UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA BEATRIZ CESCHIM ARTICULAÇÃO ENTRE GENÉTICA DE TRANSMISSÃO E GENÉTICA MOLECULAR NA DOMINÂNCIA COMPLETA: UM ESTUDO COM PROFESSORES EM FORMAÇÃO BAURU 2022 Beatriz Ceschim ARTICULAÇÃO ENTRE GENÉTICA DE TRANSMISSÃO E GENÉTICA MOLECULAR NA DOMINÂNCIA COMPLETA: Um estudo com professores em formação Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Educação para a Ciência, área de concentração em Ensino de Ciências, da Faculdade de Ciências da Unesp / Campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Doutora em Educação para a Ciência, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira. Bauru 2022 Ceschim, Beatriz Articulação entre genética de transmissão e genética molecular na dominância completa: Um estudo com professores em formação/ Beatriz Ceschim, 2022. 197 f. il. Orientadora: Ana Maria de Andrade Caldeira Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências, Bauru, 2022. 1. Ensino de genética. 2. Recessividade. 3. Dominante. 4. Recessivo. 5. Mendel. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. Beatriz Ceschim Articulação entre genética de transmissão e genética molecular na dominância completa: Um estudo com professores em formação Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Educação para a Ciência, área de concentração em Ensino de Ciências, da Faculdade de Ciências da Unesp / Campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Doutora em Educação para a Ciência, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira. Banca Examinadora Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP – Bauru – SP Prof. Dr. Aldo Mellender de Araújo Universidade Federal do Rio Grande Do Sul UFRGS - RS Prof. Dr. João José Caluzi Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP – Bauru – SP Lilian Al-Chueyr Pereira Martins Universidade de São Paulo (USP) – Ribeirão Preto – SP Osmar Cavassan Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP – Bauru – SP Bauru, 24 de março de 2022 Para Márcia Lopes Reis Obrigada por estar presente sempre, por nunca desistir e por me segurar tão forte quando eu mais precisei. A senhora é um anjo na minha história. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha orientadora Ana Caldeira, que além de compartilhar de sua inteligência, também compartilha de sua sabedoria durante nossos encontros. Sempre disponível, solícita, compreensiva e participativa em um equilíbrio que permite tanto o agir de mãos dadas quanto o agir autônomo. Minha inspiração desde a graduação, ensina habilidades para fazer pesquisa e atitudes para ser pesquisadora. Obrigada por acreditar em mim e por permitir que o legado do Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia fosse encaminhado para nossas investigações. Agradeço a Matheus Ganiko Dutra, cujo cérebro brilhante e coração empático me conduziram a insights, perguntas, respostas, produtividade e sobretudo a muito prazer por estar concretizando investigações. Tanto no Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia, como em nossas reuniões frequentes, nossos raciocínios puderam seguir livres por caminhos desconhecidos, estonteantes e inspiradores. Obrigada por ser o melhor parceiro da vida acadêmica e por ter me ajudado na coleta de dados e na organização das ideias. Você foi essencial e justifica o uso do plural quando escrevo os verbos das ações dessa pesquisa. Agradeço ao Professor Tom (Antônio Suárez Abreu) da Unesp de Araraquara, que me permitiu desfrutar da linguística cognitiva durante a elaboração de meu referencial teórico e que me orientou para encontrar autores e temáticas específicas para as minhas necessidades teóricas. Agradeço à Tatiana Hochgreb-Haegele, por ser tão solícita e criativa para me dar sugestões e indicações, tanto para o referencial teórico, como para a metodologia da pesquisa. Agradeço aos membros da banca, Prof. Aldo Mellender de Araújo e Prof. João José Caluzi pela leitura precisa e pelas contribuições científicas tanto na qualificação como na defesa. Agradeço ainda aos demais membros da banca de defesa, Profa. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins e Prof. Osmar Cavassan pela leitura e por me indicarem caminhos que eu não enxergaria sem a ajuda de vocês. Destaco também o modo afável como as sugestões me foram indicadas. Pelo suporte, afeição e motivação que foram dedicadas de forma incessante e que me fizeram ter forças para vencer os desafios enfrentadas durante o período de elaboração da tese, agradeço com muito carinho à Vera Parice. Por ser um exemplo de conduta, pelo afeto em forma dedicação, conselhos, flexibilidade e muita presença para me apoiar, agradeço Vinicius Longue. Por estarem comigo de mãos dadas diante dos obstáculos mais difíceis dessa trajetória, agradeço meus amigos João Vitor Dias, Bianca Hernandez, Giovana Copi, Danúbia Oliveira, Vinicius Fernandes, Victor Teixeira, Lina Barreira, Flávia Costa, Marisa Conceição, Júlia Chiti e aos meus pais, Teresa e Oreste. Vocês foram minha luz nos momentos mais importantes. Pelo brilho nos olhos ao falar de Biologia e pela assiduidade, agradeço a participação dos graduandos participantes da pesquisa, que por sua avidez de saber e por sua empolgação, nos inspiravam para preparar cuidadosamente os encontros do Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia. A produção da presente tese foi o processo mais difícil pelo qual eu já passei. Não só pelo desafio acadêmico envolvido, mas porque adoeci gravemente. Em muitos momentos, a conclusão exitosa não parecia possível. Eu precisei, de fato, de muita ajuda. Reitero a minha gratidão. Agradeço ao financiamento concedido pela CAPES, que deu suporte de forma determinante à minha dedicação para a elaboração desta tese, incluindo meios para que fosse possível viabilizar meu tratamento médico. “As palavras e as frases que usamos e a complexa rede de relacionamentos entre seus usos são os óculos através dos quais vemos a nós mesmos e vemos o mundo. Se as lentes estão sujas e obscurecem a visão, se for muito fácil confundir reflexos na lente com coisas vistas, se a curvatura das lentes conduz a certas distorções, então é imperativo prestar atenção aos óculos com os quais vemos o mundo”. (Peter Michael Stephan Hacker) CESCHIM, Beatriz. Articulação entre genética de transmissão e genética molecular na dominância completa: Um estudo com professores em formação. 2022. 000f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2022. RESUMO O objetivo desse trabalho foi determinar como o discurso didático referente à dominância/recessividade articula genética de transmissão, genética molecular e fisiologia e inferir como a linguagem está relacionada com a causa de distorções conceituais. Os participantes da pesquisa foram graduandos do curso de Ciências Biológicas, que responderam a dois tipos de questionários – perguntas discursivas (n=101) e avaliação de assertivas com escala Likert (n=23) – e participaram de uma discussão em grupo (n=23) cujo áudio foi gravado e transcrito. Além do discurso de graduandos, também foi objeto de investigação o discurso de livros didáticos de Biologia (n=10) distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático de 2018. Quanto aos graduandos, foi possível apontar que explicações referentes à biologia molecular e à fisiologia subjacente ao fenômeno da dominância indicam distorções conceituais. As hipóteses que os participantes apontaram como explicação estavam equivocadas ou consistiam em afirmações genéricas ou superficiais. No que se refere aos livros didáticos, identificamos uma heterogeneidade quanto à presença/ausência de explicações moleculares e fisiológicas que eles associam ao fenômeno da dominância. Alguns atribuem explicação e exemplificam, outros não. Tanto os livros didáticos como as frases de participantes indicaram que a linguagem que organiza o pensamento referente à dominância completa pode funcionar como fonte de incompreensões. Palavras-chave: ensino de genética, recessividade, dominante, recessivo, Mendel. ABSTRACT Transmission genetics and molecular genetics in complete dominance: A study with training teachers The objective was to determine how the didactic discourse referring to dominance/recessivity articulates transmission genetics, molecular genetics and physiology and to infer how language is related to the cause of conceptual distortions. The participants were undergraduates of the Biological Sciences course, who answered two types of questionnaires – discursive questions (n=101) and assessment of assertions with a Likert scale (n=23) – and participated in a group discussion (n= 23) whose audio was recorded and transcribed. In addition to the undergraduate students' discourse, the discourse of Biology textbooks (n=10) distributed by the National Textbook Program was also investigated. The phenomenon of dominance indicates conceptual distortions. The hypotheses that the participants pointed out as an explanation were wrong or consisted of generic or superficial statements. About textbooks, we identified a heterogeneity regarding the presence/absence of molecular and physiological explanations that they associate with the phenomenon of dominance. Some give explanation and exemplify, others do not. Both textbooks and participants' sentences indicated that the language that organizes thinking regarding complete dominance can works as a source of misunderstandings. Keywords: teaching genetics, recessivity, dominant, recessive, Mendel. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Níveis de representação (adaptado de EVANS; GREEN, 2006, p. 7). 48. Figura 2. Representação de dois alelos, destaques de um par de cromossomos homólogos. Cada um deles apresenta uma sequência nucleotídica própria, que resulta na produção de diferentes fenótipos referentes à cor da flor da planta de ervilha. 56. Figura 3. Camadas da epiderme: estrato basal, estrato espinhoso, estrato granuloso, estrato lúcido e estrato córneo. Observe que os melanócitos são ancorados no estrato basal e projetam seus dendritos no estrato espinhoso. Estratos lúcido e córneo possuem queratinócitos mortos com intensa deposição de queratina. 76. Figura 4. Genealogia que representa a produção de descendentes com pigmentação normal pelo cruzamento de genitores albinos (indicados em coloração escura). 78. Figura 5. Quatro membros da família estudada por Trevor-Roper (1952): pais albinos e filhos com pigmentação normal. 78. Figura 6. Olhos de um paciente com albinismo oculocutâneo tipo AOC1A. Há coloração avermelhada devido à propriedade translúcida da íris. 79. Figura 7. Albinismo oculocutâneo sensível à temperatura (AOC1TS). O indivíduo exibe pelos brancos nas axilas (região mais quente) e pelo escuro nos antebraços. 80. Figura 8. Gráfico que contrasta a proporção dos conjuntos de respostas para a Questão 1 “Transcrição e síntese proteica estão antes do conteúdo de genética de transmissão?”. 103. Figura 9. Gráfico que contrasta as proporções dos conjuntos de respostas para a Questão 1 “Alelo foi explicado em termos de diferenças de bases nitrogenadas em cada versão do gene de cromossomos homólogos de organismos diploides?”. 104. Figura 10. Gráfico que agrupa conjuntos de respostas para a Questão 3 “A Fisiologia da dominância foi citada?”. 105. Figura 11. Gráfico que agrupa conjuntos de respostas para a Questão 5 “Foi fornecido um exemplo fisiológico de dominância?”. 106. Figura 12. Gráfico que agrupa conjuntos de respostas para a Questão 7 ‘O verbo “expressar” foi utilizado para tratar da relação genótipo-fenótipo?’. 107. Figura 13. Gráfico que agrupa conjuntos de respostas para a Questão 9 “Explica fisiologicamente Dominância Incompleta e Codominância?”. 108. Figura 14. Gráfico que agrupa conjuntos de respostas para a Questão 10 “Aponta que dominância não tem relação com a proporção na população?”. 109. Figura 15. Gráfico que indica as porcentagens de cada subcategoria (Subcategoria 1.1, Subcategoria 1.2 e Subcategoria 1.3) da Categoria 1 de respostas à Questão 1. 113. Figura 16. Gráfico que indica as porcentagens de cada subcategoria (Subcategoria 1.1, Subcategoria 1.2 e Subcategoria 1.3) da Categoria 2 de respostas obtidas à Questão 1. 115. Figura 17. Gráfico das frequências de respostas de cada categoria referente à Pergunta 1. As categorias são 1.1 Presença do alelo dominante; 1.2 Haplosuficiência; 1.3 Dominância do alelo; 2.1 Ação metafórica do alelo/gene dominante (sic!) sobre o alelo/gene recessivo (sic!); 2. 2 Alteração na produção de proteínas/RNA; 2.3 Alteração na quantidade de produção de proteínas/RNA. 116. Figura 18. “Nuvem de palavras” que representa a frequência do uso de cada termo metafórico nas respostas da categoria 2.1 de respostas à Questão 2. 118. Figura 19. Gráfico das frequências de respostas de cada categoria referente à Pergunta 2. As categorias são: 1 Argumentos restritos à genética de transmissão; 2.1 Ação metafórica do alelo/gene dominante (sic!) sobre o alelo/gene recessivo (sic!); 2. 2 Alteração na produção de proteínas/RNA; 2.3 Alteração na quantidade de produção de proteínas/RNA; 3 Maior ocorrência/frequência na população; 4 Dominante é mais forte e o recessivo é o mais fraco; 5 O fenótipo resulta das interações com a influência do meio; 6 Não respondeu; 7 Não sabe. 122. Figura 20. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 1 “Se uma característica é recessiva significa que o alelo responsável por seu fenótipo não é expresso”. 123. Figura 21. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 2 “Uma característica recessiva não é expressa no fenótipo porque é constituída por DNA não codificante”. 124. Figura 22. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 3 “Se uma característica é dominante, significa que ocorre inibição do alelo recessivo”. 124. Figura 23. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 4 “Uma característica dominante manifesta-se no fenótipo porque o alelo dominante causa a inibição do alelo recessivo”. 125. Figura 24. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 5 “Se uma característica é recessiva significa que o alelo responsável por seu fenótipo não codificou uma síntese proteica”. 125. Figura 25. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 6 “Uma característica é considerada recessiva quando não há produção de proteínas pelo alelo recessivo”. 126. Figura 26. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 7 “Uma característica é dominante em razão das interações entre o alelo dominante e o recessivo”. 123. Figura 27. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 8 “Se uma característica é dominante significa que somente o alelo responsável por seu fenótipo é expresso”. 127. Figura 28. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 9 “A causa da expressão de um fenótipo dominante é a mesma em um heterozigoto (Aa) e em um homozigoto dominante (AA), pois o alelo A é o único funcional em ambos os casos”. 128. Figura 29. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 10 “Um casal constituído por dois indivíduos albinos só pode produzir descendentes albinos”. 129. Figura 30. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 11 “Considere que o albinismo é codificado pelo alelo ‘a’. O alelo “a” causa o albinismo porque este alelo não codifica nenhuma proteína.”. 130. Figura 31. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 12 “A dominância incompleta é diferente da dominância completa porque somente na incompleta ocorre produção de proteínas a partir de ambos os alelos. Exemplo de dominância incompleta: flor maravilha que tem indivíduo homozigoto branco e homozigoto vermelho. O indivíduo heterozigoto tem flor rosa.”. 130. Figura 32. Gráfico do somatório de pontos de assertivas. As assertivas de 1 a 13 (eixo X) tiveram as alternativas assinaladas e somadas, resultando em um somatório (eixo Y). 131. Figura 33. Gráfico de respostas obtidas para a assertiva 13 “A codominância é diferente da dominância completa porque somente na codominância se verifica a produção de proteínas a partir de ambos os alelos. Exemplo de codominância: gado que tem indivíduo homozigoto branco e homozigoto castanho avermelhado. O indivíduo heterozigoto é malhado de branco e castanho avermelhado.”. 132. Figura 34. Gráfico da pontuação individual dos 23 participantes (eixo X) dada pelo somatório dos pontos (eixo Y) de cada uma das 13 assertivas avaliadas. 132. LISTA DE QUADROS Quadro 1. Uma visão da prática profissional docente no que diz respeito aos conhecimentos a que constituem (baseado em DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2005). 29. Quatro 2. Categorias do conhecimento pedagógico do conteúdo adaptadas a partir da proposta de Ball, Thames e Phelps (2008) com as respectivas abreviações e comparadas às categorias de Anastasiou (2003). 35. Quadro 3. Informações do conjunto dos livros que compõem a coleção selecionada para o PNLD 2018-2020 (ver BRASIL, 2018). 89. Quadro 4. Lista de perguntas que foram utilizadas para a exploração dos livros didáticos com o objetivo de investigar se articulavam genética de transmissão e genética molecular no que diz respeito ao fenômeno da dominância. 90. Quadro 5. Categorias de respostas obtidas pelos questionários de perguntas discursivas referentes à dominância completa. 97. Quadro 6. Categorias de respostas para a Pergunta 2 do questionário discursivo. 99. Quadro 7. Assertivas utilizadas para a coleta de dados. 102. Quadro 8. Referências do conjunto de livros e respectivos números atribuídos para a designação de cada um. 98. Quadro 9. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 1. 103. Quadro 10. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 2. 104. Quadro 11. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 3. 105. Quadro 12. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 5. 106. Quadro 13. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 6. 107. Quadro 14. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 9. 108. Quadro 15. Relação de livros e respectivas respostas para a Questão 10. 109. Quadro 16. Categorização de respostas à Pergunta 1 do questionário discursivo acerca de dominância completa com argumentos restritos à genética de transmissão. 112. Quadro 17. Categorização de respostas à Pergunta 1 do questionário acerca de dominância completa com argumentos fundamentados em alguma explicação fisiológica. 115. Quadro 18. Frequência do uso de cada termo metafórico nas respostas da categoria 2.1. 117. Quadro 19. Categorização das respostas obtidas pelo questionário discursivo a partir da Pergunta 2. 121. Quadro 20. Respostas do questionário que não foram classificadas em nenhuma categoria. 121. Quadro 21. Falas dos participantes do GPEB que analisaram mecanismos pelos quais a dominância. 134. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ......................................................................................... 16 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 20 2 DAS PREMISSAS REFERENTES À FORMAÇÃO DOCENTE, AO ENSINO E À APRENDIZAGEM .............................................................................................. 26 2.1 Saberes docentes e formação de professores ..................................... 26 2.2 Relação entre pensamento e linguagem .............................................. 38 2.3 Mudança conceitual ............................................................................. 44 3 A UNIDADE CURRICULAR DE GENÉTICA: ASPECTOS CONCEITUAIS E EPISTEMOLÓGICOS .............................................................................................. 53 3.1 Considerações acerca do material genético ......................................... 54 3.2 Breve cronologia da genética de transmissão ...................................... 57 3.3 Breve cronologia da genética molecular ............................................... 60 3.4 Como a dominância foi explicada posteriormente à proposta de Mendel e antes dos dados da biologia molecular? ............................................................ 63 3.5 Relação entre genética de transmissão e genética molecular .............. 65 3.6 Considerações referentes aos mecanismos da dominância ................. 73 4 METODOLOGIA ......................................................................................... 84 4.1 Análise de Conteúdo ............................................................................ 85 4.2 Etapas da pesquisa .............................................................................. 88 4.2.1 Investigação dos livros didáticos PNLD - 2018 .............................. 88 4.2.2 Questionário com questões discursivas ......................................... 93 4.2.3 Questionário com assertivas para avaliação com escala Likert ..... 99 4.2.4 Dados da discussão realizada no GPEB ..................................... 101 5 RESULTADOS ......................................................................................... 102 5.1 Investigação dos livros didáticos PNLD – 2018-2020 ......................... 102 5.2 Questionário com questões discursivas ............................................. 110 5.3 Questionário com assertivas para avaliação com escala Likert .......... 122 5.4 Dados da discussão realizada no GPEB ............................................ 134 6 DISCUSSÃO ............................................................................................ 136 7 CONCLUSÕES ........................................................................................ 147 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 151 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 153 APÊNDICE A – TRECHOS SELECIONADOS DOS LIVROS DIDÁTICOS QUE FORAM CONSULTADOS ...................................................................................... 163 APÊNDICE B – PERGUNTAS E RESPOSTAS OBTIDAS A PARTIR DO QUESTIONÁRIO DISCURSIVO............................................................................. 168 APÊNDICE C – RESPOSTAS E PONTUÇÃO DOS PARTICIPANTES PARA A AVALIAÇÃO DAS ASSERTIVAS ........................................................................... 187 APÊNDICE D – TRANSCRIÇÃO DA DISCUSSÃO REALIZADA APÓS A COLETA DE DADOS NO GPEB ............................................................................ 189 16 APRESENTAÇÃO No final do resumo de minha dissertação de mestrado, a última frase defendia “a necessidade de fomentar espaços formativos nos quais os graduandos possam expressar as próprias concepções [...] para permitir a problematização e recontextualização [...] para a interpretação da biologia.” (cf. CESCHIM, 2017). Esta se tornou uma preocupação central que possuo como professora e como pesquisadora desde que atuei como uma das mediadoras do Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia (GPEB), vinculado à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob a coordenação da professora Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira (minha orientadora). Questiono com veemência os formatos de aulas que se concretizam por meio de monólogos docentes, nos quais a “tagarelice” é entendida como sinônimo do ato de ensinar. Se a concretização do ensino requer a aprendizagem, como “falar” poderia ser sinônimo de ensino? Para o ensino de ciências, há muito tem-se defendido a necessidade de que se considere as concepções que os estudantes possuem para que ocorra uma articulação produtiva entre o que eles já compreendem e o conhecimento científico (por exemplo VOSNIADOU, 2007). Embora pesquisas tenham sido feitas para levantamento de tais concepções e embora tenha se tornado um clichê a defesa de que precisamos considerar os “erros” dos estudantes, há professores que não planejam e não conduzem diálogos durante suas aulas (ROWE, 1974). Além disso, há professores que esperam menos de um segundo pela resposta de seus estudantes e, se ninguém responde de imediato, os docentes fazem outras perguntas ou respondem à pergunta eles mesmos (ibid.). Se professores conduzem somente monólogos em suas aulas, haverá pouco ou nenhum espaço de fala para que os estudantes expressem suas compreensões, que podem ser divergentes do conhecimento científico ou podem ser modelos mistos (ou seja, modelos que associam as concepções equivocadas com o conhecimento científico, constituindo versões híbridas) (VOSNIADOU, 2007). Pensando o ambiente educacional universitário, há comumente um sistema de salas de aula bancário, o que contribui para a formação de uma visão de que a educação superior é um “entupimento teórico sistemático” (DEMO, 2011, p.71) que será descartado quando, ao assumir uma atuação, o egresso aprende tudo 17 novamente – a alienação prática. O tempo letivo é empregado para aula e prova e dificilmente se concretiza o compromisso formativo que deveria se dar na competência de saber pensar, de aprender e de intervir de modo inovador (DEMO, 2011). Para promover o exercício do pensar, é preciso tempo para introspecção. Porém, quais são as oportunidades concedidas aos estudantes para que reflitam durante a mediação didática? E se, mesmo nesse ambiente inóspito para a reflexão, o aluno consegue estabelecer um link novo e é capaz de formular uma pergunta integradora, qual o valor dessa atividade em seu desempenho nas disciplinas? Provavelmente, nenhum. O valor de seu desempenho está em fornecer respostas redondas, acabadas. As mesmas que seu professor enunciou na frente da turma nas longas aulas expositivas. O que se torna paradoxal na problemática é que não queremos um profissional bom em fornecer respostas e fazer cópias. Seja no bacharelado ou na licenciatura, queremos bons questionadores, profissionais que saibam integrar, articular, sintetizar, produzir conhecimento. Além das limitações envolvidas em uma formação em Ciências Biológicas que seja concretizada por aulas que tenham o monólogo docente como forma hegemônica de transmissão do conhecimento, há ainda outro fator a ser considerado: o risco envolvido no modelo compartimentalizado de sistematizar o currículo de biologia, pois não há (ou há poucas) oportunidades para conectar o que o programa curricular fragmentou em disciplinas. Sem estabelecer tais conexões, lacunas conceituais podem se estabelecer, porque devido à complexidade do conhecimento, não podemos esperar que as articulações conceituais sejam realizadas de forma automática pelos graduandos. Sendo assim, submetidos ao sistema bancário e disciplinar das universidades, os graduandos reagem tentando vencer as avaliações o que, segundo Caldeira (2009), resulta em uma apropriação do conhecimento biológico por meio da repetição, de maneira mecanicista. O conhecimento passa a ser aprendido de modo dogmático e sem senso crítico. Segundo a autora, no ensino sem problematizações (formação de problemas a serem investigados pelos alunos), os graduandos tendem a perpetuar as próprias opiniões e visões de ciência; assim, não recorrem a conhecimentos científicos fundamentados em construções epistemológicas adequadas. 18 Diante da problemática levantada e da necessidade de fornecer aos estudantes o ensino que articule as concepções discentes com o conhecimento científico, justifica-se a necessidade de pesquisas que busquem compreender em profundidade como se configura o discurso docente e discente acerca de determinados conceitos científicos, especialmente no que se trata das articulações entre as disciplinas que se tornaram fragmentadas pelo programa curricular. É preciso que incompreensões e dificuldades sejam documentadas e exploradas por meio de investigações científicas, de modo que se explicite a complexidade envolvida nas concepções dos estudantes. Quando o professor reconhece tal complexidade, pode passar a se comportar como um “garimpeiro”: pratica a escuta e fornece espaço de fala para os estudantes, de modo que possa estimular a obtenção de indicadores de suas concepções. Somente assim é que o professor pode mediar a mudança conceitual de seus estudantes: investigando suas ideias, suas incompreensões e fazendo diagnósticos dessas incompreensões para fazer intervenções subsequentes que sejam adequadas. Gostaria de propor aqui uma analogia: se a obtenção de indicadores das concepções dos estudantes é um exame de Raio X, o diagnóstico acerca de uma possível condição/doença seria a descrição qualitativa dessa concepção. Porém, diagnosticar a condição não é o bastante. Um médico não atribui para o paciente um número que quantifique o problema e se despede em seguida (como fazemos nas avaliações somativas). O médico oferece o tratamento, o medicamento, a internação etc. Nós professores, diante de diferentes diagnósticos, também precisamos direcionar tratamentos específicos e personalizados para os estudantes, pois caso contrário, o problema-alvo não será atingido. Sendo assim, faz-se necessário o estudo acerca de como são explicados fenômenos biológicos por diferentes estudantes, para que seja possível orientar a prática docente e para que os professores se atentem para aspectos nos quais os estudantes frequentemente apresentam equívocos e concepções divergentes do conhecimento científico. A justificativa acima explica a razão pela qual me dedico a fazer pesquisas de concepções de estudantes desde minha iniciação científica, iniciada em 2013. Em meu mestrado pesquisei concepções de estudantes acerca da evolução biológica, porque se mostravam muito frequentes entre graduandos, o que me causava 19 inquietação (CESCHIM, 2017). Foi possível identificar que os graduandos exibiam concepções bastante repetidas acerca de como o processo evolutivo ocorria e as explicações que eles forneciam eram equívocos que podiam ser descritos de formas mais genéricas. Conseguimos reunir grupos de equívocos ou distorções conceituais em um trabalho recente (CESCHIM; GANIKO-DUTRA; CALDEIRA, 2020) e, em meu doutorado, a pesquisa tem uma motivação específica: uma inquietação que surgiu para mim, quando me perguntei por que a ervilha amarela de Mendel era a dominante e não a verde (que era mais escura). Parecia haver uma caixa preta em minha mente, um grande vazio a ser preenchido por explicações moleculares e fisiológicas. Passei a perguntar para outras pessoas se sabiam a explicação para tal fenômeno, mas fui percebendo, de modo não sistematizado e informal, que nenhuma das pessoas para quem perguntei sabia a resposta. Me dediquei a pesquisar a resposta e constatei que não havia material à disposição com explicações diretas acessíveis referentes a como a dominância completa se processava fisiologicamente. Encontrei as respostas para minhas perguntas em artigos científicos em língua inglesa e fui sistematizando tais explicações. Foi possível a criação de um material discutindo as explicações fisiológicas (cf. CESCHIM; CALDEIRA, 2020). A partir de então, partindo da hipótese de que houvesse essa possível dificuldade para outros estudantes que cursam biologia e na hipótese de que explicações equivocadas provavelmente estivessem presentes (e não um simples “vazio”), decidi realizar a presente pesquisa, que também teve como objeto de investigação os livros didáticos distribuídos pelo programa nacional brasileiro. Objetivei investigar de que modo se explica o fenômeno da dominância tanto entre professores em formação como em materiais didáticos recentes. Considero que a presente pesquisa possa auxiliar outros pesquisadores e principalmente professores de ensino superior e da educação básica, no que diz respeito ao planejamento e execução de suas aulas de genética. 20 1 INTRODUÇÃO Gregor Mendel [1822-1884], observando e conduzindo a reprodução de plantas constatou um fenômeno biológico muito curioso: Ao cruzar plantas de ervilhas amarelas com plantas de ervilhas verdes, obtinha somente descendentes com ervilhas amarelas. A cor verde tinha sumido. Eis o fenômeno da dominância, o qual é caracterizado pelo desaparecimento de um dos fenótipos parentais. Na terminologia mendeliana, a característica que está presente nos descendentes é a característica “dominante”, enquanto a característica que desaparece é a característica “recessiva” (REECE et al., 2015). O ensino da genética mendeliana necessariamente envolverá o uso de tais conceitos e a citação do exemplo das plantas de ervilhas. Porém, não necessariamente explicitará quais são os mecanismos subjacentes ao fenômeno do desaparecimento da característica recessiva e da manifestação da característica dominante. Talvez uma causa para a ausência de tal explicação esteja na própria fragmentação curricular que divide a “genética de transmissão” da genética molecular. A genética de transmissão é aquela que se ocupa dos estudos de hereditariedade, ou seja, busca explicar como são transmitidas as características de uma geração para a outra. O foco é o organismo individual: como é herdada a constituição genética e como é transmitido o material genético para a geração subsequente (PIERCE, 2011). Já a genética molecular tratará de explicações relacionadas a expressão gênica, produção de polipeptídios etc. Ambas, a genética de transmissão e a genética molecular, tratam do mesmo objeto, que é o material genético. Porém, por uma questão histórica, ao fazer perguntas diferentes, cada uma foi dando forma para uma disciplina distinta. Assim, aborda-se como genes são herdados e como se dispõem na transmissão genealógica em uma disciplina, e, em outra disciplina aborda-se como os genes originam fenótipos.1 Se as duas perguntas são respondidas de modo estanque em disciplinas independentes, seria esperado que graduandos do curso de Ciências Biológicas não apontassem de modo espontâneo como uma disciplina se conecta com a outra. Na 1 Também não se deve deixar de apontar que nas disciplinas de biologia celular, de fisiologia, de embriologia (e muitas outras) são tratados mecanismos que originam os fenótipos dos organismos. 21 desassociação das disciplinas de genética de transmissão e genética molecular encontra-se o cerne do problema da presente pesquisa: se o conteúdo de genética de transmissão é ensinado em uma disciplina e o conteúdo de genética molecular é ensinado em outra disciplina, como os estudantes conseguiriam atribuir uma explicação integrada para o fenômeno da dominância? Se a dominância é um fenômeno estudado somente sob a perspectiva da genética de transmissão e os mecanismos moleculares de produção de fenótipos são ensinados de modo genérico (sem aplicar para casos específicos de dominância), poderia haver uma lacuna na formação conceitual dos graduandos de biologia. Com base nessa problemática, foi delineada a pergunta de pesquisa: Como o discurso didático tem (ou não) atribuído explicações causais para o fenômeno da dominância? Sendo que, com “discurso didático” se atribui uma terminologia genérica para o conjunto do discurso dos professores em formação, somado ao discurso dos materiais didáticos que estão distribuídos pelo programa nacional brasileiro durante a vigência da realização da presente pesquisa. Essa pergunta poderia ser desdobrada em outras, tais como: Os graduandos atribuem alguma explicação causal para a dominância ou não têm nenhuma hipótese? A forma como os livros e como o licenciando organizam a linguagem para ensinar a dominância pode estimular a formação de distorções conceituais? Considerando as perguntas de pesquisa supracitadas, fica estabelecido como objetivo geral do presente trabalho: Determinar como o discurso didático referente à dominância/recessividade articula genética de transmissão, genética molecular e fisiologia e inferir como a linguagem está relacionada com a causa de distorções conceituais. Como objetivos específicos, ficam estabelecidos: • Determinar se (e de que modo) livros didáticos distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático articulam genética de transmissão e genética molecular. • Identificar quais são as explicações fisiológicas que professores de biologia em formação atribuem para o processo de dominância completa. • Apontar quais são as principais concepções alternativas referentes ao fenômeno da dominância. 22 • Identificar os elementos constitutivos do discurso utilizado por professores em formação no que se refere ao fenômeno da dominância. • Inferir, com base nos dados, como a linguagem influencia o pensamento e por consequência a aprendizagem de genética no que diz respeito ao fenômeno da dominância. Faz-se necessária a investigação supracitada, uma vez que incompreensões referentes à aprendizagem de genética em geral e especificamente referentes à dominância já foram mencionadas por outros pesquisadores (ver a seguir), mas não foram documentadas e analisadas quais são as características das incompreensões (como as premissas que fundamentam as hipóteses dos estudantes). Como outras pesquisas apontaram, estudantes tendem a aceitar e fazer uso dos termos “dominante” e “recessivo” sem entender por que um alelo selvagem e um alelo mutante originariam fenótipos recessivos/dominantes (SEIPELT-THIEMANN, 2012). Algumas razões poderiam explicar a dificuldade para a aprendizagem de genética, tais como (MARBACH-AD; STAVY, 2000): • Níveis microscópicos (nível celular e molecular) são mais difíceis de entender do que o nível macroscópico. O motivo é que são geralmente ensinados de maneira teórica ou abstrata, de modo que os processos e objetos desses níveis não podem ser manuseados ou observados diretamente. • Explicações de nível microscópico normalmente não podem ser extrapoladas para níveis macroscópicos. Porém, os estudantes podem fazer tais extrapolações errôneas. • Um nível (por exemplo, o nível macroscópico) pode constituir uma disciplina, e o outro nível (por exemplo, nível molecular) constitui diferentes disciplinas. • Vários níveis de organização devem ser integrados a fim de compreender os processos subjacentes aos fenômenos genéticos e a hereditariedade. Ao serem expostos simultaneamente a uma variedade de conceitos e processos em diferentes níveis de organização com os quais eles não podem lidar simultaneamente, os estudantes se tornam 23 incapazes de ver os conceitos como parte de um todo inter- relacionado. Assim, a literatura aponta que é preciso considerar um fator dificultador do processo de integração do conhecimento que é resultante da organização disciplinar e, consequentemente, curricular da Biologia (como pontuamos anteriormente na hipótese desse trabalho). Ao concluir um processo formativo, por exemplo, espera-se que um estudante disponha de uma compreensão da genética clássica e de uma compreensão da genética molecular, mas não se espera que ele seja capaz de pensar acerca de como as duas disciplinas estão relacionadas (porque ele nem foi solicitado a fazer esse exercício de pensamento durante a formação) (PAVLOVA; KREHER, 2013). Além das questões epistemológicas supracitadas que caracterizam a dificuldade para compreender o conhecimento relativo à hereditariedade, também existe um agravante importante registrado na literatura, que é a linguagem didática. Foi observado, por exemplo, que expressões como “O gene para olho vermelho”, “O gene vermelho”, ou “O gene letal”, tendem a estimular um entendimento de que genes e traços constituem uma mesma unidade (THÖRNE; GERICKE; HAGBERG, 2013). Tal fusão gene-traço seria um dificultador da aprendizagem acerca da relação entre genótipo e fenótipo, pois se são entendidos como a mesma coisa, não seria necessário descrever a relação entre eles. No que tange especificamente à dominância e recessividade, pesquisadores (THÖRNE; GERICKE; HAGBERG, 2013) identificaram no discurso de professores de Biologia a descrição de “genes dominantes” (sic!) como entidades atuantes que vencem/dominam os “genes recessivos” (sic!). Esse tipo de explicação pode estimular estudantes a entenderem que existe uma interação “supressora” entre alelos. No caso da dominância, a linguagem se torna especialmente importante, uma vez que os termos podem estimular o entendimento de que há qualidades ou atributos presentes no conceito, mas que não são compatíveis com ele (PEARSON; HUGHES, 1988). Mais concretamente, no caso da dominância, trata-se de aceitar premissas equivocadas tais como “se um alelo é dominante, então ele domina um outro alelo (que por sua vez sofre a dominação)”, assim, trata-se de dimensões de valor, poder ou status. 24 Como foi possível exemplificar em um estudo (MAHADEVA; RANDERSON, 1982), é comum que estudantes entendam que um alelo mutante tenha manifestação recessiva, com base nas seguintes caracterizações atribuídas ao fenômeno da dominância: (a) acredita-se que a dominância e a recessividade sejam propriedades fixas dos genes; (b) entende-se que genes dominantes são genes 'bons'; genes recessivos são genes "ruins"; (c) os genes dominantes na condição heterozigótica são entendidos como necessários para mascarar os efeitos deletérios de genes recessivos "ruins"; e (d) como as mutações são inerentemente ruins, elas precisam ser recessivas; pois, se fossem dominantes, se propagariam rapidamente, produzindo efeitos desastrosos na população, talvez até a extinção. Tais pressupostos equivocados estão fundamentados na aceitação de uma ideia também equivocada acerca da dominância: a crença dos estudantes de que as características dominantes são as mais numerosas em uma distribuição populacional (cf. ALLCHIN, 2000; SMITH, 2014). Voltando ao aspecto referente à ideia equivocada de que há supressão por meio de uma interação direta entre alelos, de modo que um dominaria o outro (dominante inibe o recessivo) (cf. ALLCHIN, 2000), Lewin (2000) indica que uma explicação alternativa fornecida por estudantes seria a de que a recessividade resulta da ausência de uma característica, produto gênico ou proteína (também equivocada). Em consonância, Redfield (2012) descreve o que a autora denomina como “problema da dominância”, com o apontamento dos seguintes equívocos: • A maioria dos estudantes acredita erroneamente que os alelos são intrinsecamente dominantes ou recessivos; • Estudantes de nível superior que cursam genética não tem explicações para justificar como um alelo dominante (sic!) se comporta com relação ao outro (muitas vezes nem entendem a pergunta: “Por que um alelo se comporta como dominante (sic!) com relação ao recessivo?”); • Quando os estudantes respondem alguma hipótese, normalmente apontam que alelos dominantes (sic!) devem ativamente “desligar” seus parceiros recessivos, talvez atuando como repressores ou por meio de mecanismos epigenéticos. Para Allchin (2000), tais incompreensões acerca da dominância são influenciadas pelo caráter metafórico que está envolvido no uso da palavra 25 “dominante”, uma vez que significados implícitos podem afetar a estruturação de diversos conceitos relacionados ao seu uso. Com base nas pesquisas já realizadas e supracitadas, este trabalho foi estruturado para satisfazer os objetivos propostos, a fim de que se produza conhecimento acerca do ensino e da aprendizagem de genética no que se refere ao fenômeno da dominância. 26 2 DAS PREMISSAS REFERENTES À FORMAÇÃO DOCENTE, AO ENSINO E À APRENDIZAGEM Tendo em vista a justificativa da pertinência do referencial teórico a seguir, apontamos que é necessário indicar como se configuram os saberes do professor para que seja possível defender a necessidade de que docentes tenham conhecimento acerca de concepções equivocadas de seus estudantes, de modo que igualmente se justifique a necessidade de que sejam produzidos conhecimentos acerca de incompreensões discentes. 2.1 Saberes docentes e formação de professores Professores precisam conhecer profundamente a área de estudo que ensinam e não há dúvidas de que se trata de um saber fundamental para a atuação docente. A justificativa é evidente: professores que não conhecem bem um assunto encontrarão dificuldades para encaminhar os estudantes para a aprendizagem desse conteúdo. Não obstante a importância do conhecimento do conteúdo, é preciso admitir que apenas conhecer bem uma área de estudo não é suficiente para ensiná-la. Assim, de um docente de biologia espera-se não só um saber relativo ao conteúdo das ciências biológicas, mas também um “saber fazer” que inclua a multidimensionalidade de integração de saberes e práticas em sua atuação. Espera- se que o docente de biologia saiba o conteúdo de divisão celular, por exemplo, e espera-se também que este professor tenha conhecimentos pedagógicos que lhe permitam ensinar essa temática. Para introduzirmos a discussão referente a uma importante dimensão do saber docente, gostaríamos de propor um questionamento: Ainda que o professor de biologia saiba ler e escrever, saiba mobilizar corretamente a norma culta da língua portuguesa e sabia se expressar corretamente por meio da escrita, não se espera que ele saiba alfabetizar seus estudantes. Por quê? Trata-se de especificidades didáticas das quais se espera que somente professores de uma determinada área do saber tenham domínio. Espera-se que o pedagogo seja capaz de alfabetizar estudantes, mas não se espera que o professor de biologia o seja, visto que este último, embora seja dotado de saberes disciplinares e pedagógicos, não tem a articulação necessária entre tais saberes no que diz respeito à alfabetização. 27 Na tentativa de explorar como se pode entender a articulação do conhecimento do conteúdo e do conhecimento pedagógico, o professor estadunidense Lee S. Shulman propõe e discute a denominação “conhecimento pedagógico do conteúdo”. O termo empregado por Shulman (1986), embora aparente fazer uma alusão a uma simples soma de partes (conhecimento pedagógico somado ao conhecimento do conteúdo), é mais fidedignamente compreendido como um novo conhecimento oriundo de uma amálgama que emerge como um produto de maior complexidade e de conceituação própria. O conhecimento pedagógico do conteúdo é para Shulman (ibid.) um terreno exclusivo de docentes, pois, por exemplo, embora seja esperado que biólogos e pesquisadores compreendam biologia, somente se espera de um docente de biologia a capacidade de transformar o conhecimento do conteúdo biológico em formas pedagogicamente aplicáveis ao ensino. Assim, emerge da amálgama “conhecimento do conteúdo mais conhecimento pedagógico” um domínio especial de conhecimento que somente cabe aos professores, sendo que, dissociados, perdem o valor, pois para a concretização do ensino, é necessário mais do que somar o conhecimento de fatos e conceitos do conteúdo com as habilidades gerais de ensino. Por meio dessa perspectiva, entende-se primeiramente que no “conhecimento do conteúdo”, o professor disponha do entendimento de princípios e estruturas organizacionais do assunto, bem como de diretrizes para estabelecer o que é adequado para se dizer e fazer na prática de ensino, para determinar que tópicos são particularmente centrais e quais são periféricos para uma dada disciplina (SHULMAN, 1986). Em segundo lugar, articulado ao “conhecimento curricular”, o conhecimento do conteúdo precisa estar integrado aos programas de assuntos particulares em determinados níveis projetados para o ensino, bem como às decisões acerca de indicações e contraindicações para emprego de materiais didáticos e currículos. Tal conhecimento curricular pode ser entendido por meio de duas subdivisões: o conhecimento curricular horizontal, aquele que correlaciona o conteúdo que está sendo ensinado com o currículo que os alunos estão aprendendo em outras aulas ou em outras áreas; e o conhecimento curricular vertical, que inclui a articulação com tópicos e questões que foram e serão ensinados dentro da própria disciplina em anos anteriores e posteriores (SHULMAN, 1986). 28 Em terceiro lugar, segundo Shulman (1986), além do “conhecimento do conteúdo” e do “conhecimento curricular”, há o domínio do saber docente denominado “conhecimento pedagógico do conteúdo”, que se concretiza pelas formas de representação de ideias, as analogias, ilustrações, exemplos, explicações, demonstrações, emprego de palavras (etc.) de formas adequadas para representar e formular o assunto, de modo que se torne cognoscível/compreensível para os estudantes. Este conhecimento também inclui a compreensão de fatores que facilitam ou dificultam a aprendizagem de tópicos particulares, tanto no que diz respeitos às concepções e preconceitos que estudantes trazem como as implicações nas dificuldades de aprendizagem subjacentes. Assim, trata-se do “saber” e do “saber fazer” do professor, que conferem a capacidade de reconstruir temas da disciplina para torná-los mais acessíveis para a aprendizagem, por meio da seleção de tópicos adequados e das formulações de representações apropriadas do conteúdo a ser aprendido2. Um professor que mobiliza adequadamente seu conhecimento pedagógico do conteúdo não emprega compreensões intuitivas ou pessoais de um assunto, pois para propiciar a aprendizagem, precisam planejar formas de representar um dado, um conceito ou um princípio aos estudantes. Para tanto, é preciso dispor de meios de transformar o conteúdo em consonância com propósitos do ensino, para estimular a aprendizagem dos conhecimentos na mente dos alunos (WILSON; SHULMAN; RICHERT, 1987). Assim, os professores precisam deliberadamente encontrar formas de comunicar e socializar conhecimentos, de modo a auxiliar os estudantes na aprendizagem. Ao longo dessa atuação, o professor passa a dispor de conhecimentos de como ensinar um dado conceito e de como os alunos o aprendem. Ele passa a entender como os currículos estão organizados na própria disciplina e quais as formas adequadas de incluir tópicos em tal currículo em conformidade com objetivos educacionais. Assim, considera-se que por meio do conhecimento pedagógico do conteúdo, o professor transforma qualitativamente seu conhecimento do conteúdo específico ao associá-lo com propósitos de ensino (ibid.). 2 O autor faz alusão a formular representações, a comunicações claras do professor, mas em uma de suas obras (SHULMAN, 1987) faz a ressalva de que o termo “conhecimento pedagógico do conteúdo” trata das transformações do conteúdo para a estratégia pedagógica de forma ampla, o que inclui as formas ativas de aprendizagem por investigação, por exemplo. Assim, a aplicação do conceito de Shulman não trata apenas de uma visão de transmissão de conhecimentos tradicional. 29 Também na visão de formação de professores da professora estadunidense Linda Darling-Hammond, a prática docente requer a interação dos saberes referentes ao conteúdo, ensino e estudantes (DARLING-HAMMOND, 2006), conforme o Quadro 1. Especialmente no que tange ao conhecimento dos estudantes, ou seja, no que se refere ao conhecimento da aprendizagem, a prática docente precisará estar subsidiada por fundamentos acerca de como os alunos aprendem, para incorporar as implicações no ensino e no planejamento curricular que será feito. Assim, saber como os alunos aprendem não deve ser algo que somente psicólogos sabem, pois é esse saber que permitirá ao professor dispor de estratégias para ajudar seu estudante a alcançar objetivos curriculares (ibid.). Quadro 1. Uma visão da prática profissional docente no que diz respeito aos conhecimentos a que constituem (baseado em DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2005). Conhecimento dos alunos e seu desenvolvimento em contextos sociais Conhecimento do ensino Conhecimento do conteúdo e dos objetivos do currículo Aprendizado Desenvolvimento humano Linguagem Conteúdo e pedagogia Ensinar alunos diversos Avaliação Gestão da sala de aula Objetivos educacionais Habilidades Conteúdos Fonte: elaborado pela autora. Assim, na visão de Darling-Hammond, a formação do professor precisará propiciar, além do conhecimento de como estudantes aprendem e se desenvolvem em interações com os contextos sociais (incluindo o conhecimento do desenvolvimento e da linguagem), também a compreensão e as habilidades para o ensino (conforme o Quadro 1). Mais do que ter conhecimento pedagógico do conteúdo, também é necessário saber ensinar para salas de aulas heterogêneas, de modo que o processo de gestão da sala de aula e o processo avaliativo sejam produtivos. Na última coluna do Quadro 1, consta o conhecimento referente à compreensão do conteúdo e dos objetivos curriculares, o que abrange a matéria e as habilidades a serem ensinadas segundo as demandas da disciplina, das necessidades dos estudantes e dos propósitos sociais da educação. Outra proposta de teorização acerca dos saberes docentes foi elaborada por Ball, Thames e Phelps (2008) com base no arcabouço teórico de Lee Shulman. Os 30 autores entendem que há uma multidimensionalidade do “conhecimento pedagógico do conteúdo” e que é possível visualizar categorias, ainda que não sejam categorias independentes. Pensando duas categorias – o conhecimento de conteúdo e o conhecimento pedagógico – os autores indicam que há mais duas subcategorias possíveis para cada uma. Ball, Thames e Phelps (2008) reconhecem dentro do conhecimento do conteúdo de Shulman as categorias: conhecimento de conteúdo comum e conhecimento de conteúdo especializado. O “conhecimento comum de conteúdo” (CCC) é aquele que implica a mobilização adequada dos conhecimentos como, por exemplo, em uma resolução de problemas na área da saúde que pode ser realizada por outros profissionais da biologia, que não os professores. O CCC é também um conhecimento do professor, visto que é preciso dispor dele para avaliar respostas de estudantes, para avaliar conceitos imprecisos de materiais didáticos, para escrever na lousa ou produzir materiais destinados aos alunos. É também mobilizado ao formular verbalmente representações, pois é preciso utilizar terminologias e conceitos compatíveis com o consenso científico. Porém, não se trata de um saber exclusivo do professor, então é nesse sentido que se denomina como “comum”: para indicar que é um conhecimento utilizado em ampla variedade de situações e não exclusivamente no ensino. O conhecimento especializado de conteúdo (CEC) é a mobilização do conhecimento biológico e de habilidades de formas exclusivas do ensino (são conhecimentos que não têm aplicações necessárias para além do ensino), como dimensionar o equívoco de um estudante e planejar uma abordagem adequada por meio de uma “desembalagem” ou um “desdobramento” do conteúdo a partir de representações. São tarefas que o professor rotineiramente desempenha e que requerem uma ampla compreensão de interpretações diferentes das concepções equivocadas dos alunos. Para resolver situações rotineiras em sala de aula, o professor emprega meta-análises que requerem um conhecimento docente que não obrigatoriamente será necessário para a maioria das pessoas. Este conhecimento está relacionado com diferentes versões ou caminhos para “descompactar” o conteúdo, ou seja, são formas de conceber a biologia por vieses didáticos, acessíveis ou cognoscíveis. Assim, o CEC é específico ao professor no sentido das interações que ocorrem entre o conteúdo e a mediação didática: é conhecimento exclusivo dos 31 docentes a capacidade de transformar o conteúdo com intenção de estratégia pedagógica. Assim, a capacidade de “descomprimir” ou “desembalar” o conteúdo não é sinônima de compreensão conceitual, pois se trata das habilidades de tornar o conhecimento mais acessível ao aprendizado; assim, não há necessidade de se esperar que os alunos também possuam CEC, assim como não se espera que o biólogo bacharel o possua. Trata-se de um conhecimento apenas de domínio docente. Além do CCC, de um docente espera-se ainda o conhecimento acerca de habilidades que possam viabilizar estratégias para desembalar tal conteúdo. Em biologia, desembalar o conteúdo frequentemente é uma ação viabilizada pelo exercício da análise (do grego analuein, desamarrar), ou seja, pelo exercício de decompor o todo em seus elementos constituintes (DUROZOI; ROUSSEL, 1993). Esta fase de análise consiste em um passo importante para tornar o conhecimento mais acessível, mas após a análise dos componentes, também será necessária a análise dos eventos, que podem ser decompostos sequencialmente de forma não simultânea. Se o professor realizará uma exposição do tema, ou se irá propor uma atividade com perguntas, uma pesquisa de literatura, uma interpretação de um modelo, ou outras atividades, o que não pode ser ignorado é que o conteúdo conceitual precisa sofrer a transposição didática3; ou seja, a “desembalagem” que permite o acesso ao saber. Ciente da necessidade de produzir sínteses para não impedir o pensamento relacional, tão necessário à biologia, o professor pode partir da análise para o todo, considerando eventos de forma simultânea. Partir das partes para posteriormente articular com o todo não é o único caminho de descompactação do conteúdo em biologia. Em alguns casos, é possível também realizar uma transposição que permita identificar as etapas mais abrangentes e centrais do processo primeiro. Partir de tais apontamentos pode evidenciar o significado relacional das demais informações que estarão conectadas. Não é intenção realizar proposições prescritivas por meio de tais considerações, mas sim exemplificar a importância do CEC para a tomada de decisões do professor. 3 Termo utilizado no sentido de “transposição didática interna” de Chevallard (1985). 32 Pode-se considerar o CEC como muito próximo do conceito de transposição didática interna de Chevallard (1985), que consiste na passagem de um conteúdo do saber a uma versão didática, ou didatização. Neste processo de transposição didática, no qual o processor mobiliza o CEC, nas aulas de biologia é importante recorrer a uma pluralidade de possibilidades didáticas que estimulem a percepção, ou que possam favorecer o raciocínio e memória. São exemplos a apresentação direta de fenômenos naturais em aulas de campo e de laboratório, bem como com uso de modelos, desenhos, gráficos, esquemas ou objetos em ambientes virtuais (CALDEIRA, 2009). As representações de livros didáticos, de lousas e os textos didáticos também são importantes, mas se o aluno sofre experiências com o objeto de estudo de forma direta, há menores perdas no processo de abstração mental da aprendizagem (CALDEIRA, 2009), pois ao invés de estar formando conceitos a partir de representações simplificadas (sofrendo perdas com relação ao que poderia ser interpretado pelo estudante em sua totalidade), o aluno está interagindo com um objeto dinâmico diretamente. É somente após a representação formal de conceitos pelos alunos que é possível estabelecer relações mais amplas, o que requer inicialmente a apropriação da linguagem simbólica por meio de articulação entre representações cognitivas e nomenclaturas específicas (CALDEIRA, 2009). As representações cognitivas que o estudante pode engendrar em situações de aprendizagem em aulas de biologia podem ser potencializadas, portanto, pela redução do uso de representações e pela preferência por aulas em espaços não formais, como ambientes naturais, aulas com observação direta de exemplares de organismos, observação de células ao microscópio óptico, vídeos de fenômenos e processos, experimentos em laboratórios, modelos tridimensionais etc. Ball, Thames e Phelps (2008) também reconhecem categorias que podem ser exploradas dentro do conhecimento de conteúdo pedagógico o “conhecimento de conteúdo e dos alunos” e o “conhecimento do conteúdo e do ensino”. O conhecimento do conteúdo e dos alunos (CCA) é aquele que combina conhecimento acerca dos estudantes e conhecimento biológico. Por meio desse saber e, munidos de dados obtidos por meio de avaliação diagnóstica, professores podem relacionar as concepções dos alunos com o conteúdo que será objeto de ensino e aprendizagem. É possível antecipar o que os alunos poderão achar 33 confuso e, ao escolher um exemplo, os professores podem tentar prever o que os alunos acham interessante e motivador. Ao atribuir uma tarefa, os professores precisam antecipar como os alunos irão realizá-la para adequar níveis de dificuldade. Os professores também precisariam ser capazes de ouvir/ler e interpretar o pensamento inacabado ou em formação dos alunos, para permitir a decodificação das concepções dos alunos quando mobilizam a linguagem. Cada uma dessas tarefas requer uma interação entre compreensão biológica específica e familiaridade com os estudantes e seu pensamento biológico. Central para tais tarefas é o conhecimento de concepções comuns de estudantes e equívocos referentes ao conteúdo biológico particular. Trata-se de adaptar o CEC à realidade de um grupo de estudantes, por meio de personalizações necessárias ao aprendizado e por meio do diagnóstico constante da construção do conhecimento dos estudantes. O professor pode repensar as estratégias e a mobilização de recursos didáticos que melhor se adequem aos seus alunos. Este é um conhecimento que não pode sofrer generalizações, porque é sempre particular: diz respeito ao conjunto de estudantes de cada turma e diz respeito também a cada aluno de uma dada turma. É por meio do conhecimento acerca dos alunos que o professor pode realizar transposições didáticas adequadas ao arcabouço dos estudantes, o que pode aumentar o significado dos saberes e a complementaridade do conteúdo com a reinterpretação da realidade e do cotidiano por parte dos aprendizes. O “conhecimento de conteúdo e do ensino” – a última categoria proposta por Ball, Thames e Phelps (2008) – combinaria conhecimento do ensino e conhecimento biológico. Os professores sequenciam um conteúdo particular para a mediação didática, escolhem os tópicos para começar e quais exemplos empregar para levar os alunos mais profundamente ao conteúdo. Os professores avaliam as vantagens e desvantagens de determinadas situações de aprendizagem, das representações que serão empregadas para ensinar e identificam o que diferentes metodologias e procedimentos oferecem. Durante uma discussão em sala de aula, o professor irá decidir quando fazer uma pausa para obter mais esclarecimentos, quando estimular a observação de um aluno para fazer apontamentos e quando fazer um novo questionamento ou solicitar uma nova tarefa para dar continuidade à aprendizagem dos alunos. 34 É possível pensar que nessa categoria de Ball, Thames e Phelps (2008) esteja classificada a capacidade docente de realizar a articulação do conteúdo biológico aos objetivos educacionais, que permitem a formação do estudante. É por meio de conhecimentos da importância epistemológica, ética e política do ensino de determinados conteúdos em biologia que o professor encontrará esteio para realizar intervenções que tenham coerência curricular e metodológica. É por meio desse saber que o professor pode ser capaz de responder à típica pergunta dos estudantes “mas por que eu tenho que saber isso?”. Ao estabelecer uma comparação das categorias de Ball, Thames e Phelps (2008), é possível fazer alusão aos saberes propostos por Anastasiou (2003, p. 4), que afirma que “o saber inclui um saber quê, um saber como, um saber porque e um saber para quê”. O “saber quê” pode ser entendido em paralelo com o Conhecimento Comum do conteúdo, pois trata-se do conteúdo de cunho factual ou conceitual. O “saber como” pode ser entendido de forma semelhante ao Conhecimento Especializado do Conteúdo, pois consiste na capacidade de transpor didaticamente o conteúdo, de modo a torná-lo mais desembalado ou acessível ao estudante. O “saber por que” (em paralelo com o Conhecimento do Conteúdo e do Aluno) envolve a justificativa das decisões curriculares e metodológicas adotadas em adequação ao arcabouço prévio dos estudantes, bem como de suas trajetórias percorridas durante o enfrentamento do processo de aprendizagem. E, por fim, o “saber para quê” pode ser comparado com o Conhecimento do Conteúdo e do Ensino, visto que são determinados os objetivos educacionais em conformidade com finalidades formativas amplas que norteiam todas as atividades didáticas. Ball, Thames e Phelps (2008) admitem que haja questionamentos quanto às fronteiras, pois nem sempre é fácil discernir as delimitações de uma categoria e o início da próxima, assim, ainda que possa favorecer com caráter heurístico, é difícil (e talvez prescindível) discernir os tipos de conhecimentos em casos específicos. Extraímos da análise supracitada algumas implicações para professores de biologia e podemos concluir que no conhecimento pedagógico do conteúdo, com sua multidimensionalidade (Quadro 2) é possível articular didática e epistemologia da biologia e pensar a integração de saberes de professores na formação inicial. Quatro 2. Categorias do conhecimento pedagógico do conteúdo adaptadas a partir da proposta de Ball, Thames e Phelps (2008) com as respectivas abreviações e comparadas às categorias de Anastasiou (2003). 35 Categorias do conhecimento pedagógico do conteúdo Categorias de Anastasiou (2003) Conhecimento comum do conteúdo CCC O quê? Conhecimento especializado do conteúdo CEC Como? Conhecimento do conteúdo e dos alunos CCA Por quê? Conhecimento do conteúdo e do ensino CCE Para quê? Fonte: elaborado pela autora. Para tanto, concretizar a integração de saberes exige que a universidade questione seus modelos tradicionais na Formação Inicial, tanto nas disciplinas de conteúdos biológicos quanto nas disciplinas didático-pedagógicas. É preciso oportunizar aos licenciandos espaços formativos nos quais possam integrar saberes e nos quais possam realizar um questionamento reconstrutivo (DEMO, 2011) da própria prática. Como considera Tardif (2011), os saberes disciplinares, curriculares e profissionais do professor passam pela reconstrução do saber experiencial. Porém, durante o curso da graduação, o professor não produz conhecimento disciplinar ou pedagógico porque são ensinados na formação universitária sem que o graduando possa exercer controle de questões curriculares ou da produção de tais saberes. O licenciando se configura como receptor de saberes que não interagem com a prática. Não há tempo ou espaço para que tal integração ocorra. Assim, ao se tornar docente, o egresso da licenciatura, que possui uma relação de exterioridade e desapropriação com os saberes da universidade (um processo de alienação porque ele não controla a não produz os saberes) passa a se apropriar de um saber por ele produzido, por ele controlado e por ele legitimado: o saber experiencial. É comum que por meio do saber experiencial, o professor passe a validar conhecimento a partir da prática por meio de categorias do próprio discurso. O que não teve utilidade aparente é eliminado e são conservados os procedimentos escolhidos por caráter utilitário. Assim, segundo Tardif (2011), a experiência corrobora um processo de retomada crítica que filtra e seleciona saberes, permitindo rever, julgar e avaliar os demais saberes. Instaura-se o processo de interiorizar saberes por meio da própria prática, o que caracteriza o saber experiencial como um 36 saber diferente dos demais, por ser constituído de todos os demais de forma retraduzida e submetida às certezas construídas na prática cotidiana da experiência vivida. Considerar que os saberes docentes adquiridos a partir da Formação Inicial serão ressignificados por meio da prática é condição sine qua non para repensar a formação universitária da licenciatura. É preciso antecipar a formação dos saberes experienciais ainda na universidade para que sejam promovidos espaços de questionamento reconstrutivo dos próprios saberes, para que os professores não eliminem a teoria biológica e didático-pedagógica baseados em critérios utilitários. Visando atender tais demandas formativas, a didática constitui uma disciplina que articula teoria e prática, sendo esse o papel da didática na formação do professor; ou seja, trata-se de um campo de estudos que contribui para a articulação entre teoria e prática de uma forma reflexiva, que permite ao professor dispor das especificidades de sua área de atuação, como a biologia (CALDEIRA; BASTOS, 2009). A didática é assumida como uma disciplina pedagógica indispensável ao exercício profissional, constituindo-se referência para a formação de professores à medida que investiga os marcos teóricos e conceituais que fundamentam, a partir das práticas reais de ensino- aprendizagem, os saberes profissionais a serem mobilizados na ação docente, de modo a articular na formação profissional a teoria e a prática. Na relação de continuidade entre estudos clássicos e contemporâneos em didática, tem sido consensual o entendimento de que seu objeto de estudo é o processo de ensino-aprendizagem ligado à apropriação de conhecimentos, em determinados contextos, visando à formação do aluno. Constitui-se, assim, como um sistema teórico de referência para dar suporte à análise de aspectos da formação profissional de professores no que se refere à relação entre conhecimento disciplinar e conhecimento pedagógico (LIBÂNEO, 2015, p.633). Libâneo (2015) pontua que a didática investiga processos de ensino e aprendizagem no que diz respeito a sua relação com o conteúdo específico, assim, o cerne da questão didática é “o conhecimento enquanto um processo mental a ser desenvolvido pelo aluno para conhecer objetos, ou seja, seu processo de formação de conceitos” (p. 641). Desse modo, à didática cabe a investigação acerca do processo de ensino e aprendizagem no que concerne aos saberes, visando o desenvolvimento do aluno. O professor estimula a apropriação de produtos da ciência por meio de uma atividade autônoma dos alunos, um processo denominado 37 mediação didática, que consiste na mediação das relações entre o aluno e os objetos de conhecimento (processo de ensino e aprendizagem). Para Libâneo (2015), a didática reúne de forma integrada a lógica da organização dos saberes que serão objetos de ensino (dimensão epistemológica), a lógica das formas de aprendizagem (dimensão psicopedagógica) e a lógica da atuação docente no ensino. Essas considerações permitem evidenciar a relação de dependência da didática com a epistemologia das disciplinas, do que decorre que os professores precisam não só ter domínio dos resultados da ciência como, também, dos procedimentos lógicos e investigativos dessa ciência, pois é daí que se originam as capacidades intelectuais a formar nos alunos na atividade de estudo. Nesse caso, o conhecimento pedagógico do conteúdo consiste em ajudar o aluno a transformar os conteúdos em objetos do pensamento, ou seja, em conceitos teóricos. Reside aí, precisamente, a problemática da relação entre o conhecimento disciplinar (conhecimento do conteúdo) e o conhecimento pedagógico na formação de professores (LIBÂNEO, 2015, p.642) Espera-se que o professor formado, em nome da autonomia intelectual, articule teoria e prática para refletir criticamente acerca da sua prática profissional. Para tanto, o licenciando precisa ser estimulado a conhecer, refletir criticamente, debater, investigar, avaliar, propor soluções e aplicar conhecimentos. Assim, além do conhecimento de natureza conceitual, o professor em formação pode aprender habilidades e atitudes que possibilitarão a própria práxis docente (CALDEIRA; BASTOS, 2009). Para perseguir o objetivo de propiciar a articulação entre didática e epistemologia da biologia, ou em outras palavras, para permitir o alcance do conhecimento pedagógico do conteúdo biológico para o professor de biologia em formação, é preciso que o graduando conheça a natureza do conhecimento da disciplina. Também se espera que esse professor possa dispor de conhecimento das concepções comuns e os equívocos dos estudantes, especialmente daqueles que podem ser desenvolvidos à medida que aprendem uma unidade didática4. 4 Durante os processos de ensino e aprendizagem há situações nas quais o professor define um objetivo, mas o estudante pode se desviar por caminhos de “distorção”, que consistem na construção que o estudante faz de uma versão alternativa para conceitos científicos estudados, que ainda que ele não perceba, pode estar discrepante do modelo científico (BASTOS et al., 2004). É importante que o professor esteja atento não só às concepções alternativas que os alunos possuem a respeito de determinado tema, mas, sobretudo que estejam atentos às concepções que os alunos têm durante o próprio processo de aprendizagem. 38 Tendo sido realizada a fundamentação acerca da necessidade de que os professores em formação adquiram e articulem saberes de conteúdo específico, saberes de cunho pedagógico e saberes acerca de compreensões de seus estudantes, passaremos a tratar da fundamentação que auxilia o entendimento da relação entre pensamento e linguagem. Justifica-se a necessidade de tal discussão no presente trabalho, uma vez que a linguagem mediada por palavras é um dos meios pelo qual o professor e o livro didático expressam o conhecimento e é também um dos meios pelo qual se obtém indicadores de concepções dos estudantes. 2.2 Relação entre pensamento e linguagem As palavras e as frases que usamos e a complexa rede de relacionamentos entre seus usos são os óculos através dos quais vemos a nós mesmos e vemos o mundo. [...] Se as lentes estão sujas e obscurecem a visão, se for muito fácil confundir reflexos na lente com coisas vistas, se a curvatura das lentes conduz a certas distorções, então é imperativo prestar atenção aos óculos com os quais vemos o mundo.” (HACKER, 2010, p. 27-28). Iniciamos esta seção com o excerto acima para tratar de um dos principais meios pelos quais professores podem acessar os indicadores de aprendizagem dos estudantes: declarações escritas ou orais, ou seja, a linguagem mediada por palavras. Se a linguagem é uma via que codifica e externaliza o pensamento humano (EVANS; GREEN, 2006), a relação entre linguagem e pensamento se torna central para compreender e alterar o processo de ensino e aprendizagem. A linguagem nos fornece indicadores detectáveis que permitem entender da natureza, da estrutura e da organização do pensamento, uma vez que o nosso sistema conceitual origina propriedades da linguagem (ibid.). O sistema conceitual, por sua vez, é originado da experiência homem-mundo, que percebe dimensões do mundo exterior, por meio da interação sensorial e sociocultural. Tal sistema conceitual é sustentado pela percepção e deriva de meios que incluem experiências sensoriais e introspectivas5, cujas representações mentais não 5 Considerando as experiências sensoriais, poderíamos citar o sistema visual (detecta o espaço e as cores), as sensações proprioceptivas (sensores de movimento e posição nos músculos, tendões e articulações; sensores de movimento no canal auditivo que detecta movimentos da cabeça), o sistema auditivo, o sistema tátil (tato, pressão, prurido), termorreceptores (receptores de frio e calor), nociceptores (receptores de dor), sistema olfativo e a gustação (TORTORA; DERRICKSON, 2017). Somados aos sentidos citados, ainda há outras capacidades humanas basais como a consciência temporal e o sistema afetivo (este último permite a dimensão das emoções) (EVANS; GREEN, 2006). 39 podem ser codificadas/externalizadas em seu todo somente por palavras. Ou seja, a linguagem é menos rica em detalhes que a experiência perceptiva e menos rica em detalhes que a organização mental dessa experiência (EVANS; GREEN, 2006). Assim, pode-se afirmar que, mediada por um sistema simbólico, a linguagem falada ou escrita sofre perda da riqueza da dimensão multimodal da representação conceitual, sendo, portanto, uma via limitada e limitante para expressar o pensamento (EVANS; GREEN, 2006). Basta lembrar de uma situação corriqueira na qual ocorre a frustração de um impedimento para “colocar uma ideia em palavras” e a razão para tal é que há um número finito de palavras com seus respectivos significados convencionais. Uma das finalidades da linguagem é a expressão de pensamentos e ideias, pois ela codifica e externaliza pensamentos. O modo pelo qual a linguagem viabiliza a externalização é utilizando símbolos, como: palavras inteiras, partes de palavras ou sequências de palavras. Os símbolos estão associados a significados que são conteúdos semânticos convencionais. O significado está ligado a uma representação mental, denominada “conceito”; e as palavras rotulam conceitos. Os conceitos, por sua vez, são originados das percepções (ver Figura 1). As informações obtidas pelas vias sensoriais são integradas em uma imagem mental coerente e bem definida e os significados rotulados pelos símbolos linguísticos evocam essa representação mental da realidade (EVANS; GREEN, 2006). Para exemplificar, Vyvyan Evans e Melanie Green (2006), utilizam uma fruta, como uma pera. Diferentes partes cerebrais irão perceber forma, cor, textura, sabor, cheiro etc. As várias informações perceptivas da “realidade externa” são integradas a uma única imagem mental, que fica disponível para a consciência e dá origem ao conceito de pera. Ao utilizar a linguagem para pronunciar “pera”, o símbolo corresponde a um significado convencional e se conecta a um conceito, mas não a um objeto físico da realidade externa (EVANS; GREEN, 2006). Além da finalidade de expressar pensamentos e ideias, a linguagem também tem a função interativa, que consiste em tornar reconhecíveis e acessíveis aos demais sujeitos de uma comunidade os significados que compõem a linguagem. Na transmissão das ideias, deverá ocorrer então a comunicação, ou seja, o emissor transmite a informação e ocorre a decodificação pelo receptor (EVANS; GREEN, 2006). 40 Figura 1. Níveis de representação (adaptado de EVANS; GREEN, 2006, p. 7) Fonte: elaborada pela autora. As premissas supracitadas são provenientes da teorização da Linguística Cognitiva, uma área de estudo cujo arcabouço teórico está fundamentado na ideia de que, embora o sistema conceitual não se revele aberto para uma investigação direta, há a possibilidade de observação direta dos padrões da linguagem e, a partir de tais padrões, realizar a reconstrução das propriedades do sistema conceitual, assim, a linguagem seria uma janela para a cognição, representando importantes insights para a compreensão da mente humana (EVANS; GREEN, 2006). Sob a ótica da Linguística Cognitiva, é necessário indicar que consideramos aqui o entendimento de “significado da palavra” diferente de uma definição (visão de dicionário), pois o significado das palavras considerado aqui é aquele de uma visão enciclopédica. A partir desse ponto de vista, admite-se que uma unidade, como uma palavra, não é entendida independentemente/desconectada de um inventário ou repositório de conhecimento enciclopédico vinculado, cuja origem é a interação humana social e física (EVANS; GREEN, 2006; FILLMORE, 2006; LANGACKER, 2006). A descrição semântica de uma expressão leva, como ponto de partida, uma concepção integrada de complexidade arbitrária e o escopo enciclopédico. Podemos postular hierarquias de complexidade conceitual, nas quais estruturas de um determinado nível emergem de níveis inferiores (LANGACKER, 2006). Por exemplo, a noção hipotenusa é prontamente caracterizada, dada a concepção prévia de um triângulo retângulo, mas incoerente sem ele; O triângulo retângulo, portanto, funciona como o domínio cognitivo da hipotenusa. O ponto central do valor do cotovelo é a posição da entidade designada em relação à configuração geral do braço humano (tente explicar o que é um cotovelo sem se referir de forma alguma a um braço); portanto, braço é um domínio para o cotovelo (ibid.) Ou seja, para 41 explorar significados, é necessário ir além de uma visão de palavras como entidades autônomas, pois é preciso fazer uma análise mais completa que envolve uma integração de como a cognição atua na produção e externalização de conceitos rotulados em palavras. Os modos como são construídos os conceitos na mente humana envolvem uma riqueza de informações que diferentes autores tentam entender e sistematizar em teorizações. Charles J. Fillmore (2006), por exemplo, utiliza o conceito de “frames” para indicar um “quadro” que é evocado a partir de uma palavra, que traz à tona um conjunto de contextos, cenas ou estruturas sistematizadas originados de experiências passadas/prévias. Ou seja, trata-se do conhecimento de mundo do sujeito. O autor denomina como “semântica de frames” a própria teorização. Um exemplo seria a utilização da palavra “carro”: o conceito de carro incluiria uma figura mental correspondente a uma subparte que compõe uma porção de um todo mais abrangente. Esse todo é composto também por um pano de fundo, que é o frame (EVANS; GREEN, 2006). O frame não é uma mera lista de atributos associados ao conceito, como por exemplo a respeito do carro: roda, pneu, para- brisa, capô, portas, volante, motor e assim por diante. Há também pensamentos relacionais, ou seja, que tratam das interações entre as partes, por exemplo: carros precisam de combustível para funcionar, são conduzidos por seres humanos, que primeiro precisam obter uma carteira de motorista, carros têm motores que fornecem o mecanismo para mover o veículo, e assim por diante. Além disso, sabemos que, a menos que um motorista esteja operando o veículo, o que envolve ligar a ignição, o motor não dará partida. Assim, reduzir o conceito a uma figura mental ou a uma lista de atributos não é uma forma muito representativa de tratar da cognição humana no que tange ao processo de atribuir significados. A semântica de frames é uma tentativa de superar essa lacuna. Admitindo tais premissas, é possível assumir que, de acordo com seu conhecimento enciclopédico pessoal, o estudante poderá interpretar um item léxico de formas diferentes daquelas que o professor espera devido às experiências religiosas e/ou culturais em geral que o estudante possui. O fenômeno dos “modos de ver” (ways of seeing) se origina do fato de cada indivíduo ter experiências diferentes e essa diferença implicar em representações mentais individuais autênticas. Isso cria um repertório ou conhecimento enciclopédico que pode influenciar a maneira como as palavras são interpretadas (CRUSE, 2011). 42 Além disso, algumas palavras podem ter um uso geral na vida cotidiana, mas passam a ter um uso separado na linguagem técnica. Nestes casos, os frames não estão relacionados e a percepção não auxilia o processo da compreensão, impedindo que as noções se encaixem. A disparidade de frames citada pode causar ruídos de comunicação, um fenômeno que pode ser entendido como uma falha de comunicação por conflito de frame (FILLMORE, 2006). A polissemia (que pode ser uma possível causa para ruídos de comunicação) pode surgir quando frames alternativos são evocados a partir de uma mesma palavra (ibid.). Nas interações discursivas que ocorrem em sala de aula, o conhecimento enciclopédico que o aluno possui pode determinar a forma como ele atribui significados a um determinado conceito. Em casos de distorção conceitual causada por polissemia, poderíamos dizer que o frame do estudante não coincide com o frame do conhecimento científico. A relevância de tratar desse aspecto da Linguística Cognitiva está na questão de que a palavra “dominância”, central na presente pesquisa, tem um significado corriqueiro de uso frequente na linguagem do dia a dia e um significado científico, que foi atribuído por Mendel. Como partimos de uma hipótese de que a linguagem poderia ter influências sobre como o estudante concebe o fenômeno da dominância, faz-se necessário discutir como questões linguísticas podem determinar um mal- entendido ou uma incompreensão. A questão linguística para a interpretação do uso dos termos “dominância” e “recessividade” perpassa pelo caráter metafórico inerente. Nas últimas décadas, a forma como se concebe o uso de metáforas tem sido transformada por autores como George Lakoff e Mark Johnson (1980). Antes, até a década de 1970, a metáfora, cujo papel seria quase que de ornamentação, era entendida como restrita à linguagem. Porém, após a virada cognitiva estimulada pela publicação “Metáfora e Pensamento” de Andrew Ortony em 1979, a metáfora passa a ser entendida como uma questão também de pensamento (STEEN, 2011). No ano seguinte, Lakoff e Johnson (1980) lançam a obra “Metaphors We Live by”, na qual defendem que o uso da metáfora não tem uma frequência esporádica, pois é altamente difundido na vida cotidiana. Assim, ratificam que não se trata apenas de palavras, mas também de pensamentos e ações. A afirmação central dos autores seria que a metáfora não é artifício poético de imaginação ou “floreio” 43 fantasioso, pois nosso sistema conceitual, em termos do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza. O funcionamento de uma metáfora é entender ou experienciar um elemento (domínio alvo) em termos de outro (domínio fonte). Porém, no caso da linguística cognitiva a metáfora é diferente daquela outrora entendida como “figura de linguagem”, visto que não se trata de imaginação e fábulas, mas sim de sentido literal. The most important claim we have made so far is that metaphor is not just a matter of language, that is, of mere words. We shall argue that, on the contrary, human thought processes are largely metaphorical. This is what we mean when we say that the human conceptual system is metaphorically structured and defined. Metaphors as linguistic expressions are possible precisely because there are metaphors in a person's conceptual system (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p. 07). Uma vez que as expressões metafóricas estejam ligadas a conceitos metafóricos de modo sistemático, é possível utilizar expressões metafóricas para estudar a natureza dos conceitos metafóricos e ter indicadores do funcionamento da cognição estruturada de forma também metafórica (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Ou seja, a linguagem forneceria dados que permitiriam a organização de princípios gerais da compreensão (ibid.). Sendo assim, Lakoff e Johnson (1980) admitem que a maior parte de nosso sistema conceitual é metaforicamente estruturada. Especificamente, os autores indicam que estruturamos os conceitos menos concretos e inerentemente mais vagos (como emoções) em termos de conceitos mais concretos, que são mais claramente delineados em nossa experiência. Os conceitos mais concretos são aqueles que provém da experiência ou dos nossos corpos (aparelho perceptivo, aparelho motor, capacidades mentais e emocionais etc.). Nas interações com o ambiente físico, desenvolvemos atividades como manuseio, alimentação, receber impactos etc. Já nas interações com outras pessoas, experienciamos a dimensão social, política, econômica e religiosa, por exemplo (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Para exemplificar, os autores mencionam como o conceito de “tempo” é falado e pensado em termos de outro conceito, o de “dinheiro”. Não somente na típica frase “tempo é dinheiro”, mas também em várias outras frases, a saber: “você está desperdiçando meu tempo”, “desse modo eu vou economizar tempo”, “eu posso 44 te dar cinco minutos”, “como você gasta seu tempo?”, “aquilo me custou muito tempo”, “eu investi muito tempo nisso” e “vai sobrar tempo?”. A compreensão de um conceito em termos de outro apresenta limitações, porque alguns aspectos são incompatíveis. A metáfora permite que nos concentremos em alguns elementos de um conceito, mas ao mesmo tempo oculta outros. Deste modo, a estruturação metafórica é parcial, não total. Se fosse total, um conceito seria exatamente o outro e não estruturado/entendido em termos do outro (LAKOFF; JOHNSON, 1980). No que diz respeito ao exemplo “tempo é dinheiro”, o tempo (domínio alvo) não é de fato dinheiro (domínio fonte). Por exemplo, se um tempo for gasto em algo sem êxito, esse tempo não pode ser devolvido. Não há bancos de tempo etc. Utilizando a terminologia de Lakoff e Johnson (1980), o link metafórico que une dois domínios consiste em várias correspondências ou mapeamentos (mappings) distintos. Alguns aspectos do domínio alvo e do domínio fonte representam correspondência, outros não. Dessa distinção que se faz entre os aspectos que correspondem e os que não, emerge a classificação dos processos de ocultar (hiding) e destacar (highlighting). Em discussões publicadas por nosso grupo de pesquisa (CESCHIM; CALDEIRA, 2020; CESCHIM; GANIKO-DUTRA; CALDEIRA, 2020) indicamos que os processos de ocultar e destacar podem estar correlacionados com o que chamamos de “Distorção conceitual por metáfora”. O fenômeno seria a produção de concepções alternativas por estudantes que 'destacam' aspectos do domínio fonte que não são correspondentes com o domínio alvo, produzindo conclusões equivocadas. Na próxima sessão, trataremos do tema de mudança conceitual, para indicar quais fundamentos amparam nossa discussão no que diz respeito a como se espera que o professor conduza a mediação didática diante da necessidade do enfrentamento de concepções equivocadas. 2.3 Mudança conceitual Ainda que a ciência tenha produzido várias interpretações com evidências disponíveis, os estudantes em período de escolarização nem sempre adotam as visões científicas referentes aos fenômenos. No passado, professores já pensaram que crianças chegavam à escola “sem saber nada”, como “tábula rasa” ou “folha em 45 branco”. Assim, ensinar conhecimento científico seria introduzir novas perspectivas a serem aceitas pelo aluno prontamente pelo processo de instrução. Porém, as crianças possuem, sim, variadas ideias dos fenômenos naturais que são desenvolvidas antes e durante a escolarização. O mais importante aspecto em admitir a importância das compreensões dos estudantes para a prática pedagógica é o reconhecimento de que tais compreensões interferem significativamente em como o estudante alcançará a aprendizagem do conteúdo científico. Os estudantes que interagem com os conhecimentos escolares não necessariamente deslocam seus equívocos substituindo-os por modelos científicos de explicações, pois podem empregar conceitos científicos nas provas que requerem memorização mecânica de informações, mas continuam a resgatar compreensões anteriores quando confrontam problemas novos e concretos. As ideias que os estudantes utilizam para explicar objetos, estados e fenômenos da natureza podem ser incompatíveis com as ideias científicas. Para utilizar uma terminologia específica para se referir a tais ideias, a literatura tem feito uso de algumas denominações: misconceptions, preconceptions, alternative conceptions, naive beliefs, alternative beliefs, alternative frameworks e naive theories (SMITH III; DISESSA; ROSCHELLE, 1994). No presente trabalho, optamos por utilizar “concepções alternativas”, “concepções equivocadas”, “incompreensões” ou “distorções conceituais”. A concepções alternativas são formadas por meio da interação do indivíduo com o mundo físico e social, o que inclui as interações em sala de aula. Tais ideias normalmente se tornam implícitas e são resistentes à instrução, ou seja, são difíceis de serem alteradas (CASTORINA; CARRETERO, 2014). A percepção humana e a experiência pessoal ao longo do desenvolvimento representam as fontes para concepções que se constituem como um conhecimento impreciso. Naturalistas do passado defenderam ideias como geração espontânea e herança de caracteres adquiridos. São visões que foram originadas na experiência pessoal e podem ser reforçadas pelo plano sensorial, pois, como ressaltam Lawson e Thompson (1988): as larvas parecem mesmo ser geradas espontaneamente a partir da carne podre; assim como se pode pensar que do mesmo modo como pessoas criam objetos, os seres vivos também exibem um projeto antevisto por entidades (ou teleológico). 46 Como professores, é importante observar que as concepções discentes podem ter diferentes classificações (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 1997): • Noções preconcebidas: são concepções populares fundamentadas em experiências cotidianas. • Crenças não-científicas: incluem visões aprendidas por estudantes a partir de outras fontes além da educação científica, como ensinamentos religiosos ou míticos. • Mal-entendidos conceituais: são aqueles originados de processos de ensino, quando a informação científica não interage adequadamente com as concepções prévias dos estudantes e eles criam modelos híbridos defeituosos. • Equívocos vernaculares: são aqueles que se originam do uso de palavras possuem um significado vida cotidiana e outro em um contexto científico. • Equívocos factuais: são ideias falsas aprendidas na infância e que permaneceram incontestadas na idade adulta. A ideia de que "um relâmpago nunca cai duas vezes no mesmo lugar" é um exemplo. As diferentes origens que causam as concepções alternativas dos estudantes podem e precisam ser identificadas, uma vez que o processo de aprendizagem do conhecimento científico requer que os procedimentos didáticos estejam alinhados às necessidades dos estudantes. O processo de aprendizagem que envolve a interação entre a concepção alternativa do estudante e o conhecimento científico para promover a evolução conceitual é denominado “mudança conceitual”. A aprendizagem por mudança conceitual é diferente de uma mera aquisição/acúmulo de conhecimento, porque inclui a construção de ideias novas em interação com ideias antigas (DISESSA, 2014). Enquanto objeto de estudo, a mudança conceitual se constitui em um campo difuso/múltiplo e ainda muito especulativo, pois carece de teorização fundamentada empiricamente com ampla aceitação da comunidade acadêmica (DISESSA, 2014). 47 Enquanto termo6, começa a aparecer em estudos psicológicos e pedagógicos em torno de 1980 (CASTORINA; CARRETERO, 2014). Uma forma de explicar tal processo é o modelo de substituição, ou seja, a concepção equivocada seria abandonada para dar lugar ao conhecimento científico. Seria necessário “remover” o conhecimento anterior, para então “inserir” o novo. Por meio do “conflito cognitivo”, que consiste em um confronto explícito entre as concepções equivocadas e o conhecimento científico, são contrastadas as diferenças e, na competição que se estabelece, o conhecimento científico triunfaria como o aceitável. Os estudantes se apropriariam de evidências e justificativas que tornariam o conhecimento científico mais plausível que a concepção anterior (SMITH III; DISESSA; ROSCHELLE, 1994). Com um importante expoente representado por George J. Posner et al. (1982), a mudança conceitual por substituição é entendida por Vosniadou (2008) como a “abordagem clássica” da mudança conceitual. Nessa abordagem, assim como um cientista, o estudante passaria por um racional processo de substituição que ocorre em um curto período, por meio do conflito cognitivo, que se coloca como o melhor meio pedagógico para promover a aprendizagem. Para explicar como tais ideias ou concepções são transformadas, autores fundamentaram-se em Piaget, ao associar a fase de assimilação (conceitos existentes são aplicados para entender fenômenos novos, assim, há agregação de novas informações que serão interpretadas pela estrutura de conhecimento já existente) comparável com a fase de ciência normal de Kuhn. Ao contrário, em períodos de acomodação (substituição e reorganização dos conceitos centrais do sujeito para explicar fenômenos que antes não puderam ser compreendidos) há rupturas, comparáveis à fase da revolução científica kuhniana. Para Posner et al. (1982), que adotam ambos os referenciais (piagetiano e kuhniano) as estratégias pedagógicas adequadas para a mudança conceitual requerem que o sujeito se torne insatisfeito com as concepções existentes ao identificar anomalias/contradições de suas concepções (conflito cognitivo). Também é necessário que haja outra concepção inteligível e que se torna cada vez mais 6 O termo “mudança conceitual” foi introduzido por Thomas Kuhn (2013) que indica que conceitos inseridos em uma teoria científica mudam de significados quando muda a teoria (ou paradigma). Os períodos de revolução científica seriam intercalados por períodos de produção sob um status quo que o autor denomina “ciência normal”. 48 plausível, ao resolver continuamente problemas gerados pelas concepções precedentes. Posner et al. (1982) estabeleceram uma analogia entre os modos das mundaças necessárias para que estudantes aprendam ciência e a explicação de Kuhn referente à mudança teórica na ciência. Para o autor, os estudantes precisam alcançar uma mudança conceitual radi