UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES A IMAGEM POÉTICA QUE FUNDAMENTA A CENA DO GRUPO XPTO DE TEATRO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA SÃO PAULO 2013 A IMAGEM POÉTICA QUE FUNDAMENTA A CENA DO GRUPO XPTO DE TEATRO DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO INSTITUTO DE ARTES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ARTES CÊNICAS. Linha de Pesquisa: Estéticas e Poéticas Cênicas Orientador: Prof. Dr. Wagner Francisco e Araújo Cintra UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Artes São Paulo – 2013 Oliveira, Roberto Rodrigues de. A imagem poética que fundamenta a cena do Grupo XPTO de Teatro / Roberto Rodrigues de Oliveira. São Paulo, 2013. 152f.; il. + anexo Orientador: Wagner Francisco de Araújo Cintra Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. São Paulo, 2013. 1. Teatro – processos de criação. 2. Poética da imagem. 3. Integração das artes. 4. Grupo XPTO de Teatro. I. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. II. Título RESUMO O resultado hoje apresentado pelo Grupo XPTO de Teatro é produto do amadurecimento da experiência com diferentes modalidades artísticas e da integração entre diversos meios expressivos. O procedimento integrador propõe alguns resultados, como é o caso do módulo cenográfico móvel, do figurino cenográfico, da aglutinação entre corpo do ator e estrutura do boneco, da máscara corporal e da ação cênica acrobática, dançante e cantante. Essa fusão dos meios expressivos confere certa autonomia ao artefato cênico, permitindo que este participe efetivamente da ação por meio de dispositivos que envolvem manipulação, manuseio, condução e portabilidade. Ao mesmo tempo, vincula-se a ação do ator à sua relação com o artefato cênico. É nossa intenção destacar a relação entre as origens da experiência do grupo e a concretização de sua linguagem tal como se tem hoje. Objetivamos demonstrar que o percurso histórico do Grupo XPTO de Teatro apresenta semelhanças com a sequência de transformações verificadas ao longo da história do teatro no século XX — especialmente do ponto de vista do resultado imagético obtido nos âmbitos da concepção, da execução e da recepção. Palavras-chave: teatro – processos de criação, poética da imagem, integração das artes, Grupo XPTO de Teatro. ABSTRACT: The result presented today by XPTO Theater Group results from a coming-of-age of the experience with different artistic modalities and the combination of various expressive means. Such combining procedures put forward relevant outcomes, among which we must highlight the mobile stage model, the stage costume, the fusion of actor's body and puppet structure, the corporeal mask, and the stage acrobatic, dancing and singing performances. Such fusion of expressive means grants a certain degree of autonomy to stage devices. It is our purpose to demonstrate that the trajectory of XPTO shows similarities to a sequence of transformations that occurred throughout the history of theater in the 20th century – notedly from the point of view of the imagetic results obtained in the scopes of the conception, execution and reception of the group's plays. Keywords: theater - creation processes, poetic image, integrated arts, XPTO Theater Group. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 CAPÍTULO 1: O Grupo XPTO de Teatro 14 Teatralidade e imagem poética na cena do Grupo XPTO 20 O verso poético sem palavras 29 Primórdios ou “estou fazendo uma flor” 35 Presente e futuro 38 CAPÍTULO 2: O teatro fundamentado na imagem 45 O despertar da imagem no espaço da encenação 46 Do boneco ao artefato cênico: entre manipular e contracenar 49 Um percurso para a abstração imagética 78 Democracia das opções estéticas 89 Poéticas cênicas e XPTO hoje 90 XPTO, artefato e atuação 92 CAPÍTULO 3: A fusão de linguagens expressivas na composição da poética cênica do Grupo XPTO de Teatro 94 CAPÍTULO 4: O ator do Grupo XPTO 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS 134 BIBLIOGRAFIA 140 ÁREA DE CONHECIMENTO DA TITULAÇÃO DO MESTRADO 143 ANEXO: Transcrição de entrevista realizada por Roberto Rodrigues de Oliveira com o encenador Osvaldo Gabrieli 144 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Todas as fotografias do Grupo XPTO de Teatro pertencem ao acervo do grupo. Créditos das imagens © Grupo XPTO. Figura 1: Utopia – terra de dragões (2003) 23 Figura 2: Utopia – terra de dragões (2003) 24 Figura 3: Além do abismo (1999) 25 Figura 4: Além do abismo (1999) 26 Figura 5: Buster Keaton contra a infecção sentimental (1985) 28 Figura 6: A infecção sentimental contra-ataca. 1a versão (1985) 28 Figura 7: A infecção sentimental contra-ataca. 1a versão (1985) 29 Figura 8: Kronos (1987) 30 Figura 9: Kronos (1987) 31 Figura 10: Coquetel Clown (1989) 33 Figura 11: Coquetel Clown (1989) 34 Figura 12: Projeto Hy Brazil (2010) 39 Figura 13: Arte no canteiro (2012) 41 Figura 14: Arte no canteiro (2012) 42 Figura 15: Na ponta da língua (2013) 42 Figura 16: Arte em trânsito (2013) 42 Figura 17: Festival Internacional de Teatro de Objetos – FITO 44 Figura 18: Encenações de Vsévolod Meyerhold 48 Figura 19: O sonho de voar (2003) 57 Figura 20: O sonho de voar (2003) 58 Figura 21: Estação Cubo (2002) 60 Figura 22: Lorca – Aleluia erótica em 38 quadros e um assassinato (2007) 63 Figura 23: Lorca – Aleluia erótica em 38 quadros e um assassinato (2007) 64 Figura 24: O público (2008) 65 Figura 25: O público (2008) 66 Figura 26: Pulando muros (2005) 67 Figura 27: Pulando muros (2005) 69 Figura 28: O pequeno mago (1995) 74 Figura 29: Buster e o enigma do minotauro (1997) 76 Figura 30: Buster e o enigma do minotauro (1997) 77 Figura 31: A infecção sentimental contra-ataca. 2a versão (2001) 79 Figura 32: A infecção sentimental contra-ataca. 2a versão (2001) 80 Figura 33: Encenações de Tadeusz Kantor 82 Figura 34: Babel Bum (1994) 84 Figura 35: Babel Bum (1994) 85 Figura 36: Balé Triádico (1922), do Teatro da Bauhaus 86 Figura 37: Aquelarre 2000 – La luna (1995) 88 Figura 38: Artefato e atuação na cena do XPTO 92 Figura 39: O encenador e ator Osvaldo Gabrieli 133 8 INTRODUÇÃO 9 Pesquisar o Grupo XPTO de Teatro implica abordar a encenação contemporânea que, em seu campo de ação, abrange os aspectos do teatro fundamentado na imagem, que têm importante foco na materialidade estrutural e plástica da cena e não necessitam do discurso verbal na composição de sua expressividade. A maneira como se comporta essa materialidade na experiência teatral é de grande interesse para quem quer se aproximar dos domínios da encenação. A interação da matéria inanimada com o ator e com a totalidade da cena determina fatores importantes para os desdobramentos da representação teatral, como por exemplo o nível de vinculação entre o espectador e o espetáculo no qual essa materialidade apresenta a sua expressividade. O Grupo XPTO é um importante representante das bem-sucedidas empreitadas no campo da encenação contemporânea. Seu teatro fundamenta-se nos procedimentos com a imagem, que vem sendo explorada exaustivamente pelo grupo ao longo dos últimos trinta anos por meio do experimento cênico e da construção do espetáculo teatral. Assumindo que o caráter artificial é próprio da natureza artística e, por isso, fugindo das formas imitativas da realidade, o XPTO comunga do pensamento hegeliano1 e coloca em prática muito da abstração e estilização do elemento natural. Assim o grupo potencializa o teor expressivo dos componentes da cena, os quais, além de nomearmos adereços, aparatos cênicos, constructos, obras plásticas, esculturas e módulos cenográficos, também designamos artefato, aquilo que resulta do artifício e que, já em sua desinência e por definição, assume a exclusão do que é natural. A prática do XPTO confere ao artefato seu lugar de destaque porque o insere na cena como elemento fundamental para que a ação aconteça. Sua existência na composição cênica só se justifica quando ali ele é indispensável. E será indispensável à medida que confirmar a eficácia na manutenção do seu vínculo com o todo na dinâmica da cena. Os procedimentos que vinculam materialidade e artifício embasam alguns princípios que sustentam a construção poética do Grupo XPTO. Tais princípios fazem referência às propriedades do material cênico ali elaborado, presente na cenografia, no figurino, nos adereços e no que mais vier a compor o universo material em cena. A matéria plástica estilizada no XPTO tem sua expressividade sublinhada e ampliada pela iniciativa dos envolvidos na criação e execução da cena. Sua significação é dinamizada considerando-se a função que exerce no interior da encenação. Ali ela dialoga eficazmente 1 Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Curso de estética: O belo na arte, passim. 10 com o signo2 mais amplo e mais complexo que é o próprio espetáculo e, por fim, conecta-se com a percepção do espectador, convidando-o ao vislumbre de horizontes que desvelam, revelam e reinterpretam aspectos da vida. Dentro do universo da representação artística, o vínculo entre encenação e “imaginação poética”3 conduz aquela matéria plástica, traduzida em artefato cênico, a potencializar sua expressividade, seu caráter teatral. A heterogeneidade à qual Tadeusz Kowzan se refere quando menciona a cena teatral como uma “confrontação dos signos mais heterogêneos no seio de uma atividade artística (...)”4 torna-se ampliada na poética do XPTO, em cuja cena as “interdependências” estabelecidas entre seus elementos, a princípio heterogêneos, resultam de dispositivos e processos sinérgicos que assumem função geradora de vínculo entre os entes híbridos por meio de um ato expressivo específico.5 No universo da representação teatral, esse ato estabelece o resultado designado como teatralidade. Aquelas “interdependências” também unificam os elementos circunscritos ao espaço da encenação que se insere no teatro fundamentado na imagem, como no caso da ênfase imagética na cena do Grupo XPTO. A teatralidade designa o conjunto formado por atores, coisas e procedimentos artísticos que, compondo uma encenação assumida como criação artificial, exclui de suas atribuições a função de espelho da realidade. No teatro da teatralidade, a cena atende à regência de uma totalidade integrada: atores, artefatos cênicos, luz, sonoridades. A teatralidade registra na história das artes o nascimento de uma nova forma de se fazer teatro.6 Na cena do XPTO, sem se prestar a camuflar superfícies de uma caixa preta, a cenografia não funciona como elemento fixo nem estático. Ela não ilustra situações. A cenografia se mistura e se confunde com os outros elementos da cena. O caráter cenográfico está presente inclusive na indumentária, que, na concepção de Osvaldo Gabrieli, um dos fundadores do grupo e até hoje encenador e coordenador das atividades, transforma-se no “figurino escultórico” e no “lar ambulante do ator”. Essa construção também está nos adereços de cena, que se apresentam como módulos pertencentes a estruturas maiores, respondendo às necessidades de uma unidade formal. Tal materialidade cênica se vincula à ação do ator e valoriza sua função. A ele, o grupo oferece ampla possibilidade de experiências, que se estendem desde os dispositivos da 2 Quando fazemos referência ao termo “signo” e às suas derivações, estamos levando em conta as considerações de Tadeusz Kowzan: “Tudo é signo na representação teatral”. Roman INGARDEN et al, O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática, p. 98. 3 Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p. 102. 4 Roman INGARDEN et al, op. cit., p. 123. 5 Tais processos e dispositivos sinérgicos serão abordados mais detidamente adiante. 6 Henryk JURKOWSKI, Métamorphoses, la marionnette au XX siécle, p. 10. 11 manipulação de objetos até os procedimentos que exploram as habilidades corporais na encenação. Por conta do desenvolvimento da elaboração plástica voltada para a cena na qual a função do ator se mantém conjugada, chegou-se ao procedimento do figurino escultural. Ou seja, ele é obtido a um só tempo com a justaposição desses dois meios expressivos (atuação e indumentária) e com o estímulo do próprio experimento cênico, já que o palco ou espaço da encenação também funcionam para o grupo como área de treinamento e oficina de criação. “O XPTO é uma escola onde os mais experientes orientam os menos”, afirma Gabrieli. Ao ator compete expressar-se colocando em ação aqueles elementos cenográficos que figuram como peças de arquitetura e esculturas. Consideramos que é possível classificá-los como “cenografia viva” por dois motivos: porque interagem na encenação com sua maleabilidade e portabilidade, surtindo um efeito vivificador da matéria inanimada, e porque muitas vezes constituem módulos que literalmente contêm o corpo do ator – ora revelando este corpo aos olhos do espectador, ora ocultando-o com a construção plástica presente tanto em grandes peças cenográficas como no figurino escultórico. Eis aí, como parte da “cenografia viva”, o elemento que poderíamos nomear de “ator-boneco”, uma vez que propõe a fusão do ator com o boneco (um dentro do outro numa animação mútua). A animação é recíproca porque esse figurino escultórico contém propriedades que encaminham algumas características para a personagem, gerando um importante estímulo ao ator. Podemos citar a título de exemplo alguns espetáculos em que esse resultado aparece com maior ênfase: Coquetel Clown (1989), Babel Bum (1994) e O pequeno mago (1995). É notório o fato de que no XPTO torna-se quase impossível abordar aspectos cenográficos sem se referir a outros elementos aos quais essa cenografia se integra para dar andamento à encenação. Tal permeabilização do caráter e da função de cada setor expressivo se repete na abordagem das outras instâncias que compõem o espetáculo. Quem está habituado a um conceito de cenografia fixa e ilustrativa, quando se depara com a proposta cenográfica do XPTO, surpreende-se diante de sua mobilidade e fragmentação ou diante de sua adaptabilidade a variadas condições espaciais e geográficas. Expandindo e diversificando o espaço da representação, o grupo, quando se apresenta a céu aberto, constrói verdadeiras obras arquitetônicas. São construções que sintetizam, num único elemento, os conceitos de palco e cenário. Estação Cubo (2002) e O sonho de voar (2003) são demonstrações claras. O que o XPTO realiza, graças ao tratamento que dá à sua materialidade cênica, é a flexibilização dos limites da encenação. Referimo-nos aqui tanto aos limites espaciais ou 12 geográficos como aos limites da abrangência artística. Assim se aprofunda o desenvolvimento de sua linguagem, ao mesmo tempo em que se amplia o alcance de sua criação. Tendo investido durante dez anos na encenação desprovida de palavras, atingiu um resultado profícuo no campo expressivo por meio da imagem – seja na construção plástica, seja na elaboração de música e luz condizentes com essa proposta, ou ainda no aprimoramento do movimento que põe em jogo essa plasticidade e encaminha uma proposta de atuação para o ator. A adoção do discurso verbal pela poética cênica do XPTO a partir de 1995, com O pequeno mago, concedeu à fala um lugar incomum na cena. A palavra aliou-se à imagem de modo a ampliar a força expressiva desta, conferindo um novo destaque ao movimento cênico e à teatralidade que até então era construída sobre a força da imagem. A prática do XPTO conduz uma constante pesquisa na via da inter-relação das linguagens artísticas e avança corajosamente no mundo das produções teatrais com sua ousadia e inventividade. Torna-se inequívoco o perfil estético proposto à fruição dessa obra. Podemos identificar, no amplo arcabouço das obras teatrais do país, “o estilo XPTO”. Encontramos importantes referências à história da representação artística na poética cênica do grupo. Verificarmos que ela reúne características que trazem, entre outras, a herança simbolista, a surrealista e a construtivista. Isso porque sua cena condensa imagens e ideias no uso que faz das formas e cores, propõe situações oníricas somando efeitos de luz e som à ação estilizada do ator e do aparato cênico, e, por fim, faz intenso uso da geometria ao concretizar volumes e espaços, definindo e expondo estruturas nos variados elementos cênicos. Desse modo, o grupo lança mão de diversificados procedimentos expressivos e realiza em sua poética uma verdadeira fusão das artes. Os motivos aqui citados, bem como outros que se pretendem abordar neste estudo, levam-nos a estabelecer relação entre a história do XPTO e a história da encenação no século XX. O grupo, fundado no final daquele século, em 1984, é herdeiro, no âmbito do teatro fundamentado na imagem, de tudo o que se desenvolvera até então. Pois, quando olhamos para o percurso que gera o amadurecimento estético do XPTO, verificamos sem dificuldade não somente o paulatino encontro e a interpenetração das diversas modalidades e expedientes artísticos, mas também uma sucessão de transformações da própria criação. Podemos identificá-las como verdadeiras “metamorfoses”, semelhantes àquelas que Henryk Jurkowski localiza no percurso que transforma o boneco cênico em elemento abstrato – período em que se mantém atento o olhar sobre o potencial expressivo da matéria inanimada. A esse processo 13 perpetrado durante todo o século XX, Jurkowski associou um conceito que permeia a poética cênica do Grupo XPTO de Teatro: o “teatro de meios de expressão variados”.7 7 Henryk JURKOWSKI, op. cit, p. 39. 14 CAPÍTULO 1 O Grupo XPTO de Teatro 15 O Grupo XPTO de Teatro A ênfase na eloquência da imagem na esfera do fazer teatral tem sido uma constante nas produções artísticas. Para esse estudo, consideraremos imagem o conjunto dos elementos que se fazem visíveis aos olhos do espectador na composição da cena, bem como tudo o que se sucede na relação temporal e espacial entre esses elementos. Hoje a produção de parte dos espetáculos teatrais realiza, em larga escala, a estilização e abstração da imagem, que se faz herdeira daquela erudição realista dos painéis pintados, dos cenários de gabinete e do figurino mimético; enfim, da imagem ilusória que se pretende cópia da realidade. Quando a encenação estiliza ou abstrai a materialidade, ou seja, seu aparato cênico, faz com que nos deparemos com a imagem decomposta, sobreposta, deformada, fragmentada e veloz em sua mobilidade e transformação: procedimentos que, muitas vezes, coincidem com as formas animadas da expressão teatral. A operação que reúne e relaciona os vários elementos e procedimentos cênicos entre si está implicada no conceito de “montagem de espetáculo”, que se reporta à época do movimento simbolista e se solidificou no decorrer do século XX. Esse movimento instigava a execução e a reflexão concernentes aos efeitos cênicos obtidos, por exemplo, nas variações de sonoridades e da então recém-chegada iluminação elétrica. A luz trazia novas atribuições ao elemento imagético, definidor da cena, e coincidiu com a maneira de conceber o espetáculo teatral como uma montagem, prática que procurava dinamizar, no espaço da encenação, a relação entre os diversificados meios expressivos.8 Aquela experiência inicial, que celebrava as decorrências da luz elétrica e das novas configurações que esta propiciava à cena, reflete, na encenação contemporânea, os diferentes níveis de coexistência entre espaço, ator, artefatos, palavra e sonoridades. Todo esse processo, que reelabora a imagem em diversificados procedimentos cênicos, culmina por propor ao espectador um nível diferenciado de decifração dos significados, atribuindo-lhe uma atividade imaginativa amplificada, já que assim se potencializa a capacidade de ressignificação da imagem. A permanência, a difusão e o êxito desses procedimentos artísticos revelam o poder que tem a encenação de imprimir àquilo que o espectador vê o caráter catalisador de significados que concentram na imagem vasta gama de valores, que são a um só tempo 8 Jean-Jacques ROUBINE, A linguagem da encenação teatral, p. 25. 16 assimilados e conferidos pelo homem a tudo o que é visível. Bachelard, quando discorre sobre o conceito de imensidão íntima, apresenta o objeto como o ninho de uma imensidão. A imensidão de significados que o objeto concentra em si está espelhada em outra imensidão que se instaura na “imaginação poética”, efetivada por quem presencia e reelabora o desempenho do objeto em questão. Diz ele: “Na alma descontraída que medita e que sonha, uma imensidão parece esperar pelas imagens da imensidão. O espírito vê e revê objetos. A alma encontra no objeto o ninho de uma imensidão”.9 Bachelard utiliza a repetição da palavra “imensidão” como um recurso poético em A poética do espaço para discorrer sobre sua concepção de “imaginação poética”. A infinitude da abrangência da imaginação (a transcendência) aguarda as imagens do mundo (a imanência) para inserir a novidade nas infinitas possibilidades de criação e recriação: imensidão na quantidade de objetos concretos (a vida) que permitem uma imensidão de criações (a arte), que por sua vez conduzem a uma imensidão de recriações (a apreciação estética). Observamos que as ocorrências na elaboração da cena teatral fundamentada na imagem estiveram presentes na teatralidade proposta pelo Grupo XPTO de Teatro ao longo dos últimos trinta anos. A companhia teatral foi por nós escolhida na realização desse estudo porque seu fazer artístico se destaca sobremaneira nessa empreitada, obtendo grande reconhecimento de público e crítica em âmbito nacional e internacional. Diante dos olhos do espectador, como polo gravitacional no jogo poético da cena, homens e coisas se misturam e se conduzem mutuamente. Nesse contexto, o que torna encantadora a imagem proposta pelo XPTO é sua capacidade de estabelecer um importante vínculo com o receptor, despertando nele especial interesse e estimulando as operações da imaginação criativa. Volumes, formas e cores, conjugados na originalidade que caracteriza as encenações do XPTO, colocam no espaço da cena um universo de elementos expressivos que nos remetem ao universo das coisas que permeiam a vida: a corriqueira vida dos objetos de uso pragmático no cotidiano funcional. Aqui o termo “universo” encontra sua identificação com a “imensidão” proposta por Bachelard. Essa correlação entre vida e representação artística, que o espectador é levado a estabelecer entre a estilização presente na criação do XPTO e o seu mundo cotidiano, acontece na imediatez da relação entre imagem cênica e público. Nessa imediatez o inusitado 9 Gaston BACHELARD, op. cit, p. 233. 17 se apresenta e nela está a surpresa presente na imagem, que realiza a transposição entre a linguagem poética do palco e as linguagens pragmáticas da vida. Tal transposição compreende um processo que nasce no projeto do artista, passa pela materialização da cena e avança para o contato entre imagem poética no espetáculo teatral e imagem poética reelaborada na imaginação do receptor: “Era efetivamente admirável esse poder que faz ‘recuar o espaço’, que coloca o espaço no exterior para que o ser meditante esteja livre em seu pensamento.”10 Tal processo se relaciona com um ciclo no qual Bachelard circunscreve “os dois movimentos da expressão”, os quais identificamos na oscilação que ocorre entre a “imensidão íntima” e a “imensidão exterior”: concentração e expansão de sentidos por meio da expressividade da construção poética. No processo criativo do XPTO, o elemento inspirador surge como impulso criativo, conforme verificamos no caso do mito de Prometeu em Babel Bum (1994), do mito de Ícaro em O sonho de voar (2003), de um sonho com grandes rodas em Kronos (1987), de uma personagem do cinema em Buster, o enigma do minotauro (1997) ou de um texto encomendado pelo grupo em Além do abismo (1999). Essa “ignição” na via da inspiração e nos domínios da “imaginação poética” é o impulso inicial que gera a materialidade cênica, exteriorizada na realização do espetáculo teatral. O núcleo da criação consolidada na cena reflete o elemento inspirador do artista, que o traduz em estilo, em toque, em tom, em linha, em área e em volume, tudo configurando o universo da criação, construindo uma linguagem, propondo uma unidade estética. Na percepção do espectador, o conjunto das coisas presenciadas no contato com a obra atua simultaneamente como espelhamento e estranhamento; identificação e surpresa. Há um grau de familiaridade justaposto a um grau de novidade, em face da ousadia artística. Há um diálogo entre o universo das coisas do mundo e o universo criativo. Criatividade essa que, surgindo na criação do artista, frutificará na imaginação criativa do espectador. Assim, o espectador, diante da representação teatral, conduz seu universo interiorizado ao exterior da representação artística e retoma, depois de vivenciar essa experiência estética, seu próprio universo de conceitos e compreensões, agora reavaliado pela via da imaginação criativa e “produtora”. Os dois movimentos da expressão propostos por Bachelard perpassam três instâncias da obra do XPTO: o artista, a cena e o espectador. Os valores de interior e exterior se alternam, a depender da instância analisada. 10 Gaston BACHELARD, op. cit., p. 260. 18 Ao espectador compete um olhar dirigido ao rearranjo linguístico que traz o envolvimento e a descoberta, ou seja, uma fruição estética pela via que já não é a do discurso dramático nem a da imitação da vida. Na experiência teatral, e com grande ênfase na obra do Grupo XPTO, esse fenômeno enriquece a via de conexão entre cena e público, estimulando a fruição a partir do desafio e da descoberta. Encontramos aí um teatro fundamentado na imagem, propondo ao artista envolvido nessa criação uma expressão construída na relação com a totalidade da encenação (espaço, plasticidade, movimento, luz, sonoridade). No devir da “imagem poética” identifica-se o fenômeno que faz com que a imagem seja apreendida pela imaginação antes de uma manifestação do raciocínio, opondo-se ao automatismo da língua. Na relação entre a expressão imagética da cena e o contato do espectador, um discurso restritivo, que poderia se antecipar à percepção da imagem proposta, fica excluído. A resistência dos significados conhecidos se ausenta nesse fenômeno, abrindo campo ao contato com o inusitado, algo que observamos nos resultados trazidos à cena do XPTO. Nela, as operações com a plasticidade das construções e suas evoluções têm um importante papel junto à esfera da criação e das relações do homem com a representação. O poder de descoberta presente no exercício da apreciação estética possibilita um reencontro com os elementos da vida, e, por que não dizer, com a própria vida. Um verdadeiro abrir de olhos via “poética da imagem”. “Que encantos a imaginação poética acha em zombar das censuras! Outrora as artes poéticas codificavam as licenças. Mas a poesia contemporânea pôs a liberdade no próprio corpo da linguagem.”11 As censuras atuam, inclusive, furtando-nos a autonomia da percepção diante do que o movimento da vida nos traz. As estilizações e abstrações presentes numa cena fundamentada na imagem podem, por exemplo, colaborar para a diluição das censuras que bloqueiam a plenitude do vínculo com a representação, restringindo a reinterpretação do fato artístico. Em sua filosofia da poesia, que inclui A poética do espaço e que sucede sua filosofia da ciência, Bachelard verifica a geração de conhecimento também por meio da relação imediata com a imagem. Na relação entre o artista criador e o receptor da arte criada surgem os conceitos de ressonância e repercussão. A ressonância está no âmbito da obra criada, e é essa obra que ressoa na direção da percepção do receptor, na qual acontece o fenômeno da repercussão. A repercussão consiste nos desdobramentos que a imagem gerada vai provocar 11 Gaston BACHELARD, op. cit, p. 102. 19 naquele receptor. “Na ressonância ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. A repercussão opera uma revirada do ser. Parece que o ser do poeta é nosso ser.”12 Em A poética do espaço, Bachelard apresenta duas leituras para o termo imaginação. Há a imaginação que algumas áreas do pensamento reconhecem como qualidade de percepção, registro e memória. Esta abordagem traz uma operação da imaginação como registro passivo de experiências, como meio para memorizar e repetir aquilo que se assimila. A operação da imaginação que resulta em impulso criativo, segundo Bachelard, implica poder elaborativo e envolve a formação de imagens que ultrapassam a realidade, ou seja, atribui ao sujeito receptor da obra artística a função de reconfigurar a realidade que lhe é familiar, por meio da imaginação. A obra de arte, então, situa-se entre o repertório do receptor e a nova configuração que este vai conferir à realidade na via da apreciação estética. A maneira como é apresentada, por meio da arte, a nova proposição daquilo que existe no cotidiano vai repercutir como uma constante reelaboração da relação com o real. Somos levados a concluir, portanto, que o papel reflexivo, criativo e crítico que a obra artística atribui ao receptor, que no caso do poema é o leitor, acontece numa relação imediata entre palavra e imaginação poética, ou entre esta e a obra artística, no caso das outras formas de arte: música, artes cênicas etc. “O poeta não me confia o passado de sua imagem, e no entanto sua imagem se enraíza de imediato em mim.” 13 O aspecto da imaginação que trata de memorizar e repetir o que foi registrado contrapõe-se, segundo a abordagem de Bachelard, ao aspecto das ações vivas da imaginação que nos desvincula do passado e da realidade e aponta para o futuro. Como projetar ou programar algo ou uma situação ainda inexistente sem o uso dessa criatividade dinâmica e transformadora? “Como prever sem imaginar?” 12 Gaston BACHELARD, op. cit., p. 99. 13 Ibid., p. 96. 20 Teatralidade e imagem poética na cena do Grupo XPTO Quando percorremos a história do teatro observamos que os resultados obtidos na exploração da imagem de forma estilizada e não realista foram, no início do século XX, classificados no âmbito de um fazer teatral que se diferenciava dos procedimentos típicos do teatro eminentemente dramático, refém da palavra e da mimese, predominante até aquele momento. A essa nova forma de construção da cena teatral deu-se o nome de teatralidade — em grande parte mérito dos teatralistas russos no início do século XX, entre os quais se destacou Vsévolod Meyerhold. Um teatro prioritariamente dedicado à teatralidade tenderia a direcionar-se a espetáculos que investissem em formas não dramáticas. Estaria definindo os princípios dessa nova forma de realização da cena, que amplia seu domínio ao campo das outras artes. Meyerhold, aplicando-se nesse objetivo, conferiu à música, à luz e ao corpo humano um papel fundamental na construção de formas estritamente teatrais. A atividade de Meyerhold se desenvolveu de forma a transformar o palco num espaço preparado para o estudo e para o treinamento das novas atividades.14 A teatralidade lança mão de elementos presentes em diversas modalidades espetaculares: o circo, a dança, a mímica, as diferentes formas animadas de expressão. Resulta daí um teatro que faz a fusão e a potencialização das diversificadas linguagens artísticas. No caso do XPTO, as artes plásticas, a cenografia e o teatro de animação estiveram presentes desde o início das experiências artísticas do encenador Osvaldo Gabrieli. O desenrolar da experiência e a aproximação com artistas de outras áreas, como músicos, bailarinos e artistas circenses, gerou o desenvolvimento de uma poética cuja originalidade solidificou a sua marca estilística. Podemos dizer que a teatralidade, como definida acima, confere à atividade teatral a experiência criativa por excelência graças a seu aspecto transformador, que abrange, entre outros dispositivos expressivos, a estilização e a abstração. Tal experiência inclui tanto os envolvidos na elaboração e execução do espetáculo do XPTO quanto os seus espectadores, aos quais é oferecido o exercício da descoberta de significados a partir da riqueza presente não só na conjugação das linguagens artísticas apresentadas, mas na equiparação dos valores atribuídos a elas dentro de um mesmo espetáculo teatral. Trata-se da ausência da dominação de uma linguagem sobre as outras: ausência de uma hegemonia, como aquela do 14 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 111. 21 textocentrismo e da imagem mimética, que se manteve durante tanto tempo e que até hoje se manifesta. O teatro que se constrói por meio dessa teatralidade acontece pela inter-relação dos elementos que integram a cena. Elementos inanimados ganham especial valor quando contracenam com atores, numa dinâmica em que ação e teatralidade resultam de uma constante troca. A imagem aí apresentada agrega elementos humanos, inanimados e sonoros, e comunica-se inicialmente por meio dos significados que culturalmente já são atribuídos a ela. Esse contexto cênico propõe novas significações pelo vínculo que se estabelece, numa sucessão de composições, entre os elementos materiais e os demais elementos da cena. Assim segue-se o fluxo da reelaboração realizada pelo espectador diante desse universo: a “repercussão”. Em 2010 o XPTO apresentou o espetáculo O canto que vem do mar, misturando bonecos e atores e trabalhando também com teatro de sombras. No fundo do palco havia placas justapostas de diferentes tamanhos e formas, propondo variações de relevos e funcionando como suporte para projeção de sombras. O piso do palco era revestido por lonas recortadas e sobrepostas, e entre estas estavam algumas peças infláveis que, nas mudanças de cena, criavam relevos variados, ondas, caminhos, algas, animais marinhos. A representação do interior de uma baleia acontecia dentro de uma grande peça inflável de material semitransparente onde se projetavam os corpos dos atores (que teriam sido engolidos por ela) e outros objetos. A dimensão vertical do palco era explorada por meio de cordas que permitiam aos atores e objetos atingir altura, subir e descer, sair e entrar do espaço cênico, criando, com o auxílio da luz, também a ilusão de que flutuavam. Tecidos forrados e expandidos somavam-se a amplas capas com diversas aplicações, que eram peças do figurino. O medo era representado por bonecos infláveis que, no escuro, possuindo iluminação interna, pareciam flutuar. A música, mais uma vez executada ao vivo, acompanhava a ação dos atores e criava ambientações sonoras. Alguns temas eram cantados ao vivo. No enredo, três adolescentes queriam sair viajando pelo mundo, mas um acidente os impediu. Um enigma que lhes apareceu no caminho colocou-os novamente na aventura que desejavam realizar. Quem decifrasse o canto que vinha do mar receberia uma preciosa recompensa. No seu percurso cheio de desafios, descobriram que havia uma baleia em apuros, imobilizada em meio ao lixo existente no fundo do mar. A partir daí esses personagens, comprometidos com questões referentes ao meio ambiente, não apenas ajudaram a baleia a se livrar do seu problema, como também decifraram o tal enigma. 22 Os próprios objetos do cotidiano, que tantas vezes se tornam os vilões poluentes da natureza, em O canto que vem do mar eram utilizados como adereços cênicos que, no dispositivo oriundo do teatro de sombras, faziam com que chinelos de borracha assumissem o contorno de peixes, ou que outros objetos apresentassem a silhueta de algas e outras plantas marinhas. Além disso, esses objetos também se faziam ver como são e o que provocam quando invadem os espaços da natureza que devem ser preservados. Tal variedade de usos expressivos aplicados ao “objeto pronto” ou ready-made reúne, no mínimo, dois procedimentos cênicos no mesmo elemento.15 Trata-se da inserção na cena do objeto do cotidiano, mantendo os aspectos com os quais ele é utilizado funcionalmente. O que lhe atribui caráter artístico ou expressividade cênica é a relação que ele estabelece com o contexto teatral. A esse procedimento acrescenta-se a ação de outro: o dispositivo do teatro de sombras. Essa integração, somada aos efeitos que completam a teatralidade, configura mais uma fusão dos meios expressivos produzida pelo XPTO. As transformações que se sucedem na cena do XPTO acontecem com foco no movimento realizado em todos os níveis e direções do espaço. Esse movimento diz respeito ao corpo do ator e às construções plásticas articuladas ou maleáveis, passíveis de portabilidade, manuseio, manipulação e deslocamento. A integração desses elementos mobilizados e mobilizadores tem fundamental papel na composição da linguagem da cena. Essa dinâmica conta com as diversas técnicas e habilidades artísticas experimentadas, desenvolvidas e registradas ao longo dessas três décadas de trabalho. Utopia – Terra de dragões (2003) e Além do abismo (1999) se encarregam ainda de apresentar uma integração mobilizadora, permeada pela diversidade das técnicas e habilidades artísticas. Utopia – Terra de Dragões, espetáculo que misturava dança, música e teatro de bonecos, apresentava três palhaços que se aventuravam em busca de um mundo esquecido chamado Utopia, habitado por cinco dragões. Na encenação, cada um deles possuía grandes dimensões e tinha o corpo construído de forma a obter maleabilidade e leveza, permitindo manipulação e condução interna e externamente para proporcionar uma movimentação ágil e condizente com a dinâmica proposta na linguagem do espetáculo. As características dos dragões se associavam a temas que o grupo definira para abordar questões sociais e formas de 15 Muitas vezes o procedimento artístico dispensa o resultado da construção plástica escultural, e o que se insere na cena como elemento “animado” é o que se classifica como “objetos encontrados” ou “objetos prontos” (ready-made), ou mesmo produtos de mercado destinados ao consumo, o que a pop art utilizou amplamente no campo das artes plásticas. 23 se relacionar com o mundo. Tratavam-se do Dragão dos Espelhos, das Águas, da Cidade, do Metal e do Fogo. A construção desses e de outros artefatos cênicos permitiu a exploração de materiais, formas e cores diversas na elaboração de um espetáculo permeado por canções e danças que auxiliavam no encaminhamento do enredo. A iluminação propunha limites espaciais e definia atmosferas. Doze atores apresentavam situações que diziam respeito à cidadania, à ecologia, à descoberta do outro, à convivência com a diferença. Havia poucos elementos cenográficos: eram elementos leves e retráteis que se mantinham naquele caráter ágil e que, por exemplo, podiam configurar a superfície do oceano com a mesma rapidez de retirada. Também se apresentavam bonecos de grandes dimensões, O espetáculo, lançando mão dos elementos citados, propunha um encontro com o lugar ideal para se viver – que não era outro senão este que já habitamos, porém transformado de acordo com a contribuição de cada indivíduo. A transformação que estava na ideia se refletia na transformação que perpassava a cena, fosse na mobilidade dos elementos, na agilidade das mudanças de configuração cênica ou na desfiguração de características das coisas que já são conhecidas. A ideia de paraíso ou de utopia traduzia o que há de conceitual na cultura. É a busca da perfeição e da plenitude, conceitos que a cena, por meio da representação, materializava metaforicamente. Utopia – Terra de dragões (2003) 24 Utopia – Terra de dragões (2003) Além do abismo (1999) nasceu de um roteiro proposto por Osvaldo Gabrieli. Esse roteiro gerou o texto escrito pela argentina Ana Ines Lopes Acoto, dramaturga radicada na Espanha. Quanto ao espetáculo, investiu-se em uma cenografia elaborada com materiais leves, semitransparentes, suscetíveis à luminosidade e ao efeito inflável. O espaço cênico em forma de arena nada mais era que o picadeiro de um pequeno circo, cujo tratamento cênico representava um limbo, a “boca do tempo” que tudo engolia. A forma circular do espaço circense, a lona, os materiais utilizados na cenografia e uma iluminação dinâmica integravam- se mais uma vez à criação musical e à sonoplastia. Tais características condiziam com a proposta de criar uma situação que sugerisse sonho, delírio, imaginação. As personagens oriundas de diferentes épocas e situações se encontravam naquela “boca do tempo” que era o próprio cenário-picadeiro, cujo piso, linóleo vermelho ligeiramente inflado e enrugado, fazia as vezes de uma grande língua. As personagens se encontravam sob a tutela de seres que os faziam expor seu caráter, suas intenções pouco éticas e suas fragilidades. Isso obrigava-as a 25 interagir entre si e estabelecer relações de aproximação ou rejeição. Debatendo-se na arena da “boca do tempo”, conduziam a movimentação e o desenrolar da cena permeada pelo humor e pela irreverência. Nesse contexto, era possível detectar nas imagens alguma influência do desenho animado e da história em quadrinhos. Tratava-se de construir na cena a tridimensionalidade que o desenho e a figura presentes nas artes gráficas compõem bidimensionalmente. Gabrieli afirmou que considerava impactantes as imagens propostas nesta encenação e que elas, “um pouco MTV”, eram dirigidas à juventude daquele momento. Esse procedimento, que concede à encenação a possibilidade de materializar em termos de volume (construção, escultura) aquilo que originalmente é pictórico, nos remete à ação que transpõe essas distintas configurações artísticas, sendo que a resultante tridimensional, além de estabelecer sua expressividade plástica e/ou arquitetônica, no conjunto da cena adquire sua teatralidade e realiza sua função no espetáculo. Além do abismo (1999) 26 Além do abismo (1999) A experiência da integração entre os diferentes elementos da cena foi sendo desenvolvida de tal forma que cenografia, figurinos e adereços, à medida que iam obtendo maior grau de elaboração plástica, portabilidade, maleabilidade e mobilidade, ampliaram sua expressividade e aumentaram sua participação na ação cênica, conferindo um dinamismo especial à obra do grupo. Ao ator do XPTO sempre coube estabelecer uma relação constante, direta e fluida com a materialidade da cena, muito além da verbalização. Nesse caso, representar também significa simultaneamente mobilizar a si e ao aparato cênico, o que, em algumas situações, vincula a ação do ator aos dispositivos do teatro de animação. Isso é visível, por exemplo, nos 27 espetáculos A infecção sentimental contra-ataca (1985) e Lorca – Aleluia erótica em 38 quadros e um assassinato (2007). O ator é mobilizado em um espaço que o tempo todo se transforma, enquanto ele próprio, por sua ação sobre a materialidade cênica traduzida em movimento, também é responsável por essa transformação. Essas exigências dirigidas ao ator inserem-no numa dinâmica cênica que nos remete a certa roda vertiginosa na qual Buster Keaton, o ator- personagem que inspira algumas criações do grupo, está sempre envolvido. Sua figura tem sido referência recorrente na história do XPTO. Gabrieli reconhece em Buster Keaton a criatura que é constantemente mobilizada pelas circunstâncias da vida. Buster não escolhe estar sempre em movimento. É a vida que, como numa roda vertiginosa que nunca para, solicita a esse ente ficcional do cinema um constante mobilizar-se diante de ocorrências inusitadas. Trata-se de movimentar-se ante os reclames do mundo: ação e reação como metáforas da vida e também como metáforas do teatro16. Observamos aí uma importante integração na relação entre o assunto que se pretende encenar e os dispositivos da encenação, um procedimento comum na história do XPTO. Buster Keaton contra a infecção sentimental e A infecção sentimental contra-ataca (1985) são espetáculos que, pode-se afirmar, naquele momento inicial tiraram o XPTO do anonimato, ampliando a divulgação do seu trabalho e consolidando-o como grupo de teatro. Sem determinar qual seria sua forma final, esses espetáculos iam sendo construídos buscando fundir diferentes linguagens artísticas, mobilizados pelo desejo de que o aparato cênico apresentasse grande mobilidade e fosse adaptável a qualquer tipo de espaço e condições técnicas. Tal característica era fundamental para a manutenção de um grupo que inicialmente assumia caráter experimental e alternativo. Tratava-se de espetáculo dividido em duas partes que ou eram apresentadas conjuntamente ou se desmembravam, podendo figurar, ainda, em cenas isoladas. As palavras eram substituídas por imagens e efeitos sonoros. O intuito era que as cenas representassem a urbanidade e trouxessem características da cultura pop daquele momento, além de intencionar a sugestão de imagens do inconsciente por meio da poesia manifesta tanto na manipulação de objetos e bonecos como em outros procedimentos. Surgiam, em situações inusitadas, estilizações de formas do cotidiano que eram familiares ao espectador. 16 Na maneira como elabora a figura de Buster Keaton em sua cena, o XPTO concretiza na expressão teatral aquilo que foi criado e explorado pelo cinema, que, por sua vez, estilizou o que são ações naturais do elemento humano. Portanto, é a essa metalinguagem (arte reelaborando arte) que nos referimos como metáfora teatral, além do fato de que ação e reação são, ao mesmo tempo, características presentes em Keaton, na vida e no próprio teatro. 28 Na primeira parte, uma atmosfera de café-concerto fazia referência ao cinema mudo. Estavam presentes o mocinho, a mocinha e o vilão, na forma de bonecos que contracenavam com os atores. O final era feliz e a história se mostrava singela. O cenário da segunda parte representava a metrópole. Nesse contexto, numa paródia ao cotidiano das grandes cidades, sacos de lixo vomitavam plásticos coloridos e assumiam o aspecto de estranhos seres da noite. No programa do espetáculo citava-se um trecho da obra El paseo de Buster Keaton (1928), escrita por Garcia Lorca, autor que mais tarde seria também homenageado em outras montagens do grupo: "Sus ojos de niño tonto. Que son feísimos. Que son bellísimos. Sus ojos de avestruz. Sus ojos humanos en el equilíbrio seguro de la melancolia". Buster Keaton contra a infecção sentimental e A infecção sentimental contra-ataca – 1a versão (1985) 29 A infecção sentimental contra-ataca – 1a versão (1985) O verso poético sem palavras Verificamos em muitos espetáculos do grupo o que, metaforicamente, podemos chamar de uma escrita artística realizada sem palavras, para a qual também encontramos referência no conceito de imagem poética proposto por Bachelard. Na cena do XPTO, o verso poético e teatral, composto muitas vezes sem palavras — principalmente nos dez primeiros anos de produção do grupo — a expressividade cênica sempre resulta dos arranjos e rearranjos com a imagem que se desenvolvem no transcorrer dos espetáculos. A sintaxe da cena acontece na espacialidade e temporalidade configuradas pela inter-relação entre objetos, atores, cenografia, luz e sonoplastia, reservando inclusive um lugar para a palavra, que, no caso do XPTO, veio a participar sem se sobrepor. O poema proferido na encenação sem palavras é composto pelo artista primeiramente na via de seu impulso criativo e do desejo de compartilhar sua criação. É na imaginação do espectador que outro poema, herdeiro daquele, vai acontecer e gerar uma construção imaginativa realizada em novo espaço e tempo. Esse acontecimento estético tem marco importante na imediatez da relação entre espectador e obra. Sucessivas vão sendo as reelaborações que acontecem no decorrer da experiência de cada um dos envolvidos com o fato estético. Kronos (1987) foi um dos espetáculos que dispensou o discurso verbal. Abordava a passagem do tempo e suas implicações. Nasceu de um projeto cenográfico no qual foram estilizadas imagens que faziam parte de um sonho, em que pessoas empurravam rodas gigantescas dentro de uma pista circular. O espetáculo buscava retratar a fugacidade do sonho, a efemeridade da vida, o passar do tempo distorcendo as lembranças, deixando-as nebulosas, e o mito ligado ao tempo. Na cena, duas rodas de grandes dimensões se destacavam. Embora construídas com madeira e 30 ferro, possuíam bastante mobilidade, o que possibilitava seu deslocamento e a evolução cênica do módulo cenográfico no decorrer do espetáculo. Tais rodas apresentavam grande potencial expressivo porque propunham jogos interessantes e transformavam o espaço da cena, criando corredores que se alternavam em diversas direções. Geravam-se pequenos palcos dentro do grande palco e estruturavam-se microespaços, como o de uma ampulheta dentro da roda, a qual servia, em dados momentos, de morada para dois bonecos manipulados pelos atores. As rodas também serviam de base estrutural que assumia as formas de um vulcão, e para os portais da “besta do tempo”. No decorrer do espetáculo os artefatos cênicos criavam espaços e os destruíam a cada momento. Propunham um caminho no efeito de sombras para conduzir o olhar do espectador sem dar definição exata das imagens que eram geradas, pois a ideia era mesmo propor um espaço cênico permeado de magia, levando a imaginação por um caminho surreal e onírico. Uma herança de traços simbolistas, carregada dos efeitos de luz e sonoridades, fica nítida nos procedimentos utilizados também nessa encenação. Muitas possibilidades foram sendo descobertas na exploração de tais objetos durante os ensaios. Trata-se de um procedimento em que parte da construção da cena resulta da experimentação do material utilizado. Há uma mobilidade no direcionamento dramatúrgico e na configuração da cena, de acordo com as necessidades impostas pelas características do material cenográfico, do figurino, dos adereços etc. Esse diálogo com a materialidade pautando a construção da cena tornou-se uma marca das criações do XPTO. Mais adiante o exploraremos com mais vagar. No programa do espetáculo lia-se: “Kronos, Deus do Tempo e do Carma. Kronos – Saturno. Último planeta visível a olho nu. Limite do homem entre o conhecido e o desconhecido”. Kronos (1987) 31 Kronos (1987) Dando continuidade às elaborações cênicas realizadas sem o uso da fala, Coquetel Clown (1989) incorporava técnicas clownescas à teatralidade, ampliando ainda mais as possibilidades expressivas do grupo. Como o próprio nome sugere, o espetáculo era uma sequência de cenas que envolviam a figura do clown. Utilizava-se como ponto de partida uma história simples, na qual uma moça atrapalhada e frágil se apaixonava por um aviador que caiu do céu durante uma tormenta. A moça o tempo todo era abordada por dois vilões que tentavam, em vão, seduzi-la. 32 O enredo era apresentado numa sequência de cenas intercaladas com intervenções que não se ligavam diretamente àquelas cenas e funcionavam como entreatos, onde eram utilizados bonecos e objetos com técnicas variadas. No espetáculo sem texto os atores utilizavam línguas inventadas para realizar seus “diálogos”. Estas falas inusitadas compunham uma sonoridade mais complexa quando somadas à atuação dos músicos e aos procedimentos oriundos da técnica do clown. Em Coquetel Clown há destaque para aquilo que identificamos neste estudo como “figurinos cenográficos”, os quais funcionam ao mesmo tempo como vestimenta para o ator e como peça cenográfica que possui importante inserção na cena. Entre as características desses figurinos cenográficos está a mobilidade. O ator, em seu deslocamento e movimentação, uma vez que está literalmente vestido com parte do cenário, produz o tempo todo a reformulação da paisagem cênica. Outra função importante desse recurso é investir no conceito de cenário dinâmico, o que gera uma cena mais rica e mais envolvente para o espectador do que aquela emoldurada pelo cenário fixo clássico, decorativo, de painel ou mobília. Para Gabrieli o “figurino cenográfico” permite que o ator crie seu próprio “lar ambulante”, dentro do qual os traços da personagem ganham ênfase por conta do condicionamento definido pelas formas, cores, texturas, dimensões, peso etc. Então, o que poderia ser considerado uma parafernália que enrijeceria e imobilizaria o ator na verdade é um dispositivo que agrega maior valor à sua ação de intérprete. Ele desenvolve, por meio do figurino cenográfico, habilidades que tornam seu desempenho mais interessante aos olhos de quem assiste. Tal procedimento continuou a ser explorado nos espetáculos subsequentes. Coquetel Clown (1989) é um dos espetáculos que traz, na sua construção poética, o resultado cênico surpreendente por ser inusitado. Sua elaboração imagética, originada em justaposições das formas e dos meios expressivos, tem a capacidade de provocar uma revelação imediata pelo ato que interliga obra de arte e imaginação. Tal fato poderia ser considerado epifânico, já que a proposta estabelece imagens inusitadas para coisas e situações. O efeito da transformação apresentado na cena sugere de forma mais ou menos subliminar uma reflexão a respeito das coisas e das situações que se sucedem fora do campo da representação. A imagem transformada conduziria a uma transformação dos modos de ver. Se já é esperado do fenômeno artístico que este gere releituras do mundo pelo efeito da reflexão e da reinterpretação, então um dos méritos do XPTO é empreender, na exploração da imagem por meio da elaboração cênica, uma arte reveladora por excelência. 33 Coquetel Clown (1989) 34 Coquetel Clown (1989) Há um sonho-devaneio17 como ponto de partida na atividade de cada um dos envolvidos na construção da cena. Finalmente materializa-se uma obra que dinamiza sua expressividade e que teve seu início no projeto anteriormente sonhado. Numa próxima etapa o poema visual cênico é “lido” pelo espectador e transformado por este em certa escrita poética por meio de um novo sonho-devaneio. Poderíamos dizer que tal processo confere autoria e criação a cada um que presencia o espetáculo, a cada um que aceita o desafio da conexão com uma teatralidade para então recriar a obra na sua própria forma de apreender – imaginativamente, oralmente ou, enfim, segundo as diversas possibilidades conferidas pela apreciação estética. Numa proposta teatral que trilha o caminho da poética da imagem, quando houver um poema a ser gerado, suas estrofes, versos e palavras escrever-se-ão no âmbito da recepção. Ele será construído na leitura cênica do espectador e repercutirá no processo da apreciação estética. A interação entre o aparato cênico e o ator oferece ao espectador a oportunidade de uma apreciação que o instiga na direção de reelaborar sentidos, a partir das metáforas presentes nos movimentos de uma cena que propõe a homogeneização e a harmonização de 17 Por si só, o devaneio é uma instância psíquica que frequentemente se confunde com o sonho. Mas, quando se trata de um devaneio poético, de um devaneio que frui não só de si próprio, mas que prepara para outras almas deleites poéticos, sabe-se que não se está mais diante das sonolências. Gaston BACHELARD, op. cit., p. 98. 35 elementos, a princípio, híbridos. Propõe-se, assim, um efeito de fusão entre procedimentos cênicos distintos, como é o caso da ação do ator e da expressividade na elaboração plástica (os figurinos cenográficos, a máscara corporal, o módulo cenográfico móvel e outros artefatos cênicos). Primórdios ou “estou fazendo uma flor” Aos dezesseis anos, Osvaldo Gabrieli fez teatro de bonecos como artista amador na Argentina. Já no início da carreira manteve contato com as três atividades: o trabalho de ator, o de artista plástico e o do teatro de bonecos. Cantou em coro também. Buscava uma formação eclética no campo das artes. O êxito obtido em sua busca hoje é verificado no resultado apresentado em seu trabalho como encenador do XPTO. Sua formação acadêmica foi feita na escola de Belas Artes, em Buenos Aires, onde estudou artes plásticas (gravura, escultura, pintura e desenho). Depois, frequentou uma segunda escola, basicamente de escultura, que não era de formação universitária. O início da década de 1980 coincidia com o final do último período governado por militares na Argentina (1976 a 1983). Havia obstáculos inclusive ao desenvolvimento artístico dos cidadãos. Sentindo a necessidade de encaminhar-se profissionalmente, Gabrieli resolveu deixar a Argentina e arriscar uma experiência no exterior. Ele e três amigos resolveram se aventurar por outros países com espetáculos de bonecos. Depois de certo período o grupo se desfez, e Gabrieli acabou se fixando no Brasil. Começou a trabalhar com o Grupo Ventoforte, identificou-se com a proposta do grupo e, com este, manteve vínculo por alguns anos. Algumas passagens se assemelham entre as histórias de vida de Gabrieli e Ilo Krugli, um dos fundadores e atual coordenador e encenador do Grupo Ventoforte.18 Ambos argentinos, vieram ao Brasil ainda jovens. O contato com o Ventoforte aconteceu em momento oportuno e representou um importante avanço para a carreira de Gabrieli. Ali realizou a experiência da criação tendo a cultura brasileira como ponto de partida, uma grande novidade diante do histórico que trazia até aquele momento. A característica da produção artística argentina se fazia europeizante, racional, herdeira das escolas francesas, inglesas e italianas. Ilo Krugli, apesar de ser argentino, já havia elaborado muito de sua arte tendo por 18 Em 1974, tendo Ilo Krugli como um de seus fundadores, o Teatro Ventoforte passou a realizar uma atividade teatral ligada à arte popular e ao fazer artesanal, que investe na linguagem poética e que se influencia pela fantasia e pelo sonho. 36 base os elementos da vida brasileira. Um fato a ser considerado é que a abordagem de Krugli colocou Gabrieli diante da estilização de uma urbanidade permeada por nuances místicas como aquelas presentes nas religiões afro-brasileiras. Tal espiritualidade, como nomeia Gabrieli, se manifesta em aspectos de sua produção artística até hoje. Foi tomando parte na construção poética do Ventoforte que Gabrieli passou a ter contato efetivo com a música brasileira, a religiosidade, o comportamento. Somou assim ao seu conhecimento e experiência artísticos os elementos que lhe chegavam da nossa cultura. Gabrieli participou no Ventoforte de três espetáculos. Luzes e sombras envolvia a narração por cada ator de suas histórias pessoais, o que gerou alguma dificuldade para ele por causa da sua pronúncia naquele momento. Em História de fuga, paixão e fogo, teve importante participação na elaboração do espetáculo, um bom impulso criativo com a construção de cenários, definição de figurinos e adereços. Em Estou fazendo uma flor (1982), dividiu a cena com Krugli e três músicos, trabalhando como bonequeiro. O período em que integrou o Ventoforte proporcionou-lhe a oportunidade de atuar nas diferentes funções que o espetáculo teatral abrange: a construção dos aparatos cênicos, o trabalho com bonecos, o trabalho de ator. Podemos dizer que foi um pontapé inicial para a sua adaptação à nova pátria e para o desenvolvimento de tudo o que viria em seguida com o XPTO. Gabrieli uniu sua criatividade disciplinada e rigorosa, conforme havia sido concebida nos primórdios de sua experiência, com a influência de uma brasilidade exuberante, intuitiva, calorosa, carnavalizada. Com Estou fazendo uma flor, Gabrieli concluiu seu trabalho no Grupo Ventoforte. Continua, porém, fazendo uma “grande flor teatral” surpreendente, inusitada, muitas vezes difícil de classificar por causa da diversidade de meios expressivos que sua cena engloba. Obtém cada vez mais reconhecimento e o devido destaque em âmbito nacional e internacional, considerando-se a boa recepção que os espetáculos do XPTO alcançam nas apresentações que realiza no Brasil e no mundo. Dando prosseguimento à sua produção, ainda nos anos 1980, entre as atividades que realizou, Gabrieli participou de performances ao lado de outros artistas que traziam diferentes experiências: a música, o trabalho corporal, a poesia. E a ele coube complementar a teatralidade das apresentações somando elementos cenográficos, bonecos e adereços passíveis de manipulação. Beto Firmino, que já por ocasião do início das atividades do XPTO trazia a experiência de compositor, cantor e produtor musical, mantém-se até hoje na direção musical do grupo. Além do trabalho no campo musical, ele já atuou como ator e colaborou na dramaturgia e na encenação. O trabalho do XPTO tem como uma de suas características a 37 utilização da música ao vivo em suas montagens, além dos ruídos e sonoridades que pontuam os espetáculos. No decorrer dos anos passaram pelo grupo os atores Anie Welter, Sidney Caria, Natália Barros, Wanderley Piras, André Gordon, Dadá Cyrino, Grace Gianoukas, Carlos Farielo, Guto Togniazzolo, Kleber Montanheiro, Gerson Steves, Roberto de Carmargo, Ângelo Madureira, Cadu de Souza, Tay Lopez, Júlia Jalbut, Sérgio Pupo, Paulo Vasconcellos, Robson Ruy, Simone Mello, Nilton Yamasaki, Eugênio Bruck e Laura Finnochiaro, entre outros. O nascimento do grupo se deu de fato em 1984, depois de uma pequena apresentação de teatro de bonecos no espaço Café Piu-Piu. Ali Gabrieli expôs alguns trabalhos de artes visuais enquanto outros artistas participavam da performance de abertura da exposição. A partir dessa experiência decidiram sobre a criação do grupo e o batizaram usando uma fala da peça Rasga coração (1974) de Oduvaldo Vianna Filho,19 na qual o termo “xpto” designa uma gíria usada para significar “coisa refinada”. O refinamento, podemos notar, viria a se manifestar no equilíbrio entre ousadia na criação e rigor técnico na execução. Os espetáculos que se sucederam passaram a desenvolver uma sequência produtiva que foi definindo um fazer artístico específico: a poética cênica do XPTO. Nesse percurso, enquanto alguns artistas deixavam o grupo, outros iam se associando. As montagens contaram sempre com elenco variável. Gabrieli não se cansa de agradecer e elogiar os artistas que participaram ou colaboraram com as criações, mas vale a pena observar que somente ele e Firmino se mantiveram fiéis a toda a trajetória do XPTO, dedicando-se à continuidade e manutenção do patrimônio teatral do grupo até os dias de hoje. 19 Oduvaldo Vianna Filho nasceu no Rio de Janeiro em 1936 e lá faleceu em 1974. Foi autor e ator. Manteve importante vínculo com o Teatro de Arena, com o Centro Popular de Cultura da UNE e com o Grupo Opinião. Rasga coração, escrita entre os anos de 1972 e 1974, faz parte de uma das mais importantes obras dramatúrgicas em língua portuguesa. 38 Presente e futuro Até a conclusão do presente trabalho, o grupo possuía alguns projetos em andamento, como é o caso da pesquisa que foi realizada em 2010 referente ao projeto de um espetáculo chamado Hy Brazil. Esse projeto é inspirado no mito que apresenta uma ilha localizada no Atlântico e que se desloca no oceano em constante fuga das embarcações que dela se aproximam. Isso faz com que os navegadores, sem se dar conta do fato, continuem sempre avançando na direção da ilha. Quando se afastam demais da sua origem, já não podendo voltar, só lhes resta insistir na tentativa de aportar em Hy Brazil. O mito envolvendo essa ilha refere-se ao desejo, próprio do ser humano, de ir em busca de novas experiências, a busca da utopia. O projeto objetivou utilizar o mito como ponto de partida para a exploração dos efeitos do sonho, da ilusão e do desejo utópico, instigando a imaginação e estimulando novas descobertas. A ideia de que Hy Brazil seja um lugar perfeito alimenta a persuasão para sua busca, mesmo que a verdade sobre essa ilha não seja nada condizente com as fantasias mantidas a respeito dela. O movimento de migrações humanas e o atravessar de fronteiras geográficas também foi um fator importante na execução das atividades envolvidas. Foram realizadas pesquisas de campo e literárias, bem como a coleta de depoimentos e impressões. Houve eventos públicos com debates entre profissionais cuja produção teatral tivesse afinidade com a poética cênica do XPTO. Foram realizadas oficinas que tematizavam a citada proposta, fazendo uso de informações colhidas em entrevistas ou das reações a performances referentes a mudanças e deslocamentos. Gerou-se nesse processo uma dramaturgia provisória. Realizaram-se leituras dramáticas desse texto inicial. O resultado das leituras gerou aprimoramentos dramatúrgicos e o resultado das outras atividades gerou um banco de imagens e um arquivo de informações sobre materiais de cena e procedimentos. Essa etapa envolveu ainda uma captação de recursos para que se propiciasse o prosseguimento do projeto, bem como o amadurecimento e encaminhamento dos elementos que constituiriam o espetáculo, resultantes das atividades realizadas. 39 Projeto Hy Brazil (2010) 40 Atualmente o XPTO está empenhado em dois projetos financiados pelo Sesi e um financiado pelo Detran do estado de Pernambuco. Esses projetos envolvem espetáculos e atividades que têm mantido o grupo atuando em outros estados do país. Um dos projetos vinculados ao Sesi é Arte no canteiro (2012) que, dirigido a trabalhadores da construção civil, envolve o tema da prevenção de acidentes nos canteiros de obra. O outro é Na ponta da língua (2013), cujo público é formado por crianças, estudantes da rede de ensino do Sesi, espalhados por todo o país. O projeto financiado pelo Detran de Pernambuco está relacionado com a prevenção de acidentes envolvendo pedestres nas vias públicas. O público de Escola em trânsito (2013) também é formado por adolescentes, já que estes, naquela região, formam o segmento da população que mais sofre com atropelamentos. Os espectadores desses espetáculos, segundo Gabrieli, são na maioria pessoas que ainda não haviam tido acesso a espetáculos teatrais. As questões da língua portuguesa e as decorrências do trânsito estão diretamente ligadas ao contato com as sinalizações, que são bastante exploradas visualmente nas apresentações com painéis, placas, letras tridimensionais, bonecos, tudo isso aliado à dança, som e luz definidos especificamente. Arte no canteiro, segundo o encenador, “tem humor erótico do mamulengo”. Traz questões, entre outras, que evolvem o tema do machismo e do alcoolismo, numa perspectiva bem-humorada “que não seja humilhante”. A experiência com a imagem nesse espetáculo apresenta bonecos feitos com pás, baldes, picaretas, enxadas e outras ferramentas e instrumentos usuais na atividade da construção civil. A estrutura cenográfica que se instala dentro dos canteiros de obra estiliza, por exemplo, o andaime. Utiliza partes do cenário de Estação Cubo (2002) e de O sonho de voar (2003), como torres e guindastes, que mantêm o ator tão pendurado quanto ficam alguns trabalhadores em sua atividade. A tecnologia utilizada na elaboração das encenações atuais é mais avançada, diz Gabrieli, em relação a certa precariedade que havia por ocasião da montagem de Estação Cubo e de O sonho de voar. Os recursos obtidos com os projetos encomendados e financiados pelas instituições mencionadas propiciam melhor adequação do aparato cênico e melhor remuneração dos artistas envolvidos do que naquele período citado. O fator econômico que manteve o XPTO vinculado a essas últimas atividades favoreceu, por exemplo, a construção da Sala Pina Bausch, atual espaço de ensaio e criação do grupo, e gerou uma reserva econômica que está garantindo as próximas criações. 41 Arte no canteiro (2012) 42 Arte no canteiro (2012) Na ponta da língua (2013) e Escola em trânsito (2013) 43 Outra atividade realizada nesses últimos anos pelo XPTO são as participações nos FITO – Festival Internacional de Teatro de Objetos, junto ao qual Gabrieli assume funções na coordenação cenográfica. Segundo o encenador, o grupo não deixou de investir na sua linguagem, e a participação nos FITO têm significado grande estímulo à pesquisa. A característica plástica e improvisacional das intervenções que o XPTO realiza nesses festivais remete Osvaldo Gabrieli ao momento em que tudo começou, há trinta anos. O aspecto performático das atuais intervenções já fazia parte das atividades que reuniam aqueles jovens artistas, ávidos de manifestar a sua criatividade, que se apresentavam nas casas noturnas de São Paulo, transformando o pouco em muito. É importante sublinhar o fato de que em 2014 o XPTO vai completar trinta anos de existência. Um dos atos comemorativos envolverá a estreia, na cidade de Havana, do espetáculo Federico, Salvador, a galinha e o caleidoscópio surrealista (nome provisório), em processo de ensaios atualmente. O espetáculo fará a abertura do Festival de Bonecos da Unima – União Internacional da Marionete e envolve bonecos, atores, cenografia interativa e projeções, além de retomadas da figura de Buster Keaton e de outras personalidades importantes na trajetória de Lorca. Segundo Gabrieli, trata-se de um réquiem para Lorca, mas “sem ser pesado”.20 20 Ver entrevista com o encenador no Anexo. 44 FITO – Festival Internacional de Teatro de Objetos 45 CAPÍTULO 2 O teatro fundamentado na imagem 46 O despertar da imagem no espaço da encenação O teatro fundamentado na imagem, tal como verificamos nas produções contemporâneas, é resultante de um longo processo histórico que envolve o encontro de diversas modalidades artísticas. Nesse contexto situamos a obra do Grupo XPTO de Teatro. Notamos que o percurso realizado pelo grupo em suas três décadas de existência traz semelhanças com a própria história do teatro no decorrer do século XX. Tal similaridade se verifica no tratamento dirigido à materialidade cênica estrutural e plástica, à relação estabelecida entre o ator e essa materialidade, ao movimento implicado na totalidade da cena e à conexão desta com o espectador. Verificamos a presença do teatro de bonecos e das artes plásticas já nos primórdios da experiência de Osvaldo Gabrieli. Essa experiência logo se uniria à atividade da cenografia para, em seguida, vincular-se ao trabalho do ator, do músico, do bailarino, do iluminador. Havia se iniciado uma elaboração artística que se aprofundava na experimentação e seguia rumo à estruturação de uma linguagem. A sedimentação da poética cênica do grupo, assunto que permeia todo o nosso estudo, aconteceu à medida que os resultados obtidos em cada estágio eram compartilhados com um público diversificado que hoje continua respondendo àquelas propostas, de forma a situar o XPTO entre as mais importantes companhias teatrais da atualidade. A estruturação da linguagem que hoje define o perfil do grupo reflete as transformações que conduzem a experiência teatral mundial a partir da admissão da quebra da ilusão e do redimensionamento do discurso no espaço da representação. Tanto a integração entre as artes como o processo transformador da cena teatral aconteceram progressivamente e receberam grande ênfase no decorrer do século XX, ainda que consideremos algum atraso quando comparamos os avanços ocorridos no teatro com aqueles relacionados às chamadas vanguardas artísticas na área das artes plásticas. Verificamos que estão de acordo quanto a essa defasagem no desenvolvimento do teatro tanto Jean-Jacques Roubine quanto Henryk Jurkowski. A atividade teatral é marcada pelos obstáculos impostos pelas próprias condições materiais que envolvem o uso de tecnologias e investimento econômico. Isso faz com que as artes plásticas, que prescindem — ou prescindiram — da elaboração do espaço cênico e de 47 seus procedimentos, apresentem mais rapidamente suas transformações do que aquelas que dizem respeito ao palco.21 Henryk Jurkowski discorre sobre a história do teatro de bonecos desde o final do século XIX até os dias atuais. Desenvolve os desdobramentos, as transformações e as influências que a arte do boneco foi absorvendo, bem como as interações que ocorrem entre essa modalidade artística, o teatro de atores e as artes plásticas. Segundo ele, somente após a Segunda Guerra Mundial é que o teatro de bonecos de fato alavancou-se em suas inovações, que incluíam também a retomada de estilizações oriundas de manifestações populares. Iniciavam-se assim as tendências anti-ilusionistas do teatro de bonecos e também suas “metamorfoses”.22 O fascínio exercido pelo efeito ilusionista e imitativo no teatro de atores realista- naturalista esteve na base das oposições frente às propostas então inovadoras dos artistas simbolistas. As práticas teatrais desenvolvidas durante o século XX debateram com vigor as duas formas de representação: uma herdeira do naturalismo e outra instigada pelas iniciativas simbolistas. Tal debate veio à tona graças à revolução tecnológica trazida pela eletricidade, algo de grande importância para ambas as propostas que, opostas esteticamente entre si, foram assumindo diferentes denominações com o passar dos anos e diversificando-se de acordo com a localização geográfica onde se desenvolviam.23 Mal começava o realismo naturalista a ser experimentado no teatro, o simbolismo já apresentava suas interferências não realistas na imagem (pelos efeitos da luz) e também na exploração de novas sonoridades. Mais tarde, veio-se a propor o teatro de nova teatralidade, que utilizava elementos do circo, da dança e das artes populares e excluía da cena os aparatos ilusionistas. Quando as manifestações simbolistas surgiram no teatro, o realismo naturalista também estava em desenvolvimento. É possível, portanto, considerar o simbolismo como uma primeira iniciativa no teatro de atores a concretizar a expressão teatral que não segue os cânones do teatro realista. O simbolismo, então, teria sido o pontapé inicial, no que tange ao teatro instituído, da expressão não realista e também da ênfase na imagem, algo que veio a se manifestar em variadas culturas ao longo do tempo. 21 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 21. 22 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. IX. 23 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 24. 48 Hoje, é possível afirmar que as características do teatro simbolista integraram o teatro da teatralidade, assim como este integra na contemporaneidade o teatro fundamentado na imagem que, conforme veremos adiante, engloba as decorrências dos encontros e fusões ocorridos entre as diferentes expressões artísticas ao longo da história da arte, em especial no transcurso do século XX. Quanto aos procedimentos que definem o teatro da teatralidade, ainda na Rússia da década de 1920, podemos afirmar que Meyerhold era, naquele momento, alguém que acreditava e investia naquela forma de se propor teatro. Ele excluiu o que considerava excessos e banalidades do espaço da representação. Sua atitude revolucionária no meio teatral de sua época fez dele ao mesmo tempo um precursor de uma estética cênica e um vanguardista.24 O conceito abrangido pelo teatro da teatralidade diz respeito ao teatro de atores pós e antinaturalista que, num momento inicial, teve suas manifestações identificadas com o teatro simbolista. Encenações de Meyerhold: Les Aubes (1920) e The Bathhouse (1930) Merecem também destaque, nesse percurso de experiências renovadoras do teatro, as realizações da Bauhaus, que, embora conhecida por suas propostas revolucionárias na arquitetura e no design, também realizou importante iniciativa no que tange à cena teatral, principalmente sob a coordenação de Oskar Schlemmer na década de 1920. De caráter extremamente vanguardista, ela influencia até hoje as produções teatrais (como verificamos 24 Nina GOURFINKEL (Org), O teatro teatral de Vsévolod Meyerhold, p. 16. 49 na cena do Grupo XPTO de Teatro), com seus cubos, cones, cilindros e esferas, fazendo referência a uma estilização pela redução dos excessos, pela precisão das formas e definição das cores. E isso vale também para a atitude do ator nesse contexto, graças à ação precisa e integrada ao cenário e ao figurino geometrizados dentro de um espaço cênico de linhas bem definidas, seja na sua materialidade, seja na evolução do movimento coordenado e integrado entre os diversos elementos da cena. Tudo isso sob a regência das sonoridades e da iluminação, também elaboradas no processo integrado da criação: trata-se do conjunto cênico buscando a harmonização e trazendo o encanto presente na sinergia que, conforme Jurkowski, situa-se entre o ator e o boneco quando ambos, ao contracenar, revelam-se ao público. Trata- se de vida propondo vida onde não há. Trata-se de habilidade e talento conferindo magia à matéria inerte. Sinergia essa que podemos considerar ingrediente sem o qual o teatro não encanta, pois é sempre a relação dinâmica entre os elementos da cena que mantém, de fato, o espectador na abrangência e nas elaborações referentes à apreciação estética, compondo o processo da “imaginação poética” proposta por Gaston Bachelard.25 As novas experiências que se seguiam nas realizações artísticas do século XX ousavam e inovavam na materialidade e nos procedimentos, ao mesmo tempo em que significavam uma aproximação entre as diferentes formas de se fazer arte, como foi o caso do Teatro da Bauhaus, pela relação estabelecida entre as artes plásticas, a arquitetura cênica, a expressão corporal e vocal. Ora, mas o teatro já não o fazia reunindo esses elementos todos na mesma atividade? Não. O teatro instituído e identificado com uma erudição literária priorizava o texto e a fala para em seguida emoldurar com adornos o contracenar. Mesmo Richard Wagner, ainda no século XIX, com sua teoria sobre a “obra de arte total” e a sua prática no teatro lírico, tinha dificuldades ao harmonizar os elementos da cena entre seus grandes lustres, telões pintados e o lugar de excelência que ele reservava ao elemento musical.26 Do boneco ao artefato cênico: entre manipular e contracenar O teatro realista de ator, o drama musical e a arte do boneco, que anteriormente se manifestavam isoladamente, foram se aproximando: três vertentes do teatro que, naquele fim do século XIX, foram fortes representantes do padrão dramático graças a seu caráter imitativo e/ou ilusionista. 25 Gaston BACHELARD, op. cit., p. 99. 26 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit, p. 117. 50 Era necessário romper limites impostos ao fazer artístico e desapegar-se dos padrões dramáticos. O boneco não poderia continuar confinado ao espetáculo para crianças como vinha sendo desde o início do século, apartado das correntes artísticas modernas. Uma nova dinâmica para a cena do boneco começava a ser experimentada por artistas sediados em diferentes localidades.27 O teatro de bonecos no início do século XX mostrava-se ainda mais defasado que o teatro de atores no que diz respeito à sua renovação, principalmente se também comparado às vanguardas artísticas do período citado. Esse atraso na sua transformação e no seu avanço é atribuído à característica ilusionista, que trazia uma grande carga dramática como herança do que se produzia no século XIX: o fascínio pelo ilusionismo, apesar do natural distanciamento provocado pelas características do boneco. Um agravante a ser considerado nesse caso diz respeito ao vínculo fetichista alimentado tanto pelo artista do boneco como pelo espectador. Os envolvidos com o teatro de bonecos considerado clássico, ou seja, mimético e ilusionista, embora estabeleçam contato com uma matéria sem vida, esculpida e manipulada mecanicamente, investem no jogo da ilusão e na relação com a magia herdada de um procedimento animista ancestral. A maioria dos bonequeiros estava fascinada pelo boneco dramático. Reinava a dúvida se artistas e público estavam preparados para se relacionar com a composição abstrata e se ela era algo que colocava em risco a representação figurativa — o homem ou o símbolo humano na cena —, tão cara para várias gerações.28 A natureza plástica e estilizada do boneco, aliada ao caráter realista da representação teatral na qual ele se insere, sempre suscitou o interesse e o encanto por parte do público. As características da cena na qual ele evolui propiciam uma condição instável da percepção. O vínculo do espectador com a arte do boneco compreende lucidez e ilusão, desconfiança e crédito, dirigidos ao confronto entre a humanidade por ele representada e a sua constituição artificial elaborada. O boneco é matéria esculpida que imita a forma humana. Tende-se à ruptura da ilusão, diante da cena, por conta das propriedades da fonte expressiva, imediatamente perceptíveis ao espectador.29 O teatro de animação paulatinamente metamorfoseou-se em direção ao teatro de formas animadas, que, por sua vez, exerceu grande influência no surgimento do “teatro de meios de expressão variados”, como nomeia Jurkowski. Podemos afirmar que, embora a cena do boneco já tenha nascido híbrida por reunir em si elementos oriundos tanto do teatro (pelos 27 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. 62. 28 Ibid, p. 35. 29 Ibid, p. 66. 51 procedimentos cênicos) como das artes plásticas (pela produção material),30 o seu caráter plástico demorou a ser influenciado pelas vanguardas, uma vez que sua herança ilusionista e mimética manteve artistas e público resistentes às mudanças. Tais mudanças vieram a se apresentar principalmente na segunda metade do século XX, trazendo uma nova condição para o boneco. Antes arte menos valorizada, passou a receber o status de gênero teatral regular e estruturado. Ações individuais e coletivas representaram as expectativas que diziam respeito à sua nova condição na esfera das artes cênicas. O fascínio exercido tanto pelas sutilezas na elaboração plástica do boneco “homogêneo, clássico” como pelo virtuosismo na sua manipulação trouxera uma atmosfera de magia para esse tipo de encenação. Correspondendo a um conservadorismo eruditizante, a arte do boneco deveria permanecer intacta para que se mantivessem os padrões da tradição dramática nessa atividade. Como podemos observar, apesar das diferentes fontes expressivas empregadas pelo teatro de atores realista e pelo teatro de bonecos clássico, uma característica enraizada em ambos e que muito os aproxima é o mimetismo ilusionista no espaço da cena: apresentação da imitação da vida e de um vínculo emocional com o espectador. Outro caráter que assemelha essas duas modalidades teatrais é a sua oralidade, a fala como elemento fundamental da expressão. A iniciativa antinaturalista na criação artística abalou o lugar de excelência da fala e, portanto, do texto. Este foi se transformando, recuando em seu domínio cênico, suscitando o vínculo com outras possibilidades expressivas e abrindo campo para a expansão de elementos que já faziam parte do espetáculo, mas sucumbiam ao domínio verbal. Vsévolod Meyerhold trouxe para a cena o dinamismo da visualidade como não era comum nos espetáculos de então e propôs um uso inovador do texto para aquele momento.31 Sua experiência primou por demonstrar as possibilidades expressivas independentes do texto quando, por exemplo, realizava na cena a oposição entre expressão verbal e visualidade, propondo já ali um desvincular entre texto e espetáculo. Suas propostas transformadoras foram consideradas por demais ousadas. Sua elaboração cênica foi classificada como formalista quando comparada ao padrão dos espetáculos teatrais que então eram produzidos e taxada de elitizante pelos stalinistas, que temiam uma visão libertária demais naquela proposta que se distanciava dos seus propósitos políticos e estéticos. A proposta imagética teatralizada de Meyerhold teve sua sentença proferida pela tirania stalinista porque extrapolou o padrão estabelecido por uma ditadura e porque propunha 30 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. VIII. 31 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 57. 52 a extensão de uma criatividade cênica libertária aos cidadãos enfileirados diante das suas apresentações. Quando se propõe verdadeiramente uma “imaginação poética”, ainda que a intenção de “zombar das censuras”32 não se faça explícita, implícito está o risco da transformação das formas de ver e de agir. Risco de fazer estremecer até mesmo poderes instituídos. Depois da elaboração de mais de trinta anos do trabalho que legou uma obra de suma importância para o teatro e para a cultura mundial, uma ação ditatorial, violenta, culminaria no encerramento daquelas experiências. Vsévolod Meyerhold foi fuzilado em 1940 por ordem de Stalin. Os registros referentes à sua obra estiveram proibidos durante décadas. Também no caminho de ampliar os procedimentos e potencializar a capacidade expressiva da cena teatral, Antonin Artaud se opôs à dominação do verbo. Reivindicou a liberdade da experiência com o texto para que se alcançasse a amplitude das significações que a palavra pode obter na sua relação com a encenação33. Extrapolar o procedimento costumeiro do teatro, transgredindo inclusive o uso comportado do texto e da emissão da voz, são elementos marcantes na herança deixada por Artaud, que propunha uma linguagem encantatória rompedora do aprisionamento do homem pela palavra. Já no teatro de Tadeusz Kantor, encenador que recebeu também grande influência das artes plásticas, o texto assume a condição de peça de um jogo na relação com os outros elementos do espetáculo. Isso acontece através do processo das repetições de frases ou palavras, do prolongamento de fonemas, das fragmentações, das interrupções, do balbuciar etc. Na visão de Kantor, a cena não poderia acontecer em função do texto como a materialização de uma ideia escrita. O texto na cena deveria resultar da interação com a totalidade do espetáculo. Há uma oposição entre o tratamento dado ao texto por Kantor e o teatro regido pelo texto. Não são rubricas, narrações nem diálogos que vão dominar o espaço visível e audível da cena (seus elementos, sua ação ou movimentação). Também a experiência sem palavras esteve presente nos primeiros espetáculos de Leszek Madzik, outro encenador oriundo das artes plásticas. Ao descrever a encenação de Madzik, Jurkowski define alguns aspectos de sua proposta: “o espetáculo é uma sucessão de imagens sem comentários”. Seus cenários, que trazem alto grau de abstração imagética, configuram “um espaço plástico” graças ao resultado obtido no tratamento dado à materialidade da cena – tanto na construção de estruturas e objetos como na relação estabelecida entre estes no decorrer dos espetáculos.34 32 Ver nota 27. 33 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 58. 34 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. 101. 53 Explorando bastante o recurso das “imagens sem comentários”, Robert Lepage insere os dispositivos do cinema, do vídeo e também os eletrônicos em sua poética cênica. Mas passa ao largo de transformar o espaço da encenação numa sala de projeções. As próprias superfícies — suportes para acolher tais imagens em movimento — muitas vezes também percorrem o espaço cênico. Trata-se de movimento sobre movimento. E a exploração dos diferentes graus de opacidade das superfícies utilizadas também recebe efeitos de sombra e o grafismo de palavras numa interação constante com atores, sonoridades, objetos e tudo o mais que vier a compor a encenação de Lepage. Nela, o elemento dançante assume grande importância no conjunto das habilidades do ator, remetendo-nos também a procedimentos presentes na cena do XPTO. Além das artes visuais e de sua permeabilidade às artes projetivas, a música, a dança e o movimento acrobático, entre outros elementos, perpassam a aprendizagem e a experiência que Lepage transforma em espetáculo teatral. Avaliando as práticas que definem um teatro sem palavras ou sem a lógica clássica do discurso, percebemos que a tendência é que a linguagem não textual tenha como meio expressivo a plasticidade da cena, conforme observamos no XPTO. Isso talvez justifique o fato de aqueles artistas que possuem experiência inicial nas artes visuais se encaminharem para o desenvolvimento de um teatro não literário, como é o caso de Kantor, Madzik e Lepage. Nessa vertente, situamos também Osvaldo Gabrieli. Esses encenadores oriundos das artes visuais buscam frequentemente solucionar questões fundamentais da arte teatral, exprimindo seu ponto de vista a respeito dela e estilizando, comumente, questões relacionadas com o sentido da existência.35 A expressividade atribuída pelo teatro à matéria inerte mostra sua eficácia na representação da vida humana. Realizando a integração entre artes plásticas e performance, o Teatro Bama, de Jerusalém, que se autodefine como teatro visual, iniciou suas atividades produzindo e apresentando teatro de bonecos. Sua experiência acontece independentemente da verbalização. Ele engloba a dança, a música e a poesia, com uma expressão artística que prima pela visualidade. Fa Chu Ebert, que em 1990 dirigia o Teatro Bama, afirmou que o papel do ator perdia sua importância à medida que a visualidade ganhava autonomia no vínculo com o espectador. Contudo, podemos considerar que Ebert assim se pronunciou com o objetivo de enfatizar, nesse teatro, a importância da imagem em comparação à do teatro de atores, que segue padrões dramáticos e no qual o ator é eminentemente falante. Isso porque, no Teatro Bama, à função do ator não se atribui menor valor por conta da ênfase à imagem 35 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. 99. 54 como elemento expressivo. O que de fato ocorre é que compete ao ator, na condição de elemento que integra uma cena onde a expressão imagética ganha importante destaque, acessar e dominar novas habilidades que o habilitem a interagir com o todo dessa materialidade cênica – algo que também observamos no desempenho do ator do XPTO. Essa nova completude, relacionada à atividade do ator em um teatro no qual a força expressiva reside na imagem, objetiva inclusive tornar essa expressividade mais eficiente pela forma como ele, ator, intervém no espaço da encenação. Na construção da cena com ênfase imagética, o destaque da atuação do ator está sujeito ao seu talento e habilidade aplicados na composição de um contexto cênico. A voz e a corporeidade dos atores devem funcionar como um amálgama entre os diversos elementos significantes da cena – e não mais como fontes expressivas a serviço de um discurso verbal condutor. Com as elaborações cênicas que privilegiam a imagem em relação ao texto, a atividade teatral passou a se relacionar de forma mais intensa com a subjetividade do espectador, que foi levado assim a estabelecer um contato mais amplo com o teor expressivo das imagens. A imagem que deixa de ser decoração e moldura da cena passa a solicitar que seu apreciador, por meio de seu próprio repertório de experiências, aproprie-se dela e lhe confira valores traduzíveis, decifráveis. O discurso verbal perdia sua supremacia na relação entre a criação e a recepção, e os procedimentos realistas e psicológicos já não se mostravam suficientes para expressar tudo o que a cena teatral poderia abranger.36 A busca do ilusionismo por meio dos recursos miméticos já não preenchia as necessidades. O ator ampliou a sua função ao atuar em meio à teatralidade resultante da ênfase na imagem: passou a ser ao mesmo tempo um elemento constitutivo e um regente da composição, o que “abre caminho a um teatro visual que reúne vários meios de expressão e não é freado pelas categorias tradicionais porque se volta para as artes plásticas, a poesia, a música e a dança”.37 A cena teatral onde a expressão imagética ganha destaque em relação ao discurso verbal nos instiga a querer dominar as nuances de seu poder expressivo e nos leva a estabelecer termos comparativos entre fatores que ora vinculam o espectador à imagem, ora à palavra. O uso da palavra como ferramenta de um pensamento lúcido e como transmissão eficaz das ideias opõe-se ao uso que dela se faz na esfera da poesia, da metáfora e da abstração. A objetividade do discurso científico ou filosófico, que busca a precisão objetivando a compreensão da informação, realiza função diferente da volubilidade presente 36 Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. 97. 37 Fa Chu EBERT, apud Henryk JURKOWSKI, op. cit., p. 97. 55 na poesia que, por sua vez, tem grande poder de produzir imagens na via da “imaginação poética”. Poderíamos utilizar o modelo bachelardiano para comparar certa restrição expressiva, presente no discurso textual, à fluidez imagética da linguagem no teatro fundamentado na imagem. Haveria uma limitação no alcance da arte se as expressões sempre se cristalizassem em “sólidos perfeitos”,38 que cumprem sua função ao precisar a transmissão de um sentido por meio do termo que melhor delimita sua compreensão. O fato é que, prosseguindo com novas experimentações, o teatro tratou de investir nos efeitos do silêncio, que, direta ou indiretamente, conduz à eloquência da imagem. Ou, ainda, buscou nova função para a voz e para a fala. Isso ocorreu proporcionalmente à ampliação das habilidades do ator, ao crescimento das experiências plásticas teatrais, à integração entre as áreas artísticas, ao interesse de aumentar o alcance da expressividade cênica e ao desejo de dinamizar a percepção do espectador no contato com o espetáculo teatral. Dinâmica essa, traduzível na relação entre imagem poética e imaginação. Coincidindo com tal empreitada na reinvenção da linguagem, sucederam-se alguns movimentos artísticos que interagiram com o desenvolvimento da teatralidade. O simbolismo, como um movimento que impulsionou a ênfase da imagem na experiência teatral, muito deve às intervenções de Appia, Craig e Maeterlink, entre outros. Eles verificavam certa incongruência na junção de materiais e procedimentos díspares quando empregados na realização de uma cena teatral que, embora pretendesse integração e harmonia, ostentava sua materialidade como mero elemento decorativo. A corrente simbolista, de acordo com Roubine, foi marcada por uma “multipolaridade” que identificava similares objetivos estéticos nos interesses de artistas e teóricos do teatro geograficamente distanciados,39 mas unidos pela “coexistência de um desejo de ruptura e de uma possibilidade de mudança” fomentados intelectualmente na justificava que excluía teorias e princípios por eles considerados superados. Tecnicamente, o acesso à iluminação elétrica foi outro importante fator a propiciar as experiências simbolistas. A luz podia, a partir daquele momento, sugerir situações, expressar-se por si própria, criar diferentes “atmosferas”. A luz trazia à cena uma nova concepção de imagem e atribuía-lhe uma nova função. Dava ao corpo, ao objeto e ao espaço que os envolvia configurações e efeitos que anteriormente o teatro não poderia realizar. Os encenadores Appia na Suíça e Craig na Inglaterra, bem como o dramaturgo Maeterlink entre Bélgica e França, são alguns dos pioneiros que assumem a necessidade de explorar os 38 Gaston BACHELARD, op. cit., p. 205. 39 Jean-Jacques ROUBINE, op. cit., p. 21. 56 recursos da teatralidade, recusando regras realistas que, naquele início do século XX, estruturavam a representação. Aspectos herdeiros do simbolismo podem ser verificados, por exemplo, em cenas de O sonho de voar (2003). Nesse espetáculo, realizado em espaços abertos, a evolução da iluminação e o uso das sonoridades tratava de estabelecer efeitos marcantes e imprescindíveis para a cena, propondo uma suposta expansão dos volumes, a união do espaço da cena com o ambiente ao redor, as flutuações de atores e objetos, ou mesmo a desfiguração das formas. As ações definidas por sonhar e voar, além de estarem implicadas na ação dos atores nos espaços e sobre os artefatos (e vice-versa), eram desenvo