UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ALINNE PAVANI SALESSE A TRAGÉDIA EM TOLKIEN – UMA ANÁLISE LITERÁRIA SOBRE A PRESENÇA DO TRÁGICO EM OS FILHOS DE HÚRIN ARARAQUARA – SP 2016 ALINNE PAVANI SALESSE A TRAGÉDIA EM TOLKIEN – UMA ANÁLISE LITERÁRIA SOBRE A PRESENÇA DO TRÁGICO EM OS FILHOS DE HÚRIN Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi ARARAQUARA – SP 2016 Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi Data da defesa/entrega: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi UNESP - ARARAQUARA Membro Titular: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues UNESP - ARARAQUARA Membro Titular: Prof. Me. Stéfano Stainle UNESP – ARARAQUARA Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A todos aqueles, que como eu, são fascinados pelo Universo criado por J.R.R. Tolkien, e pelas inúmeras aventuras que podemos viver ao lado de seus personagens apaixonantes. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Analice, e ao meu pai, Antônio Vitor, que sempre me apoiaram e estiveram presentes em todos os momentos importantes de minha vida. Obrigada por terem dedicado a mim o bem mais valioso que se há: o tempo. E pelo modo maravilhoso como me educaram, em um lar repleto de amor e respeito. À minha irmã e melhor amiga, Anna. Você é minha mais preciosa Silmaril. Ao meu orientador e querido Professor, Cido. Por quem sempre tive imensa admiração, e que desde nossa primeira reunião referente ao trabalho, na qual ele vestia sua camisa do Reino de Moria, me fez ter certeza de que havia escolhido a pessoa certa para me auxiliar. Aos meus avós, Alzira Pavani e Anísio. Apesar dos quilômetros de distância que nos separam há anos, o verdadeiro lar de vocês nunca deixou de ser meu coração. Aos meus outros avós, Antônio, Agostinho, Alzira Salesse e Iracema, que já partiram para as Terras Imortais. Que o Vala Mandos lhes guarde em seus belos salões, até que possamos nos encontrar novamente. Aos meus amigos Estefânia, Marina, Alvaro e Cristiano. Que caminham comigo desde que éramos pequenos como hobbits. Aos meus amigos Bruna, Beatriz, Giovana, Luisa e Leandro. Presentes que a UNESP me deu, e dos quais já sinto muitas saudades. Aos meus anjos da guarda, Johannes, Maiuí e Tanise. Que mesmo distantes, nunca deixam de zelar por mim. A amizade de vocês vale mais que todo o tesouro de Thrór. Ao Nuno, Dúnadan, meu companheiro e principal guia ao desbravar os caminhos da Terra-Média. Ao Pai, Eru Ilúvatar. Que em nossa realidade recebe o nome de Deus. Obrigada! “Túrin Turambar turun ambartanen: Senhor do Destino, pelo destino derrotado!” (TOLKIEN, 2002, p. 285) RESUMO J.R.R. Tolkien foi um filólogo, professor e escritor que revolucionou o mundo literário com suas obras. Dotado de criatividade e auxiliado pelo conhecimento que tinha sobre mitos e linguística, foi capaz de imaginar e descrever um Universo diferente de tudo o que existira até então. Esse Trabalho de Conclusão de Curso pretende analisar a presença de características derivadas da Tragédia no romance Os Filhos de Húrin (Narn I Chîn Húrin), escrito por Tolkien. Diferindo da maioria das histórias do Professor, o desfecho da obra estudada apresenta a triste trajetória de Túrin Turambar, homem valente e de temperamento difícil que viveu durante os Dias Ancestrais, na Primeira Era da Terra-Média. Descrito pela primeira vez nas páginas da obra O Silmarillion, o conto sobre os filhos de Húrin reúne personagens de várias espécies, variando entre bravos guerreiros e criaturas místicas. A presença do sobrenatural e a batalha entre forças do bem e do mal, também constam no livro. O presente trabalho visa caracterizar os acontecimentos da vida e do comportamento de Túrin como exemplos de elementos fundamentalmente trágicos, que são encontrados em narrativas e diversas formas de arte desde o surgimento da Tragédia, em tempos remotos à época de Tolkien. Palavras-chave: John Ronald Reuel Tolkien. Os Filhos de Húrin. Tragédia. Túrin Turambar. Análise literária. Literatura Britânica. ABSTRACT J.R.R. Tolkien was a philologist, professor and writer who revolutionized the literary world with his books. Gifted with imagination, added to the knowledge he had about myths and linguistics, he was able to create and describe a Universe dissimilar to everything that existed before. This course’s final paper aims to analyze the presence of Tragycal characteristics at the novel The Children of Húrin (Narn I Chîn Húrin), written by Tolkien. Unlike the most stories written by the Professor, the outcome of the plot reveals the sad path of Túrin Turambar, a brave man with a bad temper who lived back in the so called Early Days, at the Second Age of Middle-Earth. Described for the first time in the pages of The Silmarillion, the tale about the children of Húrin gathers characters of many species, diversifying between brave warriors and mystic creatures. The presence of the supernatural and the contest between good and evil forces are found in the book as well. The present paper work aims to feature the events of Túrin’s life, as well as his behaviour, as examples of tragycal elements which can be found in tales and several other kinds of art since the rise of the Tragedy in a long time before Tolkien. Keywords: John Ronald Reuel Tolkien. The Children of Húrin. Tragedy. Túrin Turambar. Literary analysis. British Literature. SUMÁRIO 1. Introdução. ......................................................................................................................................... 9 2. O Autor. ........................................................................................................................................... 11 3. A Obra. ............................................................................................................................................. 20 3.1 Resumo do enredo. .................................................................................................................... 25 4. A Tragédia em Tolkien. .................................................................................................................. 30 5. Considerações Finais ....................................................................................................................... 33 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 35 9 1. Introdução. Meu primeiro contato com as obras criadas por J.R.R. Tolkien ocorreu consideravelmente tarde em comparação a grande maioria de jovens que as leem. Apesar de ouvir inúmeras vezes que estava perdendo tempo ao não assistir a nenhuma das versões cinematográficas que existiam de O Senhor dos Anéis e O Hobbit, optei por seguir minha intuição, e como boa estudante de Letras, dar prioridade aos livros em que os filmes são inspirados. Em julho de 2014, li pela primeira vez, em menos de uma semana, O Silmarillion. Por ser fã assumida de contos de fadas, fantasias, e realidades fictícias, me apaixonei quase imediatamente pelo mundo criado pelo Professor Tolkien. Em sequência, prossegui com a leitura dos livros de sua autoria que consegui encontrar, todos referentes à Terra-Média: O Hobbit, a trilogia de O Senhor dos Anéis, Os Contos Inacabados e Os Filhos de Húrin. Dentre todas as obras, porém, a mais fascinante era o conto de Túrin Turambar. A história dos filhos de Húrin tinha vários pré-requisitos para que fosse considerada um típico conto com desfecho encantador e feliz, envolvendo um valente guerreiro, uma bela donzela, um dragão terrível e uma força maligna poderosa. Porém, a presença do trágico na narrativa de Tolkien, concretiza a maldição cruel imposta à Túrin e Niënor. Ao final do ano de 2015, compareci a um evento da Universidade denominado “Welcome to Mordor”, organizado por meu orientador, Cido Rossi. Durante aquela semana, foram apresentadas diversas palestras relacionadas a vários universos fictícios da Literatura. Uma das palestras, ministrada pela Professora Karin Volobuef, tratava sobre os arquétipos de herói e anti-herói presentes em O Senhor dos Anéis, nos personagens Frodo e Aragorn. Ao assistir a palestra, voltei meus pensamentos a Túrin e sua triste história. Então, decidi que meu Trabalho de Conclusão de Curso seria sobre ele. Este trabalho, aqui concretizado, visa analisar o conto dos filhos de Húrin e relacioná-lo a um dos mais antigos gêneros literários, a Tragédia. 10 Para que se compreenda melhor a obra, é importante relatar algumas das principais bases que a sustentam: o autor e sua forma de escrita. Portanto, no primeiro capítulo deste trabalho constam alguns fatos biográficos de Tolkien, que são tidos como necessários para entendê-lo melhor como pessoa e autor. Também foram citadas suas obras relacionadas à Terra-Média que foram publicadas no Brasil. O segundo capítulo é composto por descrições e uma breve análise literária, referentes à obra que é o principal material desta pesquisa: Os Filhos de Húrin (Narn I Chîn Húrin). Também foi considerado importante citar a obra A História de Kullervo, recentemente lançada no Brasil, que serviu de grande auxilio na construção deste trabalho. Por fim, o terceiro e último capítulo é dedicado a uma breve caracterização da Tragédia segundo os moldes aristotélicos, seguida pela exemplificação da presença deste gênero literário nas obras de Tolkien. 11 2. O Autor. John Ronald Reuel Tolkien nasceu no ano de 1892 em Bloemfontein, na África do Sul. Seus pais eram ingleses, e devido à oportunidade de maior sucesso na vida profissional, mudaram-se para o continente Africano. Lá o menino viveu com o pai, Arthur Tolkien, a mãe, Mabel Suffield, e o irmão caçula, Hilary, até os três anos de idade. Após esse período, Ronald, como era chamado pelos familiares, passou então a viver na Inglaterra, acompanhado por Mabel e Hilary. Onde residiu até os últimos dias de sua vida, em Setembro 1973. Durante a infância, Tolkien viveu em ambos ambientes: urbano e rural. Graças ao hábito do autor de ser bastante observador e à sua capacidade de memória aguçada em relação a detalhes e lugares, acredita-se que muito de sua inspiração para obras futuras deveu-se ao fato de amar a natureza e o campo. A vida urbana e as novas tecnologias, o deixavam irritado. Segundo Lin Carter, em sua obra O Senhor do Senhor dos Anéis, Tolkien, ao tratar sobre o valor da fantasia, dizia que sua função é a de representar as belezas e maravilhas do mundo natural que cerca às pessoas. Ele acreditava que o material para a criação da fantasia está sempre ao nosso redor, mostrando assim a força da fantasia, que amplia nossa visão sobre o mundo real. J.R.R. Tolkien, como é conhecido internacionalmente, ficou órfão muito jovem. Conviveu com o pai ainda menos tempo do que com a mãe, já que nunca mais o vira após ter deixado a África do Sul. Apesar de ter perdido a mãe aos doze anos de idade, ao estudarmos sobre sua trajetória, percebemos a grande influência que ela teve em sua vida, crenças, e também em suas criações literárias. Mabel Suffield, apesar de vir de uma família Protestante, converteu-se ao Catolicismo indo contra a vontade de seus próprios pais. Por esse motivo eles a evitaram, o que colaborou para que ela se envolvesse cada vez mais com a religião cristã, influenciando seus filhos a fazer o mesmo. Eles inclusive tinham como amigo muito próximo um padre chamado Francis, que após o falecimento de Mabel, tornou-se tutor dos meninos Tolkien. Ronald considerava o Padre Francis, em suas próprias palavras, como pai. Inúmeros acontecimentos e experiências tristes, como a perda do marido e o desentendimento com os familiares, fizeram com que Mabel adoecesse e perecesse, deixando 12 os filhos sob os cuidados do padre Francis Xavier Morgan, como dito anteriormente. As circunstancias que contribuíram para a morte prematura de Mabel, fizeram Ronald a considerar uma mártir e a prosseguir na religião escolhida pela mãe como forma de honrá-la e homenageá-la. Posteriormente, tal influência se fez presente também em suas grandes obras, reconhecidas e exaltadas ao redor de todo o mundo. Segundo Michael White, em sua biografia sobre o autor denominada J.R.R. Tolkien: O Senhor da Fantasia, a devoção de Tolkien ao catolicismo era provavelmente a coisa mais importante em sua vida; ele era quase um cristão fanático, um fato que se tornava claro para qualquer um logo após conhecê-lo. Ele habitualmente referia-se a Cristo com “Nosso Senhor” e possuía uma convicção inabalável na força da oração, acreditando que havia “ganhado” histórias depois de rezar e que as preces haviam curado membros de sua família quando estavam doentes. Um amigo, George Sayers, disse que “Tolkien era um católico romano muito rígido. Ele era bastante conservador e antiquado.” (WHITE, 2013, p.193). Apesar de muito engajada em sua vida religiosa, Mabel Suffield não deixou de lado a vida acadêmica dos filhos, inclusive ensinando-os em casa enquanto tentavam conquistar bolsas de estudos em escolas renomadas. Mabel apresentou os contos de fadas a seus filhos, em línguas como grego e latim. Então, somado à herança do gosto por realidades fantasiosas, o fascínio que Tolkien sempre teve pelas línguas antigas também deve à sua mãe. Desde jovem, Ronald fora apaixonado por linguística. Cursou faculdade de Letras em Exeter e mais tarde, sua carreira acadêmica teve início na Universidade de Leeds, onde ele ocupava o posto de professor de Literatura Inglesa. Posteriormente tornou-se Filólogo, Professor Universitário de Anglo-Saxão, e também Professor de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford, onde lecionou entre 1925 e 1959. Durante a Primeira Guerra Mundial, Tolkien fora convocado, e muito do que viveu naqueles dias terríveis serviu como fonte de inspiração para suas obras de maior sucesso. Foi neste período, inclusive, que Tolkien iniciou O Livro dos Contos Perdidos (The Book of Lost Tales), que mais tarde se transformaria em O Silmarillion (The Silmarillion). De acordo com Christopher Tolkien, filho de Ronald, como consta no prefácio da obra Os Filhos de Húrin, O Livro dos Contos Perdidos fora a primeira obra de literatura fantástica realizada por seu pai. Nessa obra apareceram pela primeira vez os Valar, o Criador Ilúvatar, o grande Inimigo Melkor (Morgoth), bem como homens, elfos, orcs e inúmeras criaturas, além das terras onde se passam os contos. 13 J.R.R. Tolkien casou-se com Edith Bratt em 1916, pouco antes de ser convocado para a Guerra. Edith era três anos mais velha que Ronald, ele a conhecera aos dezesseis anos de idade, quando ambos residiam na mesma pensão. Logo começaram a se aproximar e a namorar, porém, o tutor de Ronald, Padre Francis, ficou preocupado que a relação dos dois pudesse pôr em risco os estudos do rapaz, e o proibiu de vê-la até que atingisse a maioridade. Então, Edith e Ronald estiveram separados até que ele completasse vinte e um anos, quando ele a convenceu de romper um noivado para que pudesse, enfim, casar-se com ele. Tiveram quatro filhos, John Francis, Michael Hilary, Cristopher John e Priscilla Anne, e juntos permaneceram até o fim de suas vidas. Mesmo com o gigantesco sucesso e reconhecimento que alcançou com O Hobbit e O Senhor dos Anéis, dos quais ele pôde usufruir ainda em vida, a maior paixão de Tolkien e a obra, da qual ele mais se orgulhava, apesar de inconcluída, era O Silmarillion. Infelizmente, o livro só fora publicado após sua morte. O Silmarillion, editado e publicado por seu filho Christopher Tolkien, chegou às livrarias no ano de 1977. Os apaixonados por Tolkien consideram-na uma obra muito bela, que por vezes pode ser complexa e difícil de ler, graças à quantidade de fatos, nomes, e detalhes que a compõe. Tolkien produziu três versões distintas de O Silmarillion: “O esboço”, “O Quenta” (Ou “Breve História dos Noldoli”, escrita por volta de 1930) e a mais detalhada das três, o “Quenta Silmarillion”. [...] O “Quenta Silmarillion” era o principal manuscrito de trabalho e foi abundantemente anotado e revisado. A primeira tarefa de Cristopher Tolkien foi produzir uma versão consistente e concluída de O Silmarillion a partir da vasta coleção de papéis. Foi algo que Tolkien nunca conseguiu fazer por si só, e seus manuscritos precisavam da astúcia de alguém próximo ao inventor da mitologia, que entendesse a Terra-Média quase tanto quanto seu criador, mas que fosse objetivo o suficiente para conseguir editá-los e publicá- los. (WHITE, 2013, p.222). O livro é divido em cinco partes. A primeira é Ainulindalë, onde há descrição da criação de Eä, também denominada Arda (a Terra) – a configuração inicial da Terra-Média, “o mundo que é”. Também somos introduzidos ao Criador de todo esse universo, Eru Ilúvatar. Já na segunda parte, Valaquenta, há a descrição dos Valar, os deuses da Terra- Média. Entre esses seres sobrenaturais, há forças do bem e do mal. O mal é representado pelo personagem Melkor, que podemos facilmente relacionar ao anjo caído, Lúcifer. Apesar de descrever uma mitologia pagã, a influência religiosa se faz presente em muitos aspectos dessas partes iniciais da obra. 14 Seu filho John, que se tornou padre católico, declarou que o catolicismo “atravessava todo o pensamento, as crenças e tudo o mais [de seu pai]”. Não surpreende, então, que Tolkien tenha sido compelido a colocar referências sutis ao cristianismo e à tradição bíblica no cerne de uma história pagã. (WHITE, 2013, p.913). Em Quenta Silmarillion, terceira e maior parte da obra, nos são apresentados fatos que ocorreram durante a denominada Primeira Era de Arda. É aqui que somos apresentados aos anões, aos Filhos de Ilúvatar (elfos e homens), também à criaturas malignas, e diversos contos sobre personagens e acontecimentos como guerras, conquistas e fatos importantes dos milhares de anos que precederam a Guerra do Anel em O Senhor dos Anéis. Além da guerra pelas Silmarils, que dá título ao livro, é em Quenta Silmarillion que aparece pela primeira vez a história e o personagem que protagonizam este trabalho: Túrin Turambar. Voltando brevemente aos rascunhos e escritos de J.R.R. Tolkien durante a Primeira Guerra Mundial, Christopher Tolkien diz, entre os Contos perdidos havia três muito mais extensos e elaborados, todos tendo como tema os homens e os elfos: O conto de Tinúviel (que aparece de forma abreviada em O Senhor dos Anéis como a história de Beren e Lúthien, que Aragorn contou aos hobbits no Topo do Vento, escrita por meu pai em 1917), Turambar e o Foalókë (Túrin Turambar e o Dragão, que certamente já existia em 1919, se não antes) e A Queda de Gondolin (1916-17). (TOLKIEN, 2014, p.11). Todos esses contos citados acima, constam na terceira parte de O Silmarillion. A quarta parte do livro é denominada Akkallabêth. Se passa durante a Segunda Era e descreve a ruína e queda de Númenor, um grande império construído pelos homens, e destruído graças à combinação fatal de ganância e forças malignas. Por fim, Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, quinta e última parte que compõe a obra, reúne breves relatos de acontecimentos que levaram à Guerra do Anel e ao que posteriormente viria a compor o enredo de O Senhor dos Anéis, que ao ser publicado também fora divido e deu origem à três livros: A Sociedade do Anel, As Duas Torres e O Retorno do Rei. Em uma carta datada em 1951 (que pode ser encontrada na obra As Cartas de J.R.R. Tolkien, com a denominação de Carta 131), na qual detalha de maneira extensa sua obra publicada três anos depois, A Sociedade do Anel, o Professor Tolkien discorre sobre sua ambição, tempos atrás (meu ânimo decaiu muito desde então) eu pretendia criar um corpo de lendas mais ou menos conexas, abrangendo desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor produzindo esplendor a partir de vastos planos de fundo [...] Eu 15 comporia integralmente alguns dos grandes contos e deixaria muitos apenas esboçados, localizados no esquema. (CARPENTER, p.243). De acordo com Christopher Tolkien, graças a essa reminiscência fica clara a intenção de seu pai de relatar alguns contos de O Silmarillion de forma muito mais elaborada. Desse modo, parece inquestionável, a julgar por suas próprias palavras, que, caso pudesse completar narrativas finais e acabadas na escala que desejava, meu pai considerava os três “Grandes Contos” dos Dias Ancestrais – “Beren e Lúthien”, “Os Filhos de Húrin” e “A queda de Gondolin” – obras suficientemente completas, que não demandavam um conhecimento do grande corpo de lendas conhecido como Silmarillion. Por outro lado, como meu pai também observou, o conto dos Filhos de Húrin é parte integrante da história dos elfos e dos homens nos Dias Ancestrais,e há necessariamente um bom número de referêcias a acontecimentos e circunstâncias dessa história mais ampla. (TOLKIEN, 2014, p.12). Postumamente, também compilados por Christopher Tolkien, foram lançadas obras que complementam as histórias de O Silmarillion, os livros: Contos Inacabados de Númenor e da Terra Média (Unfinished Tales of Númenor and Middle-Earth), e Os Filhos de Húrin (Narn I Chîn Húrin – The Children of Húrin). Contos Inacabados, como também é chamado, foi publicado em 1980 e é dividido em quatro partes. A primeira é referente à Primeira Era, e contêm fatos que descrevem a chegada de Tuor a Gondolin e também um relato detalhado de Cristopher Tolkien acerca de “O conto dos Filhos de Húrin” (Narn I Hîn Húrin). A segunda parte se refere ao antigo reino de Númenor, que existiu durante a Segunda Era do Mundo. A terceira parte detalha alguns acontecimentos que ocorreram durante a Terceira Era, que servem como introdução para os enredos de O Hobbit e O Senhor dos Anéis, que cronologicamente de acordo com o conteúdo dos livros, vêm depois. Por fim, a parte final do livro é dedicada às definições de Drúedains, Istaris e Palantíris. Os Filhos de Húrin, também chamado de Narn I Chîn Húrin, foi publicado há quase uma década, em 2007. Como o próprio título adianta, a narrativa traz a trágica história dos descendentes do guerreiro Húrin. A obra, assim como o enredo e os personagens, serão tratados de maneira mais detalhada no próximo capítulo deste trabalho. No ano de 2017, está previsto o lançamento de uma terceira obra complementar, a história que Tolkien considerava ser a mais importante dos Dias Ancestrais: Beren e Lúthien. Tamanho era o apreço que o autor tinha pelo conto, que em sua lápide foi gravado o nome de Beren. Da mesma maneira, na lápide de Edith está o nome de Lúthien. 16 Embora não se encaixe propriamente na definição de obra complementar, há outro livro relacionado ao universo da Terra-Média de enorme importância para o estudo aqui apresentado: A História de Kullervo. O livro foi lançado no Brasil em 2016. Editado por Verlyn Flieger, seu enredo é baseado no mito finlandês do Kalevala. Tolkien escrevera a história de Kullervo, filho de Kalervo, há aproximadamente um século, portanto trata-se de um de seus primeiros escritos. O autor deixa clara a relação do personagem principal com um descendente distante: Túrin Turambar. A história “do infeliz Kullervo”, como o próprio autor o definira, assim como os filhos de Húrin, também carrega um desfecho trágico, o que torna ambas as obras bastante peculiares em comparação ao estilo dos outros romances de Tolkien. Verlyn Flieger, editora do livro e renomada especialista em mitologia, escreveu: Mas a maior importância da História de Kullervo, como observado, é o fato de ser preliminar de uma das narrativas fundamentais de seu legendário, Os filhos de Húrin, pois seu personagem central é o percursor evidente do protagonista daquela historia, Turin Turambar. Tolkien também mencionou outros modelos de Túrin, tais como a Edda islandesa, da qual emprestou o episódio da morte violenta do dragão, e o Édipo de Sófocles, que, como Túrin, é (conforme definido anteriormente) um herói trágico em busca de sua própria identidade. (TOLKIEN, 2016, p.17). A obra denominada O Hobbit (There and Back Again – Lá e de Volta Outra Vez) foi o primeiro grande sucesso de Tolkien. Publicado em 1937, é um livro infantil que narra as aventuras de Bilbo Bolseiro, um dos seres fantasiosos criados pelo Professor: um hobbit. Os hobbits são criaturas pequeninas e amigáveis, prezam pelo descanso e gostam de levar uma vida tranquila. Bilbo não é um hobbit comum, acompanhado pelo mago Gandalf e uma comitiva de treze anões liderada por Thorin Escudo de Carvalho, Bilbo deixa o conforto de sua casa no Condado e parte rumo à Erebor, com o intuito de auxiliar os anões a recuperar a Montanha Solitária e o vasto tesouro que ali se encontrava, dominados pelo temível dragão Smaug. Durante a jornada, nos deparamos com diversas situações e personagens. É em O Hobbit que somos introduzidos pela primeira vez, a Smeagol e ao Um Anel – personagem e acessório, respectivamente, importantíssimos no enredo da próxima obra a ser citada, O Senhor dos Anéis. O sucesso de O Hobbit tomou proporções tão grandes, que a editora do livro pediu a Tolkien que escrevesse uma continuação sobre ele. Assim, o Professor começou a trabalhar no que viria a se tornar a trilogia O Senhor dos Anéis. 17 O Senhor dos Anéis foi escrito por J.R.R. Tolkien entre os anos de 1937 e 1949. A verdadeira intenção de Tolkien era publicar a obra como volume único e acompanhada pelo grandioso Silmarillion, que ainda não estava concluído. Porém, após muitos anos discutindo com editoras, Tolkien deu o braço a torcer e dividiu a obra em três livros: A Sociedade do Anel (The Fellowship of The Ring), As Duas Torres (The Two Towers), e O Retorno do Rei (The Return of the King). Da mesma maneira que O Hobbit, a história de O Senhor dos Anéis se passa durante a Terceira Era de Arda, porém em um período em que as forças sombrias de Sauron, servo de Melkor, haviam ganhado poder novamente. Havia guerras, destruição e ruínas se espalhando por toda a vasta Terra-Média. O grande objetivo dos personagens principais é o de não permitir que o poderoso Um Anel caia novamente nas mãos de seu criador, Sauron. Hobbits, homens, elfos, anões, magos e criaturas do bem, se unem para combater as forças inimigas. A Sociedade do Anel, criada com a intenção de escoltar o portador do Um Anel (Frodo) à Mordor para que lá o acessório fosse destruído, é composta por nove personagens: os hobbits Frodo, Samwise, Merry e Pippin, o Mago Gandalf, os nobres homens Aragorn e Boromir, o elfo Légolas e o anão Gimli. Ao longo do trajeto, cada um dos personagens acaba por seguir os rumos que o destino lhes reservara. No ano de 1962, foi pulicado um livro de poesias de Tolkien sobre um dos personagens que cruzam o caminho de Frodo durante sua jornada. O livro é chamado As Aventuras de Tom Bombadil (The Adventures of Tom Bombadil), que apesar de ser um personagem que aparece, de certa forma, brevemente, é uma das figuras que despertam maior curiosidade nos leitores. Muito mais elaborado que sua obra antecessora, O Senhor dos Anéis deu ainda mais notoriedade ao nome de Tolkien. Estima-se que tenha sido vendida ao redor do mundo, até os dias atuais, uma quantidade superior a 300 milhões de exemplares de O Hobbit e O Senhor dos Anéis juntos. No entanto, é seguro afirmar que Tolkien sentia certo desconforto em relação ao sucesso que havia atingido. Sua real intenção não era obter tamanho renome no mundo comercial, e sim, que seu universo criativo pudesse ser verdadeiramente compreendido. Anos mais tarde, O Hobbit e O Senhor dos Anéis foram convertidos em algumas das produções cinematográficas mais famosas de todo o mundo. Ao todo, somam seis filmes 18 que englobam o Universo e as histórias de Tolkien, contendo algumas modificações em seus roteiros ao serem comparados ao material de origem. Dirigidos por Peter Jackson, os filmes lhe garantiram bilhões de dólares e muitos prêmios renomados, incluindo dezessete Oscars. Embora não tenham contado com o auxilio da família Tolkien para o desenvolvimento dos filmes, as produções cinematográficas contribuíram muito para que os títulos criados por J.R.R. Tolkien permanecessem em evidência, alavancando ainda mais a quantidade de publicações e vendas ao redor do mundo. Apesar de ter sido precedido por autores do mesmo gênero, que não se encaixavam na ficção científica da época, J.R.R. Tolkien é conhecido mundialmente como o pai da Fantasia, tamanho impacto que seus livros causaram nos leitores e no universo literário. Muitos dos grandes títulos e obras de diversos autores, como por exemplo, As Crônicas de Gelo e Fogo, Star Wars, a saga Harry Potter, e segundo o próprio Tolkien, inclusive a famosa obra (de autoria seu amigo próximo por muitos anos, C.S. Lewis), As Crônicas de Nárnia, têm fortes influências e referências ao universo criado pelo Professor. Em termos de popularidade global, o gênero fantástico é hoje um dos mais importantes, mas quando Tolkien começou a escrever, a “ficção fantástica” (ou os “romances épicos” como é chamada por alguns) estava muito à margem e era sempre incluída entre as obras seminais de ficção científica. No entanto, a fantasia tem uma linhagem própria, longa e distinta. Há muitas e variadas discussões sobre quem foi o primeiro autor do gênero, assim como ainda há algum debate sobre o que constitui a fantasia e como ela se distingue da ficção científica. (WHITE, 2013, p.87). Citando novamente a biografia escrita por Michael White, ele escreve sobre Tolkien, ele era a pessoa perfeita para criar uma mitologia da Terra-Média, pois o autor de um trabalho como este precisava combinar uma imaginação disciplinada e ativa com uma compreensão da linguagem. As pessoas se surpreendem com frequência ao saber que Tolkien era um acadêmico em tempo integral e escrevia ficção, especialmente à noite e em momentos curtos; certamente, muitos de seus colegas e professores em Oxford ficaram assustados pelo que Tolkien havia feito quando seus livros tornaram-se famosos. Mas foi, sobretudo, por casa dessa dupla habilidade que Tolkien conseguiu produzir uma cultura fantástica, que era ao mesmo tempo hermética e consistente. Como Tolkien havia aprendido quando era um jovem garoto, a língua é mais do que meras palavras. (WHITE, 2013, p.83). White acredita que a apreciação de Tolkien pelo conceito de mito, deveu-se graças a seu estudo de línguas antigas, e que a partir daí, o Professor pôde começar a estruturar sua própria mitologia para construção de um universo ficcional. Combinando o apreço aos mitos com uma grande imaginação para criar personagens, lugares e línguas, somados à disciplina 19 para escrevê-los, Michael White revela que a terceira grande motivação de Tolkien foi seu desejo de criar uma mitologia que seria própria da Inglaterra. 20 3. A obra. A história de Os Filhos de Húrin, como dito anteriormente, foi um dos mais importantes Contos Perdidos escritos por Tolkien durante o período em que fora convocado para lutar na Primeira Guerra Mundial. Entretanto, Christopher Tolkien afirma que seu pai trabalhou em certo poema, referente a um dos principais personagens que viveu durante os Dias Ancestrais, na época que lecionava em Leeds na década de 1920, nos anos que se seguiram ao abandono dos Contos perdidos antes que fossem completados, meu pai deu as costas à composição em prosa e começou a trabalhar em um longo poema intitulado Túrin, filho de Húrin, e Glórund, o Dragão, título mais tarde alterado numa versão revista, para Os Filhos de Húrin. (TOLKIEN, 2014, p.287). Christopher afirma que a versão aliterante do conto de Túrin Turambar, é o mais longo poema criado por Tolkien, somando uma quantidade superior a dois mil versos. Porém, o Professor nunca concluiu a escrita e a abandonou quando chegou ao momento do ataque do Dragão em Nargothrond, apenas prosseguindo a criação do enredo mais tarde, em prosa. O conto que narra a vida dos filhos de Húrin foi publicado pela primeira vez nas páginas de O Silmarillion, na terceira parte do livro denominada “Quenta Silmarillion”. É o capítulo número XXI e recebeu o título De Túrin Turambar. Apesar de conter vários elementos que nos levam a imaginar certo desfecho comum dos contos de fadas, o decorrer dos fatos do amaldiçoado destino de Túrin surpreende a todos àqueles que imaginavam que a história pudesse ter um final feliz. As vidas dos filhos de Húrin foram completamente dominadas pelo ódio de Morgoth, o Senhor do Escuro. Anos mais tarde, foi lançado o livro Contos Inacabados de Númenor e da Terra Média, no qual também consta em sua primeira parte, uma narrativa sobre os filhos de Húrin mais detalhada que a primeira publicada em O Silmarillion. A narrativa recebeu o nome de Narn I Hîn Húrin, que significa O Conto dos Filhos de Húrin. O capítulo, o segundo do livro, é dividido, sem numeração, entre os seguintes títulos: A infância de Túrin, As palavras de Húrin e Morgoth, A partida de Túrin, Túrin em Doriath, Túrin entre os proscritos, Do anão Mîm, O retorno de Túrin a Dor-lómin, A chegada de Túrin a Brethil, A viagem de Morwen e Niënor a Nargothrond, Niënor em Brethil, A chegada de Glaurung, A morte de Glaurung, e por fim, A morte de Túrin. 21 Ao final do capítulo, consta um apêndice, onde Christopher Tolkien, responsável pela edição do livro, faz certa comparação entre as narrativas Narn I Hîn Húrin e a publicada anteriormente em O Silmarillion. Há também comentários e observações feitos por Christopher acerca dos acontecimentos, personagens e intenções de seu pai ao criar o conto. O próprio Christopher afirma que a evolução da lenda de Túrin Turambar é uma das mais complexas dentre os elementos narrativos que compoem as histórias da Primeira Era da Terra-Média. Talvez esse seja um dos principais motivos que o levaram a compilar os manuscritos do pai, criando assim um novo livro: Os Filhos de Húrin (Narn I Chîn Húrin), objeto principal a ser estudado neste trabalho. Acerca da lenda de Túrin Turambar, Christopher publicou na introdução da obra um parecer sobre a Terra-Média dos Dias Ancestrais, onde fez a seguinte observação: O caráter de Túrin era de profunda importância para meu pai, e valendo-se de uma narrativa direta e urgente ele chegou a um comovente retrato de sua infância, essencial ao contexto: sua severidade e falta de alegria, seu senso de justiça e compaixão; de Húrin também, rápido, alegre e otimista, e de sua mãe Morwen, reservada, corajosa e altiva; além da vida doméstica na fria região de Dor-lómin durante os anos já cheios de temor que se seguiram depois de Morgoth ter rompido o Sítio a Angband, antes de Túrin nascer. Mas tudo isso foi nos Dias Ancestrais, na Primeira Era do Mundo, num tempo inimaginavelmente remoto. (TOLKIEN, 2014, p.15). Christopher Tolkien relatou que ao organizar Os Filhos de Húrin, tentou construir uma narrativa coerente, sem interferências editoriais. Ele afirma que o resultado da obra deu- se graças ao estudo muito mais completo da enorme quantidade de manuscritos deixados por seu pai. Embora tenham sido ambas derivadas do mesmo material de pesquisa, as versões do conto de Túrin em Narn I Chîn Húrin e a dos Contos Inacabados diferem principalmente pelo fato de a versão anterior se tratar de um texto incompleto, sendo apenas um elemento dentre todos os que compuseram um livro grande. Como citado anteriormente, Os Filhos de Húrin foi lançado no Brasil no ano de 2007. Organizado por Christopher Tolkien, o romance possui ao todo 336 páginas, constituídas por prefácio, introdução, nota sobre pronúncia, enredo, genealogias, apêndice, lista de nomes e mapas. Há também várias ilustrações criadas por Alan Lee. A obra se divide em dezoito capítulos, a maioria deles têm títulos bastante semelhantes, algumas vezes idênticos aos da narrativa Narn I Hîn Húrin publicada em Contos 22 Inacabados. Os capítulos são enumerados por algarismos romanos e apresentados na seguinte ordem: I - A infância de Túrin II - A Batalha das Lágrimas Sem Conta III - As palavras de Húrin e Morgoth IV - A partida de Túrin V - Túrin em Doriath VI - Túrin entre os proscritos VII - Sobre o anano Mîm VIII - A terra do Arco e do Elmo IX - A morte de Beleg X - Túrin em Nargothrond XI - A queda de Nargothrond XII - O retorno de Túrin a Dor-lómin XIII - A chegada de Túrin a Brethil XIV - A viagem de Morwen e Niënor a Nargothrond XV - Niënor em Brethil XVI - A chegada de Glaurung XVII - A morte de Glaurung XVIII - A morte de Túrin Em relação ao foco narrativo da obra, o enredo é narrado em terceira pessoa e o narrador é classificado como onisciente neutro. Consideramos como personagens principais desta obra, os seguintes seres: Túrin, Niënor, Húrin, Melkor (Morgoth), Glaurung, Morwen, Thingol, Beleg, Gwindor, Finduílas e Lalaith. 23 Túrin e Niënor são os protagonistas, filhos do valente guerreiro Húrin, e de sua esposa Morwen. Lalaith, apesar de morrer ainda criança, também foi sua descendente e quem a conheceu jamais se esqueceu de sua beleza semelhante à dos elfos. Melkor é um poderoso Vala, ser que corresponde aos deuses de outras realidades, dotados de poderes sobre-humanos. Conhecido também por Morgoth Bauglir, era muito ambicioso, o que o tornou o mais cruel dos seres que já existiu na Terra-Média. Morgoth criou seu próprio exército de criaturas malignas, composto em grande maioria por orcs, mas contando também com inúmeras quantidades de bestas e monstros impiedosos. Uma de suas criações mais hediondas foi o dragão Glaurung, criatura gigantesca e cruel, que se arrastava pelos caminhos da Terra-Média destruindo tudo o que encontrava pela frente. Thingol governava o reino de Doriath ao lado de sua esposa, a Maia (espécie de feiticeira) Melian. Thingol e Melian eram os pais de Lúthien Tinúviel, famosa personagem de Tolkien que protagoniza o importante conto de Beren e Lúthien. Beleg Arcoforte fora o melhor amigo de Túrin, e morava no reino de Doriath. O elfo Gwindor, também amigo de Turambar, residia em Nargothrond e era apaixonado pela bela princesa Finduílas, que, por sua vez, amava a Túrin. Como dito anteriormente, a história se passa durante a Primeira Era de Arda, e todos os lugares em que Túrin viveu e lutou, bem como a fortaleza de Melkor, estão situados em uma região denominada Beleriand. Beleriand é a região onde se passaram a maioria dos acontecimentos dos Dias Ancestrais. Ela foi destruída ao fim da Primeira Era, invadida pelas águas do oceano, e não consta na configuração posterior do mapa da Terra-Média. A publicação da obra A História de Kullervo, que chegou às livrarias do Brasil no final deste ano, contribuiu muito para o enriquecimento das informações que constam neste trabalho. Editado por Verlyn Flieger, especialista em estudos de mitos e em mitologia comparada, o livro conta a história de Kullervo, ancestral de Túrin. O enredo é baseado no mito finlandês do Kalevala, e o protagonista é descrito como mal-humorado, vingativo, grosseiro e possuidor de características físicas pouco atraentes. 24 Sobre a obra, Flieger afirma que não se trata apenas do conto mais antigo criado por Tolkien, mas também de sua primeira tentativa de criar um mito em prosa e escrever uma tragédia. Ela define o conto como percursor da “mitologia da Inglaterra” que o Professor tanto se esforçou para deixar como legado. Segundo Verlyn, sua narrativa sobre a saga do infeliz Kullervo é a matéria-prima da qual derivou uma de suas histórias mais poderosas, a dos filhos de Húrin. Ainda mais especificamente, o personagem de Kullervo foi o germe do mais – alguns diriam do único – trágico herói da mitologia de Tolkien, Túrin Turambar. (TOLKIEN, 2016, p.9). Podemos dizer, portanto, que a afirmação de Humphrey Carpenter, encontrada em seu livro J.R.R. Tolkien: uma biografia, sobre os acontecimentos descritos sobre a vida de Túrin Turambar terem sido inspirados no conto de Kalevala (p.109), se mostrou correta. A história de Kullervo, de certa forma antecipa os estilos narrativos das obras tolkenianas. O livro é considerado um passo importante que Tolkien deu rumo à criação de O Silmarillion. Assim como Os Filhos de Húrin, a narrativa combina gêneros, categorias e formas. Pode-se dizer que ambas são ao mesmo tempo contos, tragédias e mitos. 25 3.1. Resumo do enredo. O conto dos Filhos de Húrin (Narn I Chîn Húrin) se passou durante a Primeira Era do Mundo, quando Melkor (um Vala, deus poderosíssimo), chamado também Morgoth e Morgoth Bauglir, habitava seu reino escuro em Angband. Húrin, filho de Galdor, foi um nobre guerreiro. Era descendente da casa de Hador, portanto considerado amigo dos elfos. Também fora, junto com seu irmão Huor, um dos poucos homens a adentrar no Reino Oculto de Gondolin, governado pelo rei Turgon. Vivia em Dor-lómin, com sua mulher Morwen e dois filhos pequenos, um menino chamado Túrin e uma menina, Lalaith. Porém, graças aos ares nocivos exalados da fortaleza maligna de Morgoth, Lalaith e Túrin ficaram doentes e a garota acabou não resistindo. Quando ocorreu a grande e terrível Batalha das Lágrimas Incontáveis (Nirnaeth Arnoediad), Húrin deixou suas terras e partiu com seus homens para guerrear contra as forças do mal de Morgoth. Porém, acabou sendo capturado pelo Senhor do Escuro, que estava furioso por Húrin ter sido o responsável por ajudar Turgon em sua fuga, fazendo-o se tornar o alto rei noldor da Térra-Média, uma vez que o atual rei havia perecido. Morgoth também tentou extrair informações sobre Gondolin de Húrin, mas o guerreiro se recusou a trair os elfos, provocando ainda mais a ira do Inimigo. Mais uma vez, piorando a situação, Húrin, tamanho era seu orgulho, acabou desafiando o poder das forças obscuras do Vala. Então, Morgoth amaldiçoou sua família, prometendo persegui-la e tornar a vida dos filhos de Húrin miserável, ao mesmo tempo em que o aprisionou em um pico de uma montanha para que ele pudesse assistir a toda ruína de seus descendentes. Morwen, que estava grávida novamente, temia pela segurança do jovem Túrin, pois os servos do mal rondavam pela região, escravizando as famílias que remanesciam após a batalha, ou assassinando-os. Então, Morwen decidiu enviar Túrin para Doriath, reino élfico que era governado por Thingol e sua esposa Melian, a Maia. Em Doriath, Thingol em respeito a Húrin e devido ao parentesco da família de Morwen com Beren Maneta, adotou Túrin e o criou como seu próprio filho. Enquanto isso, Morwen resolveu permanecer em Dor-lómin e deu a luz à uma menina, a quem chamou Niënor. 26 Túrin cresceu e se tornou um homem belo, forte, mais alto que a maioria dos homens comuns e destemido guerreiro, lutando contra orcs ao lado de seu amigo Beleg Arcoforte. Não tardou para que Túrin começasse a ser temido pelos servos de Morgoth, que o reconheciam graças ao elmo de dragão dourado que utilizava durante as batalhas, presente recebido de Thingol e herança da casa de Hador. Porém, seu coração nunca esquecera a mãe e a irmã que permaneceram em sua cidade natal, e se ressentia por isso. Certo dia, Túrin acidentalmente causou a morte de Saeros, um dos conselheiros de Thingol. Saeros não simpatizava com Túrin, e nesta ocasião havia lhe atacado pelas costas. O filho de Húrin, com medo da sentença que receberia de Thingol, fugiu e acabou encontrando um grupo de proscritos na região de Brethil. Túrin logo se tornou líder dos proscritos e adotou o nome de Neithan, o Injustiçado. Porém, enquanto o julgamento de Túrin em Doriath acontecia mesmo sem sua presença, Thingol ouviu os relatos sobre o que realmente levara à morte de Saeros e perdoou o filho adotivo, permitindo que Beleg fosse procurá-lo e o trouxesse de volta ao reino. Thingol presenteou Beleg com uma espada, que era chamada Anglachel. Melian, nesse momento, advertiu Beleg sobre a espada. Anglachel havia sido forjada por um elfo de coração negro, portanto também continha incrustrada em si, a malícia de seu criador. Beleg encontrou Túrin vivendo em Amon Rûdh, onde o grupo liderado por Túrin, havia capturado um anão chamado Mîm, que foi obrigado a abrigar os proscritos em seu esconderijo subterrâneo. Desde àqueles tempos na Primeira Era, era bastante comum a rivalidade entre anões e elfos, que tendiam a se odiar. Portanto, é seguro afirmar que a presença de Beleg deixava Mîm furioso. Certo dia, ao ser capturado por um grupo de orcs, o anão traiu a Túrin e revelou aos inimigos o local de seu esconderijo. Os orcs atacaram o grupo de Túrin de surpresa, e mataram todos os homens, exceto o líder e o elfo. Beleg escapou, enquanto Túrin foi aprisionado com a intenção de ser levado a Angband. Enquanto procurava novamente por Túrin, Beleg encontrou Gwindor, um elfo que havia conseguido escapar dos domínios de Morgoth. Gwindor estava fraco e machucado, Beleg curou suas feridas, e então prosseguiram pelo caminho. Já próximos a Angband, Beleg encontrou Túrin desacordado. Ele e Gwindor carregaram-no para longe do acampamento dos orcs. 27 Quando Beleg se aproximou para libertar o amigo, Anglachel escorregou e caiu diretamente no pé de Túrin, que acordou assustado e começou a lutar com o elfo, pensando se tratar de um inimigo. Na escuridão da noite, enquanto caía uma chuva intensa, Túrin conseguiu desarmar Beleg e o atingiu com um golpe mortal com a própria Anglachel. Ao perceber o que havia acabado de acontecer, Túrin ficou em estado de choque, beirando à loucura. Não podia acreditar que havia matado seu melhor amigo. Então, Gwindor o levou até as águas do rio Ivrin, domínio do Vala Ulmo, e ao bebê-las, a loucura de Túrin foi curada. Eles partiram então para Nargothrond, lar de Gwindor, onde Túrin resolveu esconder sua identidade para fugir de seu destino amaldiçoado. Passou então a se chamar de Agarwaen, que significa Sujo de Sangue. A beleza do filho de Húrin e seu porte e inteligência, que se assemelhavam aos dos elfos, lhe rendeu a alcunha de Adanedhel, o Homem-Elfo. Por fim, a espada que antes pertenceu a Beleg, fora reforjada e chamada de Gurthang, Ferro da Morte. O reino de Nargothrond era governado pelo rei Orodreth, do qual Túrin se tornara conselheiro devido à sua sabedoria. Orodreth tinha uma filha chamada Finduílas, que fazia Túrin se lembrar de sua irmã Lalaith. Não tardou para que Finduílas se apaixonasse por ele, mas o coração de Túrin não correspondia seu amor, ele a considerava sua superior e tinha por ela imenso respeito. Enquanto Túrin estava em Nargothrond, sua mãe Morwen e a irmã Niënor finalmente resolveram ir até Doriath para reencontrá-lo. Lá recebem a notícia de que Túrin estava no reino de Orodreth, que havia sido atacado pelas forças do Inimigo Um dos seres mais maléficos criado por Morgoth Bauglir foi o dragão Glaurung. Glaurung era chamado “o pai dos dragões”, pois havia sido o primeiro deles a andar sobre Arda. Não possuía asas, mas além de seu tamanho gigantesco, sua pele era dura como aço. Morgoth também lhe dera o poder da fala e da hipnose, assim, o dragão persuadia outros seres a agir conforme sua vontade. Os dragões no universo tolkieniano são criaturas cruéis e bastante ambiciosas, facilmente atraídos por grandes tesouros. Em Nargothrond, Orodreth guardava grandes quantidades de ouro e preciosidades, então o reino passou a ser alvo da ambição de Glaurung. 28 Enquanto o dragão atacava e destruía Nargothrond, Túrin o viu capturar Finduílas. Essa cena, graças ao poder hipnótico de Glaurung, fez com que o filho de Húrin sentisse em seu âmago que a irmã e a mãe estavam em perigo em suas terras natais. Sem esquecer-se desse sentimento, após salvar a princesa Finduílas, Túrin parte para Dor-lómin em busca da família. Entretanto, Morwen e Niënor haviam partido de Doriath em direção a Nargothrond, com o auxilio de uma tropa de elfos, após receberem a notícia do ataque de Glaurung. O dragão, deslumbrado com o tesouro, habitava os salões do reino que agora estava em ruínas. Ao se deparar com a tropa de elfos acompanhando as mulheres, Glaurung os ataca e consegue separar mãe e filha. Morwen estava perdida, enquanto Niënor caía na hipnose do dragão. Glaurung apagou todas as memórias da irmã de Túrin, que ao despertar após o encontro com o monstro, estava despida e não se lembrava nem ao menos como falar. Enquanto isso, Túrin havia chegado em Dor-lómin e recebera a notícia de que a mãe e a irmã estavam seguras em Doriath. Aliviado, ele sentiu vontade de se reencontrar com Finduílas, que após ter sido resgatada das garras de Glaurung, havia lhe implorado para que não partisse e permanecesse ao seu lado. Quando recebeu a notícia que a princesa elfa havia morrido, passou a morar em Brethil. Lá, Túrin adotou o nome Turambar, que significa o Senhor do Destino. Certo dia, ao visitar o túmulo de Finduílas, Túrin encontrou uma mulher nua debruçada sobre ele. A jovem estava chorando, não sabia falar e nem ao menos seu próprio nome. Amparada por Túrin, a moça foi chamada de Níniel (Donzela das Lágrimas), por quem o jovem acabou se apaixonando e posteriormente casando, sem saber que se tratava de sua própria irmã. Após algum tempo, enquanto Níniel esperava um filho de Túrin, Glaurung os atacou novamente. Túrin conseguiu ferir a barriga do dragão com Gurthang, mas ao tocar o sangue da criatura, caiu desmaiado. Niníel se deparou com a cena de seu amado tombado ao lado de Glaurung, que com poucas forças, conseguiu lançar seu último e mais cruel ato de maldade. O dragão libertou a moça do feitiço, revelou a ela que seu nome era na realidade Niënor, e que aquele a 29 quem chamava de marido era Túrin, filho de Húrin. Ao retomar a consciência e perceber o que havia acontecido, Nienor pôs fim à própria vida, se lançando às águas do rio Teiglin. Mais tarde, Túrin também tomou conhecimento sobre todos os fatos que haviam ocorrido, e seguiu a irmã em ato suicida: firmou o punho de Gurthang no chão e se jogou sobre a ponta da espada. Túrin foi enterrado no mesmo local onde havia morrido, no qual o corpo de Glaurung também jazia e fora queimado, e em seu túmulo lia-se as inscrições: “TÚRIN TURAMBAR DAGNIR GLAURUNGA”, que significa Túrin, Senhor do Destino, Ruína de Glaurung, e “Nienor Níniel”. No entanto, o corpo da jovem, levado pelo rio, nunca fora encontrado. Assim chegou ao fim a triste história dos Filhos de Húrin. Cumprida a maldição imposta pelo Senhor do Escuro, Húrin, que havia assistido a tudo, fora libertado e partiu em direção ao túmulo do filho, onde encontrou pela última vez sua esposa Morwen. 30 4. A Tragédia em Tolkien. O gênero dramático denominado Tragédia é oriundo da Grécia Antiga. Surgiu graças às práticas de culto ao deus Dionísio, conhecido por ser o deus do vinho, da alegria, da exuberância, entre outras diversas atribuições relacionadas a festas e a atos prazerosos. Em seus primórdios, peças teatrais trágicas eram realizadas por atores que utilizavam máscaras. A fábula presente no enredo das tragédias geralmente se refere ao mito. O mito, algumas vezes pode aparecer dotado de atitudes que em muitas culturas são consideradas transgressões como, por exemplo, incesto, patricídio, matricídio e fratricídio. Ao contrário das composições épicas, que podem abranger grande quantidade de mitos, o texto trágico se limita a tratar de apenas um. É na tragédia que o herói deixa de ser um modelo a ser seguido, e passa a gerar certos problemas através de suas ações. A brasileira Beth Brait, em sua obra denominada A Personagem, diz sobre Aristóteles, dos teóricos conhecidos, Aristóteles é o primeiro a tocar nesse problema. Ao discutir as manifestações da poesia lírica, épica e dramática, esse pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e sua função na literatura. (BRAIT, 1985, p.28). Seguindo a linha de caracterização da tragédia clássica definida por Aristóteles em sua Poética, a mudança de sorte sofrida pelo herói ao decorrer do enredo é bastante comum em textos trágicos. O sentimento de felicidade e satisfação é substituído por tristeza e infortúnios, esse fenômeno recebe a definição de catástrofe. Também há casos, onde ocorre peripetéia (peripécia), ou inversão. Nesse tipo de tragédia, as ações do herói acabam desencadeando acontecimentos opostos ao que se pretendia. Um dos exemplos mais clássicos deste termo é a peça Édipo Rei, escrita por Sófocles. O ato de reconhecimento, chamado anagnoresis, é caracterizado pela transição da consciência do herói. Ela ocorre quando o personagem passa da ignorância ao autoconhecimento. Geralmente, os erros realizados pelos heróis durante uma narrativa trágica resultam em derramamento de sangue, seja deles próprios ou de pessoas próximas e queridas. 31 Joseph Campbell faz a seguinte afirmação sobre a tragédia grega comparada ao romance moderno, encontrada em sua obra O herói de mil faces, O romance moderno, tal como a tragédia grega, celebra o mistério do desmembramento, que se configura como vida no tempo. O final feliz é desprezado, com justa razão, como uma falsa representação; pois o mundo tal como o conhecemos e o temos encarado produz apenas um final: morte, desintegração, desmembramento e crucifixão do nosso coração com a passagem das formas que amamos. (CAMPBELL, 1997, p. 15) O herói trágico, portanto, pode ser definido como uma pessoa boa, mas que por algum motivo não possui tal bondade caracterizada de forma eminente. Segundo Aristóteles, a tragédia precisa conter personagens de condição elevada, portanto, o principal signo do herói trágico consiste em seu comportamento corajoso e ousado, diferindo-o do homem comum. De acordo com Albin Lesky, em A Tragédia Grega, A peça séria de lenda heróica, tratada pela tragédia, contém em geral um acontecimento repleto de sofrimentos. Como esse acontecimento doloroso é que assegura o efeito que Aristóteles reconheceu como específico, ou seja, o desencadeamento libertador de determinados afetos, foi ele necessariamente considerado, em grau cada vez maior, como o que caracterizava propriamente a tragédia. (LESKY, 1996, p.37) Assim como Édipo, de início Túrin Turambar é descrito como belo, forte, destemido e dotado de inteligência. Porém, o destino amaldiçoado de ambos, fez com que os heróis fossem conduzidos à desgraça. De maneira oposta ao herói épico que na maioria das vezes é ajudado por seres divinos, o herói trágico se vê perseguido por elas. Há um deus que ao invés de auxiliar o herói na conquista de seus objetivos, o repudia. Especificamente no caso de Túrin e Édipo, o desfecho trágico de suas histórias é causado pelo efeito da hybris, que é justamente definida como uma inversão da ordem natural do universo determinada por deuses. A hybris é irreversível e não pode ser interrompida. No conto dos filhos de Húrin, tal fenômeno deve-se ao fato de Húrin Thalion ter desafiado o poder das forças obscuras do Vala Melkor. Ambos os heróis sofrem a culpa de pecados semelhantes: tanto Édipo quanto Túrin cometeram o ato repugnante do incesto. Além disso, enquanto Édipo lidou com as consequências por ter cometido patricídio, Túrin sofrera por ter assassinado seu melhor amigo Beleg – por quem tinha uma consideração que pode ser comparada à fraternal. 32 Mesmo isentos de intenções maliciosas, os heróis sofrem com a inevitável culpa de suas ações, assim como também se mostra inevitável o destino que lhes fora reservado. Entretanto, é seguro afirmar que uma vez que nada acontece sem a vontade divina, as coisas tampouco ocorrem sem que haja o engajamento por parte dos heróis. O trágico, portanto, deve ser compreendido como algo contra o qual as personagens não podem lutar. Sobre a maldição imposta à família de Húrin pelo Senhor do Escuro, Cristopher Tolkien escreveu: Na história de Túrin, que se chamava Turambar “Mestre do Destino”, a maldição de Morgoth parece ser vista como um poder desencadeado para produzir o mal, perseguindo suas vítimas; sendo assim, o próprio Vala caído temia que Túrin “adquirisse tamanho poder que se tornasse nula a maldição que lançara sobre ele e que escapasse ao destino que lhe fora planejado” [...]. (TOLKIEN, 2014, p.18). No conto, é o elfo Gwindor quem revela a Túrin que em Angband ouvira rumores sobre tal maldição. Irritado, Túrin diz ao amigo que ao revelar tal informação, havia invocado sobre ele seu destino, de quem ele pretendia esconder-se. Em resposta, Gwindor diz a Túrin que o destino residia nele mesmo, e não em seu nome. Citando esse fato, Christopher comenta: Esse complexo conceito é tão essencial para a história que meu pai chegou a propor para ela um título alternativo: Narn e’ Rach Morgoth, A História da Maldição de Morgoth. (TOLKIEN, 2014, p.19). Como dito anteriormente, Túrin Turambar teve um ancestral cujas características também o definem como trágico. A História de Kullervo, escrita em verso e prosa, apresenta um herói com características bastante semelhantes às de Túrin. Kullervo possui temperamento difícil, é amaldiçoado por uma mulher cuja descrição se assemelha a de uma feiticeira, e suas ações o encaminham ao destino de se apaixonar, também, pela própria irmã. 33 5. Considerações Finais. A presença da tragédia em Os Filhos de Húrin pode ser encontrada em várias passagens do romance, porém deve ser notada obrigatoriamente pelos exemplos citados no desenvolver deste trabalho. Geralmente, o herói trágico possui descendência nobre e características superiores às dos demais homens, sejam elas físicas ou comportamentais. Túrin, além de ter o sangue dos descendentes de duas das Casas Amigas dos Elfos e ser um homen alto, forte e belo, foi criado como filho adotivo pelo rei elfo Thingol, de Doriath. Consequentemente, superava a grande maioria dos homens em sabedoria e habilidades. Como presença de fator transcendental, temos a maldição imposta pelo Vala Melkor – que corresponde a um deus no Universo tolkieniano. Muitos dos acontecimentos da vida de Túrin Turambar, deveram-se ao fato de seu orgulho ter falado mais alto em muitas situações. Como, por exemplo, quando após ter provocado acidentalmente a morte de Saeros. Os elfos de Doriath pediram que o filho de Húrin voltasse aos salões do rei para que fosse julgado com justiça, e por orgulho, Túrin se recusou e fugiu. O herói trágico, como é o caso de Túrin, muitas vezes peca sem ter consciência de seus atos. Turambar não sabia que tirava a vida de seu melhor amigo, e nem que desposava a própria irmã enquanto tais situações tomavam ação. Porém, o que importa no contexto da tragédia não é a falta de intenção ao cometer erros, e sim os próprios erros cometidos. O herói então é castigado e sofre, em certos casos de maneira não merecida e cruelmente desproporcional. De maneira sucinta, podemos dizer que o trágico em Narn I Chîn Hurin, se faz presente com mais intensidade no fato de que, embora Túrin tenha tentado fugir de seu destino, morando em diversas cidades, bem como ocultando e modificando muitas vezes seu próprio nome, tais ações de nada adiantaram. Nas palavras do próprio J.R.R. Tolkien: “Assim terminou a história de Túrin, o infeliz; a pior das obras de Morgoth entre os homens do mundo antigo” (TOLKIEN, 2014, p.20). 34 O destino de Túrin Turambar e Niënor Niníel é sem dúvidas um dos mais cruéis que constam em todas as narrativas de Tolkien sobre as histórias vividas na Terra-Média. 35 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática S.A., 1985. CAMPBELL, Joseph. O herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento, 1997. CARPENTER, Humphrey. J.R.R. Tolkien: uma biografia. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CARPENTER, Humphrey & TOLKIEN, Christopher (Org). As Cartas de J.R.R. Tolkien. Curitiba: Arte e Letra, 2006. CARTER, Lin. O senhor do Senhor dos Anéis: o mundo de Tolkien. Rio de Janeiro: Record, 2003. LESKY, Albin. A tragédia grega. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. 3.ed. Christopher Tolkien (Org.). São Paulo: Martins Fontes, 2002. ___________________. Contos inacabados de Númenor e da Terra-Média. Christopher Tolkien (Org.). São Paulo: Martins Fonte, 2012. ___________________.(Org.) Narn I Chîn Húrin; O conto dos filhos de Húrin. Christopher Tolkien (Org.). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel . São Paulo: Martins Fontes, 2010. _______________. O Senhor dos Anéis: As Duas Torres. São Paulo: Martins Fontes, 2010. _______________. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. São Paulo: Martins Fontes, 2010. _______________. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 36 TOLKIEN, J.R.R. A História de Kullervo. Verlyn Flieger (Org.). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. WHITE, Michael. J.R.R. Tolkien: O senhor da fantasia. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2013.