UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA CAMPUS DE BAURU RAFFAELLA FERRAZ OPPICI OS OUTROS “EUS”: NATUREZA, CRIAÇÃO E ZOOPOÉTICA. BAURU 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA CAMPUS DE BAURU RAFFAELLA FERRAZ OPPICI OS OUTROS “EUS”: natureza, criação e zoopoética. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação e Design UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Tarcila Lima da Costa. BAURU 2022 Raffaella Ferraz Oppici OS OUTROS “EUS”: natureza, criação e zoopoética. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação e Design UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Tarcila Lima da Costa. BANCA EXAMINADORA: Profª Drª Tarcila Lima da Costa (Orientadora) Faculdade de Arquitetura, Artes Comunicação e Design Drª Carolina Teixeira Pires Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Profª Ms. Priscila Leonel de Medeiros Pereira Faculdade de Arquitetura, Artes Comunicação e Design Bauru, de 2021. https://www.escavador.com/sobre/24574200/escola-de-comunicacoes-e-artes-da-universidade-de-sao-paulo AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha família, por todo afeto, apoio e amor concedidos desde sempre, por todas as oportunidades e principalmente por permitirem que houvesse espaço de liberdade para que a arte fosse uma possibilidade e um caminho, de modo que, eu pudesse crescer buscando formas de entender minhas ideologias e minha maneira de enxergar o mundo. À minha irmã por ser casa, presença e companhia no meu período de graduação. Aos meus amigos, sempre dispostos a dialogar, trocar, me ouvir e ser espaço de conforto, meu muito obrigada mais puro. Em especial à Isabela e Yolana que me acolheram com tanto carinho e disposição para dividir das aflições aos encantos da vida. Agradeço também à minha orientadora Prof. Dra. Tarcila Lima da Costa, por me receber como orientanda e ceder espaço para ouvir minhas ideias de modo sensível, e através de aconselhamentos e apoio torna-las reais. Por fim, agradeço a banca por disponibilizar de seu tempo e de suas presenças, fazendo deste momento ainda mais especial, muito obrigada Profa. Ms. Priscila Leonel de Medeiros Pereira e Dra. Carolina Teixeira Pires. Á oportunidade de falar e poder perceber em vida sobre aquilo que preenche meu corpo, que faz minha caixa torácica soar pequena para as batidas de meu coração que pulsa em poesia, agradeço por tudo o que em minha trajetória me possibilitou de alguma forma chegar e permanecer no espaço da Universidade e com isso entender minhas aspirações, como ser e como artista. Gênesis Faça-se a flor! Nas sofrentes raízes de Liliths e Evas o destino se fez. Faça a fauna! No sôfrego farejar entre liamas e ninfas o homem se fez. Faça-se a luz! Ao sabor da cinza um ser renascido: ave-palavra se fez. (Graça Graúna, 1999, p. 34) RESUMO Esse projeto propõe uma leitura das relações estabelecidas entre o animal humano e os animais não-humanos através da arte, em um espaço de busca de uma zoopoética visual a partir da união entre o texto e a imagem. Deste modo, há um anseio em discutir e refletir pela sensibilidade, criticamente e de maneira engajada a figuração “animal” e seus possíveis desdobramentos, a partir de reflexões de ordem estética, da animalidade, do ativismo ambiental e da relação da representação com o espaço concreto. Tendo em vista a elaboração de um livro poético ilustrado, que por meio da expressão plástica da pintura e das palavras traga à luz da discussão questões sobre essa temática. Palavras-chave: Zoopoética; Animalidade; Arte e Natureza; Texto-imagem; Antiespecismo. ABSTRACT This project proposes a reading of the relationships established between the human animal and non-human animals through art, in a space of search for a visual zoopoetics from the union between the text and the image. Thus, there is a desire to discuss and reflect through sensitivity, critically and in an engaged way the "animal" figuration and its possible developments, from reflections of aesthetic order, animality, environmental activism and the relationship of representation with the concrete space. In view of the elaboration of a poetic illustrated book, that through the plastic expression of painting and words brings to light the discussion of questions about this theme. Keywords: Zoopoetics; Animality; Art and Nature; Text-image; Antiespecism. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Serpent River Book (2017) 21 Figura 2 – Selva Jurídica (2014) 25 Figura 3 – Queimada (Amazônia) (1997) 27 Figura 4 – Após Queimada (1994) 28 Figura 5 – Paisagem Animal (1993) 31 Figura 6 – Césio (1987) 32 Figura 7 – Ekúkwe 2 (a terra envenenada e com odor de morte), (2018) 34 Figura 8 - Still Life with a Puppy (1630) 37 Figura 9 – The Deer (1876) 39 Figura 10 – Um cruzamento (2010) 48 Figura 11- Trecho do fio narrativo poético do livro poético. 50 Figura 12 – Repovoamento da memória de uma cidade-floresta (2021) 63 Figura 13 – Detalhe de obra: Ecdise Mundana em processo. 70 Figura 14 - Detalhe de obra: Turim em processo. 73 Figura 15 - Detalhe de obra: Turim em processo. 73 Figura 16 - Detalhe de obra: Ecdise Mundana em processo. 74 Figura 17 – Processo escrito. 76 Figura 18 - Detalhe de obra: Som d’água em processo. 77 Figura 19 - Detalhe de obra: Textura em processo. 79 Figura 20 – Capa. 80 Figura 21 – Folha de rosto. 82 Figura 22 – Prefácio. 83 Figura 23 – Prefácio. 84 Figura 24 – Miolo do livro. 85 Figura 25 – Miolo do livro. 86 Figura 26 – Miolo do livro. 87 Figura 27 – Miolo do livro. 88 Figura 28 – Miolo do livro. 89 Figura 29 – Miolo do livro. 90 Figura 30 – Miolo do livro. 91 Figura 31 – Miolo do livro. 92 Figura 32 – Miolo do livro. 93 Figura 33 – Miolo do livro. 94 Figura 34 – Miolo do livro. 95 Figura 35 – Miolo do livro. 96 Figura 36 – Miolo do livro. 97 Figura 37 – Miolo do livro. 98 Figura 38 – Miolo do livro. 99 Figura 39 – Referências. 100 Figura 40 – Referências. 101 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO 1- CONEXÃO: ARTE E ATIVISMO AMBIENTAL. 20 1.1- Frans Krajcberg. 26 1.2- Siron Franco. 29 CAPITULO 2- ILUSTRAÇÃO ZOOLÓGICA COMO ZOOPOÉTICA. 33 2.1- Em busca de uma perspectiva diferente acerca da animalidade. 43 2.2- Relação imagem-texto: poética animal entre letras e pinceladas. 49 CAPÍTULO 3- ESTÉTICA E ÉTICA AMBIENTAL ANTIESPECISTA. 53 CAPÍTULO 4- ENTRE A REALIDADE E A REPRESENTAÇÃO. 62 4.1- Fauna e o espaço concreto. 66 CAPÍTULO 5- PROCESSO DE CRIAÇÃO. 70 5.1- Resultado prático. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 102 REFERÊNCIAS. 106 13 INTRODUÇÃO A arte possui em si grande potencial de reflexão social de modo transversal, quando associada à educação e também quando inserida de maneira democrática na sociedade pode se estruturar como ponte entre o pensamento crítico e os espectadores. De forma que, torna-se possível o impulsionamento para novas perspectivas de mundo e também para o rompimento de pensamentos retrógrados vigentes e hegemônicos, muitas vezes, incorporados de modo velado. Isto posto, a arte que possui a fauna como referência, se insere no meio social como um caminho de aproximação dos indivíduos com a arte e com a natureza simultaneamente, pois cria espaços nos quais se torna possível uma expressão transdisciplinar múltipla e crítica. Assim, torna-se palpável e interessante pensar a natureza a partir de uma sensibilidade crítica, ao passo que seja possível abordar e ter como inspiração artística a temática “animal” dentro de um espaço de discussão diverso, e a partir disso, como ponto de partida desta pesquisa, repensar, através da poética visual artística, as estruturas de relação entre o animal humano, o animal não- humano, sociedade e natureza. Desta maneira, se estabelece um movimento que busca encontrar na arte e pela arte um lugar para discutir, refletir, disseminar e lutar, de modo sensível, contra o especismo e a favor de um novo olhar acerca dos animais não-humanos, da libertação animal, sustentabilidade, preservação e conservação ecológica. O especismo foi um termo cunhado em 1975 pelo psicólogo Richard Ryder (ALBINO, DA SILVA, 2020), que se define pela discriminação do ser humano perante as demais espécies, de maneira que aquele é considerado um ser superior aos demais e, portanto, apresenta uma posição opressiva e privilegiada. Deste modo, essa relação de dominância que acarreta a exploração animal sistêmica é ainda pouco discutida, porém, será que devemos nos fixar nesta escassez ao invés de tentar uma aproximação e uma abordagem crítica dessa questão? De modo que, seja possível encontrar através de diferentes expressões, como a arte, 14 espaço para afluências sociais que nos permitam pensar além do que nos é imposto como natural. As discussões sociais acerca do especismo e suas mais diversas repercussões são de suma importância e urgentes. Assim sendo, essa pesquisa busca através da expressão artística estimular reverberações acerca da maneira com que os humanos se relacionam com os animais não-humanos, com as animalidades e também com a natureza como um todo, a fim deste diálogo encontrar na arte um ambiente potente para a ação, inspiração e discussão. Para pensar a arte dentro da sociedade como um recurso para refletirmos sobre ideias obsoletas como a relação assimétrica entre os animais humanos e animais não-humanos, há a necessidade de compreensão do processo que deu início ao que entendemos atualmente como sociedade, ou seja, é fundamental revisitar e fazer uma leitura rápida de como o processo de urbanização se desenvolveu e qual a relação dele com a problemática que estrutura a pesquisa. Com a transição do nomadismo para o sedentarismo iniciou-se o processo de domesticação de animais e plantas, ou seja, a base da atual agricultura e pecuária (ROLINK, 1988; SANTOS, 2014). Dentro desse processo de modificação de uma relação passiva do ser humano com a natureza, há inserida uma estrutura de dominação do ser humano perante os demais, ou seja: Ao evoluir da condição de “homem-coletor” para “homem-produtor”, este passa não apenas a produzir sua própria existência, mas também um espaço adequado e ajustado às suas novas necessidades. A relação passiva mantida até então, entre homem e natureza, muda e, ao longo da história, o meio ambiente sofrerá, de forma permanente, profundas alterações em face da evolução social e econômica da sociedade [...] (FERREIRA et al., 2004, p. 04). Isto posto, a urbanização criou e lapidou um espaço que se preocupa em atender diretamente as demandas humanas, deste modo, há o estabelecimento de grupos humanos em áreas naturais de modo fixo, através de ações antrópicas, aquelas exercidas pelos seres humanos, houve a adaptação gradual e constante deste espaço. A série Cadernos de Educação Ambiental, número 17, volumes 1 e 2 relativos à temática de Fauna Urbana do estado de São Paulo (2014) aborda a questão de 15 maneira extremamente completa e direta, de modo que, discute essa imposição aos animais não-humanos, que habitavam as áreas naturais, de uma convivência direta com os seres humanos e as consequências deste processo massivo e contínuo. Há um imperativo antrópico que visa o desenvolvimento humano em detrimento do espaço natural e das espécies presentes na fauna local, ou seja, o avanço desse espaço urbano se deu sem que houvesse, necessariamente, uma preocupação e um planejamento acerca do espaço natural e sem o devido cuidado com as espécies de animais não-humanos que se estabeleciam nessas áreas anteriormente. A relação da arte com uma percepção ambiental se encontra no espaço sensível e relaciona-se ao tema das mais diversas formas, e, logo, pode estar estruturada tanto em um diálogo estético, quanto crítico. É notório que com o pensamento racionalista e com o antropocentrismo houve um embasamento de uma visão social especista, a qual se posiciona arraigada na sociedade nos mais diversos âmbitos, como na arte, por exemplo. Deste modo, através de uma expressão estética, poética, conceitual/ teórica capaz de discutir essa visão racionalista inflexível, abre-se à possibilidade de entender novas formas de ver o mundo, de comunicá-lo e de estabelecer relações. O posicionamento do projeto desenvolvido, portanto, contrasta diretamente com os paradigmas humanistas e antropocentristas, situados como verdade absoluta. Assim, o objeto central da proposta é: por meio de uma arte de livre expressão, discutir e refletir acerca das relações estabelecidas entre os animais humanos e não- humanos, entendendo este recorte como parte imprescindível para leitura da natureza como poética da criação. Tendo em vista discussões que perpassem desde a questão da animalidade, do especismo, da estética, da natureza e a realidade manifestada em arte, até a poética, com o intuito de pensar sobre, questionar e, desta maneira, por meio do exercício de um novo olhar, valorizar tanto a expressão artística quanto a diversidade natural existente. 16 É a busca de utilizar a arte como grito, como um meio de demonstrar outras perspectivas, outras formas de olhar para essa natureza, e para a vida, ou seja, é transcender o espaço estético simplista de apropriação da figuração natural na arte, que visa, muitas vezes, mostrar o que já é considerado belo, de maneira que, essa expressão artística se torne um recurso político que nos faça aterrar em nosso próprio solo para que possamos nos questionar sobre como nos inserimos no espaço natural e quais são nossos impactos. [...] vem chamando a atenção para o fato de que a ecologia e o debate ambiental não se restringem só a reciclagem de lixo, pelo contrário: as obras aqui analisadas são apenas um recorte que ilustra como a questão ecológica depende das relações que o homem estabelece multilateralmente com vários outros atores e consigo próprio (DUTRA, 2010, p. 53). Deste modo, há neste espaço transdisciplinar, que pensa as mais diversas relações estabelecidas socialmente, a possibilidade de associar a produção artística com questões sociais, poéticas e ecológicas de maneira crítica, política e ativa. Como visto de modo extremamente impetuoso na produção de diversos artistas, como por exemplo, Frans Krajcberg, Siron Franco, Ana Teresa Barbosa, Jaider Esbell, Carolina Caycedo, Henrique Oliveira, Nara Amelia, Denilson Baniwa entre outros. A ideia de natureza como poética de criação na pesquisa se encontra imersa na busca da construção da ideia de uma zoopoética visual, na qual os animais não- humanos sejam vistos, pensados e posicionados como elementos principais das produções artísticas. De maneira que, as espécies sejam apresentadas, não representadas, ou seja, mostradas a partir de uma visão individual com certo afastamento de uma busca mimética em um sentido técnico, ao passo que a utilização do termo representadas aqui designa a ideia de uma retratação mais objetiva, pensando uma reprodução que pudesse “exemplificar” a partir de um espécime (um único indivíduo) toda uma espécie/ coletividade que possui seres distintos e únicos. Assim, respeitando suas características morfológicas básicas (características, formas, aparência externa) através de uma leitura sensível e particular, de forma que, possam ser reconhecidas como o que são, mas mantendo uma margem que distancia 17 da tentativa de imitá-los, pois, como poderia tentar imitar sem poder afirmar que o que se vê é o mesmo que o que os outros enxergam? Criando um vínculo imaterial acessível entre observador e animal não-humano, estabelecendo assim, um ambiente que propicia a contemplação e o “contato” dentro um espaço de respeito e reconhecimento acerca daquela espécie como um outro vivente. Torna-se viável, através de uma perspectiva artística e da fruição estética, que o espectador possa se aproximar sensivelmente dessa existência alheia a seu próprio corpo e, simultaneamente, de questões que a tangem. Podendo adentrar em um espaço de possível conscientização e de desconstrução visual por meio de uma arte intencional tendo a arte como expressão potente de sensibilização que abre portas para novas visões de sociedade. Estamos num tempo em que não se pode continuar a viver na ingenuidade de recém-nascidos, pois estamos mais próximos da morte total do que jamais o estiveram nossos antepassados. Refiro-me à morte de todas as espécies vivas, ameaçadas pela violência de nosso modo atual de viver, produzir, consumir e descartar (FILIPE, 2009, p. 04). Deste modo, há um movimento para que nós seres humanos possamos nos inserir de maneira menos opressora, arbitrária e hierárquica no lócus social e a arte neste caso serve como propulsora de informação, como propagadora de uma reeducação sensível e também como recurso antiespecista1, criando um olhar sensível acerca do que muitas vezes nos atravessa de modo invisível no cotidiano, mas que nos atinge de maneira nociva individualmente e como sociedade. A pesquisa visa produzir esta investigação teórica e visual que tem seu percurso desde o pensar a natureza como poética da criação, passando pelo ativismo e o ato político, até questões relativas à percepção social acerca da animalidade e da estética. Ademais, a parte prática se dará através de uma série de pinturas sobre tela, destacando e concedendo espaço de protagonismo para animais não-humanos (sendo eles pouco valorizados devido a estrutura especista), as quais serão parte de 1 A definição de antiespecismo se relaciona a rejeição do especismo e de suas reverberações e a defesa da libertação animal, ou seja, dos direitos das demais espécies animais além da humana. 18 um livro poético em formato digital, o qual trará a ideia central da intenção teórica da pesquisa de modo sensível e poético, criando um espaço de leitura textual e pictórica simultaneamente. Estabelecendo, deste modo, a transdisciplinaridade também por correspondências com outros artistas no eixo temático, com distintas abordagens estéticas e plásticas, através do diálogo com outras áreas do conhecimento como a literatura e pela possibilidade de uma leitura social a partir das reflexões aqui estabelecidas. Portanto, há uma pulsão de questionamentos. Será que poderemos através da arte, tendo-a como espaço sensível, criar um ambiente de possível reflexão acerca da relação multiespécies? E sobre a estrutura especista que envolve o pensamento social? (Sendo essa estrutura enraizada socialmente de modo transversal, no lócus da estética, ética, moral, entre outros). Será que o olhar sobre esses “outros” pode vir-a-ser banhado de sensibilidade e alteridade através da arte, de forma que, possamos nos posicionar socialmente de outras formas? Assim, a arte em sua potência transformadora pode ser um excelente meio de diálogo social quando posicionada como aliada as questões de conservação, preservação e sustentabilidade em prol da continuidade da vida e para a formação de futuros seres sociais ativos perante o espaço que ocupam, ela exerce um papel educacional, democrático e social indispensável. Ao entender as questões sociais que cercam a relação entre a arte, cultura hegemônica, estética e a relação entre animal não-humano e humano, de maneira que, haja espaço para repensar as estruturas de opressão e poder inseridas nestas relações, cria uma possibilidade crítica e reflexiva e, conforme entendemos que a quantidade de pesquisas que confrontam essa temática é extremamente escassa, isso passa a se tornar ainda mais potente e necessário. Dessarte, a pesquisa tem como objetivo, principalmente, ocupar um espaço de relação teórica, poética crítica e visual, que seja capaz de suscitar, de alguma forma, uma reflexão sobre essa temática, abrindo a possibilidade de um retorno social, para que as ideias aqui produzidas sejam disseminadas, pensadas e possivelmente incorporadas em outros espaços tanto artísticos como não artísticos. Se estrutura a 19 partir de uma visão teórico/ prática, permeando entre questões artísticas, sociológicas, filosóficas, antropológicas, éticas e estéticas. Logo, a produção prática vai de encontro de modo a complementar e enriquecer a pesquisa teórica, e também no sentido contrário da teoria para a prática, ocorrendo uma nutrição mútua. E a partir disso, cria a possibilidade de um aspecto poético da produção, que possa vir a desenvolver um potencial reflexivo e questionador. A arte se funde às questões reais da natureza como poética da criação, trazendo consigo a sensibilidade necessária para ler a relação entre o animal humano e o animal não-humano e traduzindo questões de cunho ecológico, social, estético e ético que permeiam a existência humana. Isto posto, há o incentivo da aproximação sensível da sociedade com os animais não-humanos a partir da arte e também o estímulo a um contato antiespecista e não hierarquizado com os mesmos, de maneira que, as necessidades de conservação e preservação ecológica estejam intrinsecamente relacionadas. 20 CAPÍTULO 1. CONEXÃO: ARTE E ATIVISMO AMBIENTAL. “[...] Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens. Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens. Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas. “ (Manoel de Barros, 2010, p. 393) Neste capítulo será estabelecido como linha de raciocínio a contextualização de alguns artistas que exerceram ou exercem suas potencialidades artísticas através de um diálogo direto com o ativismo ambiental e com a reflexão acerca do espaço natural. Em vista disso, não haverá um enfoque bibliográfico aprofundado dos mesmos, mas sim uma leitura poética acerca da relevância ecológica, política, artística, social que esses artistas possuem como sinalizadora de que há muito tempo a arte fala e grita sobre a urgência de mudança da relação entre o animal humano e natureza como um todo. Pensar a natureza como poética da criação dentro de recortes críticos abre uma gama de possibilidades de expressão, caminhando desde as discussões sobre degradação ambiental pelas queimadas, às questões da animalidade através da poesia, pintura, da arte terapia, entre outras, ou seja, há uma diversidade de ramificações possíveis a partir da temática, e isso se reflete também na multiplicidade de abordagens. Porém, ao visualizar as questões da natureza de modo atrelado indissociavelmente de pontos de crítica à estrutura social vigente, podemos pensar a concepção de ativismo como um núcleo intrínseco e comum. O ativismo ambiental surge na pesquisa como ponto inicial da abordagem da relação entre arte e natureza e, ao passo que, o recorte desta pesquisa são questões em artes visuais relacionadas aos animais não-humanos, a incorporação destes exemplos de artistas-ativistas é posicionada para que se possa expandir a ideia, no sentido de visualizar o ativismo como prática subversiva muito potente na poética que pensa a relação dos animais humanos com os animais não-humanos por meio da arte. 21 Figura 1 - “Serpent River Book”, 2017, Carolina Caycedo. Fonte: http://carolinacaycedo.com/serpent-river-book O ato artístico ativista que se expressa tencionando as questões ambientais, ou da natureza, pode ser posicionado como um espaço de discussão do contexto que engloba a questão das relações estabelecidas com os animais não-humanos, são locais distintos de um mesmo mote. Essa ação ativista é apresentada aqui como início para se conduzir a linha de pensamento, como um esqueleto que juntamente a diversos outros pontos de reflexão e questionamento sustentam o pensar a unidade e a natureza como todo, como na figura 1, na qual há o uso da representação de uma serpente, mas a temática que circunda a produção se estrutura em totalidade em torno do contraste entre a diversidade do rio e o extrativismo. O recorte escolhido de artistas que não falam diretamente/objetivamente sobre animais não-humanos se justifica exatamente por esse processo de iniciação da ideia que será posteriormente aprofundada e desenvolvida. Desta maneira, há a possibilidade de abertura para ler estas obras como introdução, como complemento, tanto plástico, referencial, quanto conceitual e para se refletir sobre esse plano de fundo que tange as questões acerca dos animais não-humanos. Isto posto, há um espaço comum, o fio condutor que liga obras tão diferentes (quando olhadas por uma perspectiva plástica e visual), mas muito similares, se vislumbradas através da intenção, da poética e da leitura de mundo e, em 22 decorrência, há uma resultante cultural e artística que surge a partir das reflexões sensíveis sobre essas relações. Através deste percurso é de suma importância salientar a necessidade de se estruturar uma visão de alteridade para se aproximar das ideias tratadas no decorrer da pesquisa, sendo essa alteridade em seu estado mais radical, no sentido literal da palavra, sem qualquer possível contaminação que a faça ter conotação negativa de “extrema” Isto é, uma alteridade da raiz às pontas, portanto, o reconhecimento daquilo que é diferente, das subjetividades alheias, a não tentativa de fusão ou homogeneização e a necessidade de respeito e sensibilidade perante isso se torna um dos pilares mais importantes. Alteridade significa estranhamento, perturbação, alteração, acaso. E desconhecimento. Mas, não o desconhecimento que está a ponto de ser conhecido, [...] O desconhecimento é o estado permanente do desconhecido. Não é um limite, é uma interioridade [...] (SKLIAR, 2014, p.149). É significativo pontuar a ideia de alteridade, como um conceito relativo ao que é diferente, ou seja, relaciona-se diretamente ao processo de olhar para um lugar externo ao individual. Destarte, através dessa extensão do ser por meio do exercício empático, pode-se refletir e entender que a existência se estende para além de si, e que a individualidade dialoga constantemente com a vivência alheia, é reconhecer esse outrem como singular. A importância de compreender essas produções artísticas e a ideia de animalidade abordada no decorrer, a partir de uma perspectiva de alteridade se dá, ao passo que, o posicionamento desta esfera artística, destes artistas dados como exemplo, de suas obras e também da linha de pensamento do trabalho como um todo estão inteiramente atrelados a um processo de troca e diálogo em relação ao outro, à natureza e seus elementos constituintes e também ao presente e futuro da Terra. Pensar esse “limite” no qual a alteridade age é pensar sobre as mais diversas virtudes que residem na diferença, e repensar que o espaço de diferença é compartilhado. Essas fronteiras entre o eu e o outro, humanos e animais, humanidade e animalidade, não se extinguem, pois, como já dissemos, em cada uma delas 23 habitam seres plurais e singulares, que as mantêm e ao mesmo tempo as tornam imprecisas. Quem realiza a travessia e se coloca em contato com essa subjetividade “estrangeira”, porém, não será mais o mesmo, nem será o mesmo quem está na fronteira. Assim, nesse movimento contínuo e mutável, as fronteiras modificam-se e deslocam-se a todo ato de ser olhado e de olhar o outro. O olhar não é somente um modo de estabelecer uma relação de alteridade, mas também, quem sabe, uma forma de comunicação (MORAIS, 2018, p. 74). À vista disso, a arte em diálogo com o ativismo ambiental abre portas para uma reflexão acerca da diversidade natural e da necessidade de sua conservação em contraste direto com a conduta antropocêntrica, como abordado em: “Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. ” (KRENAK, 2020, p. 03). Ao se deparar com a condição de suspensão e de impotência gerada por este descolamento antrópico, relativo aos processos de “modernização” e “progresso”, nos quais há uma abordagem esgotante do espaço, decorre, por consequência, uma condição de abertura para uma reflexão crítica, isto é, torna-se nítida a necessidade de um espelhamento destas questões de maneira analítica através da criação cultural, artística (GADANHO, 2020, p. 160), para que a sensação de incapacidade e passividade seja transformada em ação ativa através de uma arte potente e repleta de intencionalidade que possa gerar debates e novas perspectivas. Assim sendo, a relação da arte com o ativismo ambiental não se restringe a uma estrutura de submissão, ou seja, da redução da arte como uma mera ferramenta, mas sim, cria a possibilidade de compreensão desta relação como mola propulsora tanto artística, quanto de consciência social, através de uma troca simbiótica pela qual a arte nutre a visão de mundo e a perspectiva acerca da existência estimula a expressão artística. Há inscrita nesta abordagem artística sensível, porém crítica, uma conexão intensa com um iminente retorno reflexivo, crítico e inspirador à sociedade que poderá acessá-la, e não há, dentro da ideia de ativismo, uma limitação que impeça a associação das mais distintas configurações pictóricas, formais, sensíveis de inquietação, o ímpeto do agir, independe de sua abordagem plástica para ser entendido como práxis, ação artística propositiva e engajada. 24 Deste modo, é notório que com os desdobramentos capitalistas e suas implicações ambientais, o tema já relevante esteja ganhando cada vez mais evidência, mesmo que isso não signifique que grandes mudanças positivas estruturais estejam ocorrendo. As flores do campo e as paisagens, advertiu, tem um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. [...] (HUXLEY, 2014, p. 41). Dentro dessa esfera de consumo desenfreado, produção massiva, degradação de ecossistemas, exploração e extinção de animais, a manifestação artística que se posiciona de modo plural como expressão de seu momento histórico e que encontra na poética da natureza a manifestação de uma quase ebulição na qual não há mais espaço para se calar, transforma o ato estético-plástico em ato político. As relações da humanidade com o socius, com a psique e com a "natureza" tendem, com efeito, a se deteriorar cada vez mais, não só em razão de nocividades e poluições objetivas mas também pela existência de fato de um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos indivíduos e dos poderes com relação a essas questões consideradas em seu conjunto (GUATTARI, 2001, p. 23). A arte se encontra em um nível global, ou melhor, como um lugar comum, pois, é expressão sensível, ação ativa e divulgadora, a qual fomenta consciência e gera um espaço de união indispensável com diversas esferas sociais. Em vista disso, os artistas e suas produções artísticas se estruturam como agentes estimulantes de possíveis mudanças no cerne desta sociedade. Desta maneira, há uma noção realista sensibilizante de mundo e sociedade na arte produzida nessa aresta com o ativismo ambiental e com as questões da natureza. Na qual reside consciência concreta acerca da impossibilidade de retorno a paisagem natural “imaculada”, logo, impera refletir o agora, agir no agora e saltar aos olhos a urgência de mudanças, para repensar a nossas relações com o espaço e seus viventes, vislumbrando a preservação, conservação, um presente diferente e a possibilidade de um futuro. Tendo como exemplo a inserção do tema de modo cirúrgico na 32º Bienal de São Paulo. A partir do título Incerteza Viva, o fio condutor que regeu a exposição se relaciona diretamente com as proposições e discussões contemporâneas acerca das condições atuais de existência. 25 Figura 2 - “Selva Jurídica”, 2014, Ursula Biemann e Paulo Tavares. Fonte: http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2604 [...] INCERTEZA VIVA está claramente conectada a noções endêmicas do corpo e da terra, com uma qualidade viral nos organismos e nos ecossistemas. Embora seja geralmente associada à crise, não é o seu equivalente. A incerteza é, sobretudo, uma condição psicológica e afetiva, ligada a processos de tomada de decisão individuais ou coletivos, descrevendo os níveis variáveis de compreensão e dúvida em uma dada situação. (VOLZ, Jochen; NGCOBO, Gabi; REBOUÇAS, Júlia; LARSEN, Lars Bang; OLASCOAGA, Sofía, 2016, 32. BIENAL DE SÃO PAULO: INCERTEZA VIVA). É neste ponto que obras que transpiram uma diferente e descentralizada cosmovisão, que discutem a natureza e a ação humana, a individualidade e o coletivo como aspectos de simbiose, são incorporadas e pensadas na exposição e na arte, em um espaço de possibilidade de diálogo entre produções, mas também com a vida e a realidade social, como no exemplo trazido na figura 2. Assim, a atitude de pensar a arte por um viés político e, consequentemente, torná-la politizada, fazendo-a atuar de maneira responsável, questionadora e ativa na sociedade (BERTAZZO, 2009, p. 104) é um traço característico e comum nas produções artísticas que se interconectam não necessariamente através de suas atitudes estéticas, mas sim pelo ativismo, pela busca de novos paradigmas. Há um espaço transdisciplinar no qual podemos associar diretamente a arte com questões sociais de maneira crítica, e nessa rica troca biocultural se encontra a relação artística com a natureza. Em resumo, há a possibilidade de compreender que o ativismo pela arte pode ocorrer nas mais diversas faces, ou seja, a estética, a poética, a liberdade de 26 comunicar questões que tangem a sociedade através da expressão cultural por meio de uma boa articulação e estruturação podem possuir o caráter de ato político. 1.1 Frans Krajcberg. Frans Krajcberg (1921-2017), encontrou de modo extremamente sensível sua expressão artística na natureza através da arte de denúncia, sua produção girou constantemente em torno de registros críticos acerca do descaso ambiental, fazendo um processo de “fênix” da materialidade, criando a partir das cinzas de queimadas, do residual da destruição, e dos próprios elementos mortos. O artista visual e ativista ambiental obteve na natureza seu espaço de entendimento artístico poético e pela arte um local para canalizar as suas dores e também para mostrar a destruição da natureza como resultante antrópica de um processo de desenvolvimento urbano e econômico, como aborda Fabrício Fernandino (2014, p. 268): “Krajcberg é um artista que não se furta ao seu compromisso de defender a vida. Sua arte é seu grito, é sua denúncia. ” Sua arte, portanto, transparece sua relação enraizada com a natureza, de modo que, através de suas experiências artísticas reafirma e enfatiza o compromisso com a terra (DUTRA, 2010, p.53). Isto posto, sua abordagem utiliza elementos orgânicos residuais da exploração e degradação natural, como cinzas, pedaços de troncos carbonizados, raízes, entre outros, com um intuito notório no campo da experimentação estética ao incluir esses resíduos de uma forma extremamente sensível e poética em suas obras, ou seja, busca uma reestruturação estética como extensão de sua expressão artística e do seu engajamento ecológico (NUNESMAIA, 2010, p. 153). Utiliza de sua arte como revolta contra ações humanas, busca em seus trabalhos demonstrar as catástrofes das queimadas, enquanto apresenta a força e a exuberância natural (VALIO, 2021, p. 113), como ilustrado na figura 3 posteriormente, por consequência, ao entender o recorte contextual de urgência em relação a conscientização, Krajcberg se destaca através da arte-denúncia como um artista que participa politicamente e ativamente, sua arte fala, corajosamente, sobre esse desprezo com a natureza e sua poética visual por si só também reverbera no espaço artístico. 27 Através do Manifesto do Rio Negro ou do Naturalismo Integral em 1978 junto a Sepp Baendereck e Pierre Restany discutiram e refletiram acerca de uma nova ótica para se pensar e fazer a arte, uma perspectiva integral que fosse capaz de abranger toda a realidade natural brasileira (FERNANDINO, 2014, p. 271). [...] o “Manifesto do Naturalismo Integral” ou “Manifesto do Rio Negro”, em que defende a ideia de que o artista brasileiro tem na natureza uma possível forma de originalidade expressiva, sendo desnecessário copiar formas e padrões estéticos importados, os quais não nos dizem muito de nossa sensibilidade como povo e nação (FERNANDINO, 2014, p. 267). Seguiu agindo através de manifestos (conhecidos como manifestos krajcberguianos) de caráter provocativo, político, que buscavam inspirar formas de pensar, de se inserir no mundo e também através de uma visão artística ética denunciar as temáticas ambientais (TOMÉ, 2020, p. 102). Figura 3 - “Queimada (Amazônia) ”, 1997, Frans Krajcberg. Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra16734/queimada-amazonia Assim sendo, a natureza se torna a matriz, a base e medida das ações, é nela que se encontra a expressão pura e sensível, e a arte é vista como uma esfera de possível reflexão ambiental, plástica e crítica acerca da relação humano-natureza, tomando a figura 4 como referência de sua abordagem plástica e estética. Logo, torna-se nítida a importância de refletir acerca da mudança de ótica e reconhecimento da necessidade de diálogo acerca da temática por meio de múltiplas abordagens. Considerando-se que o modelo de desenvolvimento vigente nas sociedades contemporâneas nos coloca diante de uma crescente crise de valores individuais e coletivos que compromete a qualidade na vida e suscita questões críticas de sustentabilidade em diversas dimensões, indaga-se: como as artes visuais na atualidade participam ou poderiam participar do 28 processo de conscientização acerca da crescente devastação da natureza? (NUNESMAIA, 2010, p. 158). É possível traçar um paralelo entre a leitura de mundo artística, política e pessoal de Krajcberg com a abordagem de ecologia política de Ailton Krenak, ao passo que, a atribuição política à esfera ecológica se arquiteta através de uma abordagem epistemológica contra-hegemônica que busca reconstruir, repensar o atual modelo, a relação entre sujeitos coletivos e a existência orgânica (KRENAK, 2018, p. 01). De modo a repensar a visão individualista, utilitária, assimétrica, dominante através da reflexão advinda da cultura e da arte, tendo as cosmovisões originárias como uma referência basilar e como espaço expressivo de estima e admiração. Figura 4 - “Após Queimada”, 1994, Frans Krajcberg. Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra6818/apos-queimada Em vista disso, o pensar político que a arte engajada com a questão ambiental traz, transparece de modo factual e sensível. Krajcberg encontrou no Brasil uma consciência Una. A partir do seu contato com grandiosidade e completude da natureza brasileira entendeu ser parte constituinte deste todo, e essa tomada de consciência que direcionou e permeou sua arte, em essência. As reflexões de Krajcberg sobre a relação humano-natureza percorrem desde a relação com as florestas, e consequentemente pelos elementos nelas inseridos até a relação entre seres humanos. Ou seja, essa visão de totalidade traz para o artista 29 uma perspectiva não fragmentada e é neste ponto que podemos seguir pensando e construindo, trazendo agora, ao centro, a questão da relação estabelecida entre animal humano, animalidade e animais não-humanos. A arte eco(re)existente em Krajcberg é sua maneira de pensar um mundo diferente. Também se pode vislumbrar o gesto de Krajcberg em relação às mudanças necessárias e urgentes na natureza e na arte, e isso pode ser verificado nos manifestos que Krajcberg se envolveu e que se moveram exatamente na direção da reflexão e da autocrítica (TOMÉ, 2020, p. 108/109). É notório que é necessário e que há espaço para aprender com os olhares e leituras de mundo, espaço e natureza originários, como a exemplo do paralelo com Ailton Krenak, destituindo a noção fragmentária e dicotômica, banhada de colonialismo. A partir destas diferentes formas de ler o mundo, há a possibilidade de acessar e consolidar uma arte transversal. 1.2 Siron Franco. Gessiron Alves Franco (1947), enxerga em causas sociais de diversas esferas molas propulsoras para a criação. Dentre essas mazelas, o fato ambiental torna-se extremamente marcante em suas produções pictóricas, ações e instalações. Há como plano de fundo o estímulo à conscientização, de modo que, o artista se enraíza em uma forma singular e crítica de ver o mundo e sua arte pulsa a vontade de manifestar seu descontentamento, há um caráter de protesto de suas obras que se expande de diversas maneiras, isto é, sua linguagem artística é extremamente plural, porém o cerne se estabelece de maneira muito consciente e consistente. Ele vê o espaço, o sente, se afeta e age artisticamente através destas percepções sobre a realidade e a sociedade, percorrendo, deste modo, diversas questões, tornando notório que há em sua trajetória artística a reflexão acerca de questões relativas ao Brasil e, a partir deste recorte, é possível perceber que a temática “animal” surge em diversos trabalhos trazendo em seu seio uma crítica muito atual e coesa. [...] Siron povoou suas obras com antas e outros animais do cerrado: onças, capivaras, jaguatiricas, marrecos, tartarugas. O artista sempre levantou a questão do constante desprezo em nossa cultura e em nossa sociedade em relação aos animais brasileiros [...] (BERTAZZO, 2009, p. 149). 30 As obras de Siron dialogam com a sociedade em um espaço de multiplicidade, olhando as consequências de diversas mazelas sociais tanto aos seres humanos, quanto à natureza e aos animais não-humanos, a exemplo da série de instalações denominada “Bandeiras”, a instalação “Garimpo”, a série sobre o acidente com césio 137, entre outras. O elemento estético é trabalhado de modo extremamente forte, utiliza deste mecanismo como artifício para atrair interesse midiático e para criar uma maior área de visibilidade para sua arte e para as questões sociais atreladas a ela, de modo que, extrapole os espaços artísticos e acadêmicos comuns, portanto, busca furar a bolha e trazer ao grande público possíveis inquietações. [...] o elemento estético se manifesta juntamente ao protesto, tendo como objetivo ganhar espaço nos meios de comunicação e atrair a mídia para acontecimentos que merecem ser divulgados, discutidos e importunar a consciência das pessoas. (BERTAZZO, 2009, p. 34). Deste modo, o ativismo empenhado na arte o torna um artista integralmente alinhado com seu contexto político, social, ao passo que, escancara sua visão de mundo de forma profundamente sensível. Cria a partir disso e coloca sua arte no mundo, em um movimento de convocação que busca compartilhar sua ótica com o espectador e escancarar realidades brutais, as suas obras atravessam e levam a sua visão pessoal acerca da realidade através de uma abordagem única e autoral (BERTAZZO, 2009, p. 51). Em vista disso, há um imperativo estético-ideológico em Siron Franco, que por meio da ocupação artística física e crítica dos espaços encontra um local para fazer de sua arte uma mensagem. É uma arte imbuída, de forma destemida, de uma leitura extremamente consciente de espaço, sociedade e realidade. Assim, há uma abordagem plástica inquietante, como na figura 5 da obra “Paisagem animal”, que nitidamente se assimila ao olhar de qualquer espectador, mas que atinge sua máxima potência quando atrelada a uma decodificação interpretativa da intenção artística e quando relacionada ao contexto social no qual está inserida, ou seja, quando a intenção é pensada junto à plasticidade cria-se uma nova camada que possibilita uma leitura mais aprofundada. 31 Figura 5 - “Paisagem Animal”, 1993, Siron Franco. Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra37846/paisagem-animal Isto significa que, é uma arte que se empenha em ser veiculada, reproduzida através da mídia, mas não apenas para ser contemplada superficialmente. Elas invocam o espectador ao mergulho profundo na arte, e, por consequência, o mergulho profundo também na sociedade e no contexto em que essa arte está inserida. Com suas ações de caráter poético, porém ativas e críticas, o artista se movimenta em um diálogo profundo com os seres sociais e as relações estabelecidas, neste ponto, podemos pensar e entender as suas obras como um lugar de inspiração. Ao passo que, o potencial de uma produção que abre ao mundo inquietações sociais tão árduas por meio da sensibilidade e da fruição artística é, além de estético- ideológico, como citado anteriormente, mas também ético. Além de sua produção artística seu posicionamento como ser social, denunciando pela arte questões sociais que o afetam também como indivíduo, em uma busca de ser ouvido e a partir da arte mudar de alguma forma a realidade angustiante (BERTAZZO, 2009, p. 45), bem como na figura 6 que traz uma das obras que o artista retratou a contaminação com césio 137 que demonstrou despreparo e abandono das vítimas, desvelando diversas faces do descaso social e ambiental. 32 Figura 6 - “Césio”, 1987, Siron Franco. Fonte: https://www2.olimpiadadehistoria.com.br/7-olimpiada/fases/index/44/86 O artista contemporâneo posiciona-se ante o mundo e aos acontecimentos; sua postura e suas ações, por meio das múltiplas linguagens, exploram a contemporaneidade. A arte contemporânea, como as obras em qualquer outra época, é gerada a partir da vivência do artista e sua interação com seu contexto cultural, histórico, social e político. Sendo assim, podemos encontrar hoje nas produções artísticas, características de nossa complexa sociedade (SANTOS, 2016, p. 68). É interessante pensar artistas que se assemelham ao foco da pesquisa, mas que simultaneamente surgem de locais totalmente diferentes, pensando a natureza em si como poética das criações e mostrando a capacidade e diversidade desta temática a partir de diferentes recortes temáticos, estéticos e sensíveis. Há, um vínculo imaterial forte estabelecido entre as produções de Frans Krajcberg e Siron Franco, mesmo que as abordagens materiais, plásticas, visuais destes tenham um forte contraste, ambos possuem produções que não “flutuam” perante o momento histórico, e sim enraízam-se profundamente. Destarte, o ativismo ambiental dentro da arte, que é visto na produção de ambos os artistas, cria um diálogo potente e, simultaneamente, se encaixam satisfatoriamente no momento de crise representacional e do consequente rompimento com ideias estabelecidas pela Academia, conforme, a arte neste novo ambiente encontra um espaço mais acolhedor e a interação com natureza nessas expressões se estrutura de modo mais aprofundada e alinhada com o contexto. A sociedade muda suas dinâmicas e por consequência o papel da arte e do artista também se alteram (BUENO, 2010, p. 39). 33 CAPÍTULO 2. ILUSTRAÇÃO ZOOLÓGICA COMO ZOOPOÉTICA. “Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado. ” (Clarice Lispector, 2020, p. 43) Pensando a arte como possibilidade de ação, crítica, política, como abordado no capítulo anterior sobre a relação com o ativismo ambiental, a ilustração de fauna ou zoológica adentra ao espaço de reflexão através de um olhar crítico e questionador como um convite, o qual deixa vazão para reverberações de diferentes análises acerca da retratação animal como prática de poética visual. Enquanto essa ideia de ação percorre o entendimento da natureza como poética da criação em sua totalidade, surge espaço para que possamos refletir e ecoar as relações através da sensibilidade, e, consequentemente, sejamos capacitados a visualizar a estrutura una de existência e a olhar e apreciar além do nosso próprio corpo e dos nossos próprios interesses, ou seja: O que significa a relação entre arte e natureza num momento em que esta última parece, mais do que nunca, ameaçada pela acção humana? Por inerência da lógica dos ecossistemas terrestres, quando a natureza está ameaçada, também a humanidade está ameaçada (GADANHO, 2020, p. 159). É importante ressaltar que há um processo que perdura no contexto contemporâneo: o assujeitamento, ou seja, a transfiguração do animal não-humano em não-sujeito, conforme as subjetividades, as individualidades e a heterogeneidade são desconsideradas. Cria-se um grande grupo aglutinador chamado “animal”, no singular, o qual vem impregnado de conexões, perspectivas e pensamentos que estruturam as relações. “[...] e o animal como não-sujeito ao longo da história – tem por escopo apresentar uma breve história (fática e das ideias) da subordinação dos animais em relação aos humanos.“ (PAZZINI, 2016, p. 12), destarte, o rolo compressor especista impera e atua de maneira histórica e, em diversas estruturas, de forma, muitas vezes, imperceptível na ordenação do pensamento humano. E esse “animal” que é invariavelmente representado em arte traz consigo todas essas amarras pré- estabelecidas. 34 Neste ponto, torna-se nítido que, ao refletir sobre a zoopoética visual é necessário entender o contexto no qual estamos inseridos. Para pensar o que é apresentado em arte é necessário olhar o plano de fundo social e histórico no qual ela se insere e dialoga. Assim, a adaptação e naturalização do olhar social acerca da violência demonstra que o antropocentrismo opressor se molda a partir de hierarquias criadas para benefício de parcelas dominantes, isto posto, é entendível que a raiz estrutural que mantém o especismo vigente se dá a partir da exclusão. Ideia apresentada visualmente pela figura 7 e pela expressão odor de morte contida em sua legenda. Figura 7 - “Ekúkwe 2” (a terra envenenada e com odor de morte), 2018, acrílica sobre tecido, Denilson Baniwa. Fonte: https://www.premiopipa.com/denilson-baniwa/ O aprofundamento desta pesquisa se estabelece no sentido de pensar por meio da arte o recorte das questões relativas aos animais não-humanos, mas é importante sublinhar que as mais diversas formas de dominação estão atreladas (abordadas também em arte por Siron Franco, Denilson Baniwa, por meio de obras que comunicam sobre violências humanas sobre os próprios humanos). Há a criação de uma falsa ideia de humanidade e, por consequência, o posicionamento de indivíduos à margem deste conceito, como “inexistentes” no imaginário social. [...] pessoas que usufruem dos privilégios estruturais, epistemológicos, geográficos, sociais compõem um modelo de humanidade. Essa formulação ficcional do que é ser humano tem por finalidade constituir a fórmula do homem, cisgênero, branco, heterossexual, patriarca, monogâmico e cristão e, determina que qualquer existência que esteja fora desse enquadramento 35 – ainda que seja um enquadramento limitante e ficcional – se torne desumano, não civilizado, atrasado e animalesco (NUÑEZ et al., 2020, p.157). A partir da arte, da cultura, do reconhecimento positivo das diferenças e da diversidade, há a possibilidade de evocação de uma tomada crítica e de uma nova sensibilidade propositiva. De forma que, sejamos capazes como sociedade de nutrir uma nova epistemologia, que seja receptiva ao “Outro” (animal não-humano) e que nos leve a pensar a humanidade por outro espectro, nutrindo o respeito perante o espaço como organismo vivo, pelos demais viventes e, também, a noção de compartilhamento existencial Em síntese, ao se refletir sobre o que se estrutura como plano de fundo, ou seja, o paradigma humanista e suas reverberações, há uma abertura para se entender quais mecanismos se relacionam ao tema em questão e, com isso, através da arte, refletir de modo poético crítico a respeito do assunto. Neste caso, por conseguinte, o caminho da arte se estabelece panoramicamente, como um de voo de águia, ou de um urubu, ou seja, por meio dela somos capazes de planar alto e enxergar o todo, da raiz dos pontos mais objetivos e embasadores, até seus desdobramentos posteriores e suas possibilidades como espaço de inspiração. Isto posto, o pensar a temática através da expressão artística permite que haja maior espaço para reverberar. Desta maneira, há a possibilidade de uma movimentação orgânica para uma análise visual, estética, da concepção de animalidade e como ela pode vir a se construir visualmente e poeticamente no campo das artes e do processo de pensar a potência da zoopoética, ou seja, a força da apresentação da imagem animal. Por conseguinte, é significativo ressaltar o sentido do conceito zoopoética aqui estabelecido como um aprofundamento sensível capaz de direcionar o pensar o “animal” de modo não comparativo, por meio da alteridade. “Na arte, no direito e na política impõe-se a necessidade de pensar o locus do animal na sociedade na tentativa de enfrentar o especismo institucionalizado em todas as esferas sociais. “ (PAZZINI, 2016, p. 10), ao pensar o lugar destes animais não humanos através da arte costura-se uma trama resistente de possibilidades. A 36 poética que fala sobre esse lugar dos animais não-humanos, no espaço social mergulha muito além da expressão plástica que visa apenas a contemplação. A zoopoética, então, pode abarcar as mais diversas expressões artísticas, tanto no campo visual quanto literário. Há um lugar comum, mesmo que com abordagens distintas, entre o textual e o visual que discute a animalidade, isto é, este lugar da outridade. As poéticas da animalidade são poéticas dos outros enquanto alteridades radicais, singularidades irredutíveis, mas também dos outros que habitam em nós. São poéticas da diferença e não do diferente. Poéticas políticas e filosóficas, poéticas pedagógicas, mas não pedagogizantes (MORAIS; LOPONTE, 2020, p. 5). Essa poética impulsionadora de uma nova leitura acerca da animalidade, conceito que será abordado e contemplado adiante, relaciona-se diretamente com a esfera estética, ética, crítica acerca da relação humanidade-animalidade (LESSA, 2016, p. 05). Nessas reflexões, acerca da relação com os animais não-humanos se estabelece como movimento criativo, mas também de subversão, conforme, exista a capacidade de criar novas sensibilidades, novas óticas. De maneira que, haja a descrição, problematização, reestruturação e percepção dos valores contidos na diferença e na singularidade, as quais residem em nós e nos animais não-humanos de modo potente (MORAIS, 2018, p. 90). Olhar o animal não-humano por uma ótica poética, cria espaço para o que difere e para se pensar e repensar as suas representações na cultura visual ou textual, assim, pode se estabelecer uma reflexão que reúna conexões íntimas entre arte, cultura, animal não-humano e a ideia de humanidade: Para configurar, a partir de novos enfoques, uma nova relação que proceda inteiramente a partir da ligação - e também disjunção - entre humanidade e animalidade fora da repartição do antropocentrismo, sob esse prisma, é que se inscrevem as zoopoéticas como forma de compreensão e problematização híbridas das fronteiras e limites que distinguem os animais humanos dos não-humanos (UCHÔA, 2020, p. 218). É notório que durante o percurso da história da arte a temática animal se repete de diferentes formas, porém, o pano de fundo que se estende por trás dessa 37 retratação, predominantemente, está ligado intimamente ao domínio do considerado “racional” em contraposição a ideia de “animalizado”. Em diversas obras é notório que o animal não-humano retratado é equiparado à objetos, esse caráter de objetificação pode se estabelecer também pela ideia de dominação, através do posicionamento destes animais de modo utilitário, como um “adereço sofisticado”, símbolos de um status quo humanista, realçando o poder social do indivíduo humano retratado e desvelando o domínio de classe também atrelado. Tomando a figura 8 na qual a utilização da retratação do “animal” se estabelece quase em paralelo a do vaso de flores. Os indivíduos não-humanos retratados não aparecem como sujeitos, o véu antropocêntrico cria uma ausência de nitidez perante a vida existente naquele corpo, posicionando-o, muitas vezes, apenas como um objeto de desejo, de “consumo”. Nesse espaço de fetiche humanista o ser, animal não-humano, é reduzido à "coisa", ao vazio. Figura 8 - “Still Life with a Puppy”, 1630, Juan van der Hamen. Fonte: https://www.wikiart.org/en/juan-van-der-hamen/still-life-with-a-puppy-1630 38 Esse ser-no-mundo, nesta lógica, não existe por si próprio, não é olhado pelas lentes da sensibilidade por ser exatamente aquilo que é. Parece não haver espaço para representar e olhar para os animais não-humanos fora de uma lógica de domínio, pois, nessa relação de poder, muito bem ilustrada em diversas obras que ilustram o pensamento de sua época, reside o desejo de manutenção de uma lacuna ontológica com o não-humano. Nesta atmosfera de pensamento, tanto pictórico visual, quanto de compreensão de mundo, especista, torna-se mais vantajoso retratar apenas “animais” domesticados, “de raça”, considerados belos, fortes ou “fofos”, ou animais silvestres mortos, dentro de uma superfície que exala insignificância, sob domínio máximo humano. Portanto a importância de indagar por uma zoopoética urge, à medida que, torna-se explícita a necessidade de um salto e um mergulho na experiência poética e estética da animalidade. Ao passo que, possamos estranhar as imagens e as palavras excessivamente humanas, para estranhar nosso próprio pensamento racional e cartesiano, que nos afasta de outras possibilidades de ser e pensar (MORAIS; LOPONTE, 2020, p. 6/7), ou seja, de estranhar também esse senso comum que banha a cultura visual e naturaliza o especismo. Repensando essa natureza-morta, literal, repleta de referentes ausentes (ADAMS, 2012), a exemplo da obra apresentada na figura 9, coisificados, corpos dispostos no “melhor” enquadramento, assujeitados para a manutenção direta e indireta de uma epistemologia hegemônica humana. Assim, em uma sociedade pautada nessa estrutura especista, ter na cultura visual o animal não-humano no local de protagonismo puro e fora de um espaço de objetificação ou de antropomorfização, mostra um caráter subversivo e possivelmente questionador. 39 Figura 9 - “The Deer”, 1876, Gustave Courbet. Fonte: https://www.wikiart.org/en/gustave-courbet/the-deer-1876 Desta maneira, a representação em arte pode se afastar do vivido, do real, ou seja, o espelho (ou o quadro) não produz as coisas em sua verdade, mas as coisas "em sua aparência" (LACOSTE, 1986, pág. 11), e a produção dessa espécie de ilusão/simulacro apresenta incutida em si um valor social, que nos revela o que é ou não apreciado, fator que diz respeito também à representação de uma natureza “selecionada”. [...] considerando a arte apenas a imitação (mime), depreciando a condição dessa arte ser absoluta enquanto meio de se chegar ao conhecimento, à intelectualidade, ao mundo das ideias. Essa arte é a aparência; seja por meio de técnicas de cores, seja pelas técnicas do som, seja por todas as formas que possamos realizar artificialmente, materializar, seria sempre uma forma aparente, despertando nossos sentidos ao percebê-la. A ilusão, portanto, é a aparência (WAGNER, 2016, p. 46/47). Logo, o protagonismo do animal não-humano quando pensado em um espaço de zoopoética, não busca ou necessita tentar recriar mimeticamente, em uma tentativa de absorvê-los, nem ao menos seguir a busca da dita “bela natureza”, mas sim apresentar sua imagem como essência a partir de uma visão poética e sensível. 40 Ao sair deste preciosismo técnico, há a possibilidade de guiar o espectador para que olhe além da obra, também para o espaço infinito de diferenças e em direção das espécies que residem como vida, partindo da tela para o espaço real. Porém, ao refletir acerca dessa contemplação, relativa a um senso comum, e seus desdobramentos, há a indicação de qual visão está estabelecida acerca destes animais não-humanos na sociedade. Quais “animais” são realmente vistos? E apreciados em sua real existência? Quais espécies são eleitas para ocupar um possível espaço dentro das artes? Qual a reação social em relação a espécies “menos celebradas” tanto na realidade, quanto nas artes? A ideia de zoopoética visual, neste caso, se direciona a um local que se difere desta ideia de um simulacro em superfície, ou seja, de um intuito de apropriação e desta ânsia mimética sem intencionalidade, anteriormente já citada. É propositalmente o estabelecimento do ato de criar e apresentar na face mais palpável da sua existência, que contrasta e, por consequência, não se submete aos ideais retidos num senso comum. Em vista disso, movimentando-se para além da figura humana, posteriormente, para além da fauna dita como carismática2, é possível adentrar em um espaço zoopoético, se orientando para um olhar não hierarquizado, encarando as diferenças positivamente como elas realmente são, de modo a suspender o desejo inesgotável de comparação que só age em prol de mais cisão entre os seres. É importante traçar que a ideia que embasa essa pesquisa artística busca suscitar a necessidade de olhar para esses seres como parte, como vida, como elementos unidos e indissociáveis da nossa própria existência. Portanto, a produção artística não busca substituir o “animal”, o “objeto” real, ela vem em conformidade com a necessidade de preservá-los e da saída humana de um lugar de objetificação e apropriação utilitária desses indivíduos. [...] não queremos esse olhar para o outro como algo a ser verificado, usando o que dele retiramos somente em benefício próprio, objetivando e tornando a relação com o outro quase como uma análise científica e fria, para dela extrairmos respostas que sirvam para o eu; não queremos o outro tomado 2 As espécies carismáticas aqui são pensadas em uma leitura de sensibilização/ mais fácil afeição, em um espaço de fofura, beleza, força, entre outros atributos. 41 como representação para o eu, não queremos um outro desprezado (MORAIS, 2018, p. 60/61). Porém, a estruturação desse olhar crítico não busca desvalorizar a arte até então pensada e produzida, se estabelece uma perspectiva em retrospecto para refletir o pensamento social que se mantém até o presente, sem contaminar essa leitura com um possível anacronismo. Assim, diversas obras são capazes de exemplificar a relação de domínio do animal humano perante o animal não-humano, principalmente em períodos em que há a prevalência da técnica, de maneira que, o enfoque se estabelecia diretamente nessa tentativa de reproduzir, mimeticamente, de alcance da verossimilhança. É importante recapitular que um ideal artístico que se relaciona intimamente com uma ideologia antropocêntrica, se escora numa estrutura social externa especista. Isto é, a arte não paira sobre a sociedade de modo totalmente desconexo, ela se relaciona com as leituras de mundo das mais distintas esferas, tanto enquanto produção, quanto no momento de apreciação. Entendendo a potência do olhar a partir da transposição dessa temática dos estudos de zoopoética e animalidade para o ambiente das artes visuais dentro de um lugar de interesse crítico-teórico-plástico, abre espaço para se permitir olhar, ser olhado, como muito bem pontuado por Derrida em “O Animal que logo sou” (2002), ser tocado e tocar imaterialmente, “habitar” e se permitir ser “habitado” por esse outro em sua pura alteridade. E, deste modo, torna-se possível transcender essa relação técnica e formalista de ilusão mimética, criando uma relação íntima e transdisciplinar em uma arte, de cunho contra-hegemônico. A medida que, ao reconhecer o que difere, somos capacitados a perceber as outras tantas alteridades que existem, e no contato com a cultura e arte esse caminho se dá a partir da sensibilização poética, estética, pictórica. As implicações ético-estéticas, as quais serão abordadas mais à frente, se ligam diretamente ao tema, ao passo que, além de indagar o que consideramos “belo”, cria também a capacidade de refletir e pensar sobre a raiz dessa relação entre animal humano e animal não-humano por uma ótica poética e crítica. 42 Ao se refletir acerca da possibilidade de uma arte imersa em uma zoopoética atual, é necessário e rico ao humano pensar a plasticidade presente na animalidade. Qual é a textura de ser-animal? Qual a plasticidade do estar-no-mundo sob essa pele que não nos damos conta também ser a nossa? Não em um sentido de perceber a existência a partir dessa fisiologia alheia, mas pensar a ocupação desse espaço como “carne” viva, refletindo que o estar viva, como estado do ser, não é posicionado sem fundamento, diz respeito à noção de pulsão de vida que ali reside. Isto é: “Estar vivo é ser uma alma viva. Um animal – e somos todos animais – é uma alma inserida num corpo. Foi precisamente isso que Descartes enxergou e, por razões pessoais, escolheu negar. ” (COETZEE, 2002, p. 41). Por meio desse direcionamento poético, há espaço para se refletir sobre aquilo que vai além da criação de uma representação figurativa por si só do ser em questão, é pensar a criação que se inicia no olhar, na palavra, passa para as manchas de tinta, mas que reverbera também como existência, criação de afetos, de novas percepções de mundo, de questionamentos. Através da arte, a porta para se pensar a lacuna epistemológica que separa o animal não-humano do animal humano como um espaço passível de pulsão de consciência e percepção se abre e, à medida que, a fronteira entre o não-humano e o humano é nutrida pela ótica da sensibilidade, está ganha caráter plural. Esse aparente limite, na verdade, é uma união na qual os dois repousam e sonham em tranquilidade. Eles não precisam ser iguais para se unirem, não precisam ter semelhanças para estarem habitando lado a lado as fronteiras um do outro; sem necessitarem se olhar ou se tocar, compartilham juntos do mesmo espaço [...] (MORAIS, 2018, p. 111). A cultura visual se expande através da possibilidade de se tornar um mecanismo interseccional, para além dos interesses retidos no espaço “humano”, rompendo essa bolha autocentrada para refletir sobre a existência e as relações de modo mais amplo. 43 2.1. Em busca de uma perspectiva diferente acerca da animalidade. Desta maneira, refletir sobre uma zoopoética dentro das artes visuais requer também uma reflexão sobre o modo com que o animal humano enfrenta a sua própria animalidade e a animalidade que em outros corpos reside. Pensar a poética animalista dentro de um espaço também de poética visual direciona o olhar para o fato de que há estabelecido, intrinsecamente, relações diretas entre a arte e diversas esferas sociais. Como abordado brevemente, anteriormente, há imbuído (mesmo que muitas vezes não seja visto) na produção artística que possui o animal não-humano como parte da representação, uma estrutura de pensamento social acerca do lócus daquele ser. Independente do elemento estar inserido em um contexto artístico objetivo ou metafórico. A imagem animal traz consigo a bagagem, uma animalidade própria e também, por consequência, a percepção humana sobre ela. Assim, de acordo com o dicionário, a definição de animalidade se dá por um conjunto de características, propriedades, caracteres próprios ao animal, logo em seguida se estabelece como sinônimo de bestialidade, neste ponto já é notório a força relacional dos termos e suas tendências de interpretação e também da força da união da palavra e imagem para a decodificação do mundo. A perspectiva que cerca a ideia de bestialidade é antropocêntrica e sua conotação normalmente é associada de maneira pejorativa, atada diretamente com uma concepção extremamente “violenta”, “irracional”, relacionada a algo que não pertence ao ideal humano de racionalidade. Por vezes, a noção de animalidade no horizonte do conhecimento foi sinônimo da noção puramente negativa de bestialidade, designando os animais através de uma iconografia genérica, que lhe conferia o status de brutal, como o limite do que é maligno e monstruoso, a marca negativa e oposta de uma exclusão - exorcismo - do mundo dos seres racionais (UCHÔA, 2020, p.214). É neste ponto que a arte pode alcançar os espaços mais íntimos desta reflexão, adentrando aos poros do questionamento, o de sensibilidade. Essa perspectiva racionalista e cartesiana dos animais reforça uma visão fragmentada e hierarquizada da relação entre animal humano e animal não-humano. 44 Ou seja, à medida que, os animais não-humanos são vistos através dessa ótica extrativista e utilitarista, há a reafirmação da “soberania” humana, e, em contraposição, a mecanicidade e automatismo deste outro “animal” desprovido de logos. Em síntese, essa reflexão que cerca a animalidade traz à tona a reflexão acerca /do pensar o espaço de pertencimento destes animais na sociedade, ao passo que: O animal não coloca apenas em questão os conceitos humanistas, como também exige a desconstrução do olhar humano acerca da natureza, demonstrando os limites, outrora soberanos, da razão como aquele atributo “humanizador” da nossa espécie às custas da redução ontológica e ética das demais espécies classificadas como não racionais (UCHÔA, 2020, p. 220). Desta forma, a arte se torna terra fértil para incluir a animalidade em seu desenvolvimento prático e teórico através da zoopoética, para que haja um espaço de discussão capaz de olhar de modo crítico e com embasamento esta máquina humanista, antropológica e especista através de um canal sensível que seja capaz de possibilitar um eco acerca de novas indagações. Consequentemente, a partir da mudança de paradigma da ideia que tange as existências animais diversas e da alteração do termo animal nos espaços culturais e sociais haverá espaço para olhar de modo mais puro (embasado nas alteridades) para estes indivíduos e também haverá a possibilidade de resgate da nossa própria animalidade humana sem as amarras e pré-conceitos fundados em uma perspectiva ocidental e cartesiana. Assim: Em outras palavras, precisamos estar cientes de que não chegaremos a uma definição clara e objetiva do que significa a animalidade; não estamos buscando uma totalidade ou uma origem, mas antes uma experiência que perpasse outras lógicas de relação com esse conceito, com essas vidas plurais, entre as quais também nos incluímos. (MORAIS, 2018, p. 76). Desconstruindo esse “cosmo” humanista estruturado em sua totalidade sobre uma base especista e ultra racional que entende apenas a razão como medida de todas as coisas (movendo adiante o “Cogito, ergo sum” ou “Penso, logo existo” de Descartes), abre-se socialmente à possibilidade de olhar de modo crítico à essa anulação cartesiana moral dos animais não-humanos e ao pensamento mecanicista. Através dessa concepção dualista, Descartes assevera ter estabelecido uma “diferença de espécie” entre os homens racionais e os animais irracionais. Tendo estabelecido o homem como substância pensante, as comparações entre o animal e a máquina prevaleceram sobre as analogias entre mente humana e animalidade (UCHÔA, 2020, p. 217). 45 E em decorrência desta tomada de consciência, de modo que, sejamos capazes de entender outras formas de racionalidade, e por consequência, havendo uma nova perspectiva para que possamos pisar de pés descalços em uma terra nutrida pela heterogeneidade e pela sensibilidade. A fim de que, haja espaço para repensar também o nosso conceito de humanidade (KRENAK, 2019), ou seja, entendendo quem essa atual ideia de humanidade engloba e quais margens essa concepção abre para a opressão e fragmentação. “Enquanto o ser humano for a medida de todas as coisas, a condição de vida dos outros animais pouco mudará. “ (ROSA, 2018, p. 45) e, como abordado anteriormente, a condição de vida de grande parte dos animais humanos que não se encaixam na parcela desta “humanidade” branca, masculina, cisgênera, de elite também não mudará. Ao atribuir caráter de gênesis na dominação do animal humano sobre os animais não-humanos e os demais “recursos” naturais, há a materialização de uma cisão profunda entre eles, da construção de uma fronteira fixa e fragmentadora. Logo, este obstáculo veta perspectivas diferentes, o ser humano não enxerga o outro (animal não-humano), não se enxerga e não vê a animalidade em si mesmo, e desta forma, entende a animalidade como ponto de oposição ao conceito de humanidade, dentro desse algo abominável, bestial e “desumano”. Entretanto: Se a noção de animalidade não serve para caracterizar nem o animal nem as margens do humano, ela permite talvez precisar alguma coisa mais complexa: a relação entre o humano e o animal. A animalidade remete, então, mais ao que lhes é comum do que aquilo que os distingue (LESTEL, 2011, p. 36/37). Essa fronteira humanista pré-estabelecida nos indaga a pensar sobre a dureza que separa e fragmenta estes corpos, sobre o bloqueio ontológico gerado por esta estrutura de pensamento e como essas questões se repelem da ideia de uma arte engajada que busca em seu seio, através da ação sensível levar ao visual-teórico aspectos que nos permeiam como existência total, interligada, múltipla a qual não se resume a uma única verdade absoluta centrada no ideal humano. [...] contato com a animalidade, seja pelas poéticas da animalidade, seja pelo convívio com um animal real na escola, irrompe nosso eu uno, soberano e humano, nos fragmenta em outros humanos e animais, que, ao serem unidos novamente, não retornam mais ao mesmo estado de humanidade produzida 46 na oposição à animalidade, mas formam, quem sabe, um outro humano, que mesmo diferindo dos animais aceita sua animalidade e com ela seus instintos, afetos, tensões, racionalidades outras (MORAIS, 2018, p. 132). Portanto, há um valor único na arte que se move e se empenha no sentido de desvelar essa camada pejorativa e distante acerca do conceito de animalidade e de mostrar aquilo que se encontra oculto, por baixo da pele, que pulsa potente para a formação de novos questionadores, de novas percepções, sendo elas plásticas ou relativas a vida num sentido mais global. Há na expressão artística um movimento de desassossego, de inquietação perante o ordinário, que traz consigo uma faísca de auto percepção e de percepção do outro e do todo. Fato que pode servir para a quebra com essa falsa ideia utilitária da natureza/animais não-humanos como objetos de consumo, como propriedades de um alguém superior, retirando-os deste lugar de passividade silenciada e devolvendo ao silêncio potência de enfrentamento radical. Através do exercício de um novo olhar e ao pensar esses outros “eus” que em minha textura individual não residem, cria-se a possibilidade de desconstruir a ideia pré-concebida de um eu autocentrado. Em um processo de retirada daquilo que só limita o campo de visão acerca das animalidades desses grandes “Outros”. Pensar sobre nossa própria animalidade-humana, nos faz entender que não é uma busca pela verdade, mas que ao olhar para o outro o olhar se volta também para si mesmo, e ao visualizar nas diferenças um espaço de união, coexistência e poesia os atritos das disparidades se tornam propulsão. Libertar o sujeito da moldura metafísica, desenjaular o animal humano é uma condição de possibilidade para reconhecer a matéria viva em sua latência inapreensível e mutante. Só assim torna-se viável pensar fora das categorias rígidas da tradição antropocêntrica ocidental e explorar uma dimensão que a virada animal nos leva a percorrer a partir do encontro insondável dos olhares entre o animal e o humano (BRAVO, 2011, p. 239). Desta maneira, o espaço poético é privilegiado para que haja a “assimilação” dessa animalidade intrínseca (MACIEL, 2011, p. 87), tendo a assimilação aqui como espaço de diálogo, de conexão, de olhar e ser olhado, ao passo que, seja possível uma compreensão mais afetiva, altera, íntima e visceral. 47 Como em Derrida o impulso de poematizar o animal não se isenta de um comprometimento ético das mãos que criam essa poesia, neste trabalho especificamente abrindo o conceito de poesia também ao campo visual da arte. Destarte, cabe à sensibilidade do poeta/artista se aproximar desta ambientação que circunda o ser/estar animal no mundo e recai a ele a responsabilidade de não se posicionar de modo reducionista, de não “coisificar” ou objetificar estes animais não- humanos em prol de ideais humanos (MACIEL, 2011, p. 94/95). Isto posto: A animalidade, existindo como uma rede de sentidos, repousa na textura, na película, no traço e naquilo que também lhe escapa pelo que é incognoscível. Ela seria ainda tudo que escapa da lenda, seus vestígios em versões que mantêm uma conexão com o mundo animal, e alimenta, ainda que pelo viés da linguagem, tudo aquilo que para o humano se constitui como metamórfico. Enfim, a animalidade existe enquanto pele (JORGE, 2011, p. 186). A textura da animalidade cria uma camada de compreensão tanto das questões dos animais não-humanos, quanto dos humanos, logo, essa textura abre os espaços de percepção para uma nova atmosfera e gera a capacidade de se pensar sensivelmente como ser social, como artista de outra maneira. Com isso, a arte que pode vir-a-ser produzida em sua máxima potência, tem em seu bojo a força de sensivelmente desvelar a essencialidade do que é retratado, ou melhor, apresentado, neste caso, os animais não-humanos. As poéticas da animalidade podem nos fazer pensar de outros modos nossa relação com os outros, humanos e animais, mas também nos provocam a pensar a educação de outras formas por dentro de suas estruturas e, quem sabe, poderemos nos arriscar a pensar uma formação que tenha espaço para um humano que viva as potências sensíveis e instintivas de sua animalidade e se entregue a pensar não somente pela razão, mas também pelas vias da sensibilidade, da estética, das artes e da literatura,ampliando de forma sensível seus julgamentos éticos, modos de vida e de se relacionar consigo mesmo e com os tantos outros; uma formação para um ser humano que expanda suas noções de alteridade além de espécie, forma, raça e sexo [...] (MORAIS, 2018, p. 145). Ao passo que, a animalidade é entendida enquanto pele a concepção fragmentadora, é substituída pelo espelho, como abordado na figura 10 nessa ideia de entrelaçamento e cruzamento, de forma que gera nos indivíduos e no eu artista a aptidão de encontrar e se ver refletidos em outros “eus”, se ver em reflexo a partir daquilo que difere, não em busca de homogeneizar, mas sim de encontrar no contraste espaço de diálogo desse estranho familiar. 48 Figura 10- “Um cruzamento”, jan. 2010, Nara Amelia. Fonte: http://naramelia.blogspot.com/2010/01/ Neste processo de reconhecimento de alteridades, há a abertura para a recriação do “eu”, como já abordado anteriormente, pensado a partir do contato com palavras e imagens que levem a outras racionalidades sensíveis e racionais, outros contatos com o estranho e a diferença (MORAIS, 2018, p. 103). Esse rompimento com o aspecto racional duro que não considera a sensibilidade, com o dualismo que sustenta tanto as noções comuns, belo versus feio, bom versus mal, quanto a concepção negativa da animalidade como “o lado repulsivo do humano” (animalidade bestial versus humanidade), cria espaço para essa nova ótica em relação a tudo que, anteriormente, não conseguimos entender e visualizar a partir desta ideia de espelho. Essas fronteiras entre o eu e o outro, humanos e animais, humanidade e animalidade, não se extinguem, pois, como já dissemos, em cada uma delas habitam seres plurais e singulares, que as mantêm e ao mesmo tempo as tornam imprecisas. Quem realiza a travessia e se coloca em contato com essa subjetividade “estrangeira”, porém, não será mais o mesmo, nem será o mesmo quem está na fronteira. Assim, nesse movimento contínuo e mutável, as fronteiras modificam-se e deslocam-se a todo ato de ser olhado e de olhar o outro. O olhar não é somente um modo de estabelecer uma relação de alteridade, mas também, quem sabe, uma forma de comunicação (MORAIS, 2018, p. 74). 49 Em suma, essa relação poética multiespécie produz uma rede de conexões que torna possível pensar a arte de forma transversal e contrastante com essa superestrutura de dominação do humano sobre o não-humano. E torna viável novas formas de ler as animalidades-outras, a animalidade-humana, o espaço e os elementos que nele se inserem e também das relações estabelecidas. 2.2 Relação imagem-texto: poética animal entre letras e pinceladas. É estabelecido aqui um espaço poético de intercambialidade, entre a leitura do visual e do escrito, neste caso, a imagem de forma individual e fragmentada não exerce sua potência máxima, a produção visual não possui função meramente decorativa ou figurativa, o texto vem de encontro de modo enraizado, e com isso se cria um laço de correlação que costura a perspectiva teórica, crítica e reflexiva que banha em totalidade a expressão plástica. Ou seja, essa poética que discute, reflete, ressalta a animalidade e dá o espaço de protagonismo à existência diversa dos animais não-humanos, que por muitas vezes é imperceptível, se estrutura em completude na união entre texto e imagem. A pesquisa busca entender a criação a partir do pensar as relações através do intercâmbio sensível entre a zoopoética literária e visual. Desta forma, estes corpos animais estão inseridos para além do espaço conceitual, eles vivem imersos na poética do cotidiano, no espaço vivido e ocupado. É necessária uma leitura sensível, porém fortemente educacional que gere a ressignificação de estruturas pré-estabelecidas e que, por consequência, haja o incentivo de vivências sensibilizantes, através principalmente de experiências estéticas (MARIN, 2009, p. 281). A tentativa de sensibilização da ótica acerca do espaço e dos seus mais diferentes elementos constituintes (neste caso, um recorte para os animais não- humanos) cria novas narrativas que se movem no sentido da sensibilidade, da consciência de si junto ao Outro, também da necessidade de ecoar, refletir e repensar as relações no geral. Existem produções artísticas que possuem êxito apenas na expressão visual, ou até mesmo que se estruturam num intuito de manter um espaço interpretacional 50 aberto, e o intuito dessa pesquisa não busca comparar ou criar um descrédito perante isso, mas quando buscamos a ênfase da necessidade da abordagem texto-imagem, como no caso desta pesquisa, é relevante que não haja o posicionamento da imagem como um sistema fechado e completo por si só. É de suma importância, também, reforçar que a base textual não busca um deslocamento racionalista extremo que danifique a leitura sensível das imagens, pelo contrário, o texto vem de encontro sensível, poético na tentativa de abrir portas e permitir uma contemplação educativa, compadecida e, simultaneamente, crítica. Bem como na ilustração científica, o texto tem seu papel insubstituível, porém é importante ressaltar, devido ao recorte de ilustração de fauna como um espaço comum, que neste caso a produção não é compatível com a ilustração científica, tanto visualmente, quanto em relação à estrutura textual. Deste modo, há uma busca de tornar a leitura, tanto imagética quanto textual mais poética, e menos analítica, hermética e racional, ou seja, mais subjetiva, como a exemplo na figura 11. Há a busca de uma abertura, isto é, de uma maior superfície de contato com diferentes leituras possíveis. Figura 11- Trecho do fio narrativo poético do livro poético. Fonte: Elaborada pela autora. Assim, o aparato visual se estabelece junto ao texto, de modo que, a ideia possa ser apreendida de modo sensível através de ambos, e que os animais não- humanos selecionados sejam apresentados de modo reconhecível a partir de uma 51 abertura plástica advinda de uma perspectiva individual artística e não de uma representação objetiva e racional. Difere-se de uma ilustração com fins científicos ou de um simulacro que busca por si só uma tentativa de mímesis, à medida que, há um amplo espaço para a liberdade artística individual, experimental e subjetiva. A partir desta abordagem mais solta, busca-se o mantimento de uma ambientação sensível, reflexiva, crítica, poética e conscientizadora, simultaneamente. Destarte, outro ponto que as difere, é a abordagem textual racionalista/objetiva. A científica se estabelece num espaço teórico extremamente técnico e específico e, por consequência, a leitura correta das imagens e textos se torna menos acessível na maior parte das vezes por uma grande parcela de pessoas. Há também, como tratado de modo breve anteriormente, uma rigidez de composição necessária para a representação visual científica. A necessidade de um rigor técnico, composicional, não se estabelece como foco da pesquisa enquanto espaço de experimentação plástica. Novamente, não há desvalorização alguma perante a expressão da ilustração científica, pelo contrário, está se faz como uma importante referência. Porém, a pesquisa se estabelece com certa subjetividade, com um espaço maior e mais livre para a expressão pictórica. A manifestação artística cumpre seu intuito sem se restringir perante sua abordagem e a intencionalidade não se direciona a uma busca racional, e sim, poética. O intuito da produção e da pesquisa aqui estabelecidas é de dar forma a apresentação destes animais não-humanos, respeitando as características morfológicas essenciais, como cor, proporção, entre outros atributos básicos, porém sem que haja uma rigidez, que possa vir a quebrar a sensibilidade artística individual das pinceladas. As necessidades dentro de um campo de representação científica, de posicionamento ideal, da escolha de uma referência de indivíduo/espécime considerado “perfeito”, de uma imagem “limpa” e objetiva, não dialogam diretamente com a vontade visual-poética. 52 Em suma, a busca não gira em torno de uma representação que sirva necessidades científicas de conhecimento, estudo e de reconhecimento desses animais não-humanos, mas sim uma produção de arte que sensivelmente alcance os olhos como um refresco, como uma novidade boa, que traga em si a abertura para questionamentos sobre a forma que olhamos estes e outros animais não-humanos. Essas relações estabelecidas entre texto-imagem extrapolam a justaposição de ideias, ou seja, se relaciona melhor com a ideia de complementaridade, tendo a imagem-texto como materialização do pensamento como um todo: “[...] relação da imagem com o texto. Usava o texto como explicação da imagem. E usava a imagem como suporte das teses que defendia no texto. Pretendia que texto e imagem se articulassem e se combinassem muito para lá da simples justaposição. ” (POMBO, 2011, p. 88). Desta maneira, através da complementaridade poética entre o textual e o visual, haveria a possibilidade de contemplar amplamente as questões da relação entre animal não-humano e animal humano, trazendo a luz das discussões uma pulsão poética e pictórica. Há a necessidade de abertura para novos questionamentos e novas formas de os fazer, de modo que, possamos repensar a animalidade que reside nos mais diversos viventes (e a nossa própria animalidade), através tanto da arte, da estética, quanto da literatura. Destarte, torna-se viável pensar a criação de uma rede de reflexões que dialoguem tanto em teoria, quanto de modo visual, sintetizando através das pinturas e da poesia as ideias presentes nesta busca teórica, para que, exista a oportunidade de criação de novos meios eficientes de acessar, explicar e discutir sobre essas e outras questões. 53 CAPÍTULO 3. ESTÉTICA E ÉTICA AMBIENTAL ANTIESPECISTA. “É a mesma mulher é o mesmo homem É a mesma criança é o mesmo bicho É o mesmo animal é o mesmo espírito [...] “ (Stela do Patrocínio, 2001, p. 92) É de suma importância ao pensar a arte, tecer uma costura firme entre ela e as demais concepções sociais, políticas e históricas que a estruturam de forma conceitual e teórica, de maneira que, haja a possibilidade de uma leitura mais aprofundada, coerente e um entendimento mais abrangente acerca da transposição da ideia à visualidade. Ao se refletir acerca do espaço da arte está intrínseco de alguma forma pensar sobre a estética, podendo ter valor subjetivo, crítico, filosófico ou até mesmo desconstrutivo em relação a uma ideia tradicional e acadêmica. No espaço contemporâneo a perspectiva estética vai muito além da associação ao culto de aparência, de superficialidade entendida até o século XIX (HERMANN, 2005, p. 12). Neste caso, tendo em vista o recorte relativo às relações com os animais não- humanos, a estética artística revela-se de modo extremamente relevante, ao passo que, ela se relaciona estruturalmente e intimamente (de maneira objetiva ou subjetiva) com o campo da ética e da filosofia, isto é, há uma expansão da concepção para além do campo visual formalista. Logo, a base conceitual, teórica desta pesquisa tem na ética um enorme espaço de inspiração e reverberação artística, a partir da ideia de uma permeabilidade entre a estética e a ética, ou seja, tendo na experiência estética um caminho possível à ideia de moral e ao contato com a alteridade (HERMANN, 2002, p. 12), [...] problematizar as relações entre animalidade, alteridade, artes visuais e literatura dentro do campo da educação é uma questão política e ética, em que está em jogo a vida de seres dotados de alteridades que não se encaixam nos modelos universais [...] (MORAIS; LOPONTE, 2020, p. 4). Se o intuito da produção é gerar uma abertura para reflexões e questionamentos acerca das relações possíveis entre a arte, a natureza, o animal não-humano e o humano, em um sentido de desvelar o que nos passa despercebido, 54 neste caso a existência desses “Outros”, é necessário pensar que há uma estrutura ética e moral de pensamento por trás disso e, portanto, cabe repensá-la para que a arte possa agir socialmente de modo ativo. As experiências estéticas das artes visuais e da literatura nos permitem, pelos seus caminhos abertos e sem respostas únicas, pensar novos modos de tratamento ético que transcendam as barreiras do racional e a visão que temos de nós mesmos e dos outros. O agir ético não é um conhecimento que pode ser transmitido somente pelo racional, na medida em que precisamos de um território de experiências para podermos inventar diferentes maneiras de ser e nos relacionarmos com os outros (MORAIS, 2018, p. 115). Quando a natureza é vista e pensada através da arte e as noções estéticas acerca dos elementos nela inseridas são apoiadas sobre as questões adjacentes a uma concepção natural não idealizada ou artificializada, cria-se um espaço de abertura para a crítica, reflexão e possibilidade de superação do antropocentrismo (SERRÃO, 2005, p. 03), deste modo, a leitura estética que, muitas vezes, pode ser considerada arbitrária, superficial ou ínfima diante de outras questões mostra-se um potente mecanismo crítico para a arte, de forma que, pode subverter estruturas amalgamadas socialmente. Por meio da fruição estética torna-se viável olhar além do que somos educados a ver, através de iniciativas de subjetividade e de desconstrução de concepções irreais, e construídas a partir de um viés humanista, de forma a apresentar a realidade crua e constantemente desvalorizada como uma camada possível e existente do belo, como espaço de apreciação e de inspiração. “[...] o nexo entre estético e ético não significa que na arte se encontre um conteúdo moral, mas que a experiência estética provoca intensa emoção, cria novas sensibilidades [...] “ (HERMANN, 2002, p. 21). Assim, o contato estético, pensando o conceito de estética como um modo de ler o mundo a partir do sensível, manifesta o plural, o diferente sem estar dissociado do contexto histórico, político e social, pelo contrário, tem em si potencial para ser um mecanismo de diálogo com este contexto. Pensar a concepção estética dentro de um universo dicotômico, age no reforço de ideais de beleza restritos e estereotipados. Na conexão com a natureza estas concepções recaem também sobre os animais não-humanos e criam um espaço de manutenção de uma visão especista e eletiva acerca da diversidade, agindo ativamente na estruturação de um juízo de valores centrado em ideais humanos. 55 É notório que há organizações de pensamento que impregnam as mais diversas estruturas sociais, de forma que, o modo com que apreendemos o que nos é mostrado e ensinado apresenta reflexos nítidos destes conceitos presentes no senso comum. A arte é uma das estruturas atingidas diretamente, e a ideia de estética, de belo, de apreciação são inundadas com concepções sociais, muitas vezes, limitantes. Ao representar apenas um ideal de “belo natural” irreal, fabricado e, por consequência, anular toda a diversidade que reside além dessa ideia fictícia e especista, há um imperativo antropocêntrico que gera uma opressão estética e uma fragmentação nas relações. Ou seja, os julgamentos do “belo” existentes, ou das concepções estéticas, geram consequências ético-estéticas e a leitura estética possibilita que as fronteiras racionais sejam transcendidas, gerando novas experiências de subjetividade sensível as quais resultam em outras formas de tratamento ético (HERMANN, 2005, p. 11). “Segunda vertente da teoria da imitação, segundo a qual a arte não deve imitar a natureza, mas a “bela natureza”. Nessa vertente afirma-se o princípio de imitação da natureza, mas de uma natureza selecionada, aperfeiçoada em função de um ideal” (CAVALCANTI, 2008, p. 355), o antropocentrismo cria através de uma visão assimétrica e especista uma falsa e restrita ideia do que é belo, a qual se dá através de concepções e ideias humanos, fato que demonstra o caráter contraditório de eleger uma “bela natureza”. Neste movimento, há uma alteração hedonista da ideia de beleza que está diretamente atrelada ao racionalismo (WAGNER, 2016, p. 45), ao passo que, mantém a discussão estética em um espaço arbitrário e superficial, impossibilitando um entrelaçamento ético-estético potente, que nos leve a olhar o espaço estético como um local de associação direta com a totalidade da vida sensível (HERMANN, 2005, p. 34). Assim, é manifestada a importância do rompimento com as considerações de belo existentes anteriormente em arte (aludindo às mudanças de paradigma do mundo da arte principalmente relativas ao século XX) e do redirecionamento dos olhares (na realidade) para um local diferente desse espaço de herança humanista, 56 extremamente racional e dicotômico, o qual já se encontra saturado, para um ambiente no qual as mais diversas outridades tenham valor. Quando há a reflexão acerca do reforço desses ideais do “belo”, se estabelece um paralelo conflituoso com uma arte que se restringe em expressar apenas o que, de modo distorcido, levando em consideração a existência desta lente especista, é socialmente “aceito” e bem visto. Isto é, a arte neste caso se expande como uma espécie de microcosmo da visão social acerca da estrutura de relação entre o animal humano e animal não-humano ou a natureza como um todo. Microcosmo no qual, muitas vezes, é mais cabível produzir aquilo que somos ensinados a entender como palatável, buscando não se atritar e pensar sobre a estrutura que dita e elege o que é ou não passível de admiração, de afetos, nem sobre a espinha dorsal do capital consumível assentada por trás destas percepções, a qual designa também elementos de exploração, de consumo, de apreciação em prol da produtividade e obtenção de lucro. A tensa relação com a natureza advinda do olhar antropocêntrico encontra em valores estéticos, aliando-se a critérios de ordem moral, um espaço de confronto e argumentação em defesa da preservação e conservação da natureza (VARANDAS, 2012, p. 131) e, por consequência, abre-se também a um local de apreciação, ao modificar a ótica o espaço de crítica também pode ser entendido como sensível e sensibilizante. Nota-se a necessidade de repensar o que tange os juízos de valores presentes no senso comum. Ao apenas reproduzir mecanicamente, pensando no produtor de arte (artista) e no “consumidor” (espectador) como sujeitos ativos, estrutura-se uma forma de agir em prol da manutenção destas questões, ou seja, naturalizar sem questionar é uma forma de perpetuação. Neste ponto, pensar a estética e sua experiência, é pensar toda a esfera em torno da relação construída entre obra e espectador,