NEUSA MARIA DAL RI EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA E TRABALHO ASSOCIADO NO CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA Tese apresentada ao Departamento de Administração e Supervisão Escolar da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília, para obtenção do título de Livre-docente. Marília 2004 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da FFC/UNESP Dal Ri, Neusa Maria D136e Educação democrática e trabalho associado no contexto político-econômico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/ Neusa Maria Dal Ri. – Marília, 2004. 315 f; 30 cm. Tese (Livre-Docência) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2004. Bibliografia: f. 306-315 1. Educação Democrática. 2. Autogestão. I. Autor. II. Título. CDD 370.1930981 2 TERMO DE APROVAÇÃO NEUSA MARIA DAL RI Tese de livre-docência defendida e aprovada em 05/03/2004 Pela Comissão Julgadora Prof. Dr. Celestino Alves da Silva Júnior Prof. Dr. Gustavo Luis Gutierrez Prof. Dr. Jair Militão da Silva Prof. Dr. Benedito Rodrigues de Moraes Neto Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio 3 Aos lutadores do MST com esperança compartilhada na conquista e construção de uma sociedade igualitária e democrática. 4 AGRADECIMENTOS Manifesto minha gratidão a todos aqueles que tornaram possível a realização deste trabalho. De modo especial, agradeço: aos educandos, professores, funcionários e direção do Instituto de Educação Josué de Castro e da Escola de Ensino Fundamental Construindo o Caminho; à diretoria e demais associados da Cooperativa de Produção Agropecuária do Assentamento Conquista da Fronteira - Cooperunião; aos colegas do Departamento de Administração e Supervisão Escolar (DASE), da UNESP, pelo apoio e incentivo; ao Sr. José Tadeu de Siqueira Lima, secretário do DASE, pelo apoio e colaboração; aos membros do Grupo de Atualização Científica do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia, pois as várias obras que discutimos e reflexões conjuntas realizadas foram de grande utilidade para este trabalho; aos orientandos de graduação e de pós-graduação e aos membros do Grupo de Estudo Educação e Trabalho do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia pelo incentivo e pela paciência nos últimos meses de realização deste trabalho; à amiga, colega de trabalho e companheira de lutas, Dra. Martha dos Reis, do Departamento de Didática, da UNESP, Campus de Marília, pelas críticas e valiosas sugestões; ao amigo, companheiro de luta em defesa da escola pública e democrática e meu parceiro de trabalho, Dr. Candido Giraldez Vieitez, ao qual debito grande parte daquilo que me foi possível desenvolver neste texto, não apenas pela sua colaboração, preciosas sugestões e crítica, mas porque a elaboração deste trabalho, embora guarde o caráter e a responsabilidade de produção individual, apenas foi possível em decorrência dos anos de reflexão, produção e acúmulo de conhecimento sobre a temática que juntos realizamos. 5 Os homens entram em batalhas e perdem, e aquilo pelo que lutaram torna-se realidade apesar da derrota, e então acaba não sendo o que eles pensavam que fosse, e outros homens têm de lutar pelo que desejam, dando-lhe outro nome. William Morris [...] a liberdade só pode consistir no seguinte: o homem em sociedade, os produtores associados, determinam racionalmente essa troca material com a natureza, submetem-na ao seu controle coletivo, em vez de serem por ela dominados como um poder cego; realizam-na com os esforços tão reduzidos quanto possível, nas mais dignas condições da sua natureza humana e nas mais adequadas a essa natureza. Karl Marx 6 SUMÁRIO Lista de Tabelas e Figuras 10 Lista de Abreviaturas 11 Resumo 12 Abstract 13 Introdução 14 1. Economia solidária e a emergência das Organizações de Trabalho Associado 17 2. As formas cooperativas de produção 18 3. A economia solidária no Brasil 21 4. A educação do trabalho associado e as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 26 5. A problemática 28 5.1. Problema, hipótese central e objetivos 29 6. Notas metodológicas, procedimentos e explicitação de conceitos 30 6.1. Procedimentos 33 7. Estruturação do trabalho 37 Primeira Parte Capítulo I – Emergência das Organizações de Trabalho Associado 39 1. A ruptura do pacto pós-guerra e o novo conceito de organização do trabalho 40 2. O declínio econômico 44 3. Fragilidade dos trabalhadores 46 4. Mutações do trabalho 51 5. A expansão das Organizações de Trabalho Associado 55 6. Do trabalho assalariado aos postos de trabalho autônomo 61 7. Super exploração e dependência: a luta por postos de trabalho na periferia 67 Capítulo II – A Formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 76 7 1. Elementos da formação do MST 76 2. Um movimento social 80 3. Sem terra, sem trabalho, sem meios de sobrevivência 82 Capítulo III – O Sistema Cooperativista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 89 1. Da vida comunitária à cooperação no Movimento 89 2. As características das Cooperativas de Produção Agropecuária 97 3. A dinâmica das relações e os principais problemas das CPAs 102 4. Estrutura político-organizacional do MST 112 Segunda Parte Capítulo I – As principais teorias da sociologia da educação 115 1. A corrente funcionalista A concepção de Durkheim 117 1.2. O funcionalismo estrutural 119 2. A reprodução de Bourdieu e Passeron 122 2.1. Eliminação e seleção 125 2.2. Papel reprodutor da escola e do professor 126 2.3. Função ideológica e autonomia do sistema de ensino 128 3. As teorias do materialismo histórico 133 3.1. Althusser e os aparelhos ideológicos do Estado 134 3.1.1. Reprodução da força de trabalho 135 3.1.2. Os aparelhos ideológicos do Estado 138 3.1.3. Sobre a reprodução das relações de produção 139 3.2. A escola dual e de reprodução da dominação burguesa : a teoria de Baudelot e Establet 142 8 3.2.1. Ideologia da escola e a reforma 142 3.2.2. A escola dividida 143 3.2.3. Duas formas escolares de inculcação da ideologia burguesa 143 3.2.4. O aparelho escolar e a luta ideológica de classes 145 3.2.5. O aparelho escolar e a reprodução das relações sociais de produção 146 3.3. Escola e reprodução das relações de produção: as teses de Bowles e Gintis 150 3.3.1. Contradições da reforma educacional liberal 151 3.3.2. A educação e a vida econômica 155 3.3.3. Princípios da correspondência 158 3.4. Snyders: escola, classe e luta de classes 163 3.4.1.A escola reprodutora 163 3.4.2.Reforma 164 3.4.3.Autonomia da escola e escola transformadora 165 3.4.3.1. O papel de transformação social da escola 165 3.4.3.2. Papel dos professores 167 Conclusões: integração, divisão, dominação, ideologia, reforma e revolução 168 Terceira Parte Capítulo I – O Movimento como Educador Coletivo 173 1. Educação da luta social 175 2. Educação da organização coletiva democrática 177 3. Educação da cooperação e do trabalho 179 4. Educação da história-memória-mística 182 5. Educação da cultura 184 Capítulo II – A Pedagogia do Movimento 186 1. Princípios filosóficos e pedagógicos do MST 188 1.1. Princípios filosóficos 188 9 1.2. Princípios pedagógicos 190 2.Teorias presentes na proposta educacional do MST e as suas principais categorias 194 2.1. Processo de formação do homem omnilateral 195 2.2. União do ensino e do trabalho produtivo 196 2.3. Politecnia e pedagogia soviética 202 2.4. Concepção de gestão escolar: democracia, coletivismo e auto-organização dos alunos 213 2.5. Metodologias de ensino 219 2.6. Educação de classe 226 Capítulo III – As Escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: alternativa democrática à organização burguesa 231 1. Iterra e o Curso de Técnico em Administração em Cooperativas 232 2. Escola Pública de Ensino Fundamental Construindo o Caminho 235 3. A educação para a reprodução do Movimento 237 4. Estrutura, organização e processos escolares 239 4.1. A escola do trabalho e o trabalho na escola 239 4.2. Conteúdos curriculares 248 4.3. Seleção e avaliação 255 4.4. Atividades pedagógicas extraclasse 260 4.5. A escola única 261 4.6. Qualidade e a dimensão visionária do ensino 264 5. Mística 269 6. O cerne das relações pedagógicas: o poder na escola 275 7. Funções sociais da escola 284 Conclusão 287 Anexos 304 Referências Bibliográficas 306 10 LISTA DE TABELAS E FIGURAS Tabela 1 – Evolução do trabalho assalariado nos EUA 52 Tabela 2 - Estrutura fundiária no Brasil – 1995/96 82 Figura 1 - Organograma da Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil 304 Figura 2 – Organograma do Instituto de Educação Josué Castro 305 11 LISTA DE ABREVIATURAS ACCMV = Ação da Cidadania contra a fome, a miséria e pela vida ACI = Aliança Cooperativista Internacional Anteag = Associação dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária CAPP = Coletivo de Avaliação Político-Pedagógico CCAs = Cooperativas Centrais dos Assentados CNBI = Coordenação dos Núcleos de Base do Instituto Concrab = Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Cooperunião = Cooperativa de Produção Agropecuária União do Oeste Ltda Cootrabalho = Confederação das Cooperativas de Trabalho COPPE = Coordenação do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção CPA – Cooperativa de Produção Agropecuária CPT = Comissão Pastoral da Terra ECC = Escola Construindo o Caminho EAs = Empresas de Autogestão IEJC = Instituto de Educação Josué de Castro Iterra = Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária FUNDEP = Fundação de Desenvolvimento Educação e Pesquisa da Região Celeiro LDB = Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MAB = Movimento dos Atingidos por Barragens MST = Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MOP = Movimento Operário Popular NB = Núcleo de Base OCB = Organização das Cooperativas Brasileiras OTA = Organizações de Trabalho Associado SCA = Sistema Cooperativista dos Assentados TAC = Curso Técnico em Administração em Cooperativas 12 DAL RI, N. M. Educação democrática e o trabalho associado no contexto político- econômico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Marília, 2004. 311 f. Tese (Livre-docência em Educação) - Departamento de Administração e Supervisão Escolar da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília. RESUMO Os objetivos deste trabalho são os de expor os elementos pedagógicos principais presentes nas escolas Construindo o Caminho e Instituto de Educação Josué de Castro, verificar qual a força determinante na organização da proposta educacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e elucidar se essa proposta contém elementos educacionais de interesse para as classes trabalhadoras em geral, do ponto de vista democrático e popular. A investigação revelou que o modo de apropriação do excedente econômico e a luta de classes constituem-se na força determinante na organização da proposta educacional e, também, que as escolas do Movimento, estruturadas e organizadas de forma diferente daquela usualmente encontrada nas escolas oficiais, colocam em epígrafe categorias educacionais como a união do ensino com o trabalho e a gestão democrática compartilhada entre alunos, professores e funcionários. Palavras-chaves: educação; trabalho; gestão; MST. 13 DAL RI, N. M. Democratic education and the associate work in the political-economic context of the Landless Farmworkers Movement. Marília, 2004. 311 f. Tese (Livre- docência em Educação) - Departamento de Administração e Supervisão Escolar da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília. ABSTRACT The purposes of this work are to state the main pedagogic elements of the schools Construindo o Caminho and Instituto de Educação Josué de Castro, find out the determinant component in the organization of the educational proposal of the Landless Farmworkers Movement, and make it clear whether or not that proposal encompasses the educational elements that may interest working classes in general, in a democratic and popular view. Investigation findings showed that the way economic surplus appropriation is done and the classes struggle constitute the determinant force in its educational proposal organization; and, also, that the Movement’s schools, structured and organized in a quite distinct way from the ordinary ones belonging to the State, give emphasis to educational categories such as association between teaching and work as well as democratic management shared between students, teachers and their staff members. Keywords: education, work, management, Landless Farmworkers Movement (MST). 14 Introdução Para Wallerstein (2001), se há uma idéia associada ao mundo moderno, esta idéia é a noção de progresso. Para ele, a idéia de progresso justificou a transição do feudalismo para o capitalismo. Legitimou que a oposição remanescente à mercantilização de tudo fosse destruída e permitiu descartar os aspectos negativos do capitalismo com base na noção de que os benefícios superavam em muito os prejuízos. Dessa forma, para o autor, não é surpreendente que os liberais acreditassem no progresso. Surpreendente é que seus oponentes ideológicos, os marxistas - antiliberais, representantes das classes trabalhadoras oprimidas -, acreditassem no progresso com, pelo menos, a mesma paixão. Essa crença serviu a um importante propósito ideológico. Justificou as atividades do movimento socialista mundial, com base na noção de que ele encarnava a tendência inevitável do desenvolvimento histórico. Ao mesmo tempo em que a idéia de progresso justificava o socialismo, também justificava o capitalismo. Era difícil aclamar o proletariado sem antes prestar homenagem à burguesia. [...] A adesão marxista ao modelo evolucionário de progresso tem sido uma enorme armadilha, da qual os socialistas só começaram a desconfiar recentemente, como um elemento da crise ideológica que é parte da crise estrutural global da economia mundial capitalista (WALLERSTEIN, 2001, p 84). Para Mészáros (2002), constituindo-se em um modo de sociometabolismo em última instância incontrolável, o sistema do capital é essencialmente destrutivo em sua lógica. Essa é uma tendência que se acentuou no capitalismo contemporâneo. Para este autor, o capital não trata valor de uso e valor de troca como estando separados, mas de um modo que subordina radicalmente o primeiro ao segundo. A tendência decrescente do valor de uso das mercadorias, ao reduzir a sua vida útil e desse modo agilizar o ciclo reprodutivo, tem-se constituído num dos principais mecanismos pelo qual o capital vem atingindo seu incomensurável crescimento ao longo da história. Dessa forma, de acordo com o autor, o capitalismo contemporâneo proporcionou o aprofundamento da separação, de um lado, da 15 produção voltada para o atendimento das necessidades e, de outro, as necessidades de sua auto-reprodução. E, nesse sentido, quanto mais aumentam a competitividade e a concorrência intercapitais, mais nefastas são suas conseqüências. Dentre essas conseqüências, destacam-se duas particularmente graves: a destruição e / ou precarização, sem paralelo na era moderna, da força humana de trabalho e a degradação crescente do meio ambiente. Na visão de Mészáros, o capital, expansionista, destrutivo e incontrolável, assume cada vez mais a forma de uma crise endêmica, a forma de uma crise cumulativa, crônica e permanente. A perspectiva é de uma crise estrutural cada vez mais profunda, ao contrário das crises cíclicas anteriores que alternavam fases de desenvolvimento produtivo com momentos de depressão. Segundo Mészáros (2002), a irresolubilidade dessa crise estrutural faz emergir o espectro da destruição global da humanidade, uma linha tendencial já visível. A única forma de evitá-la seria colocando em pauta a atualidade histórica da alternativa societal socialista, da ofensiva socialista. No entanto, como a lógica do capital estrutura o seu sistema de controle no âmbito extraparlamentar, qualquer tentativa de superar esse sistema que se restrinja à esfera institucional e parlamentar não teria sucesso. Apenas um movimento de massas radical, extraparlamentar teria capacidade para destruir o sistema de domínio do capital. Dessa forma, o processo de auto-emancipação do trabalho não poderia restringir-se ao âmbito da política. Isso porque o autor entende que o Estado moderno é a estrutura política de mando do capital, ou seja, o Estado é inconcebível sem o capital, que é o seu real fundamento, posição, aliás, compartilhada por Wallerstein (1974). Assim, o capital necessita do Estado para a sua reprodução. Enquanto desdobramento dessa idéia, a crítica de Mészáros aos instrumentos políticos existentes é enfática e estende-se aos sindicatos e partidos tanto nas suas feições socialdemocratas quanto na versão dos partidos comunistas tradicionais, pois fracassaram no objetivo de controlar e superar o capital. Para o autor, o movimento sindical global foi, desde o seu início, setorial e defensivo. E os partidos políticos do movimento operário não puderam elaborar uma alternativa viável ao capital porque se concentraram exclusivamente na dimensão política do adversário, tornando-se, dessa forma, dependentes do objeto que negavam. A dimensão vital que os partidos não podem suprir não é a do capital como comando político, mas sim a do capital enquanto regulador sociometabólico 16 do processo de reprodução material que, em última análise, determina não somente a dimensão política, mas muito mais além dela. Nesse sentido, a tarefa maior que a classe trabalhadora e os movimentos sociais têm que enfrentar na atualidade é a de criar e inventar novas formas de atuação, autônomas, capazes de articular as lutas sociais eliminando a separação, introduzida pelo capital, entre ação econômica (realizada pelos sindicatos), de um lado, e ação política e parlamentar (realizada pelos partidos), de outro. De acordo com Mészáros, a reconstituição da unidade da esfera política e reprodutiva material é a caracterização essencial definidora do modo socialista de controle sociometabólico. E não se pode deixar para um futuro distante a criação de mediações necessárias para a realização desse objetivo. Este é o grande desafio histórico do futuro. Ainda, segundo o autor, a possibilidade de enfrentar este desafio por meio de um movimento socialista radicalmente rearticulado é indicada por quatro importantes considerações (2002, p. 30-1). A primeira resulta das contradições constantemente agravadas da ordem existente, pois é possível levar muito longe a destrutividade, como o demonstram nossas atuais condições de vida, mas não é possível estendê-la indefinidamente. A segunda consideração indica a possibilidade, mas apenas a possibilidade, de uma alteração positiva dos acontecimentos. Isto porque enquanto o capital depende absolutamente do trabalho, ele inexiste sem o trabalho, a dependência do trabalho em relação ao capital é relativa, historicamente criada e historicamente superável. O trabalho não está condenado a ser permanentemente contido no círculo vicioso do capital. A terceira consideração trata de uma alteração histórica na confrontação entre capital e trabalho, acompanhada da necessidade de instauração dos interesses vitais dos produtores associados. Esta consideração está em nítido contraste com o passado reformista que trouxe o movimento a um beco sem saída, liquidando até mesmo as limitadas concessões extraídas do capital no passado. Dessa forma, tornou-se inviável a manutenção da lacuna entre metas imediatas, e objetivos estratégicos globais, que tornou o impasse reformista tão dominante no movimento operário. O resultado é que a questão do controle real de uma ordem sociometabólica alternativa já surgiu na agenda histórica, apesar das condições não serem favoráveis para a sua realização no curto prazo. 17 Por último, também surgiu a questão da igualdade substantiva em oposição à igualdade formal e à pronunciada desigualdade hierárquica substantiva dos processos de tomada de decisão do capital, pois o modo socialista alternativo de controle de uma ordem sociometabólica não-antagônica e realmente planejável, uma necessidade absoluta para o futuro, é inimaginável sem a igualdade substantiva como princípio estrutural e regulador. 1. Economia solidária e a emergência das organizações de trabalho associado De fato, vivemos um tempo paradoxal. Por um lado, um tempo de grandes avanços da ciência e de transformações marcadas pela revolução nas áreas da informação, comunicação, eletrônica, genética e biotecnologia. A era da exploração espacial, incluindo a exploração de outros planetas, inicia-se com o objetivo de abertura de novos mercados e de expansão do capital. Por outro lado, é também um tempo de retrocessos, de retorno de males sociais que imaginávamos erradicados como o regresso do trabalho escravo e servil, de desigualdades sociais e econômicas aviltantes e de guerras monstruosas. O paradoxo está em que, se por um lado hoje parecem reunidas as condições objetivas para fazer cumprir as promessas da modernidade, como a promessa da igualdade social e econômica, da liberdade, da solidariedade e da paz, por outro, parece ser impossível contrapor-se ao sistema do capital e à sua lógica destrutiva. A idéia de que não há alternativas ao capitalismo conseguiu um nível de aceitação e adeptos inéditos até o momento. Porém, como demonstram, nas últimas décadas, o aparecimento e a consolidação de inúmeros movimentos e organizações sociais e também econômicas em todo o mundo que lutam por uma globalização contra-hegemônica (SANTOS; RODRIGUES, 2002), os séculos de predomínio e expansão do capitalismo não conseguiram diminuir a resistência e a contraposição às suas práticas. De fato, a história do capitalismo, desde o seu aparecimento, é também a história das lutas de resistência e crítica aos seus valores e práticas (WALLERSTEIN, 1974). A história do desenvolvimento do capitalismo é também a história do movimento operário popular. As organizações e experiências econômicas de cunho popular que têm aparecido e se manifestado em vários países do mundo têm recebido, pela pouca literatura ainda 18 existente, a denominação de formas econômicas alternativas ao capitalismo ou formas econômicas não-capitalistas. Mencionam-se termos como a globalização alternativa, economias alternativas ou de desenvolvimento alternativo (SANTOS; RODRIGUES, 2002, p. 27). Do nosso ponto de vista, os termos alternativo e não capitalista, embora, na falta de outros melhores, também empregados neste trabalho, merecem cuidado na sua utilização, primeiro, porque não há ainda um suporte empírico e teórico suficiente para confirmá-los e, segundo, porque apesar de denominarem-se alternativos e não-capitalistas, os empreendimentos configuram-se como propriedades privadas que continuam a participar do mercado capitalista. Pelo menos por ora, essas iniciativas não representam novos modos de produção que substituam o modo capitalista. No entanto, isso não lhes retira relevância e nem o potencial de modificação das relações de trabalho no interior dos empreendimentos. Discutiremos essas questões no decorrer do trabalho, por ora apenas enfatizamos que a essas formas de organização são atribuídas características gerais tais como a solidariedade e a igualdade entre seus membros, a proteção do meio ambiente e a gestão democrática. A seguir, apresentamos, brevemente, as principais formas de organização que estão sob a denominação de alternativas ou, como veremos posteriormente, de economia solidária. 2. As formas cooperativas de produção A subordinação do trabalho ao capital dá-se sob diversas formas abrangendo os vários momentos do circuito econômico-social, isto é, da produção, distribuição, circulação e consumo de mercadorias. Ainda no período de formação do modo de produção capitalista, os trabalhadores livres, destituídos de qualquer propriedade mobiliária ou imobiliária, e os trabalhadores proprietários dos próprios instrumentos de trabalho em escala artesanal, procuraram resistir a essa subordinação criando para essa finalidade organizações próprias. As primeiras organizações de trabalhadores estiveram voltadas para a ajuda mútua e a luta contra as condições subumanas de trabalho e de vida impostas pelo capital. 19 Subseqüentemente, o movimento de oposição expandiu-se a outras esferas da atividade social. Dessa forma, o pensamento e a prática cooperativista modernos são tão antigos quanto o próprio capitalismo industrial. Em 1844, os trabalhadores industriais da cidade de Rochdale, na Inglaterra, fundaram uma organização comercial com o objetivo de oferecer aos associados produtos de melhor qualidade a preços mais baixos. Essa sociedade assim constituída era uma cooperativa de consumidores que se tornou um marco na história do cooperativismo. A notoriedade de Rochdale deve-se principalmente ao fato de que inovou em relação à tradição oweniana enunciando os princípios que viabilizariam o cooperativismo como atividade econômica e empresarial. Os princípios de Rochdale (Cole, 1945, p. 74) são: 1) controle democrático - uma pessoa, um voto; 2) porta aberta - livre adesão, entrada e saída voluntárias; 3) juros limitados como remuneração do capital; 4) sobras proporcionais ao montante de compras do associado; 5) vendas à vista; 6) vendas de mercadorias de boa qualidade; 7) educação dos sócios; 8) neutralidade política e religiosa. Esses princípios foram adotados pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI) que promoveu, através dos tempos, algumas modificações. A versão mais recente da Carta de Princípios da ACI1 foi aprovada no Congresso de 1995, realizado em Manchester, Inglaterra, consistindo no seguinte: 1) adesão voluntária e aberta; 2) controle democrático por parte dos membros; 3) participação econômica dos associados; 4) autonomia e independência; 5) educação, capacitação e informação; 6) cooperação entre as cooperativas; 7) interesse pela comunidade. Na Inglaterra, o pensamento de Robert Owen, que contribuiu diretamente para a fundação das primeiras comunidades cooperativas, constituiu-se na fundamentação da tradição intelectual cooperativa. Na França, as teorias associativistas de Charles Fourier e de Pierre Proudhon inspiraram a criação das primeiras cooperativas de trabalhadores. Enquanto teoria social, o associativismo pauta-se em dois postulados básicos: a defesa de uma economia de mercado baseada em princípios não capitalistas de cooperação e mutualidade e a crítica ao Estado centralizado, manifestando preferência por formas de 1 DECLARACIÓN de la Alianza Cooperativa Internacional sobre la Identidad Cooperativa aprobada en Manchester en el XXXI Congreso de la ACI. In: Revista de Debate sobre Economía Pública Social y Cooperativa, p.37-9. 20 organizações políticas pluralistas e federalistas. Enquanto prática econômica, o cooperativismo segue os princípios enunciados anteriormente. O número de cooperativas multiplicou-se rapidamente e formou, como vimos, um movimento cooperativista internacional. Da mesma forma, a teoria associativista tem sido, ocasionalmente, retomada por movimentos e teorias sociais. Porém, nem o cooperativismo e nem as teorias que lhe servem de base chegaram a ser predominantes. Apesar de terem surgido experiências do porte do Complexo Cooperativista de Mondragón, situado na Espanha, o sistema cooperativista não conseguiu converter-se em uma alternativa importante em relação ao sistema capitalista. O cooperativismo sofreu críticas e ataques tanto do liberalismo como do socialismo. No seu texto, Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels trata os seus formuladores, em especial Owen, com respeito e consideração. Mas, para ele, a teoria do socialismo desses pensadores era ainda utópica, e as experiências das organizações autogestionárias criadas por eles eram vistas pelo socialismo científico como acontecimentos parciais e transitórios. Para Vieitez (1997), as concepções dos utopistas dominaram uma boa parte do século XIX. Em 1875, o Programa de Gotha, da social democracia alemã, sob influência dos lassallianos, ainda colocava como um ponto estratégico a criação de cooperativas de produção com auxílio do Estado. No entanto, nos anos subseqüentes, a história pareceu favorecer as proposituras do socialismo científico. ”Não foram as organizações de produção autogestionárias que floresceram, mas sim, as organizações coletivas de luta, como os sindicatos e partidos [...]” (VIEITEZ, 1997, p. 20). Apesar disso, nos últimos anos, a teoria e as práticas cooperativistas têm suscitado um renovado interesse. Com o fracasso das economias do socialismo real e com a ascensão do neoliberalismo, pesquisadores, ativistas e governos progressistas de todo o mundo têm recorrido de forma crescente à tradição de pensamento e organização econômica cooperativa que surgiu no século XIX com o objetivo de renovar a tarefa de pensar e de criar alternativas econômicas (SANTOS; RODRIGUES, 2002, p. 35). Essa alteração é observável tanto pelo número crescente de organizações cooperativistas criadas em todo o mundo, quanto pela bibliografia sobre o tema que tem 21 crescido nos países centrais, bem como pelos relatos de experiências e estudos de casos sobre cooperativas de trabalhadores forjadas nos países da semiperiferia e da periferia. Na América Latina, sobretudo no Brasil, o interesse pelas cooperativas de trabalhadores vem expressando-se na conformação de propostas ligadas à denominada economia solidária. 3. Economia solidária no Brasil Desde a década de 1970, abstraindo-se certas oscilações, a economia brasileira vem se caracterizando por baixos índices de crescimento quando considerados o seu potencial e as necessidades de uma população que, em sua maioria, está fragilmente integrada ao mercado de consumo. A partir da década de 1980, acelerou-se o abandono da política de industrialização apoiada na substituição de importações. O ideário desenvolvimentista praticamente desaparece do cenário político-ideológico oficial e as classes dominantes aspiram à associação com o capital internacional. No início da década de 1990, políticas de franqueamento do mercado interno são colocadas em prática pelo governo Collor, as quais são aprofundadas pelos governos subseqüentes que conduzem uma política de privatizações em grande escala, de atração do capital estrangeiro por meio de juros altos, entre outras medidas. Neste contexto, as empresas brasileiras tiveram que lidar com a súbita competição internacional a que foram expostas, e com a necessidade de adequar-se urgentemente à reestruturação produtiva. A conjuminação de baixos índices de crescimento com a exasperação da concorrência e a necessidade de adequação à reestruturação produtiva começou a erodir os níveis de emprego, desembocando no que, atualmente, parece configurar-se como um fenômeno estrutural. É neste cenário, marcado por problemas de realização do lucro no mundo do capital e de desemprego crescente no mundo do trabalho que, a partir dos anos de 1980, começam a emergir os novos sujeitos da economia solidária. O termo economia solidária abriga uma realidade bastante diversificada, abrangendo diferentes setores produtivos e envolvendo diversas categorias sociais. Inclui desde grupos 22 informais e organizações econômicas populares constituídas pelos setores mais marginalizados da periferia até empresas e cooperativas prósperas de médio e pequeno porte. Há vários representantes, entidades e movimentos, no Brasil, hoje, que têm a tarefa de auxiliar na organização e prestar assessoria técnica e política a empresas e cooperativas solidárias. Dentre eles, podemos citar: a) Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag); b) Unisol; c) Confederação das Cooperativas de Trabalho (Cootrabalho); d) Cáritas Brasileira; e) A Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (ACCMV); f) Incubadoras de Cooperativas; g) Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil (Concrab). A Anteag surgiu em 1992, a partir de indústrias têxteis e de calçados que se encontravam em sérias dificuldades, entre outros motivos, devido à concorrência de produtos importados ensejada pela abertura abrupta do mercado nacional. No ano de 1998, a Anteag possuía 41 empresas espalhadas pelo país e, hoje, relaciona-se com mais de 200 empreendimentos aos quais presta assessoria técnica, política e educacional. Em termos imediatos, a Anteag coloca-se pragmaticamente a tarefa de salvar ou criar postos de trabalho numa situação de desemprego alarmante. Isto se encontra em consonância com o fato de que a grande maioria de seus empreendimentos associados é ainda, hoje, originária do resgate de empresas capitalistas falidas ou em processo falimentar. Contudo, seu escopo último é mais profundo e ambicioso, pois acredita na possibilidade de criar e expandir relações de trabalho não assalariado, isto é, relações que tenham o trabalhador, e não o capital, como epicentro da atividade produtiva (DAL RI; VIEITEZ, 1999, p. 28). A autogestão é a denominação utilizada para designar essas novas relações de trabalho. A Unisol nasceu de uma dissidência da Anteag e foi fundada em 1999 com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Propõe os mesmos objetivos e desenvolve atividades semelhantes às desempenhadas pela Anteag. No entanto, sua área de atuação, até o momento, está restrita ao ABC Paulista. Conta, ainda, com uma Incubadora de Cooperativas Populares, apoiada pela Prefeitura de Santo André e ligada à Fundação Santo André (Instituto Municipal de Ensino Superior). 23 A Cootrabalho associa Federações Estaduais que congregam diversas modalidades de cooperativas, como, por exemplo, produção e serviços, as quais têm associados que vivem do trabalho realizado nas mesmas. A Cootrabalho afilia-se à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a qual tem influência predominante do cooperativismo tradicional. Porém, a criação da Cootrabalho deve-se ao fato de que os interesses das cooperativas de trabalho, diferentes daqueles das cooperativas tradicionais, não estavam sendo contemplados na OCB. Dessa forma, a Cootrabalho, ao ser criada, reiterou os princípios da ACI e formulou crítica a certas práticas do cooperativismo tradicional, em especial quanto ao emprego de trabalho assalariado e quanto à gestão dos empreendimentos. A Cáritas Brasileira é uma instituição da Igreja Católica e faz parte da rede da Cáritas Internacional. Ela tem como objetivo dar sustentação à ação social da Igreja e está ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A Cáritas desenvolve suas atividades com fundos gerados pela Campanha da Solidariedade, no Brasil, e com fundos advindos das Cáritas dos países centrais. A tese defendida pela Cáritas é a de que os trabalhadores, desde que se organizem e obtenham apoio, podem por si mesmos superar a miséria. A Cáritas passou a apoiar milhares de Projetos Alternativos Comunitários por todo o Brasil, desde de 1984, contando com a ajuda de Cáritas internacionais (SINGER, 2002, p. 117). De acordo com Singer (2002, p. 119-110), o desenvolvimento de experiências de economia solidária sofreu forte aceleração em 1994, quando a ACCMV resolveu modificar sua tática de intervenção e, em vez de apenas distribuir alimentos, passou também a fomentar a geração de trabalho e renda. Ela completou em dois anos a mesma evolução que a Cáritas realizou em quinze, ao passar de uma ação apenas assistencial para a denominada solidariedade libertadora. Por ser um dos movimentos de massas mais amplos que já ocorreu no Brasil, a mobilização levada a cabo pela ACCMV foi, desde o início, muito grande. Em outubro de 1993, a ACCMV possuía mais de 3000 comitês espalhados pelo país. Os resultados da opção pela geração de emprego e renda feita por parte de Betinho e pela ACCMV ainda não foi objeto de levantamentos e, dessa forma, não há informações sistematizadas acerca de tudo o que foi realizado pela Ação. Porém, uma cooperativa de trabalho criada com a 24 intervenção da Ação, e com apoio da Fundação Osvaldo Cruz, ficou bastante conhecida. Trata-se da Cooperativa de Trabalho de Manguinhos (Cootram), localizada no Rio de Janeiro, que reúne associados de dez favelas que formam o Complexo de Manguinhos e atua nas áreas de reciclagem de lixo, serviços de jardinagem, serviços de limpeza, confecção, entre outras. A realização deste trabalho mobilizou, também, o corpo docente e discente de Universidades do Rio de Janeiro. Da experiência da criação da Cootram nasceu a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares. Em 1995, a Coordenação do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE), após reunião realizada com a ACCMV e com o Fórum de Ciência e Cultura da Universidade apresentou o projeto de criação da Incubadora cujas atividades tiveram início em 1996. Segundo Dal Ri e Vieitez (1999, p. 26), o princípio fundamental de funcionamento das cooperativas defendido pela COPPE é o caráter democrático de gestão. Para garanti-lo, as cooperativas utilizam-se de instrumentos tais como os contratos, as assembléias gerais, as comissões de ética e a criação de fundos para auxiliarem o crescimento tanto da empresa como dos direitos sociais dos cooperativados. Após o sucesso do trabalho realizado pela COPPE, ampliou-se o número de Incubadoras com financiamento da Finep e da Fundação do Banco do Brasil. As primeiras Incubadoras de Cooperativas Populares são as das Universidades Federais do Ceará, Juiz de Fora, Rural de Pernambuco, da Estadual da Bahia e da Universidade de São Paulo. Depois dessas, surgiram muitas outras. As Incubadoras da Universidade de Campinas e da Universidade Estadual Paulista estão no início dos seus trabalhos. O movimento popular pela reforma agrária era bastante expressivo antes de 1964, ano em que os militares implantaram o regime de força no país. Apesar da repressão sistemática e do desmonte das organizações populares, as aspirações de acesso à terra não desapareceram. No início dos anos 1980, o desemprego ascendente nas cidades e as dificuldades de vida e trabalho das populações rurais, somando-se à rearticulação das organizações representativas dos trabalhadores, em luta contra a ditadura, recolocaram a consigna da reforma agrária. Um dos desdobramentos desta questão foi, em 1984, a 25 fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que vem implementando uma ação marcada por pressões políticas e ocupações articuladas de terra. O MST, que se tornou o movimento popular de massa mais importante da atualidade no país, tem como objetivo último transformar a ordem social capitalista e instaurar o socialismo. Certamente, o MST não é um movimento do qual possa afirmar-se que preconiza a transformação da sociedade por meio do cooperativismo. 2 No entanto, num certo momento de sua trajetória, em 1992, funda a Concrab. O modo pelo qual o MST chega ao cooperativismo decorreu de suas experiências com os assentamentos ligados à reforma agrária. Assim, as cooperativas da Concrab, como todas as demais organizações deste tipo, são regulamentadas pela legislação cooperativista brasileira que apresenta pontos de contato com a doutrina expressa pela ACI. A Concrab não rejeita os princípios clássicos do cooperativismo. Entretanto, por meio de sua experiência, chegou à conclusão de que estes princípios, em sua formulação usual, não garantem a democratização das relações de trabalho. Tendo isto em vista, a Confederação procura modificar as formas de participação dos associados. Por um lado, cria novas instâncias de representação que contemplam os níveis básico e intermediário da gestão. Por outro, busca inovar o regime de trabalho, descentralizando as instâncias de poder e modificando a concepção de divisão de trabalho que impera na ordem social capitalista. Não obstante a dificuldade do MST e da própria Concrab em nomear estas modificações que vão sendo introduzidas, em seus documentos e alocuções encontra-se o termo autogestão. As demais características do Movimento e das cooperativas da Concrab serão apresentadas e discutidas em capítulos próprios. Por último, após apresentar as principais entidades e movimentos que hoje no Brasil organizam e assessoram as empresas e cooperativas da economia solidária, acrescentamos que o nosso interesse direto, enquanto estudiosa do tema, recai sobre dois tipos de organização: as empresas e cooperativas de autogestão urbanas ligadas à Anteag e as cooperativas de produção agropecuária do MST. Isso porque, do nosso ponto de vista, essas são as organizações que mais promoveram modificações nas relações de trabalho e na gestão dos empreendimentos e, também, as que apresentam uma maior preocupação com o 2 - Embora tenhamos colocado o Movimento junto a outras organizações da denominada economia solidária, o mais prudente talvez fosse dizer que ele contém elementos da economia solidária. 26 aspecto educacional. Em outras palavras, são as organizações mais avançadas do ponto de vista econômico e político e, portanto, constituem-se em objetos de pesquisa importantes e diferenciados, pois por meio do seu estudo podemos verificar as possibilidades de desenvolvimento e de significância política, social, econômica e educacional, pelo menos em termos de tendência. Em trabalho anterior (VIEITEZ; DAL RI, 2001), ao estudar 19 empresas e cooperativas de autogestão, chegamos à definição do termo trabalho associado que engloba o conjunto de modificações e transformações promovido por essas organizações. Dessa forma, neste trabalho, denominamos esses empreendimentos de Organizações de Trabalho Associado (OTAs). 4. A educação do trabalho associado e as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra De acordo com Bowles e Gintis, os estágios de desenvolvimento do capital repercutiram diretamente sobre a organização da educação. “A mudança de um capitalismo de empresários para sua moderna forma corporativa - sustentamos -, refletiu-se na política educacional e na teoria” (1976, p. 63). Segundo os autores, o capitalismo estendeu-se ininterruptamente absorvendo outras relações sociais além das econômicas. Mas, uma de suas características é o desenvolvimento desigual. O desenvolvimento desigual concentra poder e vantagem econômica no pólo mais desenvolvido, justamente onde está a maior concentração de capital e capitalismo. O resultado disso para a educação é que um desenvolvimento desigual do capitalismo significa um desenvolvimento desigual da força de trabalho, bem como de sua formação. A educação no Brasil vem evoluindo segundo o diapasão de um país da periferia que se encontra em secular e interminável processo de desenvolvimento econômico. Nas últimas três décadas, o Estado brasileiro quase conseguiu universalizar a educação pública gratuita fundamental constituída de oito anos de ensino3. Esse fato, que deveria ser 3 - Na faixa etária de 7 a 14 anos, idade em que é obrigatória a matrícula, o país atingiu o percentual de 94,9 % das crianças na escola, segundo o Censo 2000 (GOIS, 2002, p. A6). 27 auspicioso é, no entanto, uma das manifestações da tragédia social que grassa no país, uma vez que o ensino público, no geral, é tão ruim que compromete a sua generalização. Essa modalidade do ensino público consolida a dicotomia característica do sistema escolar, ou seja, essa educação é destinada às classes populares e pobres, enquanto que para as classes média e alta o Estado promove a educação privada. Acrescentemos que a educação infantil é ainda assistencial e compensatória, o ensino médio é altamente deficitário, e o ensino superior encontra-se privatizado em cerca de 80% das matrículas, caracterizando-se por péssima qualidade. Vários autores, já há décadas, preocupados com a realidade social, têm formulado idéias educacionais com o propósito de incitar uma formação acadêmica que habilite a população para efetuar uma ação transformadora na sociedade, tendo como perspectiva o fortalecimento da democracia, a cidadania, a igualdade social e até mesmo o socialismo. Nesse contexto surgem formulações tais como a educação para a cidadania, a formação de consciência crítica, o cultivo dos valores humanistas e várias outras. Nesse campo de preocupações inserem-se também as organizações de trabalho associado. As OTAs nascem no terreno da organização do trabalho, ou seja, da produção, e este é o campo primordial sob o qual prosperam ou não. Entretanto, logo que conseguem alcançar um mínimo vital de recursos para garantir a sobrevivência do empreendimento e, concomitantemente, um mínimo de massa crítica, tomam consciência de que a educação e a re-educação de seus associados são uma força fundamental para seu funcionamento e desenvolvimento, o que as induz a desencadearem ações educativas de vários tipos. Uma das atividades considerada estratégica pelo MST, bem como pela Concrab é a educação. Dessa forma, observamos os vários esforços pedagógicos do MST, com a ressalva de que se trata de uma práxis pedagógica que está em consonância com a experiência político-social e organizativa mais ampla do próprio Movimento. A política educacional posta em prática pelo Movimento visa atacar alguns problemas que foram detectados com o desenrolar do seu trabalho. Nos assentamentos não havia escolas viáveis e suficientes para os filhos dos assentados. Ademais, as escolas oficiais não atendiam aos interesses dos Sem Terra. Por outro lado, jovens das famílias assentadas, continuavam a aspirar à vida urbana. Finalmente, a formação acadêmica e a 28 escolaridade dessa população eram muito baixas e não havia nenhuma preparação para a vida cooperativa. Foi neste ambiente que se formulou um projeto educacional cujos objetivos mais relevantes são: educar as pessoas para o trabalho coletivo; estimular a permanência dos jovens no campo e possibilitar uma formação política e ideológica aos assentados. Duas escolas do MST são emblemáticas dessa política: o Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC), escola de ensino médio e profissional, e a escola de ensino fundamental denominada Construindo o Caminho (ECC). Trata-se de escolas reconhecidas pelos órgãos educacionais, organizadas segundo os princípios do trabalho associado, geridas pelos próprios alunos e que se orientam pelo princípio de conjunção do trabalho produtivo com o ensino. Assim, ressaltamos que a práxis educacional do MST é diferenciada tanto em relação à escola oficial, quanto em relação a outras proposições críticas existentes. Portanto, o estudo da experiência pedagógica do MST é significativo e pertinente à pesquisa, dada a sua originalidade e possíveis virtualidades teóricas e práticas. 5. A problemática Desde o ano de 1992, nossos estudos e pesquisas têm-se concentrado na temática mais ampla Educação e Trabalho e, mais especificamente, no estudo de organizações democráticas, de gestão democrática ou de autogestão. Dessa forma, encerramos, em 1997, estudo sobre os sindicatos de docentes, autonomia universitária e a gestão democrática na universidade, ou como denominamos em nosso trabalho, o autogoverno nas Universidades Estaduais Paulistas. Posteriormente, desenvolvemos uma pesquisa por meio da qual examinamos empresas e cooperativas de autogestão, situadas em vários Estados do Brasil. Além de outros aspectos, foram estudadas as gestões democráticas dessas empresas e as ações educativas desencadeadas por elas. A presente pesquisa é uma continuidade das investigações anteriores. A relação entre o presente objeto de estudo e os trabalhos anteriores decorre de dois fatos concomitantes: 1) as escolas IEJC e ECC declaram-se de gestão democrática, o que as situa em ordem análoga ao fenômeno autogestionário examinado; 2) as escolas encontram-se 29 organicamente ligadas às cooperativas do MST, a primeira, à Concrab e, a segunda, à Cooperativa de Produção Agropecuária denominada Cooperunião. Essas organizações também se declaram de gestão democrática. Além desses fatores, as escolas orientam-se pelo princípio da conjunção entre ensino e trabalho produtivo. Esta pesquisa, portanto, contribuirá de forma significativa para a compreensão do fenômeno da autogestão, em suas várias manifestações, dentre as quais desponta como estratégica a dimensão educativa. 5.1. Problema, hipótese central e objetivos Partimos da crítica à educação capitalista por meio do estudo de alguns trabalhos selecionados, enfatizando aqueles que, em suas análises, dão prioridade ao desvendamento da relação entre educação e modo de produção do capital. Assim, chegamos à proposta alternativa educacional autogestionária do MST que se coloca de forma diferenciada e contrária à educação burguesa. Dessa forma, procuramos entender, neste trabalho, qual a força determinante da organização e da evolução da educação capitalista e como as contradições inerentes a essa força propiciam o aparecimento de inflexões educacionais anti-hegemônicas autogestionárias. O problema de pesquisa foi formulado da seguinte forma: qual a força determinante da organização da proposta educacional do MST? Há uma outra questão investigativa subsidiária que tentaremos, também, elucidar neste trabalho, qual seja: a proposta ou a pedagogia do MST conteria elementos válidos para a elaboração de um programa educacional para as classes trabalhadoras em geral? Nesse sentido, defendemos a tese de que o modo de apropriação do excedente econômico e a luta de classes determinam a organização da proposta educacional do MST. O trabalho associado, expressão desse novo modo de apropriação, deve ter decorrências democráticas para ser coerente com ele mesmo. Dessa forma, procuraremos demonstrar que a proposta educacional do MST está construída em torno de três elementos determinantes: a) a luta de classes que tem certo nível de radicalidade no Movimento; b) a reestruturação das relações de trabalho com base no trabalho associado e; c) a influência de 30 certos elementos teóricos e de certas correntes pedagógicas. Esses três elementos combinados geraram a visão pedagógica do MST. Porém, dentre essas três forças, a mais importante ou determinante é a do trabalho associado, pois é essa força que articula as outras duas. Quanto à segunda questão, pensamos que as experiências educacionais que o MST vem desenvolvendo em mais de duas décadas de existência devem ser aproveitadas para o debate e aprimoramento das idéias a respeito da elaboração de um programa educacional para a classe trabalhadora. Enquanto objetivos deste trabalho, procuraremos: a) Determinar as principais contradições presentes no sistema de ensino oficial atual; b) Explicitar e analisar os principais fundamentos da proposta educacional do MST; c) Analisar o significado político, social e econômico da experiência educacional autogestionária do MST; d) Verificar se a proposta ou a pedagogia do MST contém elementos válidos para a elaboração de um programa educacional para as classes trabalhadoras em geral. 6. Notas metodológicas, procedimentos e explicitação de conceitos Orientamo-nos epistemologicamente pela concepção de que o processo de conhecimento implica delimitações ou recortes quanto ao campo de investigação e à problemática, porém não aceitamos a atomização do caráter de totalidade do objeto a ser investigado. Dessa forma, a análise da prática educativa escolar e de suas relações com a estrutura econômico-social moveu-se, basicamente, nos âmbitos econômico, sociológico, político e filosófico. Essa forma de abordar as relações entre a prática educativa escolar e a estrutura econômico-social decorre da concepção segundo a qual a prática pedagógica escolar não se define, enquanto uma prática social, apenas pelo seu aspecto pedagógico e a prática econômica não se reduz a uma visão economicista na qual o social, o político e o filosófico estão excluídos. Tentamos, ainda, em nossa análise, de um lado, romper com o esquema que faz uma separação substantiva entre o aspecto econômico e o político e, de outro, com certa visão que trabalha com a separação entre infra e superestrutura, bem como com a idéia das 31 autonomias relativas das instituições da sociedade civil. Naturalmente, um estudo pode ser feito mais do ponto de vista econômico ou político. Porém, isso não significa autonomizar essas instâncias. Da mesma forma, também nos parece claro que a escola, por exemplo, tem as suas especificidades, assim como o Estado, a cultura, o direito. No entanto, as categorias fundamentais do capital encontram-se em toda parte. Tal enfoque revela-se complexo, além de certa complexidade que advém das múltiplas determinações que encerra a problemática enunciada. Dessa forma, há um risco que não reside propriamente no âmbito metodológico, mas nos nossos limites enquanto pesquisadora, primeiro, quanto a possíveis deficiências na apreensão das diferentes dimensões e, segundo, no sentido de produzir uma análise na qual consigamos integrá-las. Na área da metodologia científica, talvez uma das maiores polêmicas que ainda hoje persiste seja aquela vinculada às diferenças na visão de ciência dadas pela abordagem qualitativa e a quantitativa. Um dos mais importantes impulsos dados às ciências sociais modernas tem sido o esforço para se conseguir a quantificação dos processos de pesquisa. Porém, uma parte considerável de investigadores advoga a idéia de que muitos fenômenos sociais não se prestam à quantificação. Qual é, então, a confiabilidade dos seus dados e em que medida se pode retirar conclusões seguras de um material não mensurável? Por sua vez, ao enfrentar esse dilema, muitos cientistas sociais desistiram da busca de uma resposta, pois os dados pareciam-lhes vagos e crus e, portanto, não confiáveis. Uma das saídas para esse dilema foi a de formularem-se problemas de tal modo que o encaminhamento da pesquisa apenas poderia partir de dados quantificáveis. Assim, a possibilidade de quantificação dos dados determinava a escolha dos problemas a serem investigados e, a partir daí, decorriam os conceitos ou teorias com os quais se definiam e manuseavam os dados empíricos. Para nós, mesmo numa reflexão mais rápida, parece claro que o processo de pesquisa fica, assim, invertido. A teoria deve determinar os instrumentos de pesquisa, pelo menos na maior parte do tempo, e não o contrário. Não vemos problemas nas quantificações, na medida em que o grau de quantificação possa refletir o máximo de precisão que é possível para problemas e métodos determinados. É sempre desejável mais quantificação e não menos, na medida em que ela possa responder às questões que derivam do exercício teórico ou conceitual. No entanto, a 32 postura que rejeitamos é aquela que toma a interpretação empirista das relações observadas e que, sob a aparência de fidelidade ao real, limita-se ao objeto aparente. E não é incomum encontrarmos pesquisadores empíricos perdidos no meio de dados irrelevantes, fazendo testes estatísticos sobre questões que não tocam problemas cruciais da realidade ou então apenas descrevendo fenômenos, sem os explicar. Ora, as faces mais relevantes da realidade não se manifestam à primeira vista e sempre há dimensões refratárias à mensuração. Se levarmos em conta apenas o que é possível ser quantificado, corremos o risco de ficar apenas com o superficial. No entanto, se soubermos utilizar, a dedicação empírica pode auxiliar o desvendamento da realidade estudada. Por fim, ainda há a questão da objetividade e do comprometimento. Questões polêmicas, sobretudo dado o caráter político do nosso objeto de estudo. Não acreditamos que exista uma ciência social não comprometida e neutra. Mas, isso não significa que não possamos ser objetivos. É, antes de tudo, uma questão de definição de termos. Podemos concordar com Platão que a ciência é a “posse da verdade” (apud GALLIANO, 1986, p. 9). Porém, a verdade muda porque a sociedade muda. E todos nós somos, irremediavelmente, o produto dos nossos treinos, da nossa personalidade e papel social e das pressões estruturadas no seio da qual nos movemos. Isto não quer dizer que não haja opções, ao contrário. Um sistema social e todas as instituições e movimentos que o constituem são o locus de variados grupos sociais que estão em contato, em confronto e, sobretudo, em conflito uns com os outros. E como pertencemos a grupos múltiplos e diferentes, temos que, freqüentemente, tomar decisões relativas às nossas lealdades e ideologias. Estudiosos e cientistas não estão de modo algum isentos desta exigência. E nem esta é limitada apenas aos seus papéis não científicos, ou seja, aos seus papéis diretamente políticos. Obviamente, ser um estudioso ou investigador científico significa desempenhar um papel muito diferente do de ser um defensor ou militante de um grupo ou movimento social. O papel do investigador é tentar discernir, no quadro dos seus compromissos, a realidade presente no objeto que estuda, tentar derivar do seu estudo princípios gerais ou tendências dos quais se possam fazer aplicações particulares. No entanto, do nosso ponto de vista, a ciência social é um processo e para fazê-la é necessário ter uma compreensão da 33 dinâmica social do presente, ou da realidade atual. Isto exige uma compreensão teórica que deverá basear-se no estudo de uma vasta gama de fenômenos e também da história, em última instância, no domínio de uma teoria social. Mas as teorias sociais, não são elas também ideológicas? Gostaríamos de afirmar que as ciências sociais são inevitavelmente ideológicas, porque são, também, um fenômeno social. Isto é, são construídas socialmente ao sabor de um fluxo histórico alimentado pelos conflitos da desigualdade social, pela luta de classes. Devemos discutir, então, não a sua isenção, mas o grau maior ou menor de compromisso ideológico. Devemos concentrar nossos esforços não na eliminação da ideologia, mas em uma convivência crítica com ela, para que em nossas pesquisas predominem as construções científicas sobre a ideologia. Neste contexto, dizemos junto com Wallerstein (1974, p. 21) que “objetividade é sinônimo de honestidade”. Por fim, na medida em que desejamos um mundo mais igualitário e democrático, temos que compreender as condições sob as quais esse projeto é realizável. Fazê-lo requer uma exposição clara da natureza e evolução do fenômeno e a gama dos seus possíveis desenvolvimentos no presente e no futuro. As ciências produzem um conhecimento que é também expressão de poder. E no quadro do nosso empenho e compromisso, constituiria um poder de utilidade para aqueles grupos que representam os interesses da maioria oprimida e explorada, ou seja, da classe trabalhadora. 6.1. Procedimentos O nosso objeto de estudo empírico é constituído por duas escolas do MST. A seleção desses dois casos de referência para podermos estudar a proposta e a práxis educacional do MST foi bastante simples de ser efetuada. Tomamos para estudo aqueles dois casos considerados tanto pelo Movimento como por outros pesquisadores como sendo os exemplos de escolas mais avançadas. A palavra avançada significa aqui que foi nessas escolas onde o MST conseguiu de forma mais aprofundada implantar a sua proposta educacional. Trata-se, como já enunciado, da escola de ensino médio e profissional, Instituto de Educação Josué de Castro que funciona junto ao Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), localizado em Veranópolis, Rio Grande do Sul e da 34 escola de ensino fundamental, Construindo o Caminho, localizada no Assentamento Fronteira da Conquista, no município de Dionísio Cerqueira, Santa Catarina. O IEJC possui cinco cursos de ensino médio, além de cursos supletivos de 1º. e 2º. graus e recebe alunos vinculados ao MST de vinte e um Estados do país. A ECC tem classes de 1ª. a 4ª. séries e uma sala de educação infantil. A ECC atende basicamente aos alunos moradores do assentamento. No capítulo III, da Terceira Parte deste trabalho, apresentamos uma descrição detalhada das escolas. Em 1999, realizamos um estudo sobre o Sistema Cooperativista do MST cujos resultados foram publicados em forma de capítulo de livro. Em 2001, elaboramos um projeto de pesquisa para o estudo do IEJC e os dados empíricos a respeito da escola foram coletados em novembro desse mesmo ano. Durante esse trabalho, tomamos conhecimento da existência e da importância, para o Movimento, da ECC. Em 2002, elaboramos um outro projeto para o estudo da ECC e os dados empíricos foram coletados em setembro desse ano. Apenas em 2003, após tomar contato mais profundo com a proposta educacional do MST, elaboramos um terceiro projeto, bem mais amplo, que integrava os outros dois e com vistas ao desenvolvimento do trabalho para a livre-docência. Os sujeitos ou informantes desta pesquisa foram, no IEJC, a diretora da escola, uma funcionária (secretária), o professor da disciplina de História, um acompanhante de turma e três alunos que ocupavam, no momento do levantamento dos dados, cargos de coordenadores nas instâncias deliberativas do Instituto e alunos do Curso de Administração em Cooperativas. Na ECC os informantes foram: uma das professoras, quatro alunos que no momento do levantamento de dados ocupavam cargos de coordenadores nas instâncias deliberativas da escola, alunos de 3ª. e 4ª. séries, quatro pais de alunos, três associados e três dirigentes da Cooperativa do Assentamento. Para selecionar os sujeitos da pesquisa levamos em consideração critérios tais como: ocupar o cargo de direção no Instituto e na Cooperativa do Assentamento, professores da ECC, professores da área de humanidades do IEJC, alunos que estivessem em cargo de coordenação nas instâncias de deliberação das escolas, ser associado da Cooperativa e pais de aluno da ECC. 35 Em ambos os casos, conseguir realizar as entrevistas e observações foi bastante difícil. Na IEJC, as dificuldades estiveram, primeiro, relacionadas ao fato de que a maioria dos professores não fica na escola e, segundo, que os alunos têm inúmeras atividades durante todo o dia e não podem perder tempo. Desse modo, conseguimos entrevistar apenas o professor da disciplina de História do Instituto. Da mesma forma, no Assentamento, para realizar as entrevistas, tivemos que retirar as pessoas da produção, o que para eles configura-se em um verdadeiro transtorno. Ao mesmo tempo, uma das professoras da ECC encontrava-se em licença maternidade e, assim, não foi possível entrevistá-la. Para obtermos as informações necessárias à investigação da realidade estudada utilizamo-nos de quatro procedimentos básicos para o levantamento de dados. A pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental sobre as quais a investigação apoiou-se. Utilizamos, predominantemente, a documentação e a as publicações do MST e, também, publicações de autores que estudaram o Movimento e outros temas necessários ao desenvolvimento do trabalho. Articulamos a esses procedimentos, a coleta de materiais empíricos em loco com a utilização de observação direta, coleta de documentação e entrevistas individuais e coletivas. Utilizamos a entrevista semi-estruturada que combina perguntas abertas e fechadas, como o principal instrumento para a coleta de dados. No IEJC, além dos informantes já denominados, fizemos uma entrevista coletiva com os alunos de uma turma do Curso de Técnico em Administração de Cooperativas. Da mesma forma, na ECC, realizamos uma entrevista coletiva com os alunos da 3ª. e 4ª. séries do período diurno. Para alcançar a captação mais precisa do objeto estudado, utilizamos, ainda, a técnica da observação informal ou livre. Embora classificada dessa forma, esclarecemos que, para a realização das observações, já havíamos definido um conjunto de categorias de acordo com os objetivos e hipóteses da pesquisa. As observações foram realizadas nas escolas e no Assentamento. Não houve maiores preocupações com a quantificação visando medir o nível de generalização dos fenômenos. O estudo empírico nas escolas e Assentamento teve por finalidade colher subsídios in vitro que contribuíram para a tentativa de formulação de padrões e tendências da organização do trabalho e relações pedagógicas estabelecidas. 36 A análise interpretativa apoiou-se nos seguintes aspectos principais: estudo teórico; resultados alcançados como respostas aos instrumentos de coletas de dados empíricos; e análise documental. Ao longo do texto discutimos as categorias modo de produção, modo de apropriação do excedente, trabalho, relações de trabalho e educação por se constituírem nos elementos básicos mediante os quais buscamos dar conta da análise aqui proposta. Dentro do caráter deste trabalho, porém, julgamos necessário situar o leitor em termos de algumas categorias e conceitos utilizados, delimitando o sentido que damos a eles. a) Classe burguesa, capitalista, dominante, burguesia - os termos aparecem no texto como sinônimos e compreendem os proprietários, individuais ou associados em empresas capitalistas, dos meios e instrumentos de produção, bem como aqueles que, embora não proprietários, constituem o funcionário do capital, ou seja, os intelectuais orgânicos do capital. b) Classe proletária, trabalhadora, dominada, proletariado - os termos aparecem como sinônimos e designam o conjunto dos trabalhadores que no interior das relações capitalistas de produção são expropriados pelo capital. Não ignoramos a heterogeneidade e mesmo as segmentações que, historicamente, fazem-se presentes no interior das classes sociais. Não desconhecemos, também, o fenômeno complexo e pouco resolvido daquilo que a literatura denomina de classes médias, pequena burguesia, etc. Utilizamos, também, essas nomenclaturas. No entanto, o que nos interessa neste trabalho é demarcar os pólos fundamentais que constituem a divisão de classes na sociedade capitalista. c) Trabalho associado - constituído por organizações econômicas (empresas ou cooperativas) dos trabalhadores. A propriedade é coletiva, o trabalho assalariado foi suprimido e a gestão do empreendimento é coletiva e democrática. d) Autogestão - em seu sentido restringido, significa a incorporação direta dos trabalhadores ou estudantes nos órgãos básicos ou instâncias decisórias e de poder das organizações (escolas, empresas, cooperativas). Neste caso, os meios de produção estão socializados e os trabalhadores e / ou estudantes são os responsáveis diretos e imediatos pela tomada de decisões. O termo não é empregado no sentido de um modo de produção 37 autogestionário. O termo que utilizamos para denotar uma sociedade inclusiva é o de produtores associados (MARX). e) Educação e prática educativa - embora neste trabalho referimo-nos mais especificamente à prática educativa do MST e de suas escolas, em diferentes momentos mostramos que a mesma efetua-se nas relações sociais de produção e nas relações sociais entre as classes. Tentamos nos mover, sobretudo, com as categorias de análise dadas pela teoria marxista. Dessa forma, dispensamo-nos de uma explicitação de outras categorias utilizadas, tais como: contradição, totalidade, luta de classes, por acreditarmos que as indicações e referências contidas no texto respondem de forma suficiente à utilização das mesmas. 7. Estruturação do trabalho Para discorrer sobre a problemática enunciada, este trabalho foi estruturado em três partes, cuja ordem de exposição não corresponde a de investigação. A opção que fizemos em ordenar o trabalho na forma como ele se apresenta veio da necessidade que sentimos de, antes de adentrar à análise do objeto de estudo propriamente dito, discutir as circunstâncias em que o trabalho associado emerge. Em um segundo momento, foi necessário esclarecer ao leitor a formação e as características do Movimento, e a forma como ele encaminha a lutas de classes. A Primeira Parte está constituída por três capítulos. No Capítulo I, denominado de Emergência das organizações de trabalho associado, ocupamo-nos em discorrer acerca das principais motivações ou causas que levaram ao crescimento das organizações de trabalho associado, a partir dos anos 1970. Tentamos demonstrar que essas causas encontram-se, principalmente, no declínio econômico, nas modificações realizadas no mundo do trabalho, na fragilidade de reação ao neoliberalismo demonstrada pelas entidades dos trabalhadores, no desemprego estrutural e na autonomização do trabalho e do trabalhador. No Capítulo II, intitulado A formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, abordamos os elementos de formação do MST, a história de sua formação e sua evolução, os seus principais princípios e o significado que esse movimento político tem na atualidade brasileira. Já no Capítulo III, denominado O Sistema Cooperativista do Movimento dos 38 Trabalhadores Rurais Sem Terra, analisamos a organização do trabalho produtivo efetuada pelo Movimento, a criação do seu Sistema de Cooperativas, bem como as principais características, os problemas e as contradições encontrados nas suas formas de organização. A Segunda Parte é constituída por um capítulo que foi intitulado como As Principais Teorias da Sociologia da Educação. Neste capítulo, a partir de uma seleção de autores, trabalhamos as principais contradições encontradas no sistema de ensino oficial, bem como as principais funções que a escola burguesa exerce na sociedade. Essa análise, embora não seja o foco central da tese, representa a condição sem a qual não seria possível avançar na discussão das relações entre a educação e a estrutura econômico-social capitalista. A Terceira Parte é formada por três capítulos. O Capítulo I, denominado O Movimento como Educador Coletivo, trabalha a idéia de que para os membros do MST a principal escola, ou o principal educador é o próprio Movimento. No Capítulo II, intitulado A Pedagogia do Movimento, apresentamos e discutimos os princípios filosóficos e pedagógicos do MST, analisamos as suas principais influências teóricas e as principais categorias contidas na sua proposta educacional ou pedagogia. Por fim, no Capítulo III, denominado As Escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: alternativas democráticas à organização burguesa, analisamos as práxis pedagógicas e políticas observadas nas duas escolas objetos empíricos do nosso estudo. Por último, gostaríamos de acrescentar que o sentido da originalidade do nosso trabalho, se é que há alguma, não está na temática escolhida. Há já trabalhos realizados que estudam a educação do MST. Mas a originalidade encontra-se na forma pela qual buscamos o desvendamento dos problemas e das questões postas aqui, bem como nas teses que defendemos. Temos consciência de que nossas teses são polêmicas. Porém, do nosso ponto de vista, elas são, também, originais e diferenciadas, pois a maioria dos trabalhos realizados sobre a educação do Movimento ressalta como núcleo da sua proposta educacional o seu objetivo de formação da consciência crítica ou, dizendo de outra forma, o da formação do novo homem e da nova mulher. Para nós, esses trabalhos deixam de lado a principal força determinante da pedagogia do MST, qual seja o seu aspecto materialista. 39 PRIMEIRA PARTE CAPÍTULO I Emergência das Organizações de Trabalho Associado Por volta dos anos de 1960 e 1970, regimes ditatoriais haviam se estabelecido, ou estavam por estabelecer-se, em diversos países da América Latina. Hoje, de acordo com a perspectiva histórica, podemos perceber que essas ditaduras, essencialmente antipopulares, prenunciavam os fatos vindouros. À época, entretanto, elas poderiam ser vistas, e o foram, como o esforço das classes dominantes para conter o ímpeto ascendente e transformador do Movimento Operário e Popular (MOP). Segundo esta visão esperançosa, as ditaduras, embora significassem uma catástrofe para o povo, teriam sucesso apenas temporário em seus desígnios, pois logo se retomaria a tendência histórica progressista que se delineara por toda parte no pós-guerra. No Brasil, o ressurgimento do movimento operário, que tinha sido duramente reprimido pelo regime militar, em meados dos anos de 1970, e a renovação programática e organizacional que a partir daí ocorreu, parecia confirmar essa visão do movimento histórico. A situação em outras regiões do mundo fortalecia essa interpretação. Na África e Ásia travavam-se guerras de libertação nacional com viés progressista e socialista. Nos pólos hegemônicos, na Europa e também nos Estados Unidos, os trabalhadores industriais, os estudantes e outras categorias sociais promoviam ações como greves e outras que também parecia confirmarem a fortaleza do movimento popular, a irreversibilidade do que fora conquistado por meio das lutas históricas e, sobretudo, a continuidade dessa linha de progresso. Em vista dessa perspectiva, o desmantelamento do socialismo, o refluxo do movimento popular, bem como dos retrocessos políticos, econômicos e sociais verificados ou ainda em curso, concomitantemente a uma notável ofensiva das classes dominantes contra os trabalhadores em âmbito mundial, apresentam-se como fatos paradoxais e 40 enigmáticos, os quais estão desafiando a compreensão e ação do movimento popular. Em meio a esse processo em andamento, acontecimentos novos, de implicações, todavia, incertas, estão aflorando. Nas próximas linhas vamos referir-nos à formação das organizações de trabalho associado, bem como aos fatores sociais mais importantes que se encontram na origem de sua emergência. 1. A ruptura do pacto pós-guerra e o novo conceito de organização do trabalho Após a Segunda Grande Guerra, a economia capitalista teve um período de prosperidade. Esse crescimento, que teve como um dos fatores de impulsão a reconstrução das forças produtivas devastadas pela guerra, ocorreu sobre a base de um arranjo concertado entre o capital e o trabalho que situou os conflitos de classe num patamar compatível com um ciclo de acumulação. Esse acerto deu-se tipicamente nos países de centro, com especificidades na Europa, EUA, Canadá e Japão. Entretanto, esse modelo influenciou os países periféricos que editaram versões assemelhadas de relações de trabalho, ainda que em patamares de benefícios inferiores para os trabalhadores e com menor abrangência. Em estudo realizado sobre os EUA, Gordon, Edwards e Reich afirmam que: [...] a trégua pós-bélica entre as grandes sociedades anônimas e seus trabalhadores, especialmente os representados por grandes sindicatos industriais, se baseava em um qüiproquó bastante explícito: por um lado, muitos sindicatos e trabalhadores cederam à direção das companhias uma liberdade quase ilimitada sobre a organização da produção; esta ‘prerrogativa da empresa’ permitiu que estas determinassem a organização produtiva interna e incrementassem sua influência relativa sobre os trabalhadores. Por outro lado, as sociedades anônimas compraram a cooperação dos trabalhadores com a promessa de conceder três importantes condições: aumento de salários reais, estabilidade no trabalho e melhora das condições do mesmo. Simultaneamente, o governo tentava consolidar a trégua por meio de leis reguladoras das relações entre patrões e sindicatos e de programas de bem estar social que amortizassem o conflito capital- trabalho (1986, p. 275). Esse acordo estabeleceu o marco no interior do qual a estabilidade das condições de produção alimentou a expansão econômica e a prosperidade. 41 Durante este período, os salários e as condições de vida dos trabalhadores melhoraram, pelos menos para setores mais ou menos amplos, em especial nos países centrais (DUNLOP; GALENSON, 1985). No entanto, a liberdade praticamente ilimitada cedida pelos trabalhadores ao capital, tacitamente ou, sobretudo, mediante aos acordos reiteradamente selados entre sindicatos e patrões, fez com que o controle hierárquico sobre as relações de trabalho tivesse se incrementado ininterruptamente. Gordon, Edwards e Reich (1986, p. 276) consideram que as empresas aproveitaram continuamente as suas prerrogativas sobre a produção para aumentar sua influência administrativa de forma intensa. Estimam que o quociente de trabalhadores supervisores e o de não supervisores é uma medida aproximada da intensidade do esforço de controle das companhias. Este quociente passou de treze supervisores para cada cem trabalhadores não supervisores, no final da década de 1940, para vinte e três supervisores para cada cem trabalhadores, nos últimos anos da década de 1960, perfazendo um aumento de mais de 75%. A relativa paz entre capital e trabalho prolongou-se aproximadamente até o fim da década de 1960. Porém, em 1968, agitações estudantis, seguidas de ondas de greves operárias também nos anos subseqüentes, sacudiram a Europa e chegaram aos EUA, manifestando a insatisfação de estudantes e trabalhadores com as relações sociais vigentes. Há indícios de que o descontentamento da massa trabalhadora e potencialmente trabalhadora (estudantes) esteve ligado à quebra da linha de bem estar ascendente do pós- guerra. A partir de meados dos anos de 1960, os incrementos salariais quase haviam desaparecido, o desemprego aumentou por toda parte e as condições de trabalho nos empreendimentos também pioraram, com o aumento dos índices de acidentes e outros malefícios (BRENNER, 2003). Essa piora das condições de vida, bem como das expectativas dos trabalhadores, pode ter sido a determinação mais importante na quebra do pacto estabelecido. Contudo, não se podem descartar os efeitos decorrentes das relações de produção dominantes, pois como sugeriram as pautas motivadoras das greves selvagens, a contradição entre, por um lado, uma classe trabalhadora economicamente remediada e cada vez mais educada e, por outro, sua concomitante nulidade política na produção, era geradora de crescente descontentamento (SHORTER; TYLLY, 1985, p.212-221). 42 Ainda durante a fase alta de prosperidade, certos setores do capital deram início a experimentos localizados e restritos, que tinham por meta a busca de novas formas de organização do trabalho (CASTILLO, 1991). Com essa iniciativa reconhecia-se que a tensão secular decorrente do que Marx denominara de trabalho alienado (MARX, 1972) e que no período específico encontrava-se turbinado pela tecnocracia fordista e taylorista, não tinha sido satisfatoriamente equacionada nem mesmo naqueles setores em que se pretendera comprar o conformismo operário mediante a elevação dos consumos - todo o capítulo da sociedade do bem estar e ou da sociedade afluente. O intuito declarado desses experimentos visava encontrar os meios para dar maior autonomia aos trabalhadores no processo de trabalho; impulsionar o desenvolvimento do trabalho em equipes; flexibilizar a utilização do espaço e dos tempos; melhorar a combinação da organização do trabalho com os novos mercados e as novas tecnologias; aumentar a produtividade; melhorar a competitividade das empresas; criar espaços para a participação dos trabalhadores nos processos decisórios e aplacar o descontentamento das massas trabalhadoras no que dizia respeito ao despotismo fabril. Essa experimentação obteve seus resultados. Nos anos subseqüentes a 1970, a literatura sociológica e sobre administração passou a ser povoada por conceitos como just- in-time, trabalho em equipe, produção por meio de células de trabalho, descentralização e participação dos trabalhadores, dentre outros. Essa linha de pensamento parece ter alcançado inclusive o Estado, que passou a insistir em tópicos análogos como descentralização administrativa, organizações sociais e participação das comunidades na gestão dos assuntos públicos, como, por exemplo, no sistema escolar. A primeira e mais marcante característica comum a ser observada nesses discursos era a sua origem e sua disseminação a partir de organismos governamentais ou de agências que a eles se associavam. Evidentemente, ninguém, em princípio, se manifestaria contrariamente à proposta de ‘ação comunitária’ ou de ‘participação’ em qualquer esfera da vida social. [...]. De qualquer forma, o que nos levou à formulação do conceito ou categoria [‘ideologias de conveniência’] foi a convicção que se estabeleceu sobre a utilidade para o poder público da ‘venda’ dessas idéias ao conjunto da população. Apropriado que estava - e ainda permanece – pelos interesses do privatismo neoliberal [...] (SILVA JÙNIOR, 2002, p. 67) 43 A retórica empregada de teor democratizante e com apelo à participação popular, sugere a abertura de espaços reais de poder para os trabalhadores e a população em geral, nas unidades econômicas e em outras organizações, mas de fato não se trata disso. A mudança do conceito de organização do trabalho - especificamente do conceito seminal de fábrica -, busca uma transformação da burocracia tecnocrática clássica, da qual fazem parte as renomadas tecnologias taylorista e fordista. Mas isso não tem a ver com cessão de poder real à classe trabalhadora, e nem ao menos com a captura de sua subjetividade, ainda que esta possa também ocorrer. [...] o modo de tomada de decisão do capital - em todas as variedades conhecidas ou viáveis do sistema do capital - há forçosamente de ser alguma forma autoritária de administrar empresas do topo para a base. Entende-se, portanto, que toda a conversa de dividir o poder com a força de trabalho, ou de permitir a sua participação nos processos de tomada de decisão no capital, só existe como ficção ou como camuflagem cínica e deliberada da realidade (MÉSZÁROS, 2002, p. 28, grifos do autor). Fundamentalmente, o que o novo conceito implica é uma reorganização objetiva do processo de trabalho (MILLER; O’LEARY, 1994, p. 120-150). Essa reorganização busca implantar no interior dos locus de trabalho, mutatis mutandis, as relações sociais que regem o capitalismo no plano macro social, e que Marx definiu sob o epíteto de fetichismo da mercadoria (MARX, 1982). Trata-se de fazer com que as várias unidades ou plataformas de trabalho que compõem uma empresa, relacionem-se entre si segundo o princípio, embora não real, de compra e venda de mercadorias. Nessa formulação a atividade reguladora e controladora deve aparecer como imperativo imanente ao processo de trabalho e não como o arbítrio das personificações burocráticas onipresentes do capital. As equipes de trabalho, a participação, criatividade e responsabilidade dos trabalhadores, aflorariam, em princípio, espontaneamente. Os gerentes continuam a pontificar obviamente, mas eles são localizáveis apenas nas esferas mais elevadas da empresa e entram em cena quando a regulação imanente e a participação dos trabalhadores falham por qualquer razão. De acordo com Miller e O’Leary, “Os princípios da manufaturação celular deviam significar que o output (produto) de uma célula podia ser ‘vendido’ para seu comprador na célula seguinte ao longo da via de montagem” (1994, p. 129). 44 “A autoridade não devia mais repousar no supervisor ou na rotina de uma técnica de cálculo como, por exemplo, a de custos, mas devia ser inerente ao processo” (MILLER; O’LEARY, 1994, p.125). Acrescentam, ainda, os autores que: Isto é um esforço para produzir um novo tipo de pessoa, um novo tipo de cidadão econômico. Um tipo de cidadão cujas atividades estejam governadas de acordo com a idéia de competitividade e não por meio do desgastado conceito de custo (MILLER; O’LEARY, 1994, p. 134). Essas novas tecnologias no âmbito das relações de produção vêm sendo postas em prática parcial e fragmentariamente dos anos de 1960 aos dias de hoje. Apesar desse óbice elas são reais, alimentam a consciência pública com idéias de que as elites trabalham para expandir a participação e a democratização, ao mesmo tempo em que integram com coerência as políticas neoliberais que dominam o proscênio histórico. Isto porque a sua mais profunda virtude consiste em multiplicar o poder despótico do capital, não pela interposição de autoridades ou por técnicas diretas de controle, mas pela imersão dos trabalhadores o mais plenamente possível no universo das categorias constitutivas do capital, cuja operatória reificante, até certo ponto, pode prescindir de personificações e mecanismos de coerção explícitos. 2. O declínio econômico Quando o declínio econômico começou, na virada dos anos setenta do século passado (BRENNER, 2003, p.93), e incidiu negativamente sobre o mercado de trabalho, o que fizeram as elites das classes dominantes? Ofereceram alguma compensação aos trabalhadores visando à reconstituição e continuidade do modelo de bem estar social? Não, absolutamente. Deram início a um conjunto de ações que vieram a constituir o cerne da política neoliberal e que tinha (tem) por objetivo conseguir tanto a diminuição dos custos, quanto o enquadramento dos trabalhadores na disciplina necessária às práticas produtivas. Podem ser considerados os pontos nodais dessa política: a) a intensificação dos controles sobre os trabalhadores; b) uma re-alocação geopolítica e de mercado das empresas; c) o 45 desencadeamento de ações anti-sindicais e solapadoras dos direitos trabalhistas pelas empresas e o Estado e; d) o fortalecimento do poder de barganha das empresas. Apesar de toda a retórica sobre a participação (OIT, 1987) e o esgotamento das técnicas de gerenciamento tayloristas, os controles sobre o trabalho, diretamente hierárquicos ou com base em mecanismos fetichistas, são aumentados. O emprego das novas formas de organização do trabalho pelas empresas, geralmente sob variantes atenuadas ou combinadas com os velhos métodos, em nada atrapalha a expansão e intensificação desses controles que mantêm à distância quaisquer veleidades reais de autonomia dos trabalhadores. Um fator que contribui para o enfraquecimento dos trabalhadores no mercado são as freqüentes transmigrações das empresas. As empresas buscam vantagens diferenciais de toda ordem nos mercados regionais, nacionais ou internacionais, nos quais se incluem mercados de trabalho que estejam livres da ação sindical. As ações realizadas por empresários e Estado contra as organizações sindicais e ou contra a legislação reguladora e protetora do trabalho são vigas mestras dessa ofensiva contra os direitos conquistados pelos trabalhadores em períodos anteriores. Essa política visa a reconstituição do mercado de trabalho em sua pureza originária, quando compradores e vendedores de força de trabalho confrontavam-se livremente no mercado, e os capitalistas, escorados no poder de Estado, podiam fazer o que bem entendessem. A busca do aumento do poder de barganha do empresariado e do Estado frente aos trabalhadores e suas organizações pode ser tomada como uma síntese das políticas que vêm sendo adotadas. Os capitalistas estão pressionando os sindicatos, o Estado e outros atores sociais no sentido de que sejam devolvidos os benefícios e direitos que o movimento popular havia conquistado, e que alimentaram durante um período histórico a expectativa de que o Estado do bem estar social não apenas continuaria a desenvolver, como, também, seria generalizado por todo o sistema da economia mundo. A imediata e quase universal reação dos produtores às suas taxas de lucro marcadamente reduzidas foi tentarem compensá-las reduzindo os custos diretos e indiretos da mão-de-obra. Apoiados por governos sempre mais coniventes, os empregadores por todo o mundo capitalista avançado desencadearam um ataque cada vez mais agressivo às organizações e padrões de vida dos trabalhadores. Obtiveram sucesso com surpreendente velocidade, ademais, em asfixiar o crescimento dos salários reais e dos 46 encargos sociais, aliviando de muito, já durante a década de 1970, a pressão sobre os lucros advinda do crescimento dos custos diretos e indiretos da mão-de-obra. Mas a resultante redistribuição de renda para longe do trabalho e em favor do capital espantosamente pouco fez para restabelecer as taxas de lucros (BRENNER, 2003, p.65-6). 3. Fragilidade dos trabalhadores Os trabalhadores estavam mal situados para enfrentarem a ofensiva neoliberal. Na Europa Ocidental, região que conta com uma trajetória histórica de rebeliões e intentos de revoluções, isto é, onde subsiste uma significativa tradição de movimento operário e popular, os trabalhadores vêm oferecendo uma resistência considerável às reformas e têm conseguido certo sucesso em atenuá-las, resguardando direitos e capacidade de ação (BOYER, 1986). Nos EUA, país no qual as categorias liberais encontram-se profundamente arraigadas inclusive na mentalidade do povo, o mercado foi elevado à condição de deidade reguladora das relações de trabalho. Na periferia, como no Brasil, por exemplo, as reformas vêm sendo realizadas com mudanças na legislação efetuadas pelos governos federal e estaduais e seguem na agenda política de empresários. Ao mesmo tempo, processam-se as mudanças, também, tacitamente, até com mais eficiência e amplitude, no âmbito do Estado e do mercado, com a leniência da Justiça do Trabalho ao fazer cumprir a lei ou com ações clandestinas das empresas que contratam e demitem trabalhadores sem dar a mínima à legislação vigente4. Constitui empreitada dificultosa determinar as causas pelas quais os trabalhadores, até o momento, não reagem à altura da magnitude do retrocesso social e político que a 4 - “Praticamente a metade dos trabalhadores brasileiros não possuem carteira assinada – e esse número está crescendo. A conclusão, extremamente preocupante, advém de dados processados pelo IBGE a pedido da Folha. [...] O retrato, traçado a partir de seis regiões metropolitanas (portanto sem abranger a área rural) é dramático: 42,7% dos que trabalham o fazem de maneira informal, contra 43,6% formalizados. [...] Embora o elevado número de pessoas trabalhando informalmente não seja uma novidade, a situação vem se agravando. É certo que as restrições econômicas, o baixo crescimento, as dificuldades enfrentadas por empresas e o elevado desemprego conspiram a favor do recrudescimento da informalidade. Não se trata, no entanto, apenas disso. O chamado processo de ‘precarização’ do trabalho é um fenômeno que tem ocorrido em escala global. [...] Lamentavelmente, o que se vê no Brasil é que, mesmo com mudanças a fazer na legislação, a ‘reforma’ vai sendo realizada na prática, de forma um tanto selvagem, com a criação de fatos consumados antes que um debate público tenha sido travado e que projetos tenham sido apreciados” (FOLHA DE S. PAULO, editorial, 11 nov. 2003, p. A2). 47 burguesia lhes está impondo. Enumeramos em seguida aquelas variáveis que, do nosso ponto de vista, têm maior peso na determinação do tipo de reação dos trabalhadores. O desemprego que acompanha a estagnação econômica e que se apresenta de modo variável nas diferentes nações é, talvez, o fator que em termos imediatos mais contribua para o debilitamento do potencial de reação dos trabalhadores. Como comentaremos posteriormente, há uma boa chance de que o desemprego se revista atualmente de uma nova característica. De qualquer modo, trata-se de um fenômeno conhecido pelos trabalhadores. Através da história os ciclos recessivos e as depressões têm-se apresentado acompanhadas de altos índices de desemprego, o que tende a colocar sindicatos e trabalhadores na defensiva. Isto ocorre em virtude de que a baixa oferta de empregos, ao exacerbar a concorrência entre os trabalhadores, enfraquece a solidariedade de classe e as possibilidades objetivas de confronto com o capital. Um segundo ponto que contribui para o debilitamento da capacidade de defesa das classes trabalhadoras decorre da política de dividir para imperar do empresariado. Essa política, mais característica do período do bem estar, que contou com a benevolência dos sindicatos, utilizou amplamente as técnicas de segmentação do mercado de trabalho. São várias as clivagens sociais geradas entre os trabalhadores por essa política. Ela propiciou a formação de um segmento mais bem aquinhoado de trabalhadores da produção - mesmo em países da periferia em vias de industrialização como o Brasil - e vários estratos das chamadas classes médias. Em geral, essas frações da classe, produzidas pela segmentação dos mercados a partir das relações de produção, replicam e potenciam esse fracionamento originário segundo as linhas de sua escolaridade, moradia, cultura e hábitos de vida, acontecimento que, em linhas gerais, as torna incompatíveis sindical e politicamente. A incapacidade ou a falta de vontade dos sindicatos em conduzirem uma política de classe, em benefício de reivindicações setoriais ou corporativas, dificilmente pôde assim se contrapor às práticas diversionistas engendradas pelos administradores patronais do mercado de trabalho (GORDON; EDWARDS; REICH, 1986). O impacto da decadência e, em seguida, da derrocada da União Soviética e demais países socialistas no MOP não se encontra ainda devidamente avaliado. Seja como for, seria espantoso que esses regimes, até o momento de sua queda, não exercessem influência 48 ao menos nos seus setores socialistas, em que pese o fato de terem sido formações sociais nas quais vigorou “o sistema do capital soviético pós-capitalista” (MÉSZÁROS, 2003). Os indícios de que as coisas não caminhavam bem na construção do socialismo vieram à tona logo nos anos imediatamente posteriores à Revolução de 1917 (BETTELHEIM,1979). No entanto, apesar das denúncias das elites ocidentais e de setores do campo socialista, a URSS continuou a ser um ponto de referência porque se acreditava, ou se desejava acreditar que, malgrado os problemas existentes, ainda se mantinha na tradição dos ideais socialistas que a haviam conduzido à Revolução. A prosaica derrocada da URSS e países consortes desvaneceram as últimas ilusões e esperanças. A crise ideológica e teórica que igualmente remontava aos primeiros anos da Revolução, mas que se estendera de modo claudicante tempos afora, sobreveio de vez. Como resultado mais visualizável esboroou-se o que ainda restava da III Internacional. Os partidos comunistas mundiais mudaram de nome, redefiniram suas características, descaracterizaram-se ou simplesmente encerraram suas atividades. Para os socialistas de todo o mundo, assim como para os muitos trabalhadores que nutrem simpatias pelos ideais do socialismo, a velha pergunta de Lenin, o quê fazer (LENIN, 1981), que ele formulara e respondera pensando nas condições da Rússia, e segundo as experiências e conhecimentos da época, recoloca-se outra vez com dramática atualidade e com desafios teóricos e práticos tão grandes, quão grandes são as dificuldades para lhe dar resposta. O que fazer para organizar a luta pelo socialismo? Que transformações sociais devem ser promovidas com vistas ao socialismo, antes e ou depois da tomada do Estado e tendo-se em mente a experiência acumulada? Algumas das conseqüências decorrentes dessa indagação são perceptíveis. Por um lad