CLÁSSICA..........................……………………. 33 2.1 A HERANÇA CLÁSSICA DA DESCRIÇÃO E O UT PICTURA POESIS...... 34 2.1.1 UM PARÊNTESES: UT PICTURA POESIS, RETÓRICA E DECORO.…. 37 2.2 A RETÓRICA DA DESCRIÇÃO E A PRÁTICA DO RETRATO NA POESIA VULGAR ………………………………………………………………………………. 43 3 ANÁLISE DE SEIS RETRATOS DE ANTONIO DA FONSECA SOARES..... 59 3.1 A DESCRIÇÃO CORTESÃ: O ROMANCE 28......……………………………. 60 3.2 O ROMANCE 94 E OUTROS DOIS RETRATOS...………………………….. 81 3.3 ROMANCE 75, UM RETRATO POR TÍTULOS E ROMANCES 85 E 93, O AMOR COMO GUERRA..................................................................................... 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 125 REFERÊNCIAS ………………………………………………………………………. 132 ANEXOS.............................................................................................................. 137 INTRODUÇÃO Essa dissertação é fruto de um trabalho de aproximadamente cinco anos, tendo-se iniciado em um projeto conjunto de Iniciação Científica, desenvolvido no ambiente do grupo de pesquisa A escrita no Brasil Colonial e suas relações. O trabalho teve início com a edição do manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (daqui em diante BGUC), intitulado “Romances portugueses de Antonio d’Affonseca, q. despois se chamou Fr. Antonio das Chagas”, em conjunto com mais dois colegas, sob a orientação do professor Carlos Eduardo Mendes de Moraes. O trabalho originou uma série de relatórios científicos e publicações em anais de eventos, nos quais foram apresentados a transcrição paleográfica e interpretativa dos romances do corpus, além de estudos a respeito da literatura luso- brasileira do século XVII. Agora, no contexto dessa dissertação de mestrado, o aprofundamento dos estudos enfocou um ponto específico desse universo poético: a descrição. O texto é divido em duas partes, seccionadas em três capítulos. A primeira parte, que contém os dois primeiros capítulos, consiste num preâmbulo teórico que visa a situar os estudos a respeito do autor e a fundamentar as reflexões que são feitas na última parte, a qual consiste na análise de poemas de Antônio da Fonseca Soares. O primeiro capítulo, “Antonio da Fonseca Soares e sua produção”, aborda questões básicas referentes ao autor e ao corpus, o Manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A primeira parte se intitula “Dados biobibliográficos da Antônio da Fonseca Soares e algumas considerações filológicas”. Trata-se de uma breve reunião de dados biográficos, incluindo um apanhado de sua bibliografia, apresentados na medida em que contribuem para a compreensão da apreciação do autor pela História da Literatura. Ao final, tratamos de alguns aspectos filológicos em torno do manuscrito 2998, procurando enunciar uma breve fundamentação dos princípios de Crítica Textual relevantes para o período, com uma breve discussão em torno da autoria – necessária, embora polêmica para os padrões da época - tendo em vista o foco do trabalho nas fontes primárias. A segunda parte se intitula “A fortuna crítica de Antonio da Fonseca Soares do século XVII aos dias atuais”, dentro da qual procuramos resumir os diferentes pontos de vista pelos quais a obra do autor foi julgada ao longo da história. Logo após a sua morte destacam-se as primeiras biografias, pautadas pelo tom “hagiográfico”, e nas quais tem início a dicotomia padre/pecador que se desenvolve, em termos literários, na dicotomia erudito/vulgar, que se tornará onipresente nas discussões a respeito da obra de Antônio da Fonseca Soares. No século XVIII destaca-se a crítica feita por Verney, com óbvias reservas ao compromisso iluminista desse autor. O século XIX mostra os primeiros interesses em recuperar a poesia manuscrita do século, principalmente os poetas “vulgares”, e Antônio da Fonseca se torna figura relevante no período. A partir do século XX, entretanto, é que se começa um estudo mais academicamente dirigido, com a obra de Maria de Lourdes Belchior, a qual cunha o termo “poesia vulgar” para a definição da poesia de Fonseca, assim como do período. É do século XX, ainda, que extraímos o viés retórico-poético que dá o caminho para nossos estudos. O segundo capítulo, “A descrição em Antônio da Fonseca Soares: a poesia “vulgar” e sua herança clássica” procura examinar em detalhes esse aspecto da poética de Fonseca, procurando expor um “estado da questão” no sentido de fundamentar o que é dito nas análises que virão em seguida. A primeira parte desse capítulo tem o título “A retórica da descrição: ut pictura poesis”, o qual procura reunir o que propomos como herança clássica da descrição, recuperando desde os princípios aristotélicos da mimesis até o enunciado horaciano do ut pictura poesis. A segunda parte, constitui-se do terceiro capítulo da dissertação, à qual damos o título “A prática do retrato”. Procura situar, no ambiente seiscentista, os romances descritivos. Esta segunda parte dedica-se ao próprio texto do manuscrito 2998 BGUC, procurando deslindar suas sutilezas e compreendê-lo à luz da prática de escrita do tempo em foi produzido. A análise é guiada pelo exame de um determinado número de romances-chave, que, a nosso ver, seguem os princípios do “retrato”. Quando consideramos pertinente, lançamos mão de alguns textos do período, seja do próprio autor, seja de seus contemporâneos, que contribuam para a compreensão do uso das imagens e do modo de construí-las. A primeira parte do capítulo enfoca os retratos de modo geral, procurando esmiuçar o uso das diversas imagens convencionadas para o elogio da dama da Corte. A segunda parte escolhe um motivo em especial coerente com a persona do “Capitão Bonina”, a comparação amor/guerra, explorando o ambiente da Sociedade de Corte do Império Ultramarino português e o uso de tópicas tais quais a da origem e a da nação. Durante as análises, procuramos ressaltar a engenhosidade barroca e a riqueza de estilo advinda de um uso peculiar de imagens e convenções, e também demonstrar o valor desse tipo de poesia, ainda que distante no tempo e divergente de certos valores literários dos leitores contemporâneos, para lhe desvendar os segredos da construção e os parâmetros para a escritura de uma boa poesia da época. Essa poesia merece estudo, mesmo cheia de “clichês”, como uma parte da História Literária denomina sua intertextualidade peculiar, ou “frívola”, como alguns críticos chamam à poesia de circunstância, a qual exercia a sua função na sociedade portuguesa de então. Ao fim, pretendemos ter recuperado um pedaço importante da produção cultural portuguesa do século XVII, que de outra maneira estaria para ter sido consumida pelo tempo no fundo do arquivos. 1 ANTONIO DA FONSECA SOARES E SUA PRODUÇÃO 1.1 DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FILOLÓGICAS Em 19 de maio de 1663, na Capela dos Ossos, em Évora, um pecador ganha vida nova, e, juntamente com o hábito de Frei, adota o nome de Antonio das Chagas. Salvo de afogar-se no ‘oceano do mundo’, faz uso de sua veia literária para a oratória do púlpito, na qual se torna célebre. Homem de ação, em 1671 dá início a peregrinações apostólicas, viajando pelo interior de Portugal para espalhar a doutrina católica para o povo mais humilde; nesse período, durante as longas viagens e intensa pregação, sua epistolografia deu origem a sua obra mais prestigiosa, as Cartas Espirituais. Havendo impressionado tanto o povo com suas peregrinações quanto à fidalguia com sua oratória, o Frei, após sua morte, em 20 de outubro de 1682, nutriu uma fama de homem santo. Essa fama cresceu e concretizou-se em biografias construídas na forma de encômios, tais quais o da Vida e morte do Varão Apostólico e grande servo de Deus Fr. António das Chagas, escrita por Fr. Raphael de Jesus1 ou o da Vida, Virtudes e Morte com opinião de santidade do Venerável Padre Frei Antonio das Chagas, do Padre Manuel Godinho2. As informações biográficas posteriores baseiam-se nessas obras, construídas sob uma clara dicotomia: falam 1 Intitulada Vida e morte do Varão Apostólico e gr.de servo de Deus Fr. António das Chagas, Composta e repartida em cinco tratados pelo Cronista-Mor do Reyno Fr. Rafael de Jesus Beneditino Professo. Em a reformada Congregação do Principe dos Patriarchas S. B.to nos Reynos de Portugal. No insigne Most.o de S. Bento da Saúde da Corte e Cid.de Lx.a Natural da Regia e sempre Leal cidade de Guimarães, Anno de 1683., segundo PONTES (1953, p. 8) esse trabalho encontra-se em mau estado de conservação na Biblioteca Pública de Braga, como manuscrito 801. 2 Vida, Virtudes e Morte com opinião de santidade do Venerável Padre Frei Antonio das Chagas, da Ordem de São Francisco, Missionário Apostólico da mesma Ordem sito em Varatojo, novamente impressa e acrescentada com humas Elegias e devoçoens do mesmo Venerável Padre. tanto do fervor virtuoso pregador quanto do soldado pecador, galanteador, indecente, controlado pelas paixões. Nosso trabalho não tratará do consagrado pregador, mas sim do “poeta pecador” Antonio da Fonseca Soares, nascido em 31 de junho de 1631, na Vila da Vidigueira, nas proximidades de Évora, filho de Antônio Soares da Figueiroa e Dona Helena Elvira de Zuñiga. Ambos os pais são de origem fidalga, o pai juiz, português e mãe católica, irlandesa, refugiada em solo português. Os biógrafos que apresentam esses dados (eivados de juízo de valor) concordam em dizer que Fonseca já produzia poemas avulsos em 1649, quando abandonara os estudos de Latim e Filosofia em Évora, devido à morte do pai em Leiria, retornando a Vidigueira para cuidar da mãe e irmãs. Lá, com seu jeito namorador e boêmio, mata um homem em um duelo e encontra refúgio da justiça na Guarnição de Infantaria de Moura. A partir desses fatos, cria-se a figura do “Capitão Bonina”, alcunha que resume tanto os sucessos militares quanto a galanteria expressa em sua poesia amorosa. Durante o serviço militar em Moura escreve o trágico/épico Filis e Demofonte, dedicado ao príncipe D. Teodósio. Em 1651, possivelmente por pressão da família da vítima de seu crime, parte para o Brasil, para uma estadia de três anos. É no Brasil que, após uma leitura da obra de Frei Luís de Granada, sobre os tormentos do inferno, resolve converter-se e engajar-se na vida monástica. A ordem de São Francisco, entretanto, desconfiada da conversão repentina de um pecador tão famigerado, rejeita seu pedido, e sua desconfiança se mostra fundamentada, já que, ao regressar do Brasil, em 1653, Antônio da Fonseca “engolfa-se novamente no Oceano do mundo”; e em uma carta de 1662, escrita a seu benfeitor D. Francisco de Sousa descreve: Isto me fez de novo engolfar neste oceano do mundo; donde os sinais do temporal são achar sempre o mar deleite, e donde as melhores enseadas são esses baixos, e perigos, a quem corre cegamente arrebatado já das Sirenas ((manuscrito 345 da BGUC, [16--], p. 43-44)). Continua com sua vida desregrada, tendo, porém, um papel importante nas campanhas Badajoz, Olivença e Mourão, essenciais para os esforços de guerra pela Restauração da monarquia portuguesa. Escreve dois poemas épicos sobre o conflito, um sobre a campanha em Mourão, em 1657 (Mourão Restaurado) e outro sobre o cerco e resgate de Elvas em 1659 (Elvas Socorrida). Há ainda notícias de haver escrito um texto de caráter geográfico e estratégico, provavelmente endereçado ao tenente general do Alentejo, Joane Mendes de Vasconcelos, uma das principais figuras na luta portuguesa contra o domínio espanhol. O próprio poeta descreve seus sucessos na carta do manuscrito 345: Contudo como era minha profissão serviço das Majestades e as liberdades desta vida objeto das minhas desenvolturas, continuei assaz contente daqueles mesmos estorvos de que eu me achava mal sentido e como o agrado universal, que em mim foi benção das estrelas, ou já morgado da fortuna, me granjeou a pouco custo o aplauso de todo o exercito, e a estimação dos generais, não só me avultaram em breve tempo préstimo, que não era muito, mas me livraram em breves dias de crimes, que eram poucos; obrando estes benefícios o favor de Sr Joane Mendes, a quem devo bastantes créditos, e do meo General, a quem confesso iguais apoios (manuscrito 345, [16--], p. 44). Após a conversão, assumindo o nome de Frei Antônio das Chagas, destacou-se como orador, sendo comentado por Antonio Vieira que critica a teatralidade exacerbada de Frei Antonio das Chagas e dos sermões franciscanos (cf. CHAGAS, 1957, p. XXI). Essa querela tem fundo político, já que Fonseca e os franciscanos censuravam D. Pedro por ter deposto o irmão e tomado a cunhada por esposa, e criticado por seu estilo enfático e teatral. Um desenvolvimento desse conflito político aconteceu em 1676, quando Chagas rejeita a mitra de Lamego oferecida pelo príncipe. Sua epistolografia, produzida durante os onze anos de peregrinações apostólicas, deu origem às Cartas Espirituais, primeira obra impressa, que conheceu diversas edições desde 1684. O Frei ainda escreve obras devocionais, depois reunidas com o título Desengano do Mundo, publicada a partir de 1743. Mantém-se ativo na direção do seminário que funda em Varatojo, até sua morte, em 20 de outubro de 1682. Após sua morte, detém fama de homem santo, tendo sido atribuído a si fatos milagrosos, como uma tempestade e um terremoto, quando havia pregado em Setúbal, no ano de 1680. Deixando de lado o pregador, a produção lírica do poeta provavelmente deve ter-se mantido constante no período que vai de 1649 até sua ordenação, em 1663. Caracteriza-se sua poesia como de circunstância, ou seja, composta por textos geralmente curtos, de assunto leve, com uma linguagem viva e espontânea, provavelmente endereçada a amigos ou distribuída como folhas soltas num restrito círculo cortesão de letrados. A transmissão da produção profana de Fonseca ocorreu, portanto, depois desse primeiro estágio, por compilações, ou cancioneiros de mão, as quais, como era característica da época, não tiveram preocupação com autoria ou com a integridade dos textos. Poucos desses escritos foram além da edição manuscrita e a maior parte está na Fênix Renascida (1716-1728), com grande número de romances e sonetos, e no Postilhão de Apolo (1761-1762), caso de seus dois poemas, um trágico e um trágico/épico, além de grande número de romances e sonetos. O manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra é uma dessas compilações. Uma edição crítica de seus 104 poemas está por se fazer3, o que, entretanto, devido à prática de escrita do período, ainda não irá garantir uma atribuição inquestionável e a forma definitiva desses romances. Problemas de atribuição são onipresentes nos autores do período. Tomemos como exemplo a problemática do maior poeta seiscentista brasileiro: Gregório de Matos. Um debate interessante é travado sobre a autoria dos poemas de Gregório e a problemática que surge como consequência dela. Um exemplo dessas discussões é a resposta de Haroldo de Campos à leitura de A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen. O último, no que diz respeito à vida de Gregório, afirma que figura histórica do autor se perde totalmente ao considerarmos que suas biografias são moldadas retoricamente no gênero Vida, como era a prática na época. O mesmo se pode dizer das biografias de Fonseca, como escreve Christopher Chapman Lund a respeito da biografia de Godinho: A biografia de Godinho é impressionista e inexata em muitos detalhes e, portanto, tem valor questionável a não ser para testemunhar a importância de Fonseca como uma figura socio- religiosa no século XVII em Portugal4 (1974, p. 239, tradução nossa). Tanto no caso de Gregório de Matos quanto no de Antônio da Fonseca Soares, qualquer atribuição de autoria, caso essa seja mesmo indispensável, mostrar-se-á incerta, já que suas obras sobreviveram como apógrafos copiados anos depois da morte dos autores. Daí o trabalho de Hansen se propor a colocar a 3 Para os fins dessa dissertação, os romances pertencentes ao ms. 2998 BGUC comentados nesse trabalho estão editados e atualizados ortograficamente nos Anexos. 4 Godinho’s biography is impressionistic and inaccurate in many details and is, therefore, of questionable value except that testifies to the importance of Fonseca as a socio-religious figure in seventeenth-century Portugal. questão num nível mais abstrato que concreto, buscando uma visão mais geral, para evitar tentar responder o impossível: No ramilhete de víboras da sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra falta algo irremediavelmente, contudo, flor ausente em todos os buquês [...]: falta o passado mesmo, [...]. Este lugar é o da escrita: lugar do morto, monta-se aqui uma encenação em que não se escreve nunca sobre algo supostamente visto ou dito, antes sobre modos históricos de ver e de dizer, conforme repertórios de lugares-comuns, argumentos e formas da tradição retórico-poética e suas transformações locais. (HANSEN, 1989, p. 29) Essa incerteza de Hansen em relação à autoria dos poemas, segundo Haroldo, iria além dos (aliás, bem sólidos) argumentos filológicos. Haroldo acusa Hansen de usar uma retórica “conservadora” para basear essa incerteza: [...] Gregório de Matos não seria senão "uma etiqueta, uma unidade imaginária e cambiante", aposta a posteriori a um corpus apógrafo de poemas recolhidos por outrem (o licenciado Manuel Pereira Rebelo). (CAMPOS, 1996, p. 3) De certa maneira, o argumento de Haroldo de Campos é um tiro que sai pela culatra: o fato de o corpus gregoriano tratar de um conjunto de poemas apógrafos reunidos por outrem, décadas depois de sua morte, obriga, de fato, qualquer estudioso a se manter cauteloso ao tratar da autoria. E compreender a intertextualidade do período como uma condenação de ‘mediocridade’ é claramente tentar impor valores a épocas às quais não pertencem. No afã de defender as (injustas) acusações de plágio que estigmatizaram a figura de Gregório de Matos, Haroldo de Campos acaba por tomar um caminho questionável, ignorando importantes fatos firmemente estabelecidos pelos estudos da Crítica Textual. No século XVII, principalmente em Portugal e suas colônias, com a censura fortalecida pelas ordenações da Contrarreforma Católica, a atividade da imprensa é extremamente controlada e, portanto, reduzida. Grande parte da produção poética profana (desde a sátira até a poesia galante cortesã) continua a ser distribuída da mesma forma na qual ocorrera durante os quatro séculos anteriores, os livros de mão, uma questão muito importante na Crítica Textual do manuscrito: Como os manuscritos que, entre os séculos XIII e XIV, difundiram a lírica provençal na Europa ocidental, os ‘livros de mão’ do século XVI são em geral miscelânicos e incompletos, por vezes até fragmentários, e nem sempre com expressa indicação de autoria para os textos. (SPAGGIARI; PERUGI, 2004, p. 102) O Romance 75, analisado em profundidade no terceiro capítulo, corrobora essa prática de autoria. Além da lição encontrada no manuscrito 2998 BGUC, esse poema se encontra, com poucas alterações, na Fênix Renascida, atribuído, entretanto, a um anônimo. Trata-se de um anexo ao tomo 3 (do total de 5) chamado Poesias varias para se addicionarem aos cinco Tomos da Fenix Renascida, numa seção intitulada Poesias varias de hum anonymo. Principal fonte da poesia seiscentista nas antologias atuais do Barroco, a Fênix Renascida é uma coletânea organizada por Matias Pereira da Silva no século XVIII, “[...] já demasiado tarde para recuperar muita obra que entretanto se havia perdido e para deslindar problemas de autoria que teria sido fácil resolver cerca de século e meio antes”, escreve Silva (1971, p. 51-52). O mesmo autor enfatiza, ainda, “[...] a ausência de preocupações de rigor histórico e textual e, não poucas vezes, a deficiente probidade dos editores de tais cancioneiros e coletâneas.” (id., ibid.) Por ‘ausência de rigor histórico e textual’ Silva refere-se a ocorrências óbvias de atribuições errôneas, ausências de atribuição facilmente sanáveis, a inclusão de textos que claramente não são do século XVII, além de gralhas e erros de transcrição; já a ‘deficiente probidade’ refere-se claramente à censura e ‘correções’ efetuadas pelo editor por razões moralistas. No ambiente literário de Vítor Manuel Aguiar e Silva e da atualidade em geral, em que a autoria é um direito equivalente ao direito de propriedade, o texto é uma entidade inviolável e, portanto, as “correções” de Matias Pereira da Silva são difíceis de compreender. Antonio da Fonseca Soares adquiriu grande fama de poeta profano, e a forma romance, onipresente no período, era um dos principais veículos dessa poesia. No apêndice da Fênix Renascida há ainda mais três romances que também constam do manuscrito 2998: Amante zeloso, cujo primeiro verso no manuscrito é Aonde meu suspiro amante, A huma dama esquiva, no manuscrito Amais vossa liberdade e Sitio amoroso, no manuscrito Toquem arma as liberdades. Pode-se dizer que o manuscrito é anterior à Fênix Renascida, porém, devido ao título, foi provavelmente compilado depois da conversão do poeta profano, pois é citado o nome que o poeta adotou como franciscano. Quanto ao romance 75, as primeiras diferenças que encontramos entre os dois poemas são questões de ortografia e pontuação, as quais, porém, não se mostram relevantes à compreensão do texto. A diferença mais significativa, entretanto, é o acréscimo de uma quadra. Transcrevemos a seguir o texto que consta do manuscrito 2998: Posto sejam Titulares as prendas de Lize bela hoje se hão de descubrir como se foram pequenas O Cabelo que de raios é golfo em feliz tromenta Conde de Prado se julga porque todo em ondas quebra A testa jardim nevado onde Vênus se recreia porque duas fontes logra é de Fontes a Marquesa Da corrente de seus raios sendo arco as sobrancelhas condessa da Ponte são servindo de ponte a testa As pestanas praça de armas do Deus que traz arco e flecha por praça de armas de amor são Marquesas de Tronteira Dos seus olhos as meninas por alegres, e travessas qualquer delas por fermosa é de Alegrete condessa As duas Rosas das faces sendo de amor primaveras condessas de vila Flor me parece qualquer delas Por ser no mar de seu Rosto O nariz ilha perfeita conde da Ilha parece sendo visconde d’Asseca Porque da arrochella o porto em breve barca navega condessa de Portalegre a boca se considera A garganta onde a neve faz perpetua sentinela é condessa de Atalaya onde sempre o amor peleja Fazendo feira de flores as suas maos de asusenas tao bem na corte de Flora serão condessas da Feira O pé por ser de Solar inda que pequeno seja por conde de vila Pouca o tem qualquer que o penetra Para acabar a pintura De Lizes pede licença quem hoje por senhorias pintou suas excelências A edição da Fênix Renascida acrescenta uma quadra entre a nona e a décima estrofe, cujo fac-símile apresentamos a seguir: Nota-se que a quadra é compatível com o sentido do poema como um todo, sendo uma descrição concisa de uma parte do corpo de Lize. Como se pode perceber, o romance constitui um retrato feminino, com cada estrofe dedicando-se à descrição de uma parte específica do corpo. Como escrevemos anteriormente, essa incerteza na atribuição da autoria é um aspecto da prática de escrita do século XVII, no qual o escritor é louvado por seu engenho, mas, ao mesmo tempo, é submetido a uma lógica de produção literária que dilui seu “talento individual”. As regras de produção literária “engenhosa”, mescladas com a falta de sistema “editorial” propriamente dito, tornam a literatura do período, de certa maneira, um empreendimento coletivo. 1.2 A FORTUNA CRÍTICA DE ANTONIO DA FONSECA SOARES Nas últimas duas décadas do século XVII, os dois primeiros textos a respeito do poeta e do pregador surgiram ambos na forma de biografias. A primeira foi Vida e morte do Varão Apostólico e gr.de servo de Deus Fr. António das Chagas, Composta e repartida em cinco tratados pelo Cronista-Mor do Reyno Fr. Rafael de Jesus Beneditino Professo. Em a reformada Congregação do Principe dos Patriarchas S. B.to nos Reynos de Portugal. No insigne Mosto. de S. Bento da Saúde da Corte e Cidde. Lxa. Natural da Regia e sempre Leal cidade de Guimarães, Anno de 1683. A segunda, intitulada Vida, Virtudes e Morte com opinião de santidade do Venerável Padre Fr. Antonio das Chagas, do Padre Manuel Godinho, foi publicada em Lisboa em 1687. Não tivemos acesso aos textos (já que ambos se encontram em estado manuscrito nas bibliotecas portuguesas). Porém, pelo título, já se pode desvendar o caráter “hagiográfico” das obras, já que, certamente, procuram narrar de maneira verossímil a salvação de um pecador que alcança a santidade, dando importância secundária a dados factuais da vida do biografado. Essas obras são o primeiro passo para a criação de uma dicotomia pregador/pecador que acompanhará a figura do poeta, a partir de então, na sua fortuna crítica. A obra sacra é prestigiada e se mantém como expoente da prosa religiosa dos anos Seiscentos em Portugal. Já a poesia profana, por sua vez, permaneceu por muito tempo como uma mancha na reputação do pregador, que deveria ser apagada pela história da literatura. Essa hostilidade, entretanto, não é limitada a Fonseca, sendo voltada a toda uma geração de autores portugueses que comungam das mesmas práticas literárias, mal compreendidas nos séculos posteriores. Se fizermos um recorte dos séculos XVIII e XIX, três correntes críticas apresentam visões próprias da poesia portuguesa seiscentista, em especial da figura de Antonio da Fonseca. Essas visões encontram-se exemplificadas na crítica iluminista de Antonio Verney, na historiografia romântica de historiadores estrangeiros como Ferdinand Denis e Simonde de Sismondi, e de portugueses como Camilo Castelo Branco, além da crítica literária positivista, de Teófilo Braga. Começando pelo século XVIII, pode-se perceber o primeiro golpe no sentido de anular os méritos da poesia profana do século XVII e, com ela, boa parte da produção de Fonseca anterior à sua conversão. Um exemplo dessas críticas é exatamente a feita a um poema descritivo, tópico que analisamos em nosso trabalho. Trata-se do soneto dedicado ao cavalo do Conde de Sabugal (HANSEN & PECORA, 2002, p. 164): AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL, QUE FAZIA GRANDES CURVETAS Galhardo bruto, teu bizarro alento Música é nova com que aos olhos cantas. Pois na harmonia das cadências tantas É clave o freio, é solfa o movimento. Ao compasso da rédea, ao instrumento Do chão, que tocas, quando a vista encantas Já baixas grave e agudo já levantas, Onde o pisar é som, e o andar é concento [sic]: Cantam teus pés, e teu meneio pronto. Nas fugas não, nas clausuras medido, Mil consonâncias forma em cada ponto Pois em salsas airosas suspendido Ergues em cada quebro um contraponto, Fazes em cada passo um sustenido A descrição do cavalo é feita, como era corrente no século XVII, por uma lista de metáforas. Trata-se, provavelmente, de um poema composto no ambiente acadêmico5. Ele necessariamente segue o decoro retórico-poético da época, somando as regras do discurso encomiástico à doutrina poética da agudeza e do engenho. O discurso do elogio exigia ser amplificado por ornamentos, e o homem seiscentista o fazia por meio da construção de conceitos inusitados, que procuravam deleitar, maravilhando o público ouvinte, enquanto exercitava o engenho, criando uma aproximação entre conceitos distantes. Nesse poema, Fonseca associa o trote do cavalo a elementos da linguagem musical, de forma que uma afirmação incongruente, tal qual “cantar aos olhos”, torna-se verossímil por meio dessas associações engenhosas. Esse poema é especial pelo fato de ter sido comentado por Verney, em sua extensa obra Verdadeiro Método de Estudar, publicada a partir do ano de 1746. O Verdadeiro método é um monumento do pensamento iluminista em Portugal, cujo escopo abarca toda a vida intelectual portuguesa no século XVIII. Seus dois tomos, contendo 16 ‘cartas’, tratam desde ética e teologia até medicina e jurisprudência. A carta sétima é dedicada às matérias de Poética. Como era padrão 5 Maria de Lourdes Belchior Pontes aponta que talvez tenha sido escrito no ambiente da Academia dos Generosos (1953, p. 59). naquele tempo, Verney vincula Poética à Retórica: “[...] a Poesia é uma Retórica mais florida [...]” (1950, p. 249). Para o pensador iluminista, a poesia deve ser vinculada aos ideais aristotélicos e horacianos de unidade e clareza, tendo como componentes centrais a verossimilhança e a austeridade na construção de argumentos. Por isso, na parte final de sua dissertação sobre Poética, dedica-se a atacar os “[...] muitos [que], querendo ser poetas, são uns ridículos, porque lhes falta o principal fundamento, que é pesar as coisas e dar a cada uma o seu preço [...]” (p. 252). De certa maneira atribui a esses maus poetas a má influência estrangeira: Dos espanhóis o aprenderam os Portugueses; e commumente se persuadem que quem subtiliza melhor e diz coisas menos verossímeis é melhor Poeta. Metáforas mui fora de propósito, encarecimentos inauditos, são os seus mimosos. Ouvi gabar muito um soneto do Chagas, feito a um cavalo do Conde de Sabugal, pela metáfora da Música [...]. Mas eu, considerando o tal epigrama acho que é uma total parvoíce, desde a primeira palavra até a última. Não acho nele conceito algum; as palavras são impróprias, e muitas não tem significação certa [...]. (p. 255-256) Na crítica de Verney em relação a Chagas, as palavras-chave são “inverossimilhança” e “parvoíce”, ressaltando a fama desse autor e sua obra, que “[...] muitos louvam porque a não entendem” (p. 259). A crítica, entretanto, não se pode limitar a Chagas: “[...] o que digo dele deve-se aplicar a todos os outros, que seguem o mesmo estilo” (p. 264). E dessa maneira encerra sua diatribe dos poetas seiscentistas: A regra que eu observo neste particular é esta: quando vejo um Poeta destes, que se serve de expressões que nada significam, ou que compõem de sorte que o não entendem, assento que não quis ser entendido, e em tal caso, procuro fazer-lhe a vontade, e não o leio. (p. 265) Atente para o que Verney considerou “metáforas mui fora de propósito”, o que demonstra seu pensamento de viés neoclássico e sua desconsideração para a importância desse uso da metáfora durante o século anterior. Mesmo o pensamento de Verney sendo característico do século XVIII, faz perdurar alguns aspectos fundamentais dessa crítica na história literária portuguesa até, praticamente, no fim do século XX. Outra visão iluminista e neoclássica de Fonseca é a de Cândido Lusitano. Essa, porém, “não condena global e indiscriminadamente os poetas do período barroco” (SILVA, 1971, p. 157). Segundo Aguiar e Silva (p. 158), no Diccionario Poetico, publicado em 1765, os versos dos poetas seiscentistas são a maior fonte de exemplos de boa locução poética, mais ainda que Camões e os poetas dos Quinhentos, sendo que Candido Lusitano se refere explicitamente a Antonio da Fonseca Soares como “bom Lyrico” (apud SILVA, id., p. 157). Após o século XVIII, entramos no período das Histórias da Literatura propriamente ditas, as quais não viram o século XVII com bons olhos. Em Simonde de Sismondi, por exemplo, um dos primeiros historiadores da literatura portuguesa, a palavra-chave ao se tratar do século XVII é “decadência”: Em meio à decadência nacional, Portugal teve, durante o século dezessete, um grande número de poetas, nenhum merecedor de verdadeira reputação. Sonetos inumeráveis, bucólicas e éclogas cada vez mais insípidas e cada vez mais amaneiradas sucediam-se sem nunca se superarem; a monotonia mais cansativa reinava em toda a poesia. 6 (1813, p. 653, tradução nossa) O esforço romântico é caracterizado por uma vinculação da literatura à historia nacional, no sentido de criar “uma explicação causalista de teor político- social” (SILVA, 1971, p. 161). Vê no domínio espanhol, no crescimento da teocracia centrada no movimento contrarreformista e no crescimento de uma sociedade 6 Au milieu de la décadence nationale, le Portugal eut, pendant le dix-septième siècle, un très grand nombre de poètes, mais aucun n'a mérité une vraie réputation. Des sonnets sans nombre, des bucoliques et des églogues toujours plus fades et toujours plus maniérées se succédaient sans jamais se surpasser; la monotonie la plus fatigante régnait dans toute la poésie. aristocrática, em vez de uma classe burguesa, como fatores deletérios. Antonio da Fonseca Soares é, portanto, como todos os poetas da época, descartado, por constituir produto de um Portugal decadente. A mesma visão tem Ferdinand Denis, que em sua Résumé de l'histoire littéraire du Portugal também inclui Antonio da Fonseca no mesmo grupo: Depois de lançar os olhos rapidamente sobre essas extravagâncias as quais se teve o cuidado de conservar em compilações, cujos títulos bizarros são já uma prova da decadência do gosto, é ainda necessário nomear os autores que se tornaram ilustres nesse gênero e que gozaram de certa reputação? Nomearia Jerônimo Baía, outro imitador de Gôngora, e não menos ridículo que esses que eu acabei de mostrar nos amores de Polifemo e Galatéia; Simão Torresão Coelho, Fernão Correia Lacerda, e tantos outros que Barbosa7 tem o prazer de assinalar em seu volumoso Dicionário.8 (1826, p. 395-396) Como esses dois excertos demonstram, Antonio da Fonseca Soares e seus coetâneos, tais com Jerônimo Baía e Antônio Barbosa Bacelar, eram incluídos no mesmo grupo e conjuntamente descartados como símbolo da decadência portuguesa. Um romântico realmente português, Camilo Castelo Branco, por sua vez, dá um lugar de destaque à poesia profana de Antônio da Fonseca: [...] sobrevivem á fama de seu auctor [Antonio da Fonseca Soares] volumes manuscriptos que, se nada prestam como provas de estro, occultam jóias de locução que denotam profundo estudo da lingua, e vontade de opulental-a com neologismos castelhanos (1876, p. 47). 7 Diogo Barbosa Machado, autor da Biblioteca Lusitana, coleção de referências de autores e obras da Literatura Portuguesa publicada entre 1741 e 1758. 8 Après avoir jeté un coup d'oeil sur ces extravagances qu'on a pris soin de conserver dans des recueils, dont les titres bizarres sont déjà une preuve de la décadence du goût, est-il bien nécessaire de nommer les auteurs qui s'illustrèrent dans ce genre, et qui jouirent de quelque réputation? Nomerarai-je Jeronymo Bahia, autre imitateur de Gongora, et non moins ridicule que ceux que je viens de faire connaître dans les amours de Polyphème et de Galathée; Simaô Torrezaô Coelho, Fernam Correa de Lacerda, et tant d'autres dont Barbosa se plaît à signaler les absurdes productions dans son volumineux dictionnaire. O século XIX deu à luz a sua primeira biografia sem compromissos estritamente religiosos, Vida Mundana de um frade virtuoso, publicada no ano de 1889, na forma de um perfil histórico, que deixa de lado os estigmas do período e manifesta, inclusive, preocupações filológicas e de recolha da obra do poeta, o qual, ao contrário do Frei, não possui edição de sua produção. Um dado moralista, entretanto, ainda permanece, como por exemplo, a exclusão das poesias fesceninas que lhe atribuem. À crítica romântica segue-se a crítica chamada positivista, cujo principal expoente é Teófilo Braga. Ele já dá destaque a Antonio da Fonseca Soares em seu primeiro trabalho de História Literária, publicado em 1870. A versão final de sua obra, porém, é publicada em 1909, já no século XX, do qual tratamos a seguir. 1.3 O SÉCULO XX Na primeira metade do século XX, Teófilo Braga, na História da Literatura Portuguesa: Os Seiscentistas, inclui, em tom irônico, Fonseca Soares “ao tropel dos poetas romancistas” (2005, p. 302). Norteado pelo viés positivista, explica a obra fonsequiana pelas possíveis influências do meio em que vivia. Assim, declara que o Fonseca dos romances é influenciado pela febre gongórica que assolava a sociedade portuguesa de sua época e, num discurso especulativo, sugere que os romances de saudades tenham sido escritos no momento em que o Capitão Bonina esteve no Brasil, pois “era a adaptação ao meio que estava sofrendo, a nostalgia das saudades que novamente o inspira” (p. 312). O determinismo característico do pensamento positivista também se manifesta numa explicação cientificista de sua conversão, ligando-a aos antepassados que combateram pelo catolicismo na Irlanda: Pode já inferir-se que esse fanatismo religioso a que se voltara seu avô [...] e os sustos de sua mãe foragida em uma vila do Alentejo, entre estranhos, lhe transmitiram essa tendência para a credulidade que veio a tornar-se exclusiva pelas decepções do amor. A psicose religiosa tornou-se extensiva à família [...]. (p. 304) Entretanto, dispensa comentários positivos ao poeta, considerado “o melhor representante do lirismo gongórico em Portugal” (p. 302) e, consequentemente, reabilitando, de certa forma, a poesia do século XVII. Já em 1953 sai o mais importante trabalho sobre a obra de Fonseca, Frei António das Chagas: um homem e um estilo do séc. XVII, escrito por Maria de Lourdes Belchior Pontes. A autora enfoca, entretanto, no autor religioso. O “poeta vulgar”, como o chama o autor da poesia profana, é relegado a somente aos primeiros capítulos, e a palavra “poesia” frequentemente é usada com ressalvas: É uma poesia de cano de esgoto, uma espécie de maré-baixa, mal cheirosa, que inunda as miscelâneas seiscentistas; raras são, de facto, as colectâneas de versos de seiscentos, em que pasquins ou romances pícaros e obscenos se não alonguem de página para página. Dir-se-ia que para equilibrar os ensaios e os exercícios da poesia culterana, toda empenhada em falar cristais e expressar agudezas, os poetas necessitavam de realismos crus. Fonseca integra-se perfeitamente nesta tendência [...]. (PONTES, 1953, p. 101) Se a poesia “mal cheirosa” inclui o que moralmente se considera sujo, como a poesia fescenina e a sátira, pode-se dizer que, além disso, o mal cheiro também inclui um teor de “realismo”, aproximando a poesia da realidade quotidiana das ruas e do vulgo. É nesse sentido que Belchior inclui a poesia descritiva feita no âmbito da poesia vulgar: Se descreve a graça airosa da senhora amada, já a não pinta loira e pálida, como faziam os poetas renascentistas; a mulher desce do Olimpo e é agora de carne e osso, sangra-se, adoece, pede vestidos caros, vende fruta ou vai a um jubileu. Nenhum idealismo, nenhuma sublimação; não se distinguem nos romances as senhoras das mulheres-damas e as dores do poeta parecem fingidas. Um realismo quase burlesco invadiu o Parnaso. (PONTES, 1953, p. 101) Pontes, quanto à poesia descritiva, cria uma dicotomia idealismo-realismo, paralela à dicotomia renascentista-seiscentista, o que é comum ao se tratar desse período, e que examinamos a seguir. Ainda relacionando a poesia descritiva de Fonseca, a autora ressalta que “predominam os lugares-comuns”. Resume dessa maneira o lugar de Fonseca em seu tempo: Poetastro jovial e terno, versejador impenitente, o capitão Bonina repetia os “tópicos” da poesia renascente, imitava por mofa os lugares-comuns da seita culterana e enxameava o seu romanceiro de palavras familiares, de chistes, de gracejos, às vezes escabrosos, de modos de dizer dengosos e correntões. (PONTES, 1953, p. 104) Como vimos, a poesia de Fonseca teve vários detratores nos três séculos posteriores. Uma maneira, entretanto, de compreendê-la melhor é recuperar os princípios de escrita que vigoravam no momento mesmo da sua escritura. Na próxima seção, procuraremos examinar elementos chave que contextualizam as metáforas “exageradas”, os repetidos “lugares-comuns” e o decoro que os justificam durante o século XVII. Já entrando por meados do século XX e início do XXI, com a chegada de linhas teóricas como o desconstrucionismo e pós-estruturalismo, constatam-se mudanças na abordagem da literatura do século XVII, vindas para resolver alguns problemas deixados pelas novas tendências de análise literária. O chamado New Historicism, é assim definido por Ivan Teixeira: [...] o new historicism atenua os limites entre discurso artístico e discurso social, entendendo aquele como projeção da estrutura deste. Não se trata, repita-se, de entender a arte como reflexo ou como produto condicionado por elementos exteriores a ela, como fazem supor certas aplicações do marxismo. Cumpre apenas entendê-la como parte de discurso mais amplo, para cuja compreensão é necessário desintegrá-la do todo e, depois, em movimento heurístico, reintegrá-la ao organismo de que é parte. (TEIXEIRA, 1998) A obra de relevância que inaugura essa linha de estudos do século XVII no Brasil é intitulada A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, publicado no ano de 1989, por João Adolfo Hansen. A obra propõe uma verdadeira exumação do público e dos poetas dos Seiscentos: O passado é uma ficção do presente, ponto evanescente mas não arbitrário de sua enunciação. Com a tenuidade e a descontinuidade implicadas na operação, trata-se de compor aqui o lugar do morto, tempo e espaço imaginários, hoje mudos, fragmentados pelos ecos das múltiplas vozes silenciadas para sempre que vão falando nos textos [...]. Trata-se de fazer emergir, do emaranhado dos poemas e outros discursos do século XVII, um esboço de um fundamento da sátira e das posições políticas que distribui num espaço efetuado. Em outros termos, trata-se de evidenciar uma dupla temporalidade, a das regras de funcionamento dos poemas conforme um lugar e um trabalho nele produzido, a Bahia do século XVII, e a das regras do funcionamento desta crítica, produzida num lugar institucional para um fim predeterminado, recusa-se a trabalhar com categorias românticas. Sabendo sempre do anacronismo em que pode incorrer, uma vez que o anacronismo romântico é vigente, o morto fala, continua falando. (HANSEN, 1989, p. 29) A abordagem de Hansen parece identificar-se com o que Jauss chama de “reconstrução do horizonte de expectativa” (1994, p. 35) que é, com efeito, uma das razões para a própria existência de suas teses da Estética da Recepção9: “O método 9 Jauss, numa entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine, indica que seu estudo da obra medieval Reineke Fuchs, a qual estudou “[...] não mais a partir da comparação com aquelas fontes que os filólogos freqüentemente supunham ser suas, mas sim da reconstrução das expectativas dos leitores contemporâneos à obra” (JAUSS, 1994, p. 72). da estética da recepção é imprescindível à compreensão da literatura pertencente a um passado remoto” (1994, p. 35). Nesse sentido, primeiramente, privilegia-se o resgate dos pressupostos do gênero satírico, colocando-se em análise a forma como os letrados do século XVII se expressaram a partir das preceptivas e dos tratados do período, sendo examinada a concretização desses pressupostos na obra de Gregório de Matos e até mesmo com breves referências a procedimentos semelhantes de seus contemporâneos, os quais contam nomes tais como Quevedo, Marino, Baltasar Gracián, Alexander Pope e até mesmo Shakespeare. É feito também um panorama da política e da sociedade colonial brasileira do período, com ênfase na política de matriz teológica contrarreformista da doutrina do “corpo místico” do estado e, com esse fim, são analisadas as Cartas da Câmera e as Atas do Senado da cidade de Salvador produzidas durante o século XVII e documentos da Santa Inquisição. Em segundo lugar, além do esforço positivo de reconstrução do período, é incessante a voz negativa da refutação de juízos críticos, que Hansen qualifica anacrônicos, interessados ou simplesmente erros de leitura da produção literária seiscentista. Outros trabalhos a respeito de Fonseca, produzidos já no ambiente acadêmico contemporâneo, na segunda metade do século XX, foram esparsos. Há o trabalho de Chistopher Chapman Lund, Conceptismo In Three Seventeenth-Century Portuguese Poets: Antonio Barbosa Bacelar, Jeronimo Baia And Antonio Da Fonseca Soares, no qual o teórico explorou a poesia de Fonseca em língua espanhola, o poema longo Soledades e o curto épico Filis y Demofonte, lidos a partir de fontes manuscritas, dedicando um capítulo que resgata os aspectos conceptistas de Fonseca nessas obras. Além desses trabalhos, temos o artigo Antônio da Fonseca Soares, an imitador of Góngora e Cálderon, de Eunice Joner Gates e alguns comentários esparsos acerca da obra secular de Fonseca, especialmente seus romances, no livro Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Há ainda a dissertação do português C. M. Almeida, Romances de ausência e saudade de Antonio da Fonseca Soares, que trabalha com 15 poemas do códice 3549 da Biblioteca Nacional de Lisboa, abordando a temática da saudade. Outro trabalho de aprofundamento é a dissertação de mestrado de Gelise Alfena, Santinho do pau oco: sensualidade e religiosidade nos romances do Padre Antônio da Fonseca, no qual foram estudados os aspectos eróticos de um corpus de 20 poemas, contidos no manuscrito 2998 BGUC. Nosso exame da obra de Fonseca, nas páginas seguintes, procura resgatar o espírito das práticas de escrita do século XVII, muito na corrente de estudiosos como João Adolfo Hansen, apontando os elementos que eram considerados pelos produtores e receptores dessa poesia. 2 A DESCRIÇÃO EM ANTÔNIO DA FONSECA SOARES: A POESIA “VULGAR” E SUA HERANÇA CLÁSSICA “quanto florida na cores tanto florida em conceitos” Romance 32 Nos versos acima, Antonio da Fonseca Soares metaforiza a boca de sua “Senhora”. Unificando a ‘cor’, da bela aparência, e ‘conceitos’, da agudeza das palavras. A Senhora de Fonseca, de forma engenhosa, equivale a uma pintura ou a um poema ornado, “florido”, de acordo com modelos de perfeição autorizados pelas disciplinas de Retórica e da Poética. De fato, ‘cores’ e ‘conceitos’ são termos tomados pelo poeta de um vocabulário técnico, reaproveitando uma tópica de comparação entre as artes da pintura e da poesia, cuja presença em trabalhos de preceptistas remonta à Poética aristotélica. No século XVII, esse intercâmbio entre as duas artes era constante na produção poética e se manifestava em fenômenos tais como o dos ‘emblemas’, ‘empresas’, ‘divisas’. No contexto desse poema, o louvor da mulher amada feito pela chave metalinguística, é especialmente ilustrativo da mentalidade seiscentista. Em primeiro lugar, esses versos revelam o uso da metáfora que, de maneira engenhosa, procura deleitar o leitor ao comparar diretamente a boca a uma flor, aproximando dois conceitos distantes, e apelando principalmente ao sentido da visão. Revela, ainda, a dívida do homem do século XVII à teoria antiga da arte, no uso de termos técnicos tais como “conceito” e “cores”. Ainda, a comparação da boca a uma flor é uma metáfora que se enquadra numa tradição de descrição do corpo feminino, presente na poesia lírica amorosa que no século XVII disseminada pelas coletâneas e compilações de poemas manuscritos. O poeta desenvolve o poema citado na forma poemática do romance, de origem popular, composto em redondilhas maiores distribuídas em estrofes de quatro versos e rimas assonantes. A estrutura dessa forma é então aproveitada para a dispositio da descrição, cada uma de suas estrofes dedicando-se a uma parte do corpo feminino, e cada uma dessas partes dá ensejo ao desenvolvimento de um conceito engenhoso. Poemas descritivos que se utilizam dessa mesma fórmula, ou fórmulas semelhantes, carregam em suas didascálias10 a denominação de “retrato”, como um verdadeiro gênero, elemento importante no contexto da poética do século XVII, o qual pretendemos abordar. A divisa ut pictura poesis, criada pelo romano Horácio, é a palavra-chave para se compreender a essa prática de poesia descritiva, ilustrando a tradição poético-retórica subjacente a poemas como os romances do manuscrito 2998 BGUC. 2.1 A HERANÇA CLÁSSICA DA DESCRIÇÃO E O UT PICTURA POESIS O português Manuel Pires de Almeida, contemporâneo de Antonio da Fonseca Soares, é autor de um tratado intitulado Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia, redigido em 1633, no qual escreve: Grandes são as proporções, grandes são as semelhanças, concordâncias, ou simpatias, que têm a tinta, e a cor, a pena e o pincel. [...] Simbolizam entre si como irmãs gêmeas, e parecem-se 10 Como a literatura se trata de uma prática coletiva, é comum que terceiros atribuam títulos a poemas alheios, os quais muitas vezes consistem de uma descrição da matéria do poema, além de muitas vezes fazer uso de termos técnicos que indiquem o gênero ou a forma do poema. tanto, que quando se escreve se pinta, e quando se pinta, se escreve (MUHANA, 2002, p.69). A assertiva da identificação entre as artes, expressa por Manuel Pires de Almeida nesse trecho, é a consequência de séculos de tratadística a respeito da pintura, elaborada desde a Antiguidade. Durante o Renascimento, era nítido o esforço de incluir a pintura no rol das artes liberais, diferenciando-a das ‘vulgares’ artes mecânicas (cf. Da Pintura, de Leon Battista Alberti, e o Diálogo de Pintura de Paolo Pino) e, para tal, os tratadistas se utilizaram de conceitos, termos técnicos e princípios já há muito consagrados pelas disciplinas de Poética e Retórica. Esses princípios haviam se mantido vivos no ambiente intelectual da Idade Média, preservados pelos trabalhos de Cícero, Horácio e Quintiliano, e encontram um reforço a partir do século XIV, nos estudos em obras da Antiguidade recém- descobertas, como a Poética de Aristóteles. A relação entre poeta-pintor no período de Antônio da Fonseca Soares é, portanto, um lugar-comum sempre presente tanto na prática descritiva quanto na teorização dessa prática. Ela é praticamente um item obrigatório nas “proposições” dos poemas descritivos de Fonseca: De chança quero pintar Isabel essa beleza e quero zombar de graça já que tu zombas deveras (Romance 28, manuscrito 2998) Pintar, Senhora, quisera as sombras dessa beleza, que nos claros nem por sombras é bom pincel minha pena. (MALDONADO, p. 477) Retratemos, musa, agora o rosto de Francisquinha (MALDONADO, p. 479) A descrição para fins artísticos, a ecfrase, é praticada desde os primórdios da literatura ocidental, estando presente, por exemplo, na Ilíada, na descrição do escudo de Aquiles forjado por Hefesto no canto 18. O termo ecfrase, atualmente, tem a conotação específica de uma descrição de obra artística, porém, como denota sua contraparte latina, descriptio, e também como registra Bianca Fanelli Morganti: [...] a extensa área de referência do termo envolvia, na consuetudo poética e retórica, um sentido mais amplo: tratava-se de uma descrição verbal viva e detalhada de uma pessoa, lugar, acontecimento ou objeto que, produzindo um forte efeito visual e sonoro, causasse um conseqüente impacto emocional nos ouvintes daquele discurso. (2008, p. 2) No caso de Antônio da Fonseca Soares, construir a descrição serve para representar o sentimento amoroso, buscando a eficácia retórica para a construção do elogio da dama. O aspecto interartes, embora não a resuma, sempre esteve ligado à descrição. Em especial, a relação entre a poesia e a pintura. Segundo o grego Plutarco, o primeiro registro da comparação encontra-se em Simônides de Céos, poeta lírico grego, que diz que a pintura é uma poesia muda, e a poesia é uma pintura que fala (cf. CAMPBELL, 1991, p. 368). O relacionamento dessas artes foi utilizado por Aristóteles, que lançou mão da comparação entre poesia e pintura na Arte Poética muitas vezes. Aristóteles afirma a homologia dos procedimentos das duas artes em passagens como: “O poeta é imitador como o pintor ou qualquer outro imaginário” (1966, p. 99), ou, no capítulo XV, que o poeta, ao construir os caracteres, deve “seguir o exemplo dos bons retratistas” (1966, p. 85). Todas as comparações ocorrem no sentido de igualar as duas formas de artes como imitações, centradas na questão da verossimilhança. A separação das artes, na concepção de Aristóteles, é apresentada dentro de uma classificação segundo os critérios de demonstração dos meios, objetos e modos. E os gêneros de imitação, os quais se definem com esse instrumental teórico, são: “A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística” (id., ib., p. 68-9). Diz que elas imitam “com o ritmo, a linguagem, e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente” (p. 69). No que diz respeito à pintura, parecem ser pintores os que ‘exprimem-se por cores e figuras’ (p. 69), termos recuperados pelo Humanismo e que estão presentes até o século XVII. 2.1.1 UM PARÊNTESES: UT PICTURA POESIS, RETÓRICA E DECORO Seguindo uma tradição aristotélica, Horácio, na Ars Poetica, cria a expressão ut pictura poesis, a qual se tornará uma verdadeira divisa da prática descritiva. A expressão, entretanto, foi explorada exaustivamente durante os milênios que nos separam de Horácio, sendo necessário frisar as seguintes palavras do professor norte-americano Wesley Trimpi, com as quais aponta a multiplicidade de perspectivas a partir das quais a passagem pode ser analisada: A analogia pode ser considerada à luz da epistemologia, da psicologia e da percepção visual, da representação pictórica em relação à écfrase retórica, da rivalidade entre disciplinas artísticas, da retórica, ou uma combinação de uma ou mais dessas atividades. Eu argumentaria que Horácio trabalha principalmente num âmbito de um contexto específico na história da retórica, não obstante o quão sugestivo os outros contextos possam ser, e que ele não está preocupado diretamente com representação pictórica e literária nessa passagem em particular11 (TRIMPI, 1973, p. 2). Essa posição de Trimpi quanto a interpretar o ut pictura poesis de um ponto de vista retórico, como regulador do decoro, remonta ao capítulo XII do 11 The analogy might be considered in the light of epistemology, psychology and visual perception, pictorial representation in relation to literary ecphrasis, rivalry between artistic disciplines, rhetoric, or a combination of one or more of such activities. I shall argue that Horace draws upon a specific context in the history of rhetoric, however suggestive these other contexts may be, and that he is not concerned directly with literary or pictorial representation in this particular passage. terceiro livro da Arte Retórica de Aristóteles, como o próprio Trimpi indica (op. cit., p. 3), quando o estagirita contrapõe os estilos oratórios apropriados aos três gêneros (demonstrativo, judiciário e deliberativo). Nessa passagem, Aristóteles também compara pintura e oratória: O estilo escrito [demonstrativo] é o mais exato; o estilo das discussões é mais dramático. Este último comporta duas espécies: uma traduz os caracteres [judiciário], a outra, as paixões [deliberativo]. [...] O estilo que convém nas assembléias do povo assemelha-se, e em muitos pontos, ao desenho em perspectiva; quanto mais numerosa é a multidão dos espectadores, mais afastado deve ser o ponto donde se olha. Pelo que, a exatidão dos pormenores é supérflua e causa mau efeito tanto no desenho quanto no discurso. No entanto, a eloqüência judiciária requer maior exatidão, sobretudo quando nos encontramos diante de um só juiz, pois em tal caso não podemos usar senão em pequena escala dos meios da Retórica (ARISTÓTELES, [19-], pp. 203-204). O trecho no qual a divisa horaciana está explícita se encontra entre os versos 361 e 365 de sua Arte Poética. Citaremos agora a tradução deste trecho, feita por R. M. Rosado Fernandes (1984, p. 109-111): Como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se à distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos: esta, uma vez só agradou, aquela, dez vezes vista, sempre agradará. A obra do romano Horácio, por sua vez, tem início com uma comparação entre a poesia e as artes pictóricas: Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo [...] conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver tal espetáculo vos levassem? Pois crede-me, Pisões, em tudo a este quadro se assemelharia o livro, cujas ideias vãs se concebessem quais sonhos de doente, de tal modo que nem pés nem cabeça pudessem constituir uma só forma (HORÁCIO, 1984, p. 51). Esse trecho compreende claramente a imitação poética como subordinada à coerência das partes de um todo entre si (“juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo”) e a íntima relação dessa coerência com a expectativa de recepção do público (“Conteríeis vós o riso?”). No que diz respeito à comparação dos versos 361-365, o ut pictura poesis, Trimpi (1978) ressalta que o símile é apresentado por Horácio logo após sua defesa de Homero; trata-se de uma justificação dos “erros” os quais um poema longo está tradicionalmente sujeito: Ao avaliar poemas, segundo minha interpretação das palavras de Horácio, deve-se permitir erros não intencionais (menores) quando as excelências superam em número as faltas ou quando a obra é longa. Já que algumas faltas em detalhes, que incomodariam o leitor que examina de perto, seriam ‘absorvidas’ pela apresentação oral, as convenções estilísticas da épica, que o crítico responsável deve considerar, permitem uma certa falta de acabamento, sem importar o que se pode pensar em contrário12 (id., ibid., p. 31). Para chegar a essa conclusão, Trimpi analisa os cinco versos do poema que se iniciam com recurso ut pictura poesis no esquema que reproduzimos a seguir: ut pictura poesis: erit quae, si propius stes [A1], te capiat magis, at quaedam, si longius abstes [A2] ; haec amat obscurum [B1] , volet haec sub luce videri, judicis argutum quae non formidat acumen [B2]; haec placuit semel [C1], haec deciens repetitia placebit [C2]. (TRIMPI, 1978, p. 30, grifo nosso). Trimpi distingue três categorias nas quais se operam a avaliação da obra de arte na concepção de Horácio: distância (“distance”), que indica por “A”, luz (“light”), que é indicada como “B”, e capacidade de agradar repetidamente (“power to 12 In evaluating poems, I believe Horace is saying, allowances must be made for unintentional (minor) errors when excellences greatly outnumber faults and/or when the work is long. Since some flaws in detail, distracting to the closely scrutinizing reader, would have been ‘absorbed’ in oral presentation, the stylistic conventions of epic, which the responsible critic should take into consideration, permit a certain lack of finish, however one might wish otherwise. please on repeated occasions”), “C”. Com os números subscritos indica extremos nessas categorias, os quais constituem os termos das três comparações. Trimpi (1973) esclarece alguns aspectos, tais quais o valor que Horácio atribui a cada termo das comparações e a definição de qual gênero ‘amaria o obscurum’. Aponta para uma tradição que interpreta uma estrutura quiástica de valoração entre a primeira comparação com as duas últimas: A1 estaria paralelo a B2 e C2 como a melhor escolha, e A2 paralelo a B1 e C1, como a pior. Portanto, a obra que deve ser vista de perto é aquela que quer ser vista sob a luz e que agrada várias vezes, e aquela que é apreciada de longe é que ‘ama o obscuro’ e a que agrada somente uma vez. Trimpi, entretanto, questiona essa interpretação tradicional: segundo o ensaísta, a relação entre obscurum e sub luce (assim como os outros termos) representa um contraste equivalente ao que existe entre os ambientes da schola (onde há tempo para se apreciar detalhes e estudar questões) e do forum (lugar onde predominam preocupações pragmáticas e onde a minúcia dos detalhes não tem importância), que retoma a distinção entre os estilos dos gêneros oratórios em Aristóteles: A distinção de Aristóteles entre os estilos ‘escrito’, privado, refinado e o ‘falado’, público e menos meticuloso foi transposta para as convenções e hábitos literários augustanos. O estilo próprio para o escrutínio [A1] em pinturas e poemas corresponde ao estilo refinado e muitas vezes preciosista das escolas ou auditoria, o qual deve ser apreciado em segurança em um lugar umbroso et obscuro sob delicatae umbrae [B1]. O obscurum não é amado porque é escuro, mas porque é ensombreado, privado e dependente do prazer, mais confortável que o calor do sol do fórum (sub luce), onde o juiz – agora visto como um verdadeiro iudex (quem Horácio está metaforicamente comparando com o crítico) – examinará o que se diz sem nenhuma predisposição13 (TRIMPI, 1973, p.10). 13 Aristotle’s distinctions between the ‘written’, private, refined and the ‘spoken’, public, less meticulous styles have been transplanted to Augustan literary conventions and habits. The style proper for close scrutiny [A1] in pictures and poems corresponds to that refined and often precious Quanto ao terceiro termo da comparação, uma vez e dez vezes repetida, Trimpi interpreta essa repetição como a atualização das palavras escritas, ou seja, o papel cumprido pela actio retórica, que torna sempre nova, ou seja, sempre apreciável, a palavra do orador pela assembléia, por mais que a assembléia conheça o que é dito. Em poesia, isso é aplicável a Homero: Em Homero, a história em geral será familiar, e, com efeito, muitas passagens serão conhecidas de cor, entretanto, a apresentação será sempre diferente e, talvez, até mesmo a composição será sutilmente alterada, toda vez que é ouvida14 (id., 1973, p. 14). A relação entre as comparações seria, portanto, um paralelismo mais simples do que a tradição costuma interpretar: estaria em paralelo o obscurum com o que deve ser visto de perto e uma só vez e vice-versa; a relação de paralelos é, portanto, A1 // B1 // C1 e A2 // B2 // C2 15. Trimpi conclui, então, a partir do ut pictura poesis, o seguinte em relação à definição do estilo em literatura: A matéria elevada da épica requer um estilo comparável ao visualmente pouco articulado, representação como os painéis em perspectiva da figura de Horácio que é mais distante e a ser vista à plena luz. Os temas mais familiares da vida cotidiana requerem um estilo comparável às linhas meticulosamente exatas e as cores arranjadas de maneira sutil da pintura que deve ser examinada bem de perto que ‘ama’ o obscurum para sua própria proteção16 (TRIMPI, 1978, p. 49) style of the schools or auditoria which may be enjoyed security in a place umbroso et obscuro beneath delicatae umbrae [B2]. The obscurum is not loved because it is dark but because it is shaded, private and dependent on leisure, more comfortable than th hot sun of the forum (sub luce) wherethe judge – now seen as a real iudex ( whom Horace is metaphorically comparing to the critic) – will examine what you say with no predispositions. 14 In Homer, the general story will be familiar, and indeed many passages will be known by heart, but the presentation will always be different, and perhaps even the composition slightly varied, each time it is heard. 15 Esta relação é inclusive mais simples e mais coerente com a clareza de estilo que Horácio propõe para sua própria poesia. 16 The elevated subject matter of epic requires a style comparable to the less visually articulated, skiagraphic representation of Horace’s more distant picture to be seen in full light. The more familiar Pode-se ver que há uma articulação tema-forma, que constitui o decoro que rege as diferenças entre um estilo mais cuidado e um estilo mais rude, tanto nas artes literárias, a retórica e a poética, quanto na pintura. Esse sentido retórico é, em si, importante para a compreensão do século XVII, e um teórico como Hansen (1995), por exemplo, resgata esse regulador do decoro para explicar a "obscenidade" da obra satírica de Gregório de Matos, e ainda para justificar os ‘exageros’ das letras chamadas barrocas. No século XVII, utiliza-se o ut pictura poesis como princípio retórico de construção e recepção do discurso. Esse princípio justifica tanto o estilo ‘hermético’ de enigmas, onde há o “uso generalizado da agudeza, ou ‘ornato dialético enigmático’ [...]” no qual se exige “um ponto de vista fixo para serem justamente avaliadas e fruídas, e que se calcula, segundo a racionalidade de corte que as anima, como engenho, juízo, prudência e discrição.” (p. 208) Assim como o ut pictura poesis justifica esse estilo, justifica também o estilo claríssimo e rude da sátira de Gregório de Matos, a linguagem chula e as imagens inverossímeis são próprias da sátira e do cômico; sobre a sátira, escreve: [...] o cômico deforma, como imagem fantástica, a imagem icástica da opinião, de modo que o destinatário veja, nos efeitos, a contradição entre o conhecimento que tem dos opináveis das matérias figuradas – endoxa retóricos e eikona poéticos – e a deformação com que são tratados. No intervalo, evidencia-se para ele o ponto fixo da virtude donde o monstro deve ser visto, como desproporção proporcionada a um fim: divertindo com a maravilha dos excessos, a representação simultaneamente ensina e move, pois captura a desproporção com a correção icástica, que adere a valores estabelecidos da opinião (1995, p. 211). subjects of ordinary life require a style comparable to the more meticulously accurate lines and modulated colors of his picture to be examined close at hand which ‘loves’ the obscurum for its own protection. Essas considerações de Hansen são relevantes para considerarmos o corpus de poemas contidos no manuscrito 2998 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, atribuídos a Antonio da Fonseca Soares, os quais mostram tanto uma expressão elevada quanto baixa, com poemas tanto sérios quanto satíricos e eróticos. Aplica-se também ao tratar-se da "vulgaridade" da poesia de circunstância seiscentista, que deve ser compreendida como uma prática retórico-poética, fruto de uma tradição determinada, e que servia a determinadas funções em sua recepção. 2.2 A RETÓRICA DA DESCRIÇÃO E A PRÁTICA DO RETRATO NA POESIA VULGAR Para esse estudo, partimos do princípio de que Fonseca tem em mente, nas descrições do manuscrito 2998, uma série de preceptivas retórico-poéticas oriundas de uma tradição lírica amorosa para o elogio da dama da corte. Mais exatamente, como aponta Maria do Socorro Fernandes de Carvalho, são relevantes para a compreensão dessa poesia “três grandes modelos europeus em romance: os modos compositivos convencionais da lírica, a tradicional composição ibérica, e as formas poéticas imitadas das Antigüidades clássicas.” (2007, p. 17) A tópica da pintura que fala e poesia muda é usada frequentemente, e o uso de metáforas que apelam para o sentido da visão serve para complementar o repertório de elementos que são usados para a amplificação do discurso. As descrições, compreendidas nessa chave retórica como amplificação, são as provas específicas ao gênero demonstrativo, o gênero do ‘belo’ e do ‘útil’; noções que, como Aristóteles indica na Arte Retórica (p. 60) gravitam em torno do conceito de virtude: A virtude, segundo parece, é a faculdade que permite adquirir e guardar bens, ou ainda a qualidade que nos põe em condições de prestar muitos e relevantes serviços, serviços de toda a sorte e todos os domínios. As partes da virtude17 são: a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência e a sabedoria. Essa conceituação de Aristóteles informa, na poesia de Fonseca, a construção tanto de caracteres virtuosos quanto de viciosos na sátira, assim como define os afetos demonstrados pela persona poética; sobre isso comenta Hansen: As descrições da sátira barroca ordenam-se segundo os paradigmas epidíticos “beleza” e “feiúra”. Aristotelicamente, conotam a moral, uma vez que só é belo o que é eticamente bom, sendo o feio moralmente mau. Nesta linha, os afetos parciais do gênero demonstrativo são o amor admirativo e a veneração ou o ódio execrador e o desprezo (1989, p. 301). Apesar de essas palavras serem dirigidas à sátira de Gregório de Matos, elas descrevem perfeitamente os afetos do eu-poemático fonsequiano e o caráter da pessoa a quem dirige seu encômio ou vitupério. Aos outros gêneros do discurso caberiam o exemplo, do gênero deliberativo, e o entimema, como pertencente ao judiciário18; no que diz respeito ao demonstrativo, o argumento por excelência é a amplificação: Entre as formas comuns a todos os discursos, a amplificação é em geral, a que melhor se presta aos discursos demonstrativos, porque nela o orador toma os fatos por aceites, e só lhes resta revesti-los de grandeza e de beleza (ARISTÓTELES, 1979, p. 65). 17 Essas ‘partes da virtude’ são definidas por ele nas linhas que se seguem a essa citação e com mais profundidade em sua Ética a Nicômacos, cujo comentário excede aos objetivos deste relatório. 18 Essa relação está ligada ao tempo próprio de cada gênero: “[...] Os exemplos acomodam-se mais ao gênero deliberativo, pois que nos servimos das conjeturas tomadas do passado para nos pronunciarmos sobre o porvir. Os entimemas convêm ao gênero judiciário; o que se passou, devido à obscuridade que o envolve, requer particular investigação da causa e da demonstração.” (ARISTÓTELES, 1979, p. 65) Um preceptista contemporaneo do ambiente cultural de Antonio da Fonseca19, Frei Sebastião de Santo Antonio - autor de Ensaio de Rhetorica, conforme o methodo e doutrina de Quintiliano, e as reflexões dos authores mais celebres, em sua obra toma partido, aliás, de preceptistas latinos20, dando relevância maior ao procedimento da amplificação: Como ao Orador naõ sómente pertence convencer o entendimento dos ouvintes, mas tambem , e principalmente persuadi-los , e movê- los , para que ponham por obra o que se lhes propõe ; naõ basta provar, he preciso amplificar as mesmas provas , fazê-las sensiveis e excitar as paixões do animo dos mesmos ouvintes (1779, p. 70). Filiado à tendência iniciada pelos latinos do bene dicere, dando maior importância que Aristóteles à elocução, o Frei destaca o papel do mouere como função retórica ligada à amplificação. Esse autor indica várias maneiras de amplificar o discurso e as divide em “por palavras”21 e “por cousas”22, que diz ser os modos mais comuns, também dizendo que se amplifica por meio dos lugares e por todas as figuras e tropos (id., p. 115). Vários desses procedimentos são usados por Fonseca em seus romances. Sobre a amplificação, esse preceptista ainda observa algo relevante para a compreensão da poesia de Fonseca, no que diz respeito à disposição da amplificação no discurso: [...] os argumentos mais firmes , querem que o seu lugar seja no princípio , e no fim da contenda ; e que os menos firmes tenham o seu lugar no meio. O seu fundamento he o seguinte : Firmes no principio , para que os ouvintes formem logo bom conceito da justiça 19 Pode-se observar na obra de Frei Sebastião de Santo Antonio a mesmo ponto de vista quanto às disciplinas da retórica e poética, mesmo tendo sido publicada em 1779. 20 Para a relação entre preceptistas do período e os latinos, cf. o prefácio de Adma Muhana ao tratado Pintura e Poesia ou Poesia e Pintura, de Manuel Pires de Almeida (2002, p. 13) 21 A amplificação por palavras se dá pelo uso de figuras e tropos e, segundo Sebastião de Santo Antonio, acontece de quatro maneiras: a primeira acrescentando um epíteto ou atribuindo uma ação, a segunda por meio de superlativos ou termos abstratos, a terceira usando de palavras translatas, e a quarta “usando de repetições , synonimias, periphrases , simile e emphase”(p. 116); 22 A amplificação “por cousas” se dá por “Congerie” (uso de vários períodos para ênfase), incremento, comparação, raciocinação e diminuição (p. 166 e ss). da causa : firmes no fim ; porque estes saõ os que mais lembram [...]. Entre os argumentos ha huns que servem simplesmente para provar , outros para amplificar , os que servem para amplificar , nunca devem , preceder aos que servem para provar (ANTÔNIO, 1779, p. 72-73). Com efeito, encontramos na parte exortativa dos romances de Fonseca, frequentemente, essa disposição do procedimento descritivo como amplificação, que reforça os argumentos postos como entimemas expostos anterior e posteriormente. Leiamos, como exemplo, o romance 11 do manuscrito 2998 da BGUC, Amor por esta vos juro, no qual a persona poética lança seu escárnio ao deus Cupido, Amor alegorizado, pelos “repetidos enganos” nos quais a fez cair. Após atacá-lo com vários argumentos, a persona descreve a razão de seu erro (v. 61-76): Desculpa teve meu erro Gozando em sorte felis hum so crauo em dois beiçinhos em duas façes dois jasmins. Desculpa tive he verdade em dois olhos, que o zafir desce globo em astros vençe em seo mais alto zenith Desculpa tive em duas maos pois dellas pude advertir que formara a natureza dois brinquinhos de marfim Nesse trecho, a amplificatio, como desenvolvimento do argumento de que Cupido é bom embusteiro, ocorre por meio de uma descrição típica do retrato, pintando uma figura feminina do rosto aos pés. Note-se ainda o uso do recurso da anáfora, com a repetição do vocábulo “desculpa” e o que também pode ser usado como forma de amplificação do discurso, conforme, aliás, indica o Frei Sebastião de Santo Antonio (id., p. 116). Também se observam várias metáforas cristalizadas recorrentes em nosso corpus. É o caso da identificação dos olhos da mulher com corpos celestiais e a pintura das partes do corpo feminino por suas qualidades, tal qual ‘cravo’, ‘jasmins’, ‘marfim’; esses procedimentos são exemplos de uma metáfora pictórica engenhosa barroca. O século XVII é conhecido pela rica interação entre as artes. Sendo um tempo em que a teologia procura abranger todos os aspectos da vida, todas as artes contribuem no sentido de representar o divino, num theatrum sacrum: [...] las representaciones tienden siempre al espejismo, a la duplicación, a la saturación binaria del espacio, el aparente desordenado cúmulo, la incongruencia aparente y, en fin, a la ordenación como quiasma, como una gran X espacial en lo plastico y como disposición por antítesis en los discursos (HANSEN, 1997, P. 456). Daí, portanto, a representação e a construção metafórica terem um pendor para a visualidade. A tradição retórica e poética corrobora essa visualidade no ut pictura poesis horaciano. A metáfora, sendo imagem por excelência, encontra um lugar privilegiado, tornando-se a figura principal da literatura produzida no século XVII. Ela tem inclusive uma explicação teológica, com a questão do intelecto angélico: [...] o Anjo é capaz de conceber um poema, uma empresa alegórica, um sermão? e, se o for, também será capaz de comunicá-los a outros? Como então se dizia, o Anjo é puro espírito, por isso fala com os próprios conceitos, e não com os signos deles. Angelicamente, uma mesma coisa é significante e significada, de modo que, sem nenhum instrumento, o Anjo pode produzir diretamente a imagem espiritual de seu pensamento em outro espírito, tornando-se um e outro pintor e pintura. [...] Todo Anjo é terrível porque conhece a representação, diversamente do intelecto humano, que só se comunica por meios indiretos, quando substitui a significação de uma coisa por outra, como representação (HANSEN, 1999, p. 30). O uso extensivo de metáforas tenta também “falar com o próprio conceito”, assim como os anjos, elevando o grau de abstração e afastando-se do sentido próprio. Tanto o aspecto de correspondência entre as artes quanto a importância da metáfora estão ilustrados no trabalho de Emanuele Tesauro, preceptista italiano, o célebre Il cannochiale aristotelico. Intitulado Idèa del argvta et ingeniosa elocutione, che serue à tutta l'arte oratoria, lapidaria, et simbolica esaminata co' principii del divino Aristotele, o capítulo coloca os preceitos da tradição Retórica e Poética numa chave “teológica” (divino Aristotele), além centralizar a metáfora em torno de noções como agudeza e engenho: [...] Agudeza, Grande Mãe de todo engenhoso Conceito: claríssimo lume de toda Elocução Oratória e Poética: espírito vital das páginas mortas: agradabilíssimo condimento da Civil conversação: último esforço do Intelecto: vestígio da Divindade no Ânimo Humano (TESAURO, 1663, p. 1). Vê-se aqui uma articulação de elementos da Dialética e da Retórica, disciplinas do Trivium, ainda ensinado nas Universidades Portuguesas, inseparáveis da Escolástica católica, e presentes na formação de qualquer letrado do período, inclusive Antonio da Fonseca Soares. Adicionemos o trabalho com o conceito dialético aos lugares retóricos, e elementos do espírito do século XVII, como as ideias de prudência e de discrição e temos o que Hansen chama de "ornato dialético": [...] formulação mental resultante de operações da perspicácia dialética e da versatilidade retórica sobre os conceitos extremos de uma matéria tradicional, os seiscentistas deslocam a conceituação da metáfora, que passa de simples tropo ou ornato para a base da invenção [...] (1989, p. 202). Se enquanto elocução o ornato dialético é metáfora, enquanto dispositio ele é compreendido como entimema, ordenado pela lógica aristotélica, que opera semelhanças entre gêneros e espécies e ainda entre as categorias (HANSEN, 1989, p. 245). A metáfora está subordinada à noção de “conceito”, característico desse período e sucintamente definido por Adma Muhana, no prefácio à sua edição do tratado de Manuel Pires de Almeida, Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia: O conceito, este nó de palavra e imagem, é a própria idéia tal como expressada por Cícero, numa conciliação aristotélico-platônica23. É idéia que, na mente, imita a forma (eidos) das coisas – sua essência e seu desenho. Aqui [no tratado de Almeida] – e em todo o Seicentos – o conceito é a imagem das coisas, seu retrato genérico na alma, em relação ao qual as palavras são como imagens dessas imagens – porque as palavras são símbolos dos conceitos na alma, como recordam todos os leitores do De Interpretatione (I, 16a3), e são imitações, como autoriza a Retórica (III, 1, 1404a21). É nesse sentido que o conceito aparece como uma idéia-imagem, composta de forma e matéria, não uma abstração (2002, p. 52). A visualidade da metáfora construída a partir dos princípios retórico- dialéticos explicitados, como não poderia deixar de ser, encontra respaldo na preceptiva da Antiguidade. Essa predominância do sentido da visão é indicada, por exemplo, nos versos 180 - 182 da Arte Poética de Horácio, que tratam da importância da performance do ator, que comove mais que suas palavras24: O que se transmitir pelo ouvido, comove mais debilmente os espíritos do que aquelas coisas que são oferecidas aos olhos, testemunhas fiéis, e as quais o espectador apreende por si próprio25 (HORÁCIO, 1984, p. 81-83). Consoante com Muhana, Hansen também destaca a metáfora barroca como principalmente pictórica, uma “definição ilustrada”. Essa noção remete ao De oratore de Cícero (1822), no qual o orador latino (aliás, como também faz 23 Como a própria autora aponta (p.14), a noção de ideia perde o sentido negativo da filosofia platônica ao mesmo tempo que incorpora a noção de universal aristotélico; este relatório, entretanto, não se aprofundará na questão. 24 Atente-se para a divergência com a doutrina aristotélica de desprezo pelo espetáculo em detrimento do mito (Poética, capítulo XIV). 25 “Segnius irritant animos demissa aurem,/ quam quae sunt oculis subiecta fidelibus et quae/ ipse sibi tradit spectator [...]”. É interessante o uso da palavras segnius, que apresenta paralelo com o conceito de desenho como segno de Dio, ligado à concepção de agudeza e religiosidade católica, como indica Hansen (1995, p. 202) Quintiliano) destaca o sentido da visão como a melhor fonte para a criação de metáforas para mover os afetos do espectador: Mas mesmo quando há grande número de termos próprios, não emprestados, as pessoas geralmente se agradam mais com metáforas bem escolhidas. Imagino que isso acontece porque é marca do gênio a expressões relativamente óbvias, fáceis, emprestá- las de assuntos pouco próximos; ou porque o ouvinte é levado a uma cadeia de reflexões a qual o leva mais longe do que ele iria normalmente, mesmo sem sair do caminho: isso é extremamente agradável: ou isso se deve à expressão apresentar simultaneamente o objeto e sua imagem inteira; ou porque todas as metáforas, pelo menos aquelas melhor escolhidas, aplicam-se sobre os sentidos, especialmente a visão, que, de todos os sentidos, é o mais excelente. [...] as metáforas tomadas do sentido da visão são muito mais impressionantes, porque colocam no olhar da imaginação objetos que, de outro modo, seriam impossíveis de compreender ou ver [...]. Todo objeto do qual a semelhança pode ser extraída, pois ela pode ser extraída de todo objeto, se aplicado metaforicamente, uma palavra tomada dele pode ilustrar o discurso26 (p. 274, grifo e tradução nossos). Está clara nesse trecho a predileção de Cícero pelo uso do procedimento metafórico, e, além disso, pelo uso de metáforas que privilegiem o sentido da visão e ‘ilustrem o discurso’; a importância de metáforas pictóricas ainda está ligada às funções de deleitar e mover o leitor e servem de provas que constituam a eficácia retórica do discurso. Os retratos de Antonio da Fonseca são verdadeiras listas de metáforas recomendadas, tais quais recomendadas por Cícero no trecho transcrito na seção anterior. Construídas para descrever partes do rosto e do corpo feminino, para o 26 But even when there is the greatest copiousness of proper, unborrowed expressions, people are generally best pleased with well-chosen metaphors. I imagine that this happens from its being a kind of a mark of genius to slight obvious, easy expressions, and to borrow them from far-fetched subjects; or because the hearer is drawn into a train of reflection, which carries him further than he should otherwise go, and yet not out of his way: this is extremely agreable: or it is owing to the expression presenting, at the same time, the object and the whole image; or because all metaphors, at least such of them as are best chosen, are applied to the senses, especially the seeing, which of all senses is the most exquisite. [...] The metaphors taken from the sense of seeing are much more striking, because they place in the eye of imagination objects which otherwise it is impossible for us to see or comprehend. [...] Every object from which a likeness can be raised, as it may from all objects, if metaphorically applied, one word taken from it illustrates a discourse. (p. 274, grifo nosso) encômio da dama, aparecem na forma de termos tais quais ‘cristal’, ‘neve’, ‘nácar’, ‘marfim’, ‘ouro’, ‘prata’. Como já apontado por Pontes acima, essas metáforas já eram comuns no período renascentista, e constituem no tempo de Fonseca verdadeiros lugares- comuns. Apesar do sentido negativo dado por Pontes (1953) esse aspecto é essencial, indo além da mera ‘falta de originalidade’. Vejamos, como breve exemplo, esses poemas de Petrarca: CLVII Quel sempre acerbo et honorato giorno mandò sí al cor l'imagine sua viva che 'ngegno o stil non fia mai che 'l descriva, ma spesso a lui co la memoria torno. L'atto d'ogni gentil pietate adorno, e 'l dolce amaro lamentar ch'i' udiva, facean dubbiar, se mortal donna o diva fosse che 'l ciel rasserenava intorno. La testa òr fino, et calda neve il volto, hebeno i cigli, et gli occhi eran due stelle, onde Amor l'arco non tendeva in fallo; perle et rose vermiglie, ove l'accolto dolor formava ardenti voci et belle; fiamma i sospir', le lagrime cristallo. CCCXLVIII Da' piú belli occhi, et dal piú chiaro viso che mai splendesse, et da piú bei capelli, che facean l'oro e 'l sol parer men belli, dal piú dolce parlare et dolce riso, da le man', da le braccia che conquiso senza moversi avrian quai piú rebelli fur d'Amor mai, da' piú bei piedi snelli, da la persona fatta in paradiso, prendean vita i miei spirti: or n'à diletto il Re celeste, i Suoi alati corrieri; et io son qui rimaso ignudo et cieco. Sol un conforto a le mie pene aspetto: ch'ella, che vede tutt'i miei penseri, m'impetre grazia, ch'i' possa esser seco. Podemos constatar, nesses dois poemas, além de um uso já importante do procedimento descritivo, a aplicação de determinadas metáforas para a descrição da dama. No primeiro poema, há a relação da neve para a brancura e do ouro para o cabelo, pérolas e rosas para a descrição da boca (ligada à voz) além da descrição dos olhos como estrelas, e as sobrancelhas, por sua forma oblíqua, descritas como o arco de Cupido. No segundo soneto, o loiro dos cabelos “competem” com o ouro e o sol, e os braços descritos a partir de uma chave bélica. Todos esses aspectos são “imitados” por Fonseca no corpus. O termo “imitação”, entretanto, não pode ser compreendido como mera cópia, pois esse repertório se adapta às necessidades do autor e seu público, a cada nova apropriação. Um esboço de uma história de um possível gênero descritivo é dado num curto ensaio de Segismundo Spina, publicado em 1983, intitulado “Três fases de um processo descritivo”. Nele, descreve-se esse "processo descritivo", ao qual, a partir da denominação dada pelos letrados seiscentistas nas didascálias de suas coleções, achamos pertinente atribuir o nome "retratos". As fases de Spina são demarcadas pela tradicional divisão periodológica entre "Trovadorismo", "Renascimento", "Barroco" e "Neoclassicismo": a primeira fase seria representada pela poesia provençal de adoração à Virgem, culminando com a técnica descritiva petrarquista; a segunda se desenvolve a partir do renascimento, passando pelos maneiristas e barrocos; a terceira ocorre num contexto neoclássico. Como é evidente, a classificação de Spina é altamente dependente de uma divisão cronológica e periodológica, com todos os benefícios e lacunas que essa abordagem pode gerar. A figura central dessa tradição descritiva é o paralelo entre a mulher e a natureza, e o aspecto formal que guia a classificação de Spina é a maneira como os elementos desse paralelo interagem. Na primeira fase, os termos da comparação mulher-natureza encontram-se num nível de equivalência, consoante com uma "ingenuidade" do período; na segunda, os termos da comparação acabam em conflito, de acordo com o "espírito dividido" do homem barroco; na última fase, a mulher supera a natureza, de acordo o a tendência "artificialista" dos neoclássicos. Spina aponta várias “autoridades” poéticas desse tipo de poesia, vindo desde tratados medievais (Ars versificatoria, de Mathieu de Vendôme) até os autores como Petrarca e Góngora. Spina, entretanto, coloca esses autores em termos de “influenciadores”, deixando de lado a importância desse aspecto coletivo da literatura de então. A atividade letrada não era necessariamente a “literatura” como a compreendemos na atualidade: “as ‘belas letras’ eram ordenadas pelos padrões retóricos e teológico-políticos [...]. ‘Belas letras’, não ‘Literatura’, que não existia como regime discursivo ficcional dotado de autonomia estético-mercadológica” (HANSEN;PÉCORA, 2002, p. 26). Não se trata, portanto, da mera imitação de Petrarca, ou das reações negativas ou positivas a essas imitações, que levaram aos poetas escrever "retratos". O que acontece é que uma prática coletiva fixara uma quantidade de lugares-comuns e outras conveniências que o autor, individualmente, considerava úteis e necessários para a eficácia de sua poesia. Devemos considerar que a poesia de retrato do século XVII constitui um verdadeiro gênero, tendo em mente a concepção de gênero retórico-poético expressa por Alcir Pécora na sua introdução à obra Máquina de Gêneros, segundo a qual um gênero é uma entidade que nasce das “convenções letradas em vigência” (2001, p. 12). Tendo isso em vista, são pertinentes as palavras do estudioso: Isto quer dizer, por exemplo, que o que se é chamado genericamente de “poema”, não se reconhece, numa preceptiva de tradição clássica, como “poema” – termo cômodo pela totalização de objetos de tradições letradas muito distintas e, muitas vezes, impossíveis de justapor ou englobar -, mas, digamos, como soneto, como madrigal, como romance pastoril, como epístola satírica, formas poéticas precisas, com teoria, história e efeitos particulares (2001, p. 12). Pécora, entretanto, enfatiza: “paráfrases de manuais de retórica não dão conta dos sentidos específicos dos objetos” (idem, ibidem). O século XVII é um período no qual perceber a importância da “preceptiva de tradição clássica” é crucial para a escolha do melhor método de abordagem. Desconhecer o papel dos princípios básicos disciplinas de Retórica e Poética é fatal quando se trata de compreender a prática de escrita da poesia barroca. Tanto a épica mais sublime, quanto o mais frívolo poema de circunstância até a mais desbragada sátira estão unidas por noções tais quais decoro ou agudeza, as quais estão inseridas numa tradição, ou seja, numa prática intertextual que guia e fixa limites (flexíveis) para o trabalho do engenho do poeta. Estando no contexto de uma composição genérica, portanto, Fonseca obtém suas metáforas descritivas de um repertório já fixado pela tradição seiscentista portuguesa. Daí a repetição exaustiva de certas comparações, as quais, entretanto, não são cópias umas das outras, mas emulações, a partir do momento em que competem entre si para atingir a perfeição do modelo ou até mesmo superá- lo. Francisco Achcar, na Lírica e lugar-comum, aponta a composição genérica, no que diz respeito à poesia antiga, e recuperando uma conceituação ainda pouco explorada, e exposta por Francis Cairns, na obra Generic composition in Greek and Roman poetry, como uma forma particular de