1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências – Marília / SP Rodolfo Arruda Leite de Barros OS DILEMAS DA SOCIEDADE PUNITIVA: Reflexões sobre os Debates em torno da Sociologia da Punição. Marília 2007 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências – Marília / SP Rodolfo Arruda Leite de Barros OS DILEMAS DA SOCIEDADE PUNITIVA: Reflexões sobre os Debates em torno da Sociologia da Punição. Dissertação apresentada ao Departamento de Ciências Sociais para obtenção do título de Mestre Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Orientador: Luís Antônio Francisco de Souza Marília 2007 3 Data de Aprovação ____/____/_______ Banca Examinadora ________________________ Prof. Dr. Rivail Carvalho Rolim ________________________ Prof. Dr. Marcos César Alvarez ________________________ Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza 4 Maria Cecília, Julieta e Veridiana as mais belas, que me ensinaram tudo 5 Agradecimentos Agradeço, em primeiro lugar, à Instituição Fapesp pelo recurso financeiro, recebido no período entre 2006 e 2007. Ao longo deste três anos pesquisando, também foram incontáveis as ajudas que recebi de profissionais, familiares e amigos. Ao professor Luís Antônio Francisco de Souza que, além de me orientar neste trabalho, sempre me incentivou nos momentos de dificuldade. Luís não apenas me ajudou como orientador, como também sempre me estimulou a trabalhar em parcerias, me ensinou muitas coisas da vida acadêmica. Ao professor Marcos César Alvarez, a quem, além da admiração, devo a idéia inicial deste trabalho que agora apresento. Aos professores José Geraldo Poker, Fernando Salla e Rivail Carvalho Rolim que participaram, em momentos diferentes, de forma decisiva no meu processo de formação acadêmica. Agradeço minha mãe, Maria Cecília Cintra de Arruda, a pessoa mais importante de minha vida, a quem devo tudo o que sou. À Veridiana e Silva Colombera, pela companhia e carinho tão preciosos ao longo destes cinco anos de convivência. A todos meus familiares que me ajudaram e me possibilitaram alcançar as coisas que tenho: meu pai, Ênio Leite de Barros, minha avó, Julieta A. Leite de Barros, às minhas tias Ratiba Abdala e Marisa Leite de Barros. Agradeço especialmente à Salua Abdala e Aluízio de Arruda, que nos deixaram antes que o trabalho fosse terminado. Agradeço Eduardo Akira Azuma, grande companheiro de faculdade, por todas as suas ajudas e pela convivência sempre descontraída durante os sete anos que estudou em Marília. Renato Elias Randi, amigo que sempre foi um dos críticos mais inteligentes acerca de minha pessoa. Rodrigo de Souza Grota, o irmão que não tive. Ramon Furtado Santos, companheiro dos primórdios da vida universitária, profundo conhecedor do caso brasileiro e da psique feminina. Flávio de Souza Gomes por sua verdadeira amizade e ajuda. A todos os amigos mais próximos, em relação aos quais me sinto em dívida afetiva: Fernando Henrique Castanheira, Frederico Taha Toitio, André Oda, Pedro Henrique Gianvecchio, João Marcelo Maciel de Lima, Ulisses Coelho, Dangelis Silva, Orion Pereira Lima e Humberto Tenório Gomes. A meus amigos de juventude: Caio César Buim Zumiotti, Osvaldo Silva de Castro Júnior, Rodrigo Maniscalco Hounssel, Fabiano Minalli, Guilherme Antônio Mansano Modesto e Marcel Zirondi Barbosa. A todo o pessoal da Unesp de Marília. Em nome de todas essas pessoas, meus sinceros agradecimentos. 6 Resumo A presente pesquisa tem como objetivo investigar os principais desdobramentos ocorridos na área da punição, no período que vai de 1975 até 2001, tendo como base as análises recentes elaboradas a partir das experiências penais dos EUA, Inglaterra, França e Brasil. O período analisado tem sido apontado como um momento de mudanças estruturais intensas, que afetaram todas as esferas da vida social e que, por sua vez, geraram transformações dramáticas no funcionamento dos sistemas punitivos das sociedades contemporâneas. Os destaques indicam que há um aumento generalizado no número de pessoas encarceradas no mundo e de que os conteúdos e as formas punitivas de controle das populações têm se tornado cada vez mais intensos. Diante disto, há um consenso de que, ao contrário de funcionar como uma medida capaz de conter ou restabelecer a fragmentação crescente sob a qual estão submetidas as sociedades, a punição tem se transformado numa dimensão extremamente problemática da dinâmica social, por conta de inúmeros problemas ligados ao seu funcionamento, como a sua violência arraigada e sua incidência seletiva. Com base nestas ocorrências, esta pesquisa tem a intenção de fazer uma investigação teórica destes problemas, visando articular melhor a compreensão destes fenômenos punitivos, buscando extrair da análise um campo de problematizações para o contexto das políticas públicas brasileiras. Palavras-chave: punição – encarceramento – transformações sociais - sociologia da punição - políticas penais. 7 Abstract This research has as objective investigate the main developments occurred in the field of punishment, in the period that goes of 1975 up to 2001, having as base the recent elaborated analyses from the criminal experiences of U.S.A., England, France and Brazil. The analyzed period has been pointed as a moment of intense structural changes, that had affected all the spheres of the social life and that, in its turn, had generated drastic transformations in the functioning of the punitive systems of the societies contemporaries. The features indicate that it has an increase generalized in the number of people jailed in the world and that the contents of punitive forms of control of populations have become more intense than ever. By side of this, it has a consensus of that, in contrast to functioning as a measure capable to contain or to reestablish the increasing spalling under which the societies are submitted, the punishment has transformed into an extremely problematic dimension of the social dynamics, for account of innumerable problems on its functioning, as its intrinsic violence and its selective incidence. With base in these occurrences, this research has the intention to make a theoretical inquiry of these problems, being aimed to better articulate the understanding of these punitive phenomena, searching to extract of the analysis a field of inquiry for the context of the Brazilian public policy. Keywords: punishment – imprisonment – social change – sociology of punishment – public policy 8 O problema eu diria que não é meramente crônico é um problema insolucionável. Tira da cabeça a idéia de que a prisão vai reformar alguém, não reforma! Alguém pode se reformar na prisão a apesar da própria prisão. Não adianta a administração prisional querer que o lider da turma sejam uns bonzinhos, não são, são os piores, os piores é que são lideres, então aquilo se transforma efetivamente em que, numa escola de criminalidade. Augusto Thompson Ex-Diretor da Secretaria de Segurança do Rio de janeiro Penalista, Pesquisador da Questão Penitenciária Que que ele pode fazer o preso, sem tá fazendo nada? Armando uma fuga, matar seu companheiro de cela, matar o carcereiro e fugir. Luiz Cláudio Araújo Ex-presidiário Esse poder ele conseguiu sair do intramuros, ele conseguiu hoje de dentro da cadeia o preso comandar ações criminosas na rua. Nós não podemos ser hipócritas de imaginar que não exista corrupção no sistema penitenciário, o servidor aqui trabalha no limite do bem e do mal e é mal remunerado as condições de trabalho são as piores possíveis, e o crime a gente sabe hoje tem investido fortemente na formação de pessoas para ingressarem no serviço público, na polícia, no sistema penitenciário, na advocacia, vocês sabem perfeitamente que eles tem feito investimento nessa direção. Josias Alves Bello Presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários O principal agente da violência no país, existem dois agentes fortíssimos, a corrupção e a superlotação ambos muito difícil serem exterminados, eles podem ser minimizados, mas eu acho que não há interesse das autoridades que administram o sistema penal em minimizar, porque na cadeia eles adotaram a tese do quanto pior melhor, quanto mais caotica a cadeia for mais chances as pessoas que administram têm de se locupletar. Lá de dentro eles comandam mortes aqui fora, e na medida em que aqui fora alguém mata uma pessoa ligada ao lider que está preso, lá dentro alguém vai sofrer as consenqüências desta morte. Geraldo Lopes Jornalista Policial Ah, ele fala que a prisão é uma coisa assim que não recupera ninguém, porque do jeito que eles tratam como bicho, entao quem não é ordinário passa a ser, porque aprende lá dentro, na escola, na escola do crime. Maria das Graças Pio Parente de Presidiário 9 Sumário Introdução ...............................................................................................................................12 Capítulo – 1 Breve Cenário das Sociedades Punitivas no final do século XX ..................................................................................................................................................20 1.1 – Modernidade, Transformações Sociais e Mudanças no Controle do Crime ...............22 1.2 – Percepções da Crise: Criminalidade Urbana nos anos 1980 e a Imagem do Funil da Justiça Criminal ....................................................................................................................26 1.3 – Os Impactos das crises de Segurança Pública nos Sistemas Penais ............................31 1.3.1 - Políticas Penais Duras ...........................................................................................32 1.3.2- Os Impactos das Políticas Duras nos Sistemas Penitenciários...............................36 1.3.3- Desenvolvimento dos Setores Privados de Segurança...........................................42 1.4- As conseqüências da expansão penal e os riscos implicados na expansão punitiva .....44 Capítulo – 2 Os Debates acerca do Problema da Punição nas Sociedades Contemporâneas. ....................................................................................................................45 2.1- As diversas perspectivas acerca da Punição..................................................................46 2.2.- Característica da Abordagem Sociológica ...................................................................48 2.2.1- Emile Durkheim .....................................................................................................50 2.2.2- George Rusche e Otto Kirchheimer .......................................................................54 2.2.3- Michel Foucault .....................................................................................................58 2.3- David Garland e o Projeto de uma Sociologia da Punição ...........................................64 2.3.1- Motivações .............................................................................................................64 2.3.2- Releituras................................................................................................................67 2.3.3- Proposta..................................................................................................................68 Capítulo 3 - Um panorama histórico sobre a formação das instituições da Justiça Penal ..................................................................................................................................................72 3.1 – Os elementos constitutivos dos sistemas penais ocidentais: uma investigação a partir da história .............................................................................................................................74 3.1.1- A Europa no início da Era Moderna (sec. XVII): o Poder Punitivo descentralizado, a Punição Corporal e os sentidos do Suplício...................................................................74 3.1.2- Centralização do Poder de Punir e Formação dos Estados Modernos: o Monopólio Estatal da Violência e o Direito Penal Moderno. .............................................................80 3.1.3- O desenvolvimento dos Sistemas Penitenciários, Saber Penalógico e a emergência das Criminologias. ............................................................................................................87 10 3.1.4- Estado Nação e a Justiça Criminal no Welfare State .............................................94 3.2 - A expansão carcerária e o questionamento a respeito do papel das instituições penais na época contemporânea.....................................................................................................102 3.3- Algumas Interpretações acerca do sentido da punição nas sociedades contemporâneas ............................................................................................................................................103 3.3.1- Zygmunt Bauman e o papel do Penal na época contemporânea ..........................103 3.3.2- Loïc Wacquant e o advento do novo Estado Penal ..............................................108 3.3.3- O Encarceramento em Massa e a nova Cultura do Controle em David Garland .113 Capítulo 4 Uma aproximação do debate da Sociologia da Punição ao caso punitivo no Brasil ......................................................................................................................................119 4.1- Os Estudos sobre Violência e Criminalidade a partir década de 1970........................122 4.2 - A herança autoritária: análise do papel das instituições de Segurança Pública na gestão da violência e do controle do crime....................................................................................124 4.3 – A - Ensaio sobre a história da Punição no Período Republicano ..............................133 4.3.1 – Elementos pré-modernos na história punitiva brasileira ....................................135 4.3.2 - Destaques da Punição na Primeira República, 1889 – 1930...............................149 Considerações Finais ............................................................................................................169 Referências Bibliográficas ...................................................................................................175 11 Índice das Tabelas TABELA I. Índices de ofensas registradas por 100 mil hab. nos EUA (1950 – 1998). Fonte: apêndice GARLAND, David. The Culture of Control. 2001..........................................................................................25 TABELA II. Variáveis que influenciam o crescimento penitenciário na América Latina e no Caribe. Fonte: CARRANZA, Elias. Sobrepoblation Penitenciária en América Latina e el Caribe. 2001.........26 TABELA III. O modelo do Funil da Justiça Criminal nos EUA. Fonte: BJS apud JULITA, Lembruber. Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas. 2000...................................................................................................27 TABELA IV. Quadro explicativo da Lei dos “Three Strikes”. TRAVIS, Jeremy: Sentencing Project, 2003...............................................................................32 TABELA V Gráfico da população total de encarcerados nos EUA 1910-2000 BJS 2001..........................................................................................................................34 TABELA VI Gráfico da taxa de encarcerados p/ 100mil hab. nos EUA 1910-2000 BJS 2001..........................................................................................................................35 TABELA VII. Taxas de encarceramento no Brasil. Fonte: Ministério da Justiça. 2004.....................................35 TABELA VIII. Superpopulação carcerária nos países da América Latina e no Caribe. Fonte: CARRANZA, Elias. Sobrepoblation Penitenciária en América Latina e el Caribe 2001. .........................................................................................................................................37 TABELA IX. Déficit de vagas no sistema penitenciário brasileiro. Fonte: apud JULITA, Lembruber. Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas. 2000....................................................................................................................38 12 Introdução Esta pesquisa, basicamente, tem a intenção de se aproximar de maneira crítica dos debates teóricos que se travam no âmbito sociológico a respeito das transformações ocorridas nos cenários punitivos da maioria dos países ocidentais, tais como Estados Unidos, Inglaterra, Brasil, França, Argentina, entre outros, visando extrair formulações e alternativas que contribuam ao entendimento e uma maior compreensão dos desafios e graves implicações contidas na expansão punitiva atual. Nosso trabalho desenvolve essa aproximação, dentre outras atitudes, realizando uma leitura das principais obras e autores que discutiram o assunto no recorte abordado (1975-2001), fazendo um levantamento panorâmico de uma parte das pesquisas significavas realizadas sobre esses sistemas penais e recolhendo dados pertinentes a estas discussões de variadas fontes como órgãos institucionais, pesquisas acadêmicas já realizadas, relatórios de entidades não-governamentais, estatísticas, leis penais, etc. O objetivo é realizar uma reflexão crítica a respeito dos principais problemas identificados como os mais graves, tais como o endurecimento penal e a anunciada crise dos sistemas penitenciários dos países, para, em seguida investigar com o auxílio do arcabouço teórico da sociologia da punição, quais são as principais formulações que dispomos para pensar uma compreensão da punição que articule as suas possíveis relações com a sociedade. Este tipo de abordagem se contrapõem a uma tendência comum, verificada em nossa época, de endereçar estes problemas vivenciados na esfera penal com questionamentos que reacendem elementos de imposição da ordem, formulações de controle do crime e apelos emotivos e moralizantes baseados no recente retorno da vítima ao debate punitivo. De modo a não ficar restrita a formulações de controle do crime nem de interferências emotivas, pretendemos investigar como nas análises sociológicas é possível encontrar vários tipos de análises que se contrapõem a estas tendências e que nos ajudam a pensar em níveis mais profundos as 13 relações sobre as diversas ligações entre as variadas esferas sociais e suas interferências no funcionamento do sistema penal. De modo mais específico, estamos nos referindo a visões mais tradicionais que relacionam diretamente as noções de pena e delito e que interpretam o contexto atual como um momento de extrema fragmentação social, no qual crimes e delitos aumentaram, o que levaram a uma sensação de impunidade, e de que, diante disto é necessário tornar mais rígidos os mecanismos penais nas sociedades contemporâneas. Em oposição a este tipo de formulação que aparece sob diversas roupagens, em diferentes países e fundamenta muitas vezes políticas públicas que administram os sistemas penais, nosso trabalho retoma várias abordagens sociológicas e históricas que recolocam a questão punitiva de modo muito mais complexo. Neste trabalho não temos a intenção de fornecer uma resposta pontual ou acabada para os desafios impostos pela administração e implementação de políticas penais no período contemporâneo, mas sim, com o levantamento de muitos elementos que a constituem, fazer um balanço crítico-teórico de seus possíveis desdobramentos. As três últimas décadas do século XX abarcaram um período singularmente marcado por diversas transformações no âmbito social, político e econômico para a maioria dos países ocidentais. Fenômenos como a mundialização do capital, a precarização das relações de trabalho, o abandono do Estado de Bem-Estar e das instituições voltadas ao social, o aumento da pobreza e da desigualdade social figuram entre os elementos relacionados a estas mudanças os quais impuseram duros limites às expectativas democratizantes dos países1. No esteio destas mudanças que afetaram diversas esferas da vida social, em comum 1 As mudanças sociais e as transformações societárias às quais estamos nos referindo se encontram discutidas, de modo disseminado, em grande parte nas obras recentes de muitos autores da hoje chamada teoria social. São autores de diversas tradições, tais como, David Garland, Zygmunt Bauman, Michel Foucault, Anthony Giddens, Michel Wieviorka, entre outros. Certamente, pode-se objetar que nem sempre se tratam de interpretações e ou análises convergentes, mas dentro dos objetivos deste trabalho, buscou-se apenas registrar os principais desdobramentos recentes de modo a contextualizar de forma mais apropriada a discussão sobre segurança na época contemporânea. 14 esse conjunto amplo de transformações tiveram como característica principal reformular e, muitas vezes, derrubar arranjos e configurações do período anterior. A polarização política entre esquerda e direita, as fronteiras políticas e ideológicas dos Estados-Nação (Giddens, 2001), os modelos de vida pautados no emprego fixo e nos programas de previdência estatais, as idéias de crescimento econômico e progresso social, a crença e o apoio à importância do papel do Estado como órgão gestor e responsável no controle e auxílio às parcelas mais sensíveis da sociedade (Bauman, 1998), são exemplos de perspectivas que se encontram abaladas em seus alicerces. Para muitos analistas, estes modelos e imagens da sociedade sofreram um ataque contínuo e paulatino em seus pilares, abalo que, senão verificado, tem influência direta nos debates políticos, bem como nos comportamentos de diversos atores sociais. No conjunto destas transformações, um dos elementos que mais se fizeram notar foi uma mudança nos padrões e nas percepções das sociedades ocidentais a respeito dos problemas relacionados aos crimes e à manifestação da violência. No interior destas alterações, conforme se verifica nos índices estatísticos do funcionamento das agências de segurança pública, igualmente se produziram mudanças no cenário das justiças criminais da maior parte dos países ocidentais. Preocupações com o aumento dos níveis de criminalidade nos grandes centros urbanos, e com o aumento e a transformação qualitativa da violência ao lado de perturbações da ordem passam a ocupar lugar privilegiado na opinião pública, noticiários e discursos de administradores públicos (Garland, 2001). O impacto destas transformações igualmente se fizeram sentir no âmbito do funcionamento da justiça criminal dos países, bem como nos padrões registrados de violência e criminalidade dos mesmos. De acordo com muitos analistas da área, a partir da década de 1970 tem início um processo de modificação do funcionamento da justiça criminal como um 15 todo ao lado de um surgimento de um completo campo de novos problemas na área de segurança. Paralelamente, a violência e seus temas relacionados emergiram ao centro dos debates e das preocupações atuais. Neste contexto, um dos fatos mais curiosos que igualou diferentes países no período, foi o impressionante aumento das populações encarceradas em diversas nações ocidentais, tais como EUA, Inglaterra, França e Brasil. Tal desdobramento tomou corpo, segundo alguns autores, justamente no momento em que a principal forma de punição, o encarceramento, já se encontrava teoricamente desarticulado como projeto institucional legítimo e/ou desejável. Esta aparente contradição é um ponto de partida para muitos autores que compõem nosso debate. Como afirmam Wacquant (2001) e Garland (2001) houve uma pequena diminuição das taxas de encarceramento e uma mudança nos discursos governamentais no início da década de 1970 atestavam essa intenção de reduzir o uso do encarceramento, atitude verificada na busca de penas alternativas e em mudanças no conteúdo das ideologias penais. Do ponto de vista teórico, o ponto chave deste posicionamento foi a crítica irreversível ao pilar de todo sistema penal, o conceito de reabilitação, que tem como um de seus marcos fundamentais a obra de Michel Foucault (1975), Vigiar e Punir. Porém essa visão do final dos anos 1970 foi invertida e a partir de então os sistemas passaram a uma livre expansão de sua estrutura. Como ficará evidente na breve análise do primeiro capítulo, a realidade da grande maioria dos sistemas penais nos países de tradição ocidental é marcada por baixas condições de habitação, violência institucional e arbítrio na incidência e na aplicação dos dispositivos punitivos. Relatórios de diversas regiões e países, a despeito de muitas peculiaridades, em geral apresentam, curiosamente, o mesmo rol de problemas. O cotidiano da prisão é violento, tanto nas relações entre funcionários e presos, como entre presos, permeado por abusos em 16 todas as partes, e seu funcionamento como instituição fechada tem a tendência de silenciar tudo o que se passa em seu ambiente. A despeito dos discursos e das aspirações que fundamentam no plano ideológico as arquiteturas punitivas, existem poucas oportunidades de trabalho nos estabelecimentos penais, raros e pouco eficientes projetos educacionais e/ou ressocializadores. Não existem atividades a serem desenvolvidas no ambiente prisional, como também não há pespectivas de encaixe ou ocupação para aqueles que são postos em liberdade após o cumprimento de uma determinada pena. Em geral, o que se passa nos ambientes prisionais não desperta a atenção ou a preocupação das ditas “pessoas comuns”, trabalhadores ou não, os quais, por oposição, conformariam a “sociedade livre”. Para a maioria das pessoas, sobretudo aquelas que não possuem parentes ou conhecidos cumprindo penas, o que ocorre nos estabelecimentos penais tem pouca ou nenhuma relação com as suas realidades mais imediatas. Cercada de muitas críticas, e com base neste diagnóstico negativos sobre seu funcionamento, no qual muitos autores julgaram que a prisão seria um modelo a ter sua importância mitigada, em visível sentido contrário, vislumbrou-se um revigoramento das instituições penais na maioria dos países ocidentais. Diante destes desdobramentos, alguns autores, tais como David Garland (1990, 2001), optaram por reabrir os debates sociológicos que visam explicar os fundamentos da punição na sociedade moderna, visando obter uma compreensão mais aprofundada deste recente revigoramento penal. Esta perspectiva de abertura e de reunião de modelos de entendimento da punição é um procedimento que julgamos interessante a ser explorado no contexto atual, e é por conta desta característica que o seu trabalho ganha destaque especial em nosso trabalho. A partir destes destaques, o objetivo deste trabalho é elaborar um levantamento das principais análises realizadas sobre o problema da punição nas sociedades contemporâneas 17 tendo como base de abordagem a Sociologia da Punição de David Garland (1990, 2001). Este levantamento consiste em investigar os principais materiais produzidos sobre a punição no período das três últimas décadas, e, a partir de uma leitura sistematizada destes conteúdos, realizar uma compreensão mais aprofundada do problema da punição no contexto atual. Este material compreende um conjunto variado de fontes, que vão desde teorias sociológicas, saberes criminológicos, pesquisas históricas, até relatórios governamentais e dados estatísticos, que , sob uma perspectiva de uma sociologia da punição, possam ser reunidos e discutidos para alargar nossa compreensão a respeito dos problemas punitivos atuais que atingem as sociedades contemporâneas. Para realizar estes objetivos, nossa sugestão tenta seguir os seguintes planejamentos. No primeiro capítulo nossa preocupação central foi elaborar um quadro mais panorâmico dos problemas e das formas de funcionamento da punição, sobretudo a partir das mudanças impostas pelos desdobramentos do mundo contemporâneo. Neste capítulo inicial buscamos enfatizar as ambigüidades do contexto no qual a todo momento se afirma como um estado de crise dos sistemas de justiça criminal, mas ao mesmo tempo vê-se sua estrutura crescer de forma rápida e intensa. Além disto, procuramos já neste começo levantar algumas questões que marcam o período punitivo atual e que nos servem no decorrer do trabalho. No segundo capítulo, tivemos como proposta pegar alguns elementos do cenário contemporâneo e certos conceitos da primeira parte de trabalho e lançá-los numa discussão a partir de uma sociologia da punição. Nesta parte faço uma leitura orientada por Garland (1990) a respeito dos principais autores da sociolgia que oferecem fundamentos teóricos para se pensar a punição. Desenvolvo este levantamento mas nem sempre sigo os posicionamentos de Garland (1990). Em certa medida, tento confrontar as leituras de modo a tirar um melhor 18 proveito delas, inclusive da própria leitura dos fundamentos da sociologia da punição. No capítulo terceiro, para enfatizar essa dificuldade de refletir sociologicamente sobre a punição no período contemporâneo, julguei importante fazer uma espécie de digressão histórica, que consiste mais num apanhado geral da formação do sistema de justiça criminal moderno, de modo a deixar mais evidente que tipo de elementos estruturais são abalados a partir das transformações contemporâneas. A investigação histórica oferece importantes elementos da discussão atual que se realiza sobre a sociologia da punição e, ao que tudo indica, a bibliografia estrangeira (Rothman, 1990) sobre esse assunto pouco penetrou nesse debate. Em seguida, discorro de forma mais aprofundada acerca das interpretações mais influentes no mundo atual sobre o problema da punição. Entram nesta parte uma reconstrução breve de muitos autores e recursos teóricos que ajudam a compreender a posição atual da punição no mundo contemporâneo. Estas visões dos autores contêmporâneos (Bauman, 1998 – Wacquant, 2001 – Garland, 2001), colocam um paralelo muito interessante com a questão histórica e enfatizam as possíveis rupturas que as drásticas mudanças do sistemas penais podem representar, assim como sinalizam as dificuldades que temos para pensar esses novos problemas com as categorias antigas. No quarto capítulo, a motivação principal é realizar uma apropriação teórica destes debates realizados nos capítulos anteriores, e ensaiar algumas interpretações acerca dos principais problemas punitivos no Brasil. O ensaio sobre a situação punitiva nacional tem início tentando captar a posição do Brasil neste movimento punitivo global e quais seriam as evidências de que o país se insere nesta zona de influência. Num primeiro contato, vários elementos reforçam esta aproximação: explosão da população carcerária, políticas de endurecimento penal, adoção de métodos punitivos recentes (presídios de segurança máxima), politização do assunto penal, etc (Salla, 2003 – Adorno, 1999). Verificada esta aproximação, 19 nossa investigação busca elementos da singularidade da punição no Brasil, investigando alguns elementos da história punitiva nacional. Com esta perspectiva, realizamos um aprofundamento num capítulo histórico da punição no Brasil no período republicano aproveitando as análises já realizadas sobre a época e ressaltando os elementos culturais que ganharam importância no nosso contexto (tais como a questão da cidadania e a administração dos sistemas penais), de modo a fornecer uma base mais segura para avaliar como certos aspectos representam ou não um viés local ou influências globalizantes. Em especial, tentamos esboçar em que medida a sociologia da punição não representa uma contribuição aos referenciais teóricos utilizados nas pesquisas sobre punição em nosso país. Como se pode notar, nosso trabalho é essencialmente um levantamento teórico que visa contribuir de alguma maneira com os problemas que se desenvolvem atualmente no campo punitivo. Nossa pesquisa, em grande medida, representou o levantamento e o mapeamento de todas essas questões brevemente apontadas nesta introdução. Por fim, compartilhando do posicionamento da maioria dos autores aqui abordados, retomando a idéia de que a punição tem se tornado uma esfera extremamente problemática da vida contemporânea e que dessa maneira, merece toda a nossa preocupação e mobilização, julgamos que uma reflexão teórica que avalie de modo profundo as determinações punitivas atuais pode se converter num modo viável de lutar por soluções a estes graves problemas sociais. 20 Capítulo – 1 Breve Cenário das Sociedades Punitivas no final do século XX Nesta primeira parte do trabalho o objetivo principal é fazer um levantamento de certos elementos que compõem as linhas mestras do debate sobre a sociologia da punição que pretendemos desenvolver. Basicamente, são três elementos que estamos nos referindo. O primeiro ponto é a retomada do contexto social no qual as Justiças Criminais tem se confrontado com diversas pressões e nas quais se discute sobre possíveis transformações em sua estrutura. Começamos o capítulo fazendo uma breve retomada do contexto social, político e econômico da época contemporânea, por meio de uma leitura aberta de alguns autores2 da área sociológica. Nesta parte, um aspecto a ser enfatizado é a possibilidade da ocorrência de mudanças e deslocamentos sociais dos principais elementos que compõem o arranjo contemporâneo do entendimento e do funcionamento das agências encarregadas do controle interno da violência e da criminalidade. Em segundo lugar, achamos interessante fazer um apanhado de algumas idéias fundamentais que incorporam o funcionamento da Justiça Criminal, os quais julgamos necessários para realizar uma entrada apropriada na discussão sobre a punição na época contemporânea. Neste sentido, o tema da punição, bem como o da violência, criminalidade, entre outros assuntos relacionados, constituem discussões que em geral incorporam elementos emocionais, questões morais e éticas, bem como algumas visões pré-concebidas sobre a justiça criminal e suas instituições. Em casos em que isso ocorre, parece nos que é bastante 2 Como se verá ao longo do trabalho, David Garland é o autor principal que norteia a maioria das leituras realizadas, tanto no sentido de sugerir temas da circunstância penal, quanto para indicar autores e possíveis interpretações. Além do autor britânico, estamos nos referindo a Michel Foucault, George Rusche e Otto Kirchheimer, Loïc Wacquant, Zygmunt Bauman, Nils Christie, entre outros. 21 prudente relembrar algumas informações acerca da justiça criminal tal como o seu poder limitado de controle da criminalidade, a imagem de “funil” de sua eficiência, as taxas de atrito, a seletividade de sua atuação, entre outros. O terceiro elemento já acena para a abordagem de alguns dos problemas mais comuns da área penal. A proposta basicamente se apoia em realizar levantamentos sobre os diagnósticos dos sistemas penais de alguns países, dentre os quais se destacam Estados Unidos e Brasil. A escolha, no primeiro ponto, se justifica pelo fato dos Estados Unidos ser o país com o maior sistema penitenciário do planeta e sem dúvida um dos países que mais possui pesquisas e conhecimento sobre o funcionamento e os impactos das redes penais. No caso brasileiro, a escolha se dá pela proximidade e também em parte pelo apelo que o problema vêm tomando no país. Trata-se de realizar o mapeamento introdutório dos principais problemas atualmente identificados como os mais graves. Esta avaliação toma por base os diagnósticos já realizados por diversas instituições tais como Órgãos Institucionais (Ministérios da Justiça), ONG´s, entidades ligadas aos movimentos de direitos humanos (ILANUD, Human Rights Watch, Anistia Internacional, entre outros), institutos de pesquisa privados, trabalhos acadêmicos, agências de pesquisa, etc. Como é de se esperar, muitos destes problemas não são novidade nas discussões sobre as prisões, e por este motivo, fazemos uma abordagem mais panorâmica a respeito dos problemas mais comuns nas prisões buscando enfatizar as têndencias que marcam de forma diferencial a época atual dos outros contextos. 22 1.1 – Modernidade, Transformações Sociais e Mudanças no Controle do Crime As três últimas décadas do século XX foram consideradas por muitos autores como um período de intensas e rápidas transformações. A economia, a política e a organização das sociedades sofreram significavas mudanças em praticamente todas as partes do mundo. Com o esfalecimento da dicotomia ideológica que dividia o mundo entre esquerda e direita, as fronteiras jurídico-políticas das soberanias foram abertas em favor do livre comércio. A mundialização do capital, a expansão das multinacionais, os avanços tecnológicos impuseram novos ritmos na velocidade da informação e nos modos de produção e comércio entre os países. A riqueza das empresas tornou-se mais ágil e começou a se deslocar para áreas de mão-de-obra mais baratas. As garantias trabalhistas foram abandonadas e o trabalho transformou-se em sinônimo de incerteza e ansiedade. Os governos estatais privatizaram suas estruturas e enxugaram suas máquinas administrativas. Enxugaram igualmente os recursos destinados aos cuidados sociais e transferiram suas responsabilidades à iniciativa privada. Aumentaram também os índices de desigualdade social e de pobreza nos países, sobretudo nos estados periféricos. Parcelas de população cada vez maiores sem perspectivas de ocupação nem inclusão. Sob diferentes terminologias cada autor realiza uma abordagem e seleciona destes inúmeros acontecimentos aqueles que mais úteis para as suas argumentações e seus temas. Conceitos como Modernidade Tardia (Giddens, 1998 Garland, 2001), Modernidade Líquida (Bauman, 1998), Pós-modernidade (Harvey, 2003), entre outras terminologias são bastante utilizadas pelos sociólogos em suas análises sobre a época contemporânea. Neste trabalho, pórem, de alguma maneira todos eles contribuem, uma vez que nossa intenção não é propriamente discutir suas características e sim aproveitar o resultado de suas investigações. Nesta nova conjuntura, alguns termos foram resignificados. A violência, outrora 23 analisada e percebida em vista dos conflitos internacionais entre as nações, foi reconfigurada. O medo da violência associado à guerra parece ter se deslocado para o interior dos Estados, canalizado diretamente para a criminalidade das ruas das grandes metrópoles, sobretudo nos guetos onde as populações marginalizadas se avolumam. As guerras então não são mais entre os Estados ou causas religiosas, são as diversas guerras contra as Drogas, contra o crime, contra os traficantes, entre a polícia e os bandidos. O medo antes localizado nas fronteiras parece ter se pulverizado em todos os lugares. Diante desta reconfiguração da violência, o agente tradicionalmente responsável pelo controle da violência e pela pacificação interna da sociedade, o Estado, também teve seu papel reformulado. O monopólio estatal da violência, tão desejado (muitas vezes temido), figura cada vez mais como uma utopia a perder partidários. A segurança almejada é a segurança privada. Às agências estatais responsáveis pela segurança pública restou uma constante percepção de dúvida e desconfiança acerca de sua eficácia e função. As preocupações com as questões que envolvem a segurança têm se tornado uma realidade cada vez mais presente na maioria dos países ocidentais. Ao que parece, a maioria dos indivíduos, independente de classes sociais, grupos étnicos, idade ou gênero parece concordar em que o mundo tem se tornado um local mais violento, em que os números da criminalidade e as chances de ser vítima de um crime aumentaram. A percepção de que o tráfico de drogas e o crime organizado vêm aumentando, bem como todos os problemas as eles relacionados, é uma opinião que poucos discordariam. Os indivíduos nas metropoles urbanas parecem concordar cada vez mais em que as ruas são locais mais perigosos e que não se pode mais confiar em nada nem ninguém. Embora as percepções sobre estes fenômenos possam ser radicalmente diferentes, em comum as pessoas compartilham uma sensação muito semelhante: o sentimento de insegurança. Embora seja difícil avaliar objetivamente a existência e a extensão dessas sensações 24 subjetivas de enormes parcelas da população mundial, não faltam indícios para tais considerações. Um dos maiores índices desta percepção pode ser observado no padrão segregatório3 cada vez mais acirrado que as grandes metrópoles dos países ocidentais vêm assumindo. Com diferentes nomes, inner cities, banlieue, favelas, esses espaços segregados têm se tornado áreas cada vez mais populosas e afastadas da ordem da cidade ao mesmo tempo em que aumenta a vigilância e a desconfiança sobre seus moradores. Crime e violência, por sua vez, não são os únicos elementos responsáveis por esse sentimento de insegurança. Em muitas situações, os indivíduos se queixam não só de que as violações e as práticas ilegais aumentaram, mas também de que os meios de defesa e controle destas ações é muito pouco presente e ineficiente. Os cidadãos, em grande medida não acreditam mais que as instituições tais como Polícia, Judiciário e Sistema Penitenciário são capazes de oferecer padrões mínimos de segurança e tranquilidade nas metrópoles. As instituições tradicional e formalmente responsáveis pelo controle da criminalidade e pela pacificação interna dos territórios, tal como prometeu a modernidade, ao que parece, já não são mais vistas como apropriadas para garantir a integridade e a sensação de segurança. Esta preocupação crescente com a insegurança no mundo contemporâneo têm levado boa parte dos cidadãos a apoiarem o aumento de medidas mais repressivas no combate àquilo que consideram ser o problema da criminalidade e da violência. Esses elementos já sugerem a idéia central a respeito da punição que pretendemos trabalhar nesta pesquisa que, apresentado de forma preliminar, é a constatação do endurecimento penal ocorrido na época contemporânea. Essa punitividade revigorada que se verifica na maioria dos países ocidentais é um fenômeno recente e ainda pouco compreendido nas sociedades. Em conjunto estas considerações, retiradas de diferentes contextos e discussões, podem, num primeiro momento parecer um pouco desconectadas e um tanto quanto 3 Para mais informações remeto ao texto de Wacquant, Os Excluídos da Cidade, Revan 2005. 25 genéricas. Porém, conforme a percepção de alguns autores analisados no trabalho e conforme a própria idéia que esta pesquisa sugere, há um ganho significativo na compreensão dos fenômenos atuais quando se tenta investigar suas ligações com as mudanças sociais e as transformações políticas que se operaram nas sociedades contemporâneas. Mesmo diante de um campo com relativamente pouca tradição, a maioria dos autores que se enquadram na linha de uma sociologia da punição têm demonstrado que essa articulação que tenta investigar as transformações sociais e político-estruturais sobre em relação aos novos arranjos assumidos pelos sistemas de justiça criminal têm contribuido muito para o entendimento dos fenômenos. Diretamente relacionado com estas rápidas e dramáticas mudanças nas sociedades contemporâneas, de modo geral é possível visualizar uma percepção de agravamento e deteriorização que se dissemina nas estruturas de justiça criminal dos países ocidentais. 26 1.2 – Percepções da Crise: Criminalidade Urbana nos anos 1980 e a Imagem do Funil da Justiça Criminal Uma característica encontrada em praticamente todos os países ocidentais é o aumento qualitativo em suas taxas de registro de criminalidade. Embora possa haver discordâncias metodológicas a respeito destes registros, a maior parte dos autores considera que no início da década de 1980 houve realmente um aumento nas taxas registradas de criminalidade. Em geral essa constatação toma como base o contexto das décadas de 1950 e 1960, que são considerados um período particular da história dos países ocidentais, marcados sobretudo por um uma circunstância de prosperidade econômica e uma conjuntura político- social explicitamente definida, época que Hobsbawn (1995) chamou de Era Dourada. A partir de início da década de 1980, já sob outra conjuntura política, a percepção do crime e do lugar de preocupação que as questões de segurança ocupavam começam a se transformar visivelmente. 27 TABELA I. Índices de ofensas registradas por 100 mil hab. nos EUA (1950 – 1998). Fonte: apêndice GARLAND, David. The Culture of Control. 2001. A partir da tabela nota-se o aumento que representou a década de oitenta, ao mesmo passo que se nota uma estabilização e um pequeno declínio nos anos posteriores. Com base nestes dados, sem necessitar aprofundar muito a interpretação destas estatísticas, o que se infere é a consolidação do novo padrão de funcionamento das justiças contemporâneas (Garland, 2001). A normalização destas altas taxas, de acordo com David Garland, foi um dos fatores que influenciou uma nova cultura e um novo perfil das autoridades em relação aos crimes. Trata-se de uma atitude ambígua, na qual o Estado se desresponsabilliza deste controle do crime, mas ao mesmo tempo se volta contra ele com atitudes simbólicas de repressão violênta, as quais pouco contribuem para modificar esta curva. Em apoio a esta visão sobre o crescimento punitivo, pode-se tomar como elemento uma proporção bastante significativa que este aumento no número de encarcerados não foi um 28 acompanhamento proporcional do aumento das populações e do desenvolvimento das cidades. Só ressaltando o caso brasileiro, enquanto em 1992 têm-se 114,377 presos, em 1999 temos 194,074, o que significou um aumento de 83% do total. No mesmo período o crescimento demográfico foi de 17%. TABELA II. Variáveis que influenciam o crescimento penitenciário na América Latina e no Caribe. Fonte: CARRANZA, Elias. Sobrepoblation Penitenciária en América Latina e el Caribe. 2001 Também a partir do início dos anos 1980 começa a ganhar corpo uma compreensão 29 crítica a respeito das instituições de segurança pública. Uma primeira imagem exemplar dessa percepção é a do “funil da justiça criminal”. Tal imagem atesta que na justiça criminal americana, em 1994, apenas 3% dos crimes cometidos nos Estados Unidos resultaram em pena de reclusão. Dos 3,9 milhões de ocorrências levantadas nas pesquisas de vitimização, apenas 1,9 milhões foram registradas, enquanto somente 143 mil acarretaram condenações. Nas diferenças encontradas entres os números se encontram as taxas de atrito, que dão uma imagem aproximada dos limites de funcionamento das justiças criminais nos países ocidentais. Tais números acima apresentados se referem aos contextos de Estados Unidos e Inglaterra, mas considera-se que em países mais periféricos como os da américa latina as perdas nas diversas instâncias do processo penal sejam maiores, uma vez que estes países não possuem uma máquina administrativa bem desenvolvida. TABELA III. O modelo do Funil da Justiça Criminal nos EUA. Fonte: BJS apud JULITA, Lembruber. Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas. 2000. 30 Com estas imagens, não apenas se forma no imaginário dos administradores e opinião pública uma compreensão dos limites investigativos (polícia) e de capacidade de julgamento (judiciário) da justiça criminal, ela passa a moldar a atitude das pessoas em relação a sensação de segurança e de como devem ser tratados os casos. Acima de tudo, ela fomenta uma noção muito particular de impunidade, a qual, por sua vez, encontra canalização direta em atitudes punitivas e de intolerância perante aqueles considerados criminosos, ou sob tutela penal. 31 1.3 – Os Impactos das crises de Segurança Pública nos Sistemas Penais No âmbito deste debate que lançou várias dúvidas quanto à eficácia e eficiência das agências de justiça criminal de controlar e de julgar as atividades criminosas em seu território, as instituições penais também não foram poupadas destes movimentos de contestação. Grande parte da literatura existente4 acerca dos sistemas penais compartilha o entendimento de que é uma percepção de crise do sistema penal ao final dos anos 1960 o ponto do qual se originam os debates mais teóricos sobre a punição. É difícil averiguar em que medida esta percepção da crise se relaciona com um agravamento do problemas nos estabelecimentos penais, ou, ao contrário, se essas ocorrências do âmbito penal devem ser interpretadas com vistas às questões político-sociais da época, porém estas dúvidas não nos impedem de avançar fazendo o levantamento de um panorama geral. 4 Destacamos aqui Loïc Wacquant e David Garland. 32 1.3.1 - Políticas Penais Duras Após este período de sucessivas críticas aos sistemas penais, a partir dos anos 1980 de acordo com pesquisadores como David Garland (1990) e Loïc Wancquant (2001) começa a entrar em cena uma série de transformações que apontam para novos padrões de gerenciamento das justiças criminais e a entrada de novas idéias e concepções sobre os termos de criminalidade, criminoso, controle do crime e da violência. Consideramos neste trabalho que as Políticas Penais voltada às administrações dos estabelecimentos de justiça criminal como um todo, podem ser identificadas a partir de decisões, leis, modos de administração das corporações de segurança pública, bem como nas percepções e sensibilidades da sociedade em relação ao papel e a atitude a serem tomadas diante destes casos. Os exemplos para tais observações parecem se tornar cada dia mais numerosos. No polo de vanguarda destas políticas se encontram os EUA que exportam além de mercadorias e modelos de vida, modos de gerenciamento e de controle policial aos demais países ocidentais, desde países europeus até latino-americanos. Alguns nomes são bem conhecidos tais como “War on Crime”, “War on Drugs”, “Law and Order”, “Tolerance Zero”, entre outros. O impacto de tais políticas criminais, como se verá nas discussões seguintes, é vista pela maioria dos especialistas como formas repressivas de controle das populações sensíveis que contribuem muito pouco para uma melhoria nos padrões de segurança nos grandes centros urbanos do mundo. A sua razão de ser tem suas raízes ligadas aos fatores simbólicos de satisfazer as crescentes demandas retributivas e punitivas que estão em curso na época atual. Mas, além dos modos de gerenciamento do espaço público, existem também outras na qual o endurecimento das políticas penais se verifica, que são as mudanças nas leis penais. 33 Mais uma vez os EUA nos oferecem situações exemplares para ilustrar tais tendências. Talvez não tão conhecida, a lei dos “Three Strikes and You are Out”, que tem esse nome por conta de uma expressão do baseball que diz algo no sentido: “três ataques e você está fora”. Nela podemos perceber com nitidez como funcionam de modo geral o endurecimento das penas. O quadro abaixo mostra como o cometimento de um crime e as conseqüentes reincidências vão transformando a severidade da pena, aumentando sua duração e eliminando os benefícios que normalmente poderia receber o condenado. 34 TABELA IV. Quadro explicativo da Lei dos “Three Strikes”. TRAVIS, Jeremy: Sentencing Project, 2003. Apenas de modo a facilitar o entendimento da tabela, temos a “Infraction”, que significa infração e é considerado o modo mais leve de transgressão penal. Segue-se a “Misdemeanors”, que seria o equivalente a uma contravenção média. Por fim, a “Felony” que seria um crime, entendido como uma conduta que transgride a lei penal e com maior potencial 35 ofensivo. Basta-nos voltarmos a tabela e veremos que, após o cometimento de uma felony, um indivíduo, se cometar um crime da mesma natureza irá receber o dobro de pena em caso de condenação a partir do segundo “strike”. Se voltar a reincidir, após duas felony, mesmo que seja uma infraction, sofrera uma pena equivalente a uma prisão perpétua que significa cumprir o limite máximo de reclusão 25 anos, sem a certeza de que vai ser libertado após esse período Não é necessário argumentar muito para mostrar que essas políticas e institutos penais acabaram por aumentar o tempo de cumprimento de pena dos condenados e, consequentemente resultou em estabelecimentos superlotados. 36 1.3.2- Os Impactos das Políticas Duras nos Sistemas Penitenciários Existem muitas maneiras de avaliar os padrões de punitividade dos estados ocidentais. Todavia, talvez poucas evidências parecem ilustrar com ênfase maior este movimento punitivo do que o aumento brutal das taxas relativas de indivíduos encarcerados no mundo. O caso mais emblemático para tal assunto certamente são os Estados Unidos, porém, como se verificam em estudos de outros países, a tendência não se limita ao contexto americano. TABELA V Gráfico da população total de encarcerados nos EUA 1910-2000 BJS 2001 37 TABELA VI Gráfico da taxa de encarcerados p/ 100mil hab. nos EUA 1910-2000 BJS 2001 Em países de diferentes realidades sociais e econômicas, como é o caso do Brasil, podemos perceber uma tendência muito semelhante. Ano Total de Encarcerados Taxa p/ 100.000 hab 1992 114,377 (74) 1995 148,760 (92) 1997 170,602 (102) 2001 233,859 (133) 2004 331,457 (183) TABELA VII. Taxas de encarceramento no Brasil. Fonte: Ministério da Justiça. 2004. Nos diversos quadros, com comportamentos equivalentes, fica vísivel a ocorrência de uma mudança radical, senão uma ruptura, nos padrões de encarceramento nos EUA e Brasil. 38 A pergunta quase inevitável diante desta situação, feita por todos aqueles que discutem os assuntos punitivos foi: por quais motivos se deu esse aumento significativos? Uma das formas mais utilizadas para articular essas questões, como é de se esperar conforme as concepções e crenças comuns a respeito do papel das justiças criminais foi: aumentaram o número de encarcerados porque aumentaram os crimes. Porém, raros especialistas sustentam esta tese. Basta comparar as tabelas acima e notar que nos anos 1980 a média de registros de crimes se estabilizou e timidamente decaiu nos anos seguintes. Esta mudança que significou o aumento do número de encarcerados no mundo tem sido uma das grandes questões que tem mobilizado os sociólogos da punição no sentido de uma articulação mais complexa de todas as variáveis sociais. Evidentemente, estas transformações nos padrões de encarceramento transformaram a realidade das administrações penitenciárias. Um dos maiores problemas apontados na área (Carranza, 1998) tem se verificado na questão da sobrepopulação penal, que tem transformado os presídios em estabelecimentos extremamente difíceis de se administrar com padrões mínimos de respeito à dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento de algum tipo de projeto social. Em países periféricos como na maioria dos que integram a América do Sul e a Central, esses indíces chegam a patamares alarmantes. 39 TABELA VIII. Superpopulação carcerária nos países da América Latina e no Caribe. Fonte: CARRANZA, Elias. Sobrepoblation Penitenciária en América Latina e el Caribe 2001. 40 TABELA IX. Déficit de vagas no sistema penitenciário brasileiro. Fonte: apud JULITA, Lembruber. Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas. 2000. É curioso notar como o número de encarcerados aumenta numa proporção muito maior do que a capacidade do sistema de se ampliar e dar conta da demanda a qual é submetido. Veremos ao final do capítulo que a reação a este tipo de constatação por parte dos administradores públicos tem sido uma atitude Estes desdobramentos, como mostram muitos relatórios como Confronting Confinament (2006), e O Brasil Atrás das Grades (1998), têm constatado graves conseqüências no âmbito administrativo, nas condições de vida e nos padrões de violência no interior dos estabelecimentos. Segundo os relatórios, têm se tornado cada vez mais difícil promover e vistoriar padrões administrativos pautados por regras mínimas de respeito à dignidade humana e os padrões de violência e de abusos no interior dos presídios superlotados 41 têm se tornado cada vez maiores e incontroláveis. Em conseqüência, uma transformação de parâmetros pautados nas ideologias da reabilitação tem sido rapidamente substituídas por questões de segurança. 42 1.3.3- Desenvolvimento dos Setores Privados de Segurança A respeito deste assunto é necessário iniciar este tópico declarando que não se pretende aqui fazer uma discussão mais aprofundada destas questões que envolvem o setor privado de prisões. Este procedimento é necessário sobretudo porque esta privatização pode ser vista como uma ação que se desenvolve já no processo de terceirização dos serviços penitenciários. Em segundo lugar porque, como é sabido, existe uma grande responsabilidade político-jurídica na transferência destas prerrogativas até então exclusivas dos Estados Soberanos. Não é de nosso interesse discutir aqui tais assuntos, porém é quase impossível evitar que tais elementos não venha a tona, mesmo quando a intenção é fazer um breve apanhado da tendência privada no âmbito institucional. Na análise desta tendência penal que se torna cada vez mais presente no mundo contemporâneo, iremos utilizar um relatório americano que faz uma análise acurada da expansão da punição privada no estado americano da Califórnia: The Prison Payoff: the role of the politics and private prisons in the incarceration boom(2000) 5. A pesquisa realiza uma abordagem do tema da privatização do sistema penal da Califórnia, mas utilizando um referencial extremamente interessante e incomum para a área das pesquisas em segurança pública: um arquivo dos orçamentos das campanhas eleitorais dos governadores do estado. A partir desta perspectiva se pode notar como essa situação de aparente crise do Estado punitivo passa a ensejar uma série de situações lucrativas para outras áreas de empreendimento privado. Não esperamos nos aprofundar neste debate, mas por hora nos parece ques este delocamento é mais uma tendência que merece toda a atenção. Com base neste relatório, em 1990 os EUA possuiam em seu território 18 mil leitos penais. Em 1998, este número subiu para 130 mil, mais de seis vezes o seu tamanho inicial. 5 The Prison Payoff: the role of the politics and private prisons in the incarceration boom. Sarabin, Brigette e Edwin Bender, 2000. Western Prison Project. 43 O estado da Califórnia em 1980 previa em seu orçamento uma despesa de 675 milhões de dólares com seu sistema correcional. No ano de 2000, pouco menos de 20 anos, este número atingiu 4,6 bilhões de dólares anuais, o que significou um aumento de quase seis vezes mais. O mais interessante do caso da Califórnia foi o fato de o crescimento do sistema penal em seu estado foi único em relação a outros estados da federação americana. Qual foi a “mágica” que fez florescer de forma tão rápida e tão lucrativa as prisões privadas? Uma simples resposta: investimento. Ao se comparar o valor de contribuição para as campanhas de governador nos Estados americanos, as quantias destinadas pelas grandes corporações de prisões privadas foram praticamente todas canalizadas para a campanha na Califórnia. Enquanto o Alaska, a Florida e o Tennessee, ocupando os cargos de 2º, 3º, 4º Estados que mais receberam, contabilizaram, $50,000, $42,000 e $41,000 nas campanhas, respectivamente, a Califórnia sozinha recebeu mais do que os três juntos: $286,000. A outra parte da “mágica” da expansão punitiva esta relacionada aos investimentos destas corporações privadas nas cadidaturas dos candidatos a senadores do parlamento americano. De forma estratégica, essas corporações destinam recursos que favorecem legisladores dos dois espectros políticos do país; qualquer que seja o bloco vencedor os interesses das prisões privadas estão representados. Como demonstra o relatório, o investimento na área política é grande e ele se reverte em leis penais que repercutem diretamente nas decisões administrativas dos sistemas penitenciários e nas políticas penais do estado. Embora não esteja em condições de rebecer uma abordagem mais cuidadosa a respeito das características da expansão privada, não resta dúvida de que este aspecto tende a se desenvolver e colocar mais algumas questões delicadas ao debate punitivo. 44 1.4- As conseqüências da expansão penal e os riscos implicados na expansão punitiva Após este levantamento panorâmico acerca do funcionamento e dos principais problemas que perpassam as justiças criminais e suas demais instituições é possível apresentar alguns questionamentos interessantes que servem como norteadores da problemática que impulsiona nossa pesquisa. Este primeiro capítulo começa abordando as transformações sociais mais amplas e termina com alguns elementos dos limites e problemas do funcionamento das justiças criminais. Nesta parte do trabalho tentamos reconstruir o mesmo percurso que a maior parte dos autores da sociologia da punição (já citados) também escolheram. Como foi visto a questão do aumento dos índices de pessoas encarceradas no mundo não pode ser visto apenas como a oscilação de uma variável numérica. Por trás deste número é possível conhecer, talvez sem muita precisão, a ocorrência de estabelecimentos penais superlotados, o consumo voraz de recursos financeiros dos orçamentos estatais que poderiam estar sendo direcionados para projetos sociais e educacionais. Não se vizualiza por trás destes números nenhuma melhoria ou perspectiva para seus clientes preferenciais. Quais são seriam as ferramentas encontradas no campo sociológico que nos ajudam a enquadrar essas questões de uma forma diferenciada? Ou, de forma mais específica: quais os percursos sugeridos por uma sociologia da punição a respeito destes desdobramentos? Com base nestes questionamentos seguimos adiante fazendo um levantamento da perpectiva sociológica acerca da punição. 45 Capítulo – 2 Os Debates acerca do Problema da Punição nas Sociedades Contemporâneas. Os problemas levantados no capítulo anterior apresentam um cenário no qual a violência e a criminalidade começam a ganhar cada vez mais destaque diante das transformações sociais que se desenvolvem em praticamente todos os níveis da sociedade. Essas mudanças que trouxeram a insegurança e o medo do crime ao centro dos debates públicos e das disputas políticas por sua vez estimularam as atitudes conservadoras e repressivas a respeito destes assuntos, sobretudo no modo de tratá-los, de modo mais específico, na postura dos cidadãos e governantes frente à punição. O desenvolvimento desta visão sobre como enfrentar os problemas da insegurança e da disseminação da violência também concorreu fortemente para solidificar o imaginário que da idéia que associa fortemente a relação entre crime e prisão. De maneira geral, aquelas formas de questionar o o crime, a criminalidade e a violência foram afastando cada vez mais as reflexões e os discursos que associavam estes problemas ao contexto geral da sociedade, à questões como desigualdade social, miséria, desemprego, etc. Como ficará mais evidente ao longo das seções seguintes, na análise contemporânea a ênfase recai nas questões do controle e da manipulação situacional dos delitos (Garland, 2001). Nas partes seguintes pretendemos fazer um levantamento das várias abordagens sociológicas que colocam em cheque essa tendência contemporânea, sobretudo na sua relação entre pena e delito. Em grande medida, o guia para esta reconstrução são os modelos elencado por David Garland, na obra, Punishment and Modern Society: a study in social theory(1990). Porém, a reconstrução aqui realizada não consiste num simples resumo do texto de Garland. A perspectiva aqui adotada atenta para os diversos tratamentos dispensados à relação entre pena e delito ao longo de várias teorias consagradas na sociologia. 46 2.1- As diversas perspectivas acerca da Punição As abordagens de cunho sociológico a respeito do sistema punitivo podem ser encontradas até mesmo antes da fundação da sociologia como disciplina. É o caso de autores como Alexis de Tocqueville (1833) e Barão de Montesquieu (1762), os quais já analisavam as curiosas relações que os sistemas penais possuiam com a forma de exercício de liberdade e a forma de governo que se estabeleciam em determinadas sociedades. Seus estudos possuem valiosos insights para se refletir a respeito de questões atuais sobre punição, porém, como considera Garland (1990), seus trabalhos ainda estão restritos a discussões jurídicas e políticas que envolviam a Teoria do Estado e a Filosofia Política6. O que marca fundamentalmente uma abordagem sociológica da punição é o seu esforço em apresentar uma explicação mais completa a respeito das relações existentes entre a sociedade, o crime e os modos de punição. Este objetivo, em grande medida, é realizado por meio um de afastamento tanto das teorias jurídicas, quanto das abordagens subjetivas e criminológicas a respeito dos delitos. Podemos citar como um dos emblemas do modo de pensar as questões punitivas sob 6 Garland oferece uma passagem em Punishment and modern society (1990) a este respeito: Escritos que adotam este último modelo, o sociológico, tem existido desde pelo menos meados do século XVIII – emergindo então, como agora, em momentos em que as instituições punitivas estabelecidas são dispostas sob crítico ataque. Em O Espírito das Leis, Montesquieu apontou para as conexões estruturais e de crenças que ligavam formas de punição com formas de governar em distintivas e esclarecedoras formas: “É uma questão fácil – escreve – provar que em todas, ou quase todas, formas de governo da Europa, a punição é aumentada ou diminuída na proporção em que os governos favorecem ou desencorajam a liberdade”. A partir disto, ele caminha para esboçar o delineamento da política e da dinâmica psicológica que produzem estas conexões, dando assim um caráter sociológico, bem como normativo, para a sua conclusão de que ‘ a severidade da punição é um ajuste para governos despóticos, cujo princípio é o terror, mais do que uma monarquia ou república, cuja primavera é a honra e a virtude’. Quase um século depois, Alexis de Tocqueville continuou neste caminho, por meio de seu estudo sobre o sistema penitenciário americano sugerindo uma ligação mais complexa e irônica entre a política do liberalismo e a disciplina penal. Apontando para a ironia que seria redescoberta por autores subseqüentes, tais como Rothman e Foucault, ele escreveu em 1830 que ‘enquanto a sociedade nos Estados Unidos dava o exemplo da mais extensa liberdade, a prisão do mesmo país oferecia o espetáculo do mais completo despotismo’. Em seu estudo subseqüente, Democracia na América, Tocqueville irá se debruçar sobre este discernimento do social, oferecido pela punição, para mostrar a sutil dialética da liberdade e da repressão que se operou na sociedade americana como um todo. Estas conexões de percepções mostram como a punição toma parte de uma ampla cultura, configurando e sendo configurado por ela, tendo sido a contínua marca distintiva de trabalhos deste tipo. Consequentemente, as questões postas por Montesquieu e Tocqueville continuam a ser discutidas e investigadas atualmente. (Garland, 1990, pág.10) 47 enfoque jurídico a obra chave, Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (188..). Sua obra teve como uma das principais características servir de fundamento teórico para grande parte da construção dos institutos penais presentes nas legislações dos Estados Modernos. Neste texto, como se pode perceber no título, a base da fundamentação penal reside inteiramente na relação estrita que se estabelece entre o delito e uma pena. Uma leitura possível de Beccaria é justamente perceber como o autor utiliza todo o arcabouço das teorias iluministas de sua época para demonstrar como a base do Direito Penal Moderno é um liame racional e necessário que se estabelece entre o cometimento de um delito e a cominação de uma pena. Esta forte correlação entre as ações proibidas e as sanções técnicamente organizadas demarcam o que Álvaro Pires7 chama de racionalidade penal moderna. Além desta perspectiva jurídica também podemos atribuir à criminologia8 um segundo modelo de abordagem a respeito do entendimento do sistema punitivo que se dirige ao conhecimento do sujeito criminoso. Ela se opõem a esta visão jurídica fundada na relação de pena e delito e propõem uma abordagem intervencionista acerca do indivíduo criminoso. Para esta linha de abordagem, a medida penal deve estar relacionada não a um saber abstrato que une pena e delito, o crime, mas deve se pautar essencialmente no conhecimento do criminoso9. 7 A Racionalidade Penal Moderna, o Público e os Direitos Humanos. Novos Estudos , nº 68 Março de 2004, USP – São Paulo. 8 Basicamente aqui fazemos referência à criminologia em sentido amplo, o que pode englobar uma variedade de saberes distintos e escolas de tradições diferentes, mas que possuem em comum o paradigma etiológico. Para uma análise mais minuciosa, que diferencia o pensamento das criminologias etiológicas e positivistas da criminologia crítica, AlessandroBaratta: Criminologia Critica e Critica do Direito Penal. 9 Por hora, coloco essa diferenciação de modo superficial, sob este assunto desenvolverei com mais profundidade no capítulo histórico, na parte dedicada na parte “O desenvolvimento dos Sistemas Penitenciários, Saber Penalógico e a emergência das Criminologias”. 48 2.2.- Característica da Abordagem Sociológica Diferente destes dois modelos, a abordagem sociológica acerca dos sistemas punitivos irá se distinguir por estabelecer uma ruptura com estas explicações que enfatizam os laços entre pena e delito, ou entre delito e criminoso (jurídica e criminológica) em favor de uma abertura analítica mais ampla, a qual busca uma explicação mais complexa que articula a sociedade, crime e punição. Segundo Garland (1990) essa multiplicidade de sentidos é uma das características do olhar sociológico no campo penal. Desde os autores fundadores da disciplina sociológica, tais como Karl Marx (1867) e Emile Durkheim (1899) , é possível verificar abordagens acerca da punição que seguem este modelo sociológico mais amplo. Realizando uma breve aproximação de seu sistema de pensamento, no referencial teórico desenvolvido por Marx, o materialismo histórico, encontra-se uma forma de investigação da sociedade que reserva aos institutos jurídicos e às instituições de justiça criminal um espaço e uma função característicos, muito diferentes das outras duas abordagens aqui levantas, o enfoque jurídico e criminológico. Como pretendemos desenvolver mais a frente, a perspectiva marxista representa uma negação e uma crítica contundente às teorias jurídicas e criminológicas, buscando mostrar o caráter assimétrico, parcial e ideológico das teorias e das instituições penais10. No que compete ao legado do pensamento de Marx no campo da investigação do campo penal, suas teses contribuiram muito para a investigação dos assuntos relacionados ao crime e à punição. Tal contribuição e influência foi abertamente assumida nos debates travados no campo da Criminologia Crítica, nos quais participaram autores ingleses como 10 Se este assunto das instituições penais e dos institutos jurídicos penais não são trabalhados especificamente como objetos de investigação, mas sim como decorrência das estruturas do modo de produção e das assimetrias das classes sociais, estes temas irão posteriormente aparecer no estudos de um jurista marxista Pashukanis (1924) Tanto Garland, quanto Pavarini, pensador de influência da Criminologia Crítica, atribuem este papel ao jurista russo. 49 Paul Hirst, Paul Auston, Jock Young, entre outros. Porém, como sua abordagem enfatiza a economia política, os modos de produção e a questão da luta de classes, o domínio do penal e suas instituições não aparecem em suas obras como objetos específicos de investigação. Esta consideração tem levado a maioria dos autores deste campo a tomarem por base a obra de George Rushe e Otto Kirchheimer, Punição e Estrutura Social, como o modelo de investigação pautado no referencial teórico marxista que oferece uma investigação específica do campo e das instituições penais, desenvolvendo em profundidade as intuições da teoria marxista. Inclusive, este posicionamento em grande parte explica o interesse destes autores da Criminologia Crítica de resgatarem a obra de Rusche e Kirchheimer, após um anonimato de aproximadamente três décadas (1939-1970). Como pretendemos abordar adiante, todos os autores fundadores dos discursos sociológicos oferecem importantes formulações sobre o funcionamento da punição e a retomada de suas teorias é uma atitude constante no âmbito do desenvolvimento das novas perspectivas. 50 2.2.1- Emile Durkheim Ao lado de Marx, Durkheim é outro importante autor que exemplifica uma abordagem de viés sociolóco sobre a punição. Em primeiro lugar, é indicado levar em consideração a importância que o termo punição ocupa no conjunto do pensamento do sociolólogo francês. Mais do que outros sociólogos, Durkheim concebeu a punição como um objeto central no processo de construção dos liames que constituem a sociedade. Para ele, a existência da vida social somente era possível no momento em que se forma um conjunto de significados, costumes, normas e valores compartilhados coletivamente. A ruptura de algum destes elementos culturais compartilhados e a conseqüente reação a esta ruptura, de outra forma, o crime e a punição, são elementos que, mais do que outros, confirmam a existência do campo social. Este modo de entendimento leva Durkheim ao aprofundamento da investigação da solidariedade social. O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos pena. Procurar qual é esse vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime. (Durkheim, 1995, pág. 39) Deste modo, Durkheim não apenas refutava de modo veemente as teorias subjetivas acerca da criminalidade, como também tinha uma visão divergente dos teóricos penais utilitaristas. Acerca da primeira questão, por que os indivíduos cometem crimes, conforme a formulação durkeiminiana, deve-se questionar quais os tipos de vínculos e comprometimentos que se estabelecem entre os indívidos de uma sociedade: se em uma coletividade os vínculos são fracos e os indíviduos não se sentem comprometidos com os valores compartilhados, 51 maior será o número de condutas consideradas como crimes. Ao lado disto, a reação gerada por essas rupturas está muito mais ligadas ao conjunto de valores compartilhados, do que propriamente às condutas, que podem variar significativamente ao longo do tempo. Desta maneira, a punição revelaria não apenas aquilo que a consciência coletiva reprova e deseja proteger, mas também o modo pelo qual a sociedade reage e se auto-preserva diante de sua dissolução. Embora a influência de Durkheim tenha se disseminado em várias direções11, a sua contribuição ao estudo dos fenômenos punitivos não recebeu continuidade e, principalmente, as premissas de seu sistema de pensamento foram muito criticadas. Mais especificimante na área punitiva, a teoria durkheiminiana recebeu severas críticas quando à aplicabilidade de suas teses na análise dos sistemas punitivos. De modo geral, estas críticas que minavam as análises durkheiminianas a respeito da punição eram conseqüências das próprias refutações que o pensamento de Durkheim recebeu ao longo da história. Um dos primeiros pontos criticados na teoria sobre a punição de Durkheim foi a sua concepção do fenômeno punitivo essencialmente abstrata e a-histórica. Em Da divisão social do trabalho, Durkheim, preocupado em instrumentalizar um conceito “cientificamente” válido para a noção de pena, acaba por abandonar totalmente a análise histórica da evolução dos meios punitivos.Posteriormente, visando sanar esse aspecto criticado em sua obra, o autor francês estabelece no ensaio As duas leis da evolução penal dois modelos punitivos, os quais são equivalentes a dois tipos de solidariedade. Conforme essa formulação, há uma tendência em diminuir a intensidade da punição conforme as sociedades vão se tornando mais complexas e civilizadas. Em sociedades simples e primitivas, na qual impera a solidariedade mecância, a capacidade de regular o caráter cruel e vingativo da punição é menor do que nas 11 É possível visualizar a influência do referencial durkheiminiano desde a década de 1920 nos estudos sobre a ecologia do crime, utilizado pela Escola de Chicago. Em seguida, nos anos 1940 e 1950, no curso da sociologia do desvio americana, em escolas criminológicas como as de Edwin Sutherland, com a teoria da Associação Seletiva, e Robert Merton com a retomada do conceito de anomia e o desenvolvimentor de um estruturalismo- funcionalista. 52 outras situações onde se forma a solidariedade orgânica. Porém, mesmo com esse complemento essas observações de Durkheim não lograram afastar a crítica da impertinência deste modelo. Uma segunda crítica que tornou a perspectiva durkheiminiana afastada durante boa parte do século XX das análises acerca da punição foi o seu entendimento do conceito de sociedade. A crítica mais contundente que excluí as contribuições de Durkheim no âmbito da punição reside no próprio alicerce de seu pensameanto: que é a sua concepção de sociedade e ordem social. Em sua compreensão do funcionamento do campo social Durkheim tende a aproximar os conceitos de ordem moral, consciência coletiva, ordem social e Estado. O autor considera como objeto central da sociologia o modo como se formam e se perpetuam as sociedades: de que forma se socializam os indíviduos e como o corpo social reage às falhas de socialização. É neste núcleo que os críticos de outras perspectivas teóricas irão criticar o trabalho de Durkheim. Conforme a crítica, a idéia de uma sociedade como um todo constituído, com sua ordem moral, seu sistema legal, sua consciência coletiva, é uma visão por demais idealizada, senão equivocada da formação do social. Esta concepção perde totalmente de vista o princípio de que a dinânimica social é disposta em termos de diferentes e antagônicos grupos de indivíduos, que se estabelecem em diferentes momentos, de forma assimétrica e em situações de disputa de poder e por meio da dominação. O problema da ordem social para Durkheim é, primeiramente, o da socialização de cada nova geração de indivíduos em cada modo de vida, e das estruturas morais que a suportam. (Um segundo problema é assegurar que a ordem moral esteja bem adaptada para as variadas formas de organização social). Socialização individual na “sociedade” é assim a área da chave do problema para Durkheim e sua sociologia se concentra sobre os problemas com os quais emergem as falhas de socialização – problemas tais como o crime, 53 suicídio, anomia, esfacelamento da moral e colapso da autoridade social. Mas tomando como foco esta interface entre indivíduo e sociedade, Durkheim negligencia outro grande eixo da dinânica social e do conflito social – nomeadamente, as relações entre grupos opositores. Desde a mais simples formação social, diferentes grupos sociais têm existido e lutado uns contra os outros para a realização de sua própria visão de dinâmica social, com os seus modelos organizacionais imanentes. As formas de relação social e as crenças morais que vêm a dominar em uma dada sociedade são assim o resultado de um incontrolável processo de batalha e negociação. Eles não têm nenhuma característica dada de uma tipo social particular, nem são inevitáveis produtos da evolução funcional. (Garland, 1990, pág. 51) Conforme se infere desta crítica, facilmente se percebe o porquê o referencial durkheiminiano acabou perdendo espaço neste tipo de análise. Com o desenvolvimento de outros referenciais e com o aumento da complexidade das sociedade industriais, ficava cada vez mais inviável aproximar noções como moralidade, consciência coletiva direito e Estado. Com isso, o pensamento de Durkheim, em relação a outros referenciais, tais como as teorias conflituais de inspiração marxista, foi perdendo espaço na análise do campo punitivo. 54 2.2.2- George Rusche e Otto Kirchheimer Além da visão de Durkheim, outra perspectiva de importância marcante neste campo sobre a análise da punição foi a contribuição encontrada na obra de Rusche e Kirchheimer, Punição e Estrutura Social. Nesta obra os autores realizam uma investigação histórica dos sistemas punitivos tendo como base o referencial teórico marxista. Publicada em 1939 nos Estados Unidos, inserida no projeto multidisciplinar do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, a obra desenvolveu em profundidade um dos modelos de abordagem sobre o fenômeno punitivo que influenciam a abordagem sociológica. Punição e Estrutura Social pode ser tomada como uma obra que oferece diversas teses fundamentais a respeito do entendimento do funcionamento da punição nas sociedades ocidentais. A obra não apenas realiza um deslocamento dos modos tradicionais de abordagem do campo da penalidade (inclusive do modelo durkheiminiano), como também elabora todo um conjunto de novas relações entre o domínio punitivo e a dinâmica da sociedade. O primeiro ponto a ser observado é que Rusche e Kirchheimer, ancorados no referencial marxista, propõem uma abordagem que afasta radicalmente a relação entre pena e delito. Tal medida se justifica uma vez que essas teorias são abstratas, não oferecem nenhuma contribuição para a investigação histórica e, desta maneira, atrapalham a percepção do fenômeno punitivo. As teorias penais não apenas contribuíram pouco, diretamente, como tiveram uma influência negativa nas análises histórico-sociológicas dos métodos punitivos. Ademais, como essas teorias consideram a punição como algo eterno e imutável, elas se opõem a qualquer tipo de investigação histórica. (Rusche e Kirchheimer, 2004, pág. 18) 55 E mais a frente, complementando este posicionamento. Para adotar uma abordagem mais profícua para a sociologia dos sistemas penais, é necessário despir a instituição social da pena de seu viés ideológico e de escopo jurídico e, por fim, trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações. A afinidade, mais ou menos transparente, que se supõe existir entre delito e pena impede qualquer indagação sobre o significado independente da história dos sistemas penais. Isto tudo tem que acabar. A pena não é nem uma simples conseqüência do delito, nem o reverso dele, nem tampouco um mero meio determinado pelo fim a ser atingido. A pena precisa ser entendida como um fenômeno independente, seja de sua concepção jurídica, seja de seus fins sociais. (Rusche e Kirchheimer, 2004, pág. 19) Nas páginas introdutórias de Punição e Estrutura Social os autores sugerem um estudo dos sistemas penais independente das teorias jurídicas. Inicialmente, os autores se referem às “verdadeiras relações” e seus “fins sociais”, mas, como se percebe no decorrer da obra, esses elementos podem ser mais bem especificados. Em Punição e Estrutura Social se desenvolve uma importante análise que argumenta que os métodos punitivos empregados em determinadas épocas têm a sua origem e a sua explicação nas próprias condições de vida mais gerais da sociedade. Estão incluídos inúmeras idéias nesta afirmação, tais como as determinações culturais, tecnológicas, científicas e sociais, porém, conforme desenvolvem Rusche e Kirchheimer, existem alguns elementos que se destacam e exercem um poder maior no desenvolvimento da punição. Um primeiro elemento, talvez um dos principais, diz respeito ao modo de produção da sociedade. Para desenvolver esta idéia, Rusche e Kirchheimer tomam como exemplo a punição na Idade Média, na qual imperavam os métodos punitivos corporais e os rituais de 56 expiação. Para os autores alemães, além das questões religiosas e culturais envolvidas naqueles suplícios, o ponto principal a ser analisado é o fato de que, naquela época, ainda não se tinha desenvolvido nenhuma visão produtiva a respeito do criminoso. Ao contrário, como o criminoso nada tinha a perder e não se visualizava nenhuma possibilidade de aproveitamento para ele, o seu corpo era visto como o único bem possuído pelo individuo e assim o castigo corporal a maneira mais viável de intimidá-lo. Com o advento do modo de produção capitalista, que trouxe a noção de trabalho produtivo e, sobretudo, com o desenvolvimento da noção de tempo como um bem, uma riqueza a ser contabilizada no cálculo da produção, uma nova percepção dos condenados e sobre os métodos a eles dispensados começa a se desenvolver. Passará a ter lugar uma percepção de que os método punitivos podem ser melhor aproveitados para os meios produtivos da sociedade. Este elemento também se encontra intimamente relacionado com a questão levantada por Rusche e Kirchheimer de que as leis penais, sua incidência e a sua administração se dirigem ao controle das parcelas pobres da população. Desta maneira, a proteção da propriedade e a defesa de certos status sociais por meio de impeditivos penais constituem elementos fundamentais no funcionamento dos sistemas punitivos. Retomando as concepções marxistas de sociedade, a incidência do direito penal e a gênese de suas instituições se dá numa relação social assimétrica e parcial, a favor de um setor mais poderoso que se apropria do poder punitivo como um todo e o utiliza em seu favor, na manutenção da ordem social que a favorece. Com estes elementos reunidos, fica mais fácil agora anunciar o eixo com o qual opera a obra de Rusche e Kirchheimer. A questão do controle da pobreza no final da Idade Média e, em seguida, o surgimento do cárcere reformatório como pena no início da época capitalista constituem momentos distintos de uma mesma questão: o uso do sistema penal no 57 gerenciamento das parcelas pobres da população12. Na época moderna, conforme os autores alemães propõem, o maior indicador e critério de regulação das populações pobres então passa a ser o Mercado de Trabalho. Conforme se aprofundaram em suas pesquisas, Rusche e Kirchheimer defenderam que era possível enteder melhor o funcionamento dos sistemas penais a partir das transformações e das mudanças ocorridas do mercado de trabalho. Esta abordagem pautada no entendimento do funcionamento da Esfera Penal tendo como base o estudo do mercado de trabalho foi uma contribuição inédita da obra de Rusche e Kirchheimer. Todavia, a obra dos pesquisadores alemães, publicada em 1939, não causou impacto muito significativo no cenário da pesquisa e da produção intelectual da época. A prova disto foi o fato de não se desenvolverem pesquisas continuadoras do referencial oferecido por Punição e Estrutura Social após a sua publicação. A obra será retomada somente a partir do final da década de 1960 com o desenvolvimento da Criminologia Crítica na Inglaterra, a qual retomará apenas algumas teses da obra. 12 Esta perspectiva, em algumas abordagens criminológicas, foi classificada como uma interpretação Revisionista da história penal. A abordagem revisionista se caracteriza por 58 2.2.3- Michel Foucault Em meados da década de 1970, uma abordagem oriunda da tradição filosófica- epistemológica surge no cenário dos debates a respeito do papel do penal nas sociedades. Vigiar e Punir, por conta de suas características, irá se distinguir tanto de Rusche e Kirchheimer e de Durkheim, oferecendo, desta maneira, de acordo com o que se discute hoje, um terceiro grande modelo de entendimento do fenômeno punitivo. Como é conhecida da interpretação consolidada a respeito de Vigiar e Punir, a obra pode ser lida como uma história que marca a passagem entre dois modelos, duas tecnologias de poder que se aplicam aos corpos, os quais estão ligados à punição mas não se limitam ao âmbito penal. Na primeira, a técnica do suplício, Foucault se aprofunda nos seus mecanismos e dispositivos, mostrando que existia todo um solo de saberes, práticas e racionalidade específicas que comandavam a artes do suplício. No decorrer do século XVII em diante, a elaboração de um outro sujeito, com uma nova tecnologia que o constitui, com uma nova maneira de torná-lo produtivo se desenvolve. O poder disciplinar se refere a estas várias formas de exercício produtivo sobre os corpos, a todos os dispositivos que assujeitam e tornam sujeitos os corpos, que os torna mais poderosos, ao passo que os disciplina, os controla, os dispõem em situações de constante observação. Esta nova dinâmica, resultado de mudanças em praticamente todas as esferas (epistemológicas, políticas, sociais), obviamente também traz em seu interior uma nova forma de punição. Esta nova punição não necessita mais dos métodos explícitos e rígidos de controle dos corpos, pois os novos modelos disciplinares, mais sutis, aparentemente mais humanos, são mais eficientes. Além de propor esta ênfase do poder disciplinar na análise das práticas punitivas, Foucault, em semelhança à tradição sociológica, também afasta em sua abordagem as teorias 59 jurídicas. Um modo possível de leitura de Vigiar e Punir pode se concentrar em uma crítica inédita que Foucault realizou em relação à história das instituições penais. Foucault foi responsável por oferecer uma interpretação que mostra como os discursos dos reformadores penais do século XVIII convergiam para um projeto completamente diferente do modelo reformatório-disciplinar que forneceu todo o alicerce dos sistemas prisionais do ocidente. Tudo aquilo que havia sido discutido antes desta separação operada em Vigiar e Punir acabava por misturar e confundir esses dois modelos. Segundo Foucault, o modelo disciplinar-reformatório, pré-existente aos edifícios teóricos da doutrina penal moderna, acabou colonizando o campo da Lei e elaborando seus próprios regulamentos e determinações específicos dentro da generalidade dos institutos jurídicos. Uma das maneiras de apresentar a singularidade de Vigiar e Punir a respeito da análise punitiva é mostrar as passagens iniciais em que Foucault afasta os referenciais de Durkheim e Rusche e Kirchheimer. A respeito da abordagem de Durkheim, Foucault demonstra que não está interessado em realizar uma análise que se refira às instituições penais como entidades que formam um conjunto observável, concreto. Se nos limitarmos à evolução das regras de direito ou dos processos penais, corremos o risco de valorizar como fato maciço, exterior, inerte e primeiro, uma mudança na sensibilidade coletiva, um progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das ciências humanas. Para estudar, como fez Durkheim, apenas as formas sociais gerais, corremos o risco de colocar como princípio da suavização punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas tácticas de poder e entre elas dos novos mecanismos penais. (Foucault, 1999, pág. 23) 60 Após asfastar a abordagem de Durkheim, Foucault segue mostrando as contribuições de Rusche e Kirchheimer, mas demonstrando que pretende seguir uma linha diversa daquela aberta pelos pesquisadores alemães. Nessa linha, Rusche e Kirchheimer estabeleceram a relação entre vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer a mão-de-obra suplementar – e constituir uma escravidão “civil” ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais – sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção – o Hostpital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis – o trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mão-de-obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim corretivo. Há sem dúvida muitas observações a fazer sobre essa correlação estrita. Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa “economia política” do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar e corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão. (Foucault, 1999, pág.25) Tal como apontam os motivos acima, Foucault não se contenta com uma visão do poder como uma entidade que possa ser possuída, ou que esteja associada a uma classe social definida. Este posicionamento impulsiona Foucault a não adotar a trilha aberta por Rusche e Kirchheimer e a desenvolver uma análise que visa superar as limitações desta visão restrita acerca do poder da tradição marxista. 61 Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar de tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõe-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza material e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho de Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercído não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. (Foucault, 1999, pág. 26) Desta longa passagem podemos extrair, com o auxílio da leitura de Dreyfus e Rabinow13, três conceitos centrais no pensamento foucaultiano, a saber, o conceito de saber, poder e corpo. Esta tríade de conceitos relacionados permite a Foucault desenvolver uma abordagem que atua num nível muito mais específico da análise do poder, sobretudo porque visualiza os efeitos das disciplinas no condicionamento do corpos, nas arquiteturas das instituições, na organização dos corpos, dos regimentos internos e da construção de sujeitos e corpos dóceis. Esta perspectiva acrescentava conhecimentos a respeito da dinâmica da punição os quais geralmente não apareciam nas teorias com um nível de generalidade maior como foi o caso da abordagem de Durkheim e Rusche e Kirchheimer. 13 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow. Michel Foucault: uma trajetória filosófica , para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1985. 62 Ao lado desta importante importante contribuição ao estu