RICARDO FONTES DOS SANTOS DE ASSIS A CRISTANDADE E O REINO FRANCÊS. DUAS FACETAS DO PODER RÉGIO (1372-1404) FRANCA 2008 RICARDO FONTES DOS SANTOS DE ASSIS A CRISTANDADE E O REINO FRANCÊS. DUAS FACETAS DO PODER RÉGIO (1372-1404) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, sob orientação da Profª. Drª. Susani Silveira Lemos França, como requisito para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História e Cultura Linha de Pesquisa: História e Cultura Social FRANCA 2008 Assis, Ricardo Fontes dos Santos de A cristandade e o reino francês : duas facetas do poder Régio (1372-1404) / Ricardo Fontes dos Santos de Assis. –Franca : UNESP, 2008 Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP 1. Igreja – História medieval – França. 2. Idade Média – História eclesiástica. 3. Igreja e Estado – Monarquia francesa. CDD – 944.02 RICARDO FONTES DOS SANTOS DE ASSIS A CRISTANDADE E O REINO FRANCÊS. DUAS FACETAS DO PODER RÉGIO (1372-1404) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, sob orientação da Profª. Drª. Susani Silveira Lemos França, como requisito para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História e Cultura Linha de Pesquisa: História e Cultura Social BANCA EXAMINADORA _____________________________________ PRESIDENTE: Susani Silveira Lemos França _____________________________________ 1° EXAMINADOR: _____________________________________ 2° EXAMINADOR: Franca, de março de 2009. À Minha Mãe AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelo financiamento dessa pesquisa. Muito agradeço à minha orientadora, Susani Silveira Lemos França, por ter confiado em meu trabalho e ter me proporcionado o conhecimento sem o qual esse trabalho não teria sido possível. Agradeço às professoras Ana Paula Tavares Magalhães e Margarida Maria de Carvalho pelas importantes considerações feitas em meu Exame de Qualificação. Ao professor Jean Marcel de Carvalho França, por ter me ajudado com as traduções no primeiro capítulo. Muito obrigado aos meus companheiros de academia e amigos que me acompanharam ao longo dessa jornada: Kátia Brasilino Michelan, Michelle Tatiane Souza e Silva e Rafael Afonso Gonçalves. Gostaria de agradecer também a um grande amigo, Daniel Lourenço, que mesmo distante conseguiu me dar apoio em momentos difíceis. Por último, quero dedicar um especial agradecimento para Milena Silveira Pereira, não somente por ter ajudado muito com as correções técnicas desse trabalho, mas, principalmente, por ter compartilhado comigo seu saber e amizade nesses últimos anos. RESUMO No final da Idade Média, foram formulados escritos pedagógicos que estabeleceram normas de conduta para uma boa governação em muitos dos reinos da Europa. Estes escritos são os conhecidos Espelhos de Príncipe, tratados normativos dirigidos especificamente aos governantes. A França, em especial entre os séculos XIV e XV, foi um dos mais importantes palcos dessa modalidade de escrita, justamente por Carlos V, durante seu reinado (1364- 1380), ter favorecido a presença de inúmeros letrados na sua corte e ter estimulado esta produção normativa. Assim, a proposta deste trabalho gira em torno de perceber como os homens desse período pensaram o poder e contribuíram para construí-lo dentro dos moldes que julgavam ideais. Dados seus objetivos de reformar toda a Cristandade e de formular a imagem do príncipe a partir das memórias do reino da França, as obras de Philippe de Mézières (1327-1405), Le Songe du Vieil Pelerin, e de Christine de Pisan (1363-1430), Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V, foram tomadas como base no presente estudo. Ambos os autores, por terem vivido e servido na corte do referido monarca, fizeram uso de suas experiências e dedicaram-se a destacar o papel dos reis na condução do reino e a traçar novos rumos para as práticas políticas. PALAVRAS-CHAVE : Espelhos de Príncipe, Philippe de Mézières, Christine de Pisan, poder, Cristandade. RÉSUMÉ À la fin du Moyen Âge, ont été formules des écris pédagogiques qui ont établi des normalisations de comportements pour une bonne gouvernance en plusieurs royaumes de l’Europe. Ces écris sont les connus Miroirs du Prince, traités normatifs dirigés spécifiquement aux gouvernants. La France, en spécial entre le XIVème et XVème siècles, a été un des plus importants scénario de cette modalité d’écriture, justement parce que Charles V, pendant son règne (1364-1380), a favorisé la présence d’innobrable gens de lettres dans sa cour et a stimulé cette production normative. Ainsi, la proposition de ce travail cherche à percevoir comment les hommes de cette période-là ont pensé le pouvoir et ont contribué pour le construire dans les modèles qu’ils croyaient idéaux. Donnés ses objectifs de reformuler toute la Chrétienté et de formuler l’image du prince à partir des mémoires du royaume de la France, les ouvrages de Philippe de Mézières (1327-1405), Le Songe du Vieil Pelerin, et de Christine de Pisan (1363-1430), Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V, ont été prises comme base dans cette étude. Les deux auteurs pour avoir eu vécu et servi dans la cour du référé monarque, ils ont fait l’usage de leurs expériences et de l’héritage ancien et chrétien pour mettre en relief le rôle des rois dans la conduite du royaume et pour tracer les voies pour les pratiques politiques. MOTS CLÉ : Miroirs du Prince, Philippe de Mézières, Christine de Pisan, pouvoir, Chrétienté. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 Capítulo Primeiro Os tratados normativos e os poderes no final do medievo 13 Capítulo Segundo A memória e a alegoria como instrumentos pedagógicos nos Espelhos de Príncipe 43 Capítulo Terceiro O rei como vigário de Deus na terra. O rei religioso de Philippe de Mézières e Christine de Pisan 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS 102 BIBLIOGRAFIA 106 9 INTRODUÇÃO A década de 1370 marcou profundamente a história do pensamento sobre o poder na França. As traduções da Política de Aristóteles por Nicolau Oresme, em 1376, e do Songe du Vergier por Raul Presles, em 1378, ambas solicitadas por Carlos V, contribuíram para que se desencadeassem mudanças nos pressupostos sobre a prática governativa. Se até este momento a produção normativa estava restrita ao latim e concentrada nas mãos de eclesiásticos, as traduções destas duas obras para o francês proporcionaram aos letrados de corte o acesso ao debate sobre a autonomia dos poderes régios, assim como estimularam que tecessem seus próprios comentários acerca do tema, com base nas ideais dos filósofos gregos. A partir daí, aumenta acentuadamente a produção escrita no reino da França, especificamente de tratados que discorrem sobre as ações de poder e sobre a imagem do governante. Foi, portanto, na segunda metade do século XIV, mais especificamente a partir do reinado de Carlos V (1364-1380), que a maioria dos homens que pensaram os poderes passou a se concentrar na produção de obras que, fundamentalmente, apresentavam modelos virtuosos de boa governação. O principal motivo desse aumento significativo da produção escrita sobre a prática e a moral política dos governantes no período em que reinou este monarca está em seu empenho para preencher sua corte e os cargos burocráticos do Estado com homens que eram detentores de saber, tais como juristas, matemáticos, filósofos, astrólogos, artífices, médicos e muitos outros oriundos das universidades medievais ou de outros reinos do Ocidente. Foi nesse ambiente que viveram e atuaram dois letrados de grande importância para o pensamento político francês do final do medievo: Philippe de Mézières, cavaleiro e diplomata em diversos reinos da Europa, que serviu ao rei Carlos V como conselheiro e tutor do delfim Carlos – futuro Carlos VI; e Christine de Pisan, que chegou à França acompanhando seu pai, astrólogo e médico na corte de Carlos, o sábio, onde foi educada. Após a morte de Carlos V, cada um desses dois letrados compôs tratados normativos, considerados “Espelhos de Príncipe”, onde não somente apresentaram modelos para a formação de um perfeito governante, como também refletiram sobre as condições em que se encontrava o reino em seus períodos: respectivamente Le Songe du Vieil Pelerin (1389) e Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V (1404). O objetivo deste trabalho é perceber como se estruturaram duas reflexões sobre o poder e notar em que medida essas se encontram em sintonia com outras considerações sobre a formação de um governante no final do medievo francês. Serão analisados, 10 primordialmente, os dois tratados citados, tendo em vista que ambos são, de certa forma, exemplares do pensamento sobre o poder no final do século XIV e início do XV, mas, ao mesmo tempo, apresentam interpretações singulares da imagem e das funções do governante, caracterizando as mudanças sofridas nas idéias sobre o poder na passagem desses dois séculos. Le Songe..., obra estritamente alegórica, tem como fio condutor a parábola bíblica sobre um senhor que parte em viagem, deixando com seus servos alguns talentos (moedas) que deveriam ser utilizados com sabedoria, a fim de que se multiplicassem e fossem bem guardados. No caso, esses talentos simbolizavam os ensinamentos deixados por Cristo na terra para que fossem propagados. Com base nessa narrativa alegórica, a obra traz uma descrição sobre como os reinos do Ocidente, especialmente a França, estavam zelando pelos princípios da Cristandade – no caso o uso feito dos alegóricos talentos divinos. Após viajarem pelo Ocidente, as personagens alegóricas de Mézières chegam à França para analisar as condições em que se encontrava o reino e para encontrar o monarca francês, Carlos VI, para lhe transmitir suas considerações sobre as condutas dos cristãos e apresentar-lhe qual deveria ser a conduta de um governante para a reforma de seu reino e de toda Cristandade. Esse tratado de Mézières foi, muito provavelmente, inspirado na obra do abade Guillaume de Digulleville, Le pélerinage de vie humaine – obra composta por narrativas bíblicas que descrevem os caminhos que deveriam seguir os homens para encontrar o Paraíso e a paz de espírito. Assim, o “velho peregrino”, como se definia Mézières, após descrever os reinos que conheceu em suas peregrinações, elaborou um tratado que orientasse o jovem monarca da França sobre aquilo que ele constatou como uma crise da fé cristã. No seu entender, cabia ao monarca francês reconciliar os reinos da Europa, envolvidos na Guerra dos Cem Anos ou em revoltas internas, e liderá-los em uma cruzada em direção ao Oriente, com a finalidade de reconstruir os valores da espiritualidade que, se acreditava, estava sendo perdida. A obra de Christine de Pisan, Le livre des fais..., possui outra estrutura discursiva. Composta como se fosse um livro das memórias do “sábio rei” Carlos, esse tratado teve como ponto central da narrativa a descrição da forma como esse monarca conduziu seu governo com prudência e sabedoria ou, como dizem hoje alguns historiadores, uma obra que pode ser interpretada como “uma humanística e moral imagem do rei”.1 Para escrever esse Espelho, a letrada baseou-se nas idéias e pressupostos ditados por Egídio Romano, em seu De regimine 1 Cf. YENAL, Edith. Christine de Pizan: a bibliography. Metuchen/N. J.: The Scarecrow Press, 1989. 11 principum, em algumas das obras de Aristóteles traduzidas em sua época, especialmente na Metafísica, nas Crônicas Normandas do século XIV e nas Grandes Crônicas da França – o cruzamento das duas primeiras possibilitou à letrada conjugar os saberes terrenos com a fé cristã.2 O tratado de Pisan foi encomendado pelo irmão de Carlos V, o duque Felipe, para que servisse como ensinança na arte de governar para os jovens de seu tempo e para as gerações futuras. Le livre des fais... foi a primeira obra escrita em prosa por Christine de Pisan que é considerada de temática política. Até então, sua produção escrita estava restrita a cartas e poemas que tratavam do amor cortês ou traziam orientações sobre a prática religiosa ou sobre as condutas humanas. Para entender melhor as construções desses letrados sobre o fazer político, também foram confrontados aqui alguns outros pensadores do período, como, por exemplo, Jean Gerson, Alain Chartier, Nicolau Oresme e a obra anônima Songe du Vergier, para entendermos quais eram as configurações propostas na época para as práticas do poder, ou melhor, que valores foram partilhados nesse tempo. O primeiro capítulo traz uma apresentação dos tratados normativos medievais, em especial aqueles que foram produzidos nos séculos XIV e XV. Até o terceiro quarto do século XIV, essa produção normativa foi marcada por construções textuais em defesa especialmente da superioridade do poder temporal sobre o espiritual. As construções sobre o poder nos tratados do final do século XIV para o XV serão abordadas com a finalidade de notar em que bases históricas essa mudança se amparou e como os letrados sintetizaram alguns dos postulados sobre as funções governativas e de que forma firmaram seus textos como verdadeiros. O segundo capítulo apresenta uma análise de como o gênero dos Espelhos de Príncipe, no qual se enquadram as duas obras supracitadas, constitui-se como discurso dirigido aos governantes e nobres, no qual se faz uso de imagens e elementos do passado em confronto com referências dos tempos dos próprios autores. Os dois instrumentos dos quais se valeram os letrados nas construções de suas obras, a alegoria e a memória, foram os canais pelos quais esses letrados produziram discursos sobre as formas de poder, sobretudo, graças à articulação da prática da fé com a prática governativa. O terceiro capítulo trata do processo que leva à legitimação final da soberania régia através dos discursos produzidos no âmbito da corte: o rei como vigário de Deus na terra. Uma das abordagens dessa parte do trabalho será a relação entre religiosidade e poder, que se 2 Cf. QUILLET, Jeannine. Charles V. Le roi lettré. Paris: Librairie Académique Perrin, 1984, p. 54-58. 12 manifestou nessa produção escrita do final do medievo francês a partir da querela bonifaciana (1302) protagonizada por Felipe, o Belo, e pelo papa Bonifácio VIII – querela que repercutiu profundamente nas reflexões sobre o poder durante todo o século XIV. 13 Capítulo Primeiro Os tratados normativos e os poderes no final do medievo [...] A Santa Madre Igreja não é somente dos clérigos, ela também é laica.1 [...] o jovem Moisés coroado, que a graça carrega, [...] defende e protege a fé cristã [...] devendo bem fazer seu ofício e ser capacitado a observar a fé católica e exaltar a igreja de Deus.2 Os extratos acima expostos são de duas obras da segunda metade do século XIV, a primeira, Songe du Vergier, de autoria anônima e cuja versão original em latim data do ano de 1376, apresenta um debate sobre as distinções entre os poderes secular e eclesiástico, em que o segundo é preterido em relação ao primeiro. A segunda, Le songe du vieil pelerin, de Philippe de Mézières, foi concluída em 1389 e apresenta reflexões e argumentos voltados para a reunificação de toda a cristandade. A partir dessas duas obras, é possível examinar um importante movimento que tem lugar do início do século XIV até o limiar do século XV, isto é, a intensificação de uma produção discursiva acerca dos limites da autoridade dos poderes monárquicos e eclesiais – muito estimulada pela querela travada entre Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, da França, iniciada em 1302 –, que culminou, num primeiro momento, na elaboração do Songe du Vergier. No momento seguinte, de que é exemplo Le songe du vieil pèlerin, vislumbra-se a tentativa de reconciliar os valores da “mere sainte eglise” (mãe santa igreja) com as ações da figura responsável pela condução do reino francês, o rei, ou mais especificamente, os reis que vieram depois de Carlos V (1338-1380). Tais obras, contudo, por mais que possuam discursos diferentes, confluem em um objetivo: a condução do poder. As atribuições e a legitimação dos poderes eram fonte de interesse dos homens que pensaram a organização dos reinos desde o século XII – de que é exemplo o célebre Policraticus, que será tratado mais adiante. Nesse período, uma produção escrita destinada às 1 ANONIMO, 1376 apud QUILLET, Jeannine. La Philosophie Politique du Songe du Vergier (1378). Sources Doctrinales. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin: 1977, p. 40. (Trad. nossa). Cf. “ [...] Sancta mater ecclesia non solum est ex clericis, sed etiam ex laïc” . 2 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin. Editado por George W. Coopland. Londres: Cambridge University, 3 Livros, Vols. 1 e 2, 1969, Vol. 2, Livro III, cap. 236, p. 248. (Trad. nossa). Cf. “[...] le jeune Moyse couronne, qui a grace charge, [...] deffendeur e protecteur de la foy crestienne [...] doye bien faire son office et soy habiliter a l’observance de la foy catholique et exaltacion de l’eglise de Dieu [...]”. 14 ações governativas nos séculos finais da Europa medieval procurou destacar o processo de constituição de verdadeiras formas híbridas dos poderes, consolidadas ao longo desses séculos e envolvendo empréstimos mútuos entre as esferas.3 Especificamente no que diz respeito às forças seculares, cada vez mais essas “trocas” eram estabelecidas para representar uma comunidade unificada, cristã e “nacional”, como, por exemplo, ditou Vicente de Beauvais no século XIII, ao definir o Estado como um “corpus reipublicae mysticum”,4 “[...] um caso claro de termos emprestados das abundantes idéias eclesiásticas, e de transferência, para a república secular [...]”, seguido por seu contemporâneo Gilbert Tournai que, valendo-se da mesma expressão, “corpus mysticum”, definiu seu modelo de perfeito governante como verdadeiro representante de Deus, cabendo ao papado apenas a orientação espiritual dos corpos terrestres.5 Ainda no século XIII, Egídio Romano – frei Gil de Roma – desempenhou um papel fundamental na reflexão sobre a atuação dos poderes. Esse pensador, com base no pensamento de São Tomás – que estabeleceu as relações que repercutiriam durante os séculos seguintes entre a fé cristã com o pensamento da Política de Aristóteles, revivendo as idéias de uma comunidade social mais humanizada e guiada pelo príncipe, pilastra da reorganização e comunhão da policie6 –, definiu um caráter mais humano para as condutas e ações do governante.7 Esse período, os historiadores têm destacado como o momento de fusão da teologia com o pensamento aristotélico, direcionado às práticas do cotidiano. Também nesse momento forja-se o modelo medieval dos Espelhos de Príncipe.8 Muitos dos homens formados nessa geração da passagem do século XIII para o XIV elaboram suas doutrinas sobre a inter-relação entre os poderes e suas aplicações práticas, sempre retomando seus predecessores. Jean de Paris (1240?-1306), por exemplo, em sua De potestate regia et papali, reivindicou o caráter natural da sociedade civil. Dessa forma, a 3 KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 125. 4 A expressão “corpus mysticum”, segundo Kantorowicz, representou a tentativa corporativista da Igreja em se colocar como única representante de Deus na terra, representando Cristo como a cabeça desse corpo. Cf. Ibid., p. 126. 5 Ibid., p. 134. 6 A palavra policie (ou police) designava no medievo francês organizações ou comunidades políticas, administração pública, governo ou governação, Estado. A expressão politique (política) era aplicada normalmente como referência à ciência ou campo do conhecimento. Cf. Dictionnaire du Moyen Français (DMF). In: ATILF/Équipe "Moyen français et français préclassique" , 2003-2005. Base de Lexiques de Moyen Français (DMF1). Disponível em: http://atilf.atilf.fr/gsouvay/scripts/g2/renvoi.exe?OUVRIR_MENU=6;BACK;s=33433560;lem=POLICIE;. Acesso em: 21 maio 2007. 7 BUESCU, Ana Isabel. Imagens do príncipe. Discurso normativo e representação (1525-1549). Lisboa: Edições Cosmo, 1996, p. 36 e 37. 8 Ibid., p. 39. 15 Igreja não deveria dispor de direitos sobre as propriedades laicas, ou seja, caberia à Igreja não a posse, mas apenas administrar até mesmo seus próprios bens. Nessa altura, interpretações aristotélicas dos corpos políticos e sociais deixaram de ser exclusividade da Escolástica do século XIII e passaram a ganhar terreno nos debates sobre a vida e a organização cotidiana nas estruturas de poder, dando início a discussões sobre os caminhos para uma política terrestre. Assim como Dante faria na segunda metade do século XIV, Jean de Paris esmiuçou o dualismo entre l’homo naturalis e l’homo christianus.9 Já, no início do século XIV, foi requisitado, no Antequam essent clerici, de autoria anônima, o direito de maior controle sobre o espiritual pelos organismos laicos, antecipando os argumentos que mais tarde surgiriam, no Songe du Vergier, sobre os reagrupamentos dos poderes.10 Do mesmo período, o Rex pacificus Salomon e o Disputatio inter militem et clericum, também anônimos: defenderam a unidade do poder em torno do príncipe; demarcaram as relações entre os poderes eclesiásticos e temporais; identificaram e opuseram uma série de termos em uma enumeração sistemática, de acordo com as categorias funcionais e composições orgânicas e espirituais da sociedade. Os súditos seriam, nesse contexto, a força motriz das ações do reino, entendido como uma substância temporal; e o rei, parte representativa de uma substância espiritual, seria responsável pela condução das ações práticas.11 Se esse pequeno esboço acerca dos textos produzidos nos séculos XII e XIII adianta algo sobre um conjunto de relações que aos poucos foi ditando o ritmo de uma reordenação dos poderes nos finais da Idade Média, as produções textuais normativas e pedagógicas dos séculos XIV e XV redirecionam essas relações, ao se voltarem para o ideal governativo centrado na imagem do rei justo, forte e estável. Ao mesmo tempo em que seus autores discutiam o espaço destinado às atuações do poder eclesiástico, preconizaram o poder régio, pregando profunda lealdade a este e desenvolvendo trabalhos acerca da natureza de seus limites, direitos e deveres.12 Não é possível aqui, no entanto, descrever ou analisar o impacto desses tratados da França no período em que se constituía como Estado centralizado – tarefa que demandaria muitas páginas e erudição –, apenas é factível neste trabalho mapear como tal produção escrita serviu para uma reorganização e redefinição das formas de se pensar e conduzir o 9 QUILLET, Jeannine. D’une Cité l’autre . Problèmes de philosophie médiévale. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2001, p. 19-21. 10 ANONIMO, 1376 apud QUILLET, Jeannine. La Philosophie Politique du Songe du Vergier (1378), p. 16. (Trad. nossa). Cf. “[...] l’Église n’appartient pas seulement aux prêtes, mais aussi aux laïcs [...]”. 11 Ibid., p. 17. 12 KRYNEN, Jacques. Idéal du prince et pouvoir royal en France à la fin du Moyen Age (1380-1440): étude de la littérature politique du temps. Paris: Editions A. et J. Picard, 1981, p. 325. 16 poder. O alvo aqui é, portanto, não as configurações do poder real no século XIV, mas como, na passagem desse século para o seguinte, intensificou-se uma produção escrita que se pretendeu a expressão do que tinha sido e do que deveria ser o governante e a governação. Entre as composições que fizeram parte dessa produção normativa destinada a educar e orientar os príncipes e jovens monarcas da França em seu ofício encontram-se os Espelhos de Príncipe. As interrogações desse trabalho giram em torno do papel desse gênero nas construções do poder, dão que esses escritos se firmaram gradativamente como verdadeiros no final do medievo francês. Giram igualmente em torno do lugar ocupado por esses letrados na corte régia sobre a qual falavam e no âmbito da própria prática governativa – já que, neste momento, letrados e servidores régios se confundem, como veremos adiante. Para se interrogar sobre o papel desses homens na vida pública do período, vale mencionar, de saída, que as próprias designações sobre eles não são consensuais. Bernard Guenée preferiu o termo “intelectual” para definir aqueles que se manifestaram ou se expuseram para sua sociedade e para seus pares através de suas teses ou doutrinas.13 Entretanto, em seu trabalho, o termo refere-se àqueles indivíduos que lidaram com o conhecimento de modo geral, fosse ele prático ou teórico; designa, portanto, toda e qualquer forma de construção e manifestação de saber do período, sem restrição a um tipo específico de escritos e sem indicar caminhos para entender, ou diferenciar, como esses homens viam a eles mesmos e aos seus congêneres – questão fundamental neste estudo. Tanto Alain de Libera como Jacques Le Goff fazem uso do mesmo termo que Guenée, porém, o primeiro aponta caminhos mais sugestivos para o estudo dos diversos saberes medievais. Ele não ignora que a palavra “intelectual”, na sua acepção corrente nos dias de hoje, somente veio a fazer parte de nosso vocabulário a partir do século XIX. Contudo, considera justificada a utilização do termo para o medievo se, primeiramente, for identificável na Idade Média “[...] um ‘tipo de homem’ ao qual o termo pode se aplicar [...]”; em segundo lugar, se for perceptível uma correspondência do termo com um determinado grupo que se vincule com as modalidades de pensamento, tais como clérigos, mestres e litteratis. Acrescenta ainda que o emprego do adjetivo naquele tempo “[...] o relacionava à virtude, ao conhecimento e ao prazer [...]”. Um número substantivo de homens daquele tempo fundou sua própria singularidade e alcançou o que se pode chamar de certa profissionalização por intermédio dessa noção de “intelectualidade”, recebendo remuneração e responsabilizando-se pelo ensino e por boa parte da produção escrita do período.14 13 Cf. GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: EDUSP, 1981, p. 79-94. 14 LIBERA, Alain de. Pensar a Idade Média. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 9 e 10. 17 Ao mesmo tempo, a vida dedicada às letras no interior das instituições de produção do saber ganhou gradativamente as cidades e centros de convivência social, estimulando o surgimento de um saber “marginal”, não “profissionalizado”, encorajado pela valorização e difusão da língua vernácula nas produções escritas. Esses saberes marginais, destaca Libera, não foram produzidos no interior das instituições universitárias, e os que os produziram não eram necessariamente possuidores de graus ou títulos universitários, antes estavam reunidos em dois grupos distintos e fizeram emergir uma nova “existência filosófica”, apenas inspirada nos modelos universitários urbanos e fundadora de um modo de vida que ele entende como intelectual. A esse fenômeno, o autor define como uma “intelectualidade” não institucionalizada.15 Foram os caminhos percorridos por esse “fenômeno do intelectual” – modalidade de pensamento ou ofício – e sua transposição da órbita institucional, universitária e mendicante, para meios urbanos difusos que interessaram a ele. Lido por Libera, Le Goff, no seu célebre estudo sobre um personagem que, no século XIII, começa a se destacar no “canteiro urbano”, traz-nos algumas elucidações sobre a questão da utilização do termo “intelectual” para definir esta nova figura. Delimita bem a aplicação da palavra, ao explicitar que seu estudo se restringe aos “mestres das escolas” e que, por essa razão, o termo “designa os que têm por ofício pensar e ensinar o seu pensamento”, embora outras expressões mais específicas os tenham qualificado: clérigos, sábios, mestres, entre outras.16 Feita essa ressalva, Le Goff informa ter afastado de seus estudos aqueles homens que não tiveram, necessariamente, seus pensamentos produzidos nos meios escolares e universitários, tais como “místicos recolhidos na clausura”, “poetas” ou mesmo cronistas, visto que os lugares de onde falaram eram outros –17 centros urbanos, mosteiros ou o interior das cortes, onde ocuparam funções administrativas ou representativas, de conselheiros, chanceleres, tutores, etc. Ainda a propósito dessas designações, algumas obras e escritos produzidos entre os séculos XIV e XV identificam seus autores de acordo com a função que detinham em seu tempo. Logo no cabeçalho de apresentação do Le Dyalogue de Alain Chartier (1385-1433), por exemplo, encontra-se a seguinte denominação: livro “[...] de mestre Alain Chartier, grande secretário do rei [...]”.18 A mesma atribuição é encontrada nos Breviare dus Nobles,19 15 LIBERA, Alain de. Pensar a Idade Média, p. 12. 16 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa: Estúdios COR, 1973, p. 7. 17 Ibid., p. 8. 18 CHARTIER, Alain. Le dyalogue [Microforme] / de maistre Alain Chartier. Coleção French books before 1601; 32.3. Cambridge (Mass.): Omnisys, 1990. Reprodução da edição de Viena: [J. Solid], [1478?], 34 p, Número de referência na biblioteca da França: FRBNF37231737. (Trad. nossa). Cf. “Le Dyalogue de maistre Alain Chartier grant secretaire du roy”. 18 do mesmo Chartier, ou no Harengue faicte au nom de l' Université de Paris, de Jean Gerson (1363-1429): “[...] por mestre Jean Gerson, Chanceler da Igreja de Paris [...]”.20 Marcar as obras com as funções que ocupavam seus autores, “chanceleres” ou “secretários”, foi comum, porém, antes de definir esse lugar de onde falavam, surgia muitas vezes o indicativo “mestre”, ou seja, aquele que, além de poder possuir cargos jurídicos/administrativos no seio do reino ou da Igreja, estava apto a ensinar o conhecimento das artes medievais e das disciplinas ligadas ao saber – como filosofia, medicina, teologia –, bem como a educar jovens príncipes.21 Porém, a utilização da palavra mestre, por mais que estivesse relacionada com formas de saber, mais indicava o grau ou posição de um indivíduo em determinada função do que propriamente seu trato com o conhecimento escrito e oral – “mestre secretário” ou mestre de uma universidade, como acima foi citado. Para assinalar os homens que se preocuparam com o saber e ao mesmo tempo apresentaram uma vida moralmente virtuosa, o termo prudhomme foi muito utilizado. Além de identificar os homens instruídos nas letras, essa palavra refletia o trato com o conhecimento prático e moral, alinhado com qualidades como honestidade, lealdade, dignidade, valentia e o saber religioso.22 Isso fica claro em Christine de Pisan, quando informa que Carlos V, ao reunir os homens para preencher sua “virtuosa” corte e conselho, selecionou preudes hommes sábios e experientes. Para isso, foi buscar nas universidades e nas cortes eclesiásticas “[...] tous les sages prélas [...] avec la prodomie de bien [...]”, juristas e “notables preudes hommes”, ou seja, segundo Pisan, [...] em razão da nobreza de sua [de Carlos V] coragem, que lhe trazia muitas virtudes, todos os homens valentes, sábios e bons queriam ter, tanto quanto lhes era possível, a sua companhia e ouvir os seus conselhos [...].23 19 CHARTIER, Alain. Breviaire des nobles, fait et composé par maistre Alain Charetier, notaire et secrétaire du roy Charles V, VI et VII. Número de referência na biblioteca da França: FRBNF30225691. 20 GERSON, Jean. Harengue faicte au nom de l Université de Paris devant le Roy Charles sixiesme, & tout le conseil contenant les remonstrances touchant le gouvernement du Roy [Documento eletrônico] / [par maistre Jehan Gerson]. Num. BNF da éd. de Cambridge (Mass.): Omnisys, 1990, Coleção French books before 1601; 88.10. 1 microfilme reprod. da éd. de Paris: por Vincent Sentenac, 1561. Número de referência na biblioteca da França: FRBNF37254940. (Trad. nossa). Cf. “[...] par maistre Jehan Gerson Chancelier de l’Eglise de Paris [...]”. 21 Dictionnaire du Moyen Français (DMF). In: ATILF/Équipe "Moyen français et français préclassique"... Disponível em: (http://atilf.atilf.fr/gsouvay/scripts/g2/renvoi.exe?OUVRIR_MENU=6;BACK;s=3409225305;lem=MA%CETR E;). Acesso em: 22 mai. 2007. 22 Ib id. Disponíve l em: (http : / /at i l f .at i l f . fr /gsouvay/scr ip ts/g2/renvo i.exe?OUVRIR_MENU=6;BACK; lem=PRUDH OMME;s=3409225305) . Acesso em: 22 mai. 2007. 23 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France, depuis le règne de Philippe-Auguste, jusqu’au commencement du dix-septième siècle. Paris: Foucault, Libraire, Ruede Sorbonne, Tomos V e VI, 1824, Tomo V, Livro I, caps. XIV e XV, p. 273-275. (Trad. nossa). Cf. “[...] par la noblece de son corage qui le 19 Philippe de Mézières também se valeu da expressão ao se referir ao “[...] preudomme Mestre Nicole Oresme, solene mestre em teologia, digno bispo de Lisieux [...]”.24 Por mais que Alain de Libera indique que o termo “intelectual” possa ser associado àqueles que lidaram com “modalidades de pensamento”, entre eles os mestres, e por mais que se relacionassem com o conhecimento, seria difícil aqui atribuir aos homens que escreveram e atuaram junto às cortes e ao Estado um adjetivo que os identificasse com homens ligados ao meio universitário, tal como nos mostrou Le Goff. Por outro lado, parece sugestiva a expressão homens de saber (gens de savoir), que dá título a um conhecido livro de Jacques Verger.25 A expressão utilizada já no título da obra, segundo ele, serve para identificar aqueles que foram objeto de análise do autor, ou seja, aqueles que cuidavam ou lidavam com o conhecimento de meados do século XIII ao século XV. Verger, em busca de identificar um “grupo humano específico”, adverte-nos que a mesma não teria feito parte do vocabulário e da linguagem medieval, razão pela qual justifica que se vale dela em razão de nenhuma designação medieval englobar a diversidade desse grupo. Ele recorda-nos termos comumente encontrados em fontes medievais, como vir litteratus, clericus, magister, philosophus, termos cujos significados, no medievo, apenas em parte designariam o que entendemos por homens de saber. Outra sugestão de Verger para tentar identificar esses homens é “graduados” – aqueles que possuíam titulação universitária – , visto que esse termo também fez parte do vocabulário da época medieval, mas também este termo implicaria em uma generalização arriscada, pois, no conjunto de indivíduos que são observados em seu trabalho, muitos são graduados, mas não a totalidade. Alguns, por exemplo, “[...] não haviam obtido nenhum grau [...]” e muitos outros, embora estudiosos, sequer teriam “[...] freqüentado instituições habilitadas a emitir diplomas [...]”.26 Outra solução possível seria “homens de livro”, levando-se em consideração a relação que esses homens estabeleceram com o escrito durante suas vidas – visando informar ou ensinar determinadas práticas e condutas. Todavia, essa expressão dá a entender um monopólio do uso do livro por esses indivíduos e um esquecimento do conhecimento oral, além de levar ao falso juízo de que o livro estava já disseminado no período. Por tudo isso, tiroit au bien de vertu, tous hommes preux [prudhomme] vaillans, sapiens et bons vouloit avoir de sa partie tant comme il pot, et user de leur consauls [...]”. 24 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin, Vol. 1, Livro II, cap. 159, p. 618. (Trad. nosssa). Cf. “[...] preudomme Maistre Nycole Oresme, solennel maistre en theologie, digne evesque de Lisieux [...]”. Nicole Oresme, além de ocupar os cargos de diácono em Bayeux (1361) e cônego da catedral de Rouen (1362), antes foi secretário, capelão e conselheiro do rei Carlos V, nomeado em 1359. Jean Gerson, em 1392, abdicou do cargo que ocupava como Chanceler na Universidade de Paris. Alain Chartier foi secretário de Carlos V, VI e VII. 25 VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. Bauru: EDUSC, 1999. 26 Ibid., p. 15 e 16. 20 homens de saber é a proposta de Verger para designar os homens responsáveis pelas letras e pelo saber no período em questão, especialmente em razão de dois elementos: o domínio estabelecido sobre uma específica modalidade do conhecimento – aqui, no caso, o poder monárquico e suas atribuições – e as reivindicações de determinadas práticas relacionadas ao “saber” que esses homens foram adquirindo – esta última de extrema importância para os pressupostos que serão colocados mais adiante, em especial no que diz respeito ao trato com a verdade. O termo “letrado” também tem sido proposto pela historiografia para referir esses homens, dada sua atividade escrita, termo que, juntamente com o de mestre, será aqui o utilizado, em razão da sua recorrência nas próprias fontes. Considerando-se os lugares de onde falavam ou escreviam os letrados e a produção normativa pedagógica do final do século XIV e início do XV, elaborada nesse contexto, é importante observar como esses escritos discutem e tentam reordenar o poder. Nesse caso, a gradativa centralização do poder nas mãos do monarca foi um dos alvos daqueles que se dedicaram a refletir sobre seu tempo. Para melhor identificar esse movimento, convém lembrar o surgimento de um aparelho administrativo regular e organizado, destinado a auxiliar o monarca em suas funções, composto por setores e pessoas responsáveis pela ordenação da governação do reino e cuidados com questões a ela referentes, bem como “[...] a instauração progressiva da fiscalidade pública e de uma ordem garantida pelo poder de comando do soberano”.27 Aparentemente, a consolidação de tais mecanismos tornou-se possível graças à emergência de novas formas de pensamento no final do século XII e início do XIII, voltadas para definir as virtudes reais exemplares para o bom exercício do poder, intercalando proposições jurídicas, teológicas e filosóficas e visando não somente a legitimação do poder régio, mas também a demarcação de limites e espaços que distinguissem e distanciassem os poderes eclesiásticos das competências régias, como já explicitado acima.28 Com base na concepção organicista da sociedade, e sendo o monarca a cabeça pensante desse corpo,29 a elaboração de doutrinas pedagógicas destinadas à formação do governante mostrou-se o objetivo dos mestres desse período, centrando-se em reflexões sobre a conduta e as funções destinadas ao rei – de modo geral, um deslocamento das formas de se pensar o poder da ordem contratual feudal para uma ordem estatal centralizada, sendo o 27 CHARTIER, Roger. História Cultural . Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002, p. 216. 28 BLANCHARD, Joël. L'entrée du poète dans le champ politique au XVe siècle. In: Annales. Histoire, Sciences Sociales, Vol. 41, nº 1, p. 43-61, 1986. 29 A concepção organicista da sociedade e do Estado medieval será discutida um pouco mais adiante. 21 monarca responsável por organizar o “corpo social” a partir de um corps de policie fortalecido e que atentasse para o “bem comum”. Entretanto, sendo o rei também sujeito aos pecados e crimes gerados no interior do próprio corpo social, justificar-se-ia uma educação e um corpo de conselheiros que orientassem o monarca no caminho de uma “pura verdade”, correspondente à perfeita arte de governar seu corpo, casa e reino. Assim, educar e aconselhar são funções fundamentais dessa produção normativa que ganha novos significados no século XIV. 30 Falar em “novos significados” para os escritos dos homens de saber, e de como pensaram seu universo naquele tempo, conduz a uma questão fundamental dos tratados do final do século XIV para o XV, isto é, não estavam seus formuladores preocupados somente com a afirmação da monarquia como regime ideal, mas, antes de tudo, com a exposição dos caminhos necessários que conduziriam a uma forma salutar de governação, onde a chave para esse objetivo era o próprio monarca. Ao se elaborar um discurso pedagógico destinado ao príncipe ou monarca, consequentemente atingir-se-ia a boa organização e pacificação do reino. Sendo assim, essa modalidade discursiva do período, como tem apontado os historiadores, participou dos rumos tomados na reordenação dos poderes, trazendo um novo sentido e classificação para as virtudes e os atos políticos e sociais. Ao definir caminhos para a “perfeita governação”, os letrados do final do medievo também elaboraram fórmulas de aplicação prática da science de politique e suas relações com a arte de governar. Foi com esse intuito que Christine de Pisan elaborou seu tratado sobre a vida de Carlos V, vendo nesse rei um modelo a ser seguido: Por isso que a science de politiques, superior entre as artes, ensina o homem a governar a si mesmo, como servo e súdito, e todas as coisas, conforme ordem justa e certa; como ela é disciplina e instrução de governar os reinos e impérios, todos os povos e todas as nações [...]: visivelmente esse sábio príncipe [...] conhecedor daquela ciência, [...] pela prudência de seu informado/prevenido entendimento, ele aprende naturalmente, sem outra leitura apreendida nessa parte: pois sua pessoa governou por pollicie ordenadamente, como dito está.31 30 BLANCHARD, Joël. L'entrée du poète dans le champ politique au XVe siècle. In: Annales. Histoire, Sciences Sociales, p. 43. 31 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo V, Livro I, cap. XIX, p. 283. (Trad. nossa). Cf. “Pour ce que la science de politiques, superllative entre les ars, enseigne homme à gouverner soy mesmes as mesgniée et subgiez et toutes choses, selons ordre juste et limite; comme elle soit discipline et instruccion de gouverner royaumes et empires, tous peuples et toutes nacions [...]: apert manifestement cestui sage prince estre [...] expert en ycelle science, [...] par la prudence de son averty entendement, luy aprrenoit naturellement, sanz autre estude de lettreure aprise en ceste partie: car sa personne governoit par pollicie tres ordennée, comme dit est” . 22 Assim foram os Espelhos de Príncipe, “[...] um instrumento de revelação que os clérigos oferecem aos soberanos [...]”.32 Modelo discursivo que se iniciou com as monarquias carolíngias no século IX e que foi importante instrumento de valorização das virtudes para a salvação do espírito e as limitações dos poderes régios com base nas leis divinas, estabelecendo, com isso, uma estreita subordinação da monarquia às doutrinas da Igreja Católica. Foi em meados do século XII, com a obra de João de Salisbúria (1110-1180), o Policraticus (1159), que se inaugurou uma nova estrutura pedagógica nesses tratados. Salisbúria não negou a importância das leis divinas para a formação principesca, entretanto, exaltou a sabedoria e afirmou como preocupação para o monarca o apreço pelas letras e erudição, trabalhando com isso as distinções elementares entre o rei tirano e aquele que governava em nome do “bem comum”.33 Para Salisbúria, o Estado era constituído como um corpo humano onde [...] O príncipe é cabeça, e é ‘súdito somente de Deus e daqueles que praticam Seu ofício e O representam na terra’; o senado ocupa o lugar do coração, e os juízes e governadores do príncipe representam os olhos, ouvidos, e língua; oficiais e soldados são as mãos; os assistentes do príncipe correspondem aos seus flancos; [...] e os camponeses são seus pés, ‘como sempre apegados ao solo [...], assim são eles que levantam, sustentam e movem para frente o peso inteiro do corpo’.34 Sendo o monarca a cabeça, aquele que pensava as ações desse organismo em constante movimento, Salisbúria ensina ao rei a importância dos conhecimentos, tanto das letras como das armas para tal prática.35 Já no século XIII, período onde houve um significativo aumento dessa produção pedagógica, é importante citar Egídio Romano (1247-1316), discípulo de Tomás de Aquino. 32 BLANCHARD, Joël; MÜHLETHALER, Jean-Claude. Écriture et Pouvoir. À l’aube des temps modernes. Paris: PUF, 2002, p. 7. 33 BUESCU, Ana Isabel. Imagens do príncipe. Discurso normativo e representação (1525-1549), p. 33 e 34; BLANCHARD; MÜHLETHALER, op. cit., p. 9. 34 BORN, Lester Kruger. The perfect prince: a study in 13th and 14th century ideal. In: Speculum, Vol. 3, nº 4, oct. 1928, p. 472. (Trad. Nossa). Cf. “The prince is the head, and is ‘subject only to God and to those who exercise His office and represent Him on earth;’ the senate fills the place of the heart, and the judges and governors of the princes represent the eyes, ears, and tongue; officials and soldiers are the hands; the constant attendants of the prince correspond to the sides; [...] and the farmers are like the feet, ‘which always cleave to the soil [...] since it is they who raise, sustain, and move foward the entire weight of the body’”. 35 Sobre o Policraticus, dentre tantos trabalhos que o discutem, poderiam ser citados, além da obra de Lester K. Born acima referida, GENET, Jean-Philippe. La mutation de l’éducation et de la culture médiévales. Occident Chrétien (XIIe. siècle – milieu du XVe. siècles). Paris: Seli Arslan, Tomos I e II, 1999; QUILLET, Jeannine. Charles V. Le roi lettré. Essai sur la pensée politique d’un règne. Paris: Libraire Académique Perrin, 1984 – nessa obra, especialmente, p. 223-231; KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. 23 Em sua obra, De Regimine Principum (1287), dissertou sobre os modelos regimentais e definiu a monarquia como a melhor forma de governo. Pontuou a prudência, a coragem, a dignidade e a bondade como virtudes salutares a um bom governante e atribuiu ao rei um caráter divino, repensando, assim, os campos de ação dos poderes;36 ao balizar esses campos, Romano estimulou outras interpretações da soberania laica,37 das ações temporais e de mecanismos de controle das ordenações dessa soberania. Gilberto de Tournai (?-1270), assim como Romano, defendia a monarquia por sucessão hereditária como forma ideal de governo. Acreditou que a função do príncipe era evitar o mal em seu reino, razão pela qual deveria estar acima de qualquer lei temporal e cuidar da manutenção da lei divina38. Muitos foram os teóricos que formularam tratados durante o XIII. Entretanto, por mais que nessas obras estivessem contidas orientações para o governante régio, marcantes foram na produção desse período suas preocupações com as formas de governo e a necessidade de legitimar o poder principesco, que não se perdeu ao longo dos séculos XIV e XV, porém, vieram a sofrer modificações, deixando de ser discussões primárias, como já foi dito antes. Em 1372, o Policraticus foi traduzido para o francês, a mando de Carlos V, por Denis Foulechat, e foi lido por muitos letrados, que dele se serviram como fonte para a composição de suas obras, mesmo que muitas vezes sem fazer-lhe referência.39 Sobre sua importância para o século XIV, Nicolau Oresme, por exemplo, em sua exegese sobre Aristóteles, fez o seguinte comentário: [...] Assim como é recitado no Policraticus [...] a coisa pública é um corpo que é como se fosse animado e revigorado por um dom divino. E é amparado também como por uma vontade ou desejo de soberania equânime, sendo governado por uma moderada ou temperada razão. E depois é descrito como nesse corpo, a saber, a coisa pública, o príncipe possui lugar de chefe e os bispos e os juízes têm o lugar das orelhas e dos olhos. [...] E os cavaleiros que guardam e defendem esse corpo possuem o lugar das mãos. E os cultivadores dos campos e outros trabalhadores [...] ocupam o lugar dos pés [...].40 36 Egídio Romano escreveu seu tratado como um Espelho de Príncipe destinado à educação do ainda jovem delfim da França Felipe que, quando coroado, recebeu o cognome de Belo. Logo depois, Romano passou a ser perseguido pela Igreja como herege, quando foi perdoado nos finais do século XIII e nomeado arcebispo da Bourges na passagem desse século para o seguinte. Em 1302, escreve o De Eclesiastica Potestade, um tratado em defesa da teocracia pontifical. 37 A esse momento de transição entre os séculos XIII e XIV, Georges de Lagarde definiu como de nascimento do "espírito laico". Cf. LAGARDE, George. La naissance de l´esprit laïque au declin du moyen age. Paris: E. Nauewelaerts, 1956, 5 vol. 38 BORN, Lester Kruger. The perfect prince: a study in 13th and 14th century ideal. In: Speculum, p. 479 e 480. 39 QUILLET, Jeannine. Charles V. Le roi lettré. Essai sur la pensée politique d’un règne, p. 104. 40 ORESME, Nicolau apud QUILLET, op. cit., p. 263 e 264. (Trad. nossa). Cf. “[...] Si comme il est récité en Policratique [...] la chose publique est un corps qui est aussi comme anime et vivifié d’un don divin. Et est démené aussi comme par un vouloir ou plaisir de souveraine équité et est gouverné par un modérément ou 24 Já Christine de Pisan escreveu, entre 1406 e 1407, o seu Le livre du corps de policie,41 composto e estruturado de maneira análoga ao modelo e diretrizes traçadas no Policraticus. Dividindo-o em três partes – por sinal, essa foi uma estrutura corrente nos tratados pedagógicos do período do nosso estudo –, Pisan, nesse livro, discute as atribuições e funções no interior do corpo social francês, hierarquizando-as de acordo com suas relevâncias nas ações públicas. Ela coloca, logo no início da obra, que a primeira parte foi destinada ao príncipe, a segunda aos cavaleiros e nobres e, por último, a terceira, à “université de tout le peuple”, ou seja, o conjunto de todos os povos. Continuando, ela afirma ser o rei (ou chef) a cabeça desse corpo, servindo como um “cão pastor” a guardar seu “rebanho” dos “lobos”, portanto, o monarca era a imagem viva do corps de policie. Os cavaleiros e nobres representavam os braços e mãos do corpo, cabendo a eles o respeito pelas instituições, sociais e políticas, estabelecidas por Deus, bem como a crença Nele. Essas são as atribuições correspondentes a esse grupo da sociedade francesa na opinião de Pisan. Por último, ela estabelece as normas e atribuições do terceiro grupo, “as pessoas comuns”, correspondentes ao ventre, pernas e pés do corpo social. Ela não deixa de retratar a importância desse grupo para o perfeito funcionamento dos corps de policie, visto que, segundo ela, o corpo humano só é perfeito quando todas as suas partes trabalham em acordo umas com as outras.42 Porém, seguindo os escritos de São Paulo, ela determina como virtude cardeal das “pessoas comuns” a obediência à vontade divina, e sendo o rei aquele escolhido para todos governar, devia ser ele respeitado e seguido. Outras obras suas não deixaram de apresentar semelhanças com o tratado de Salisbúria, como o Le chemin de longue étude (1402-1403),43 obra na qual Pisan também descreveu de maneira simbólica a estrutura do corpo social, e Le Livre de la paix (1412- 1413).44 Em nenhuma dessas obras ela chegou a citá-lo. Nos textos normativos elaborados na segunda metade do século XIV, é notável o objetivo de aconselhar – ou instruir – os próprios monarcas na arte de bem governar. A idéia attrempement de raison. Et après est éscrit comment ce corps, c’est à savoir en la chose publique, le prince tient lieu de chef et les prévôts et les juges tiennent lê lieu des oreilles et des yeux. [...] Et les chevaliers qui gardent et défendent ce corps tiennent le lieu des mains. Et les cultiveurs des champs et autres laboureurs [...] tiennent le lieu des pieds [...]” . 41 Cf. PISAN, Christine de. Le livre du corps de policie. Ed. crítica com introd. e notas de Angus J. Kennedy. Paris: Champion, 1998. 42 QUILLET, Jeannine. Charles V. Le roi lettré. Essai sur la pensée politique d’un règne, p. 228. 43 Cf. PISAN, Christine de. Le livre du chemin de long estude. Ed. por Robert Püschel. Edição publicada pela primeira vez com inspiração nos sete manuscritos de Bruxelas/Berlin de 1887. Paris/Genova: Slatkine, 1974. 44 Cf. Id. The Livre de la paix. Ed. por Charity Cannon Willard (ed.). Haya: La Hague, Mouton, 1958. 25 de perfeição centrou-se na figura régia e não mais na busca de um ideal de governação, como fizeram muitos letrados no início do mesmo século. A perfeição deveria ser ensinada ao príncipe, pois ele era, ou deveria ser, o responsável por conduzir o reino à paz e ao “bem comum”. As obras pedagógicas tornaram-se elos de comunicação direta dos letrados com seu alvo principal, o rei. Exemplo disso foram as traduções de diversos tratados e obras dos séculos anteriores requisitadas por Carlos V durante seu governo, assim como a composição de sua biblioteca real e pessoal que, segundo estudo de Jacques Verger, chegou a reunir aproximadamente 1300 volumes.45 As traduções e produções de textos destinados aos homens de corte, não só aos príncipes desse período, ficou bem demarcada em razão de uma relação bem definida entre saber e poder. Os letrados desse tempo eram vistos pelos homens de corte como “homens do livro e da escrita”, e foi justamente com essa sua associação com a produção escrita, por meio da qual “[...] eles consignavam e conservavam suas opiniões [...]”, que eles puderam adquirir acesso às instâncias de poder.46 Cresceu no século XIV o número de bibliotecas particulares nobiliárquicas e de estudantes universitários. Entretanto, vale lembrar que, por mais que o mesmo século XIV tenha visto um desenvolvimento das traduções e da produção em vernáculo – essa última inclusive conquistando um importante espaço –,47 Verger adverte-nos que boa parte das obras encontradas nas bibliotecas desse tempo eram obras antigas conservadas ou que ganharam suas traduções entre os anos de 1350 e 1450, permitindo, com isso, o aumento das coleções “[...] pelo simples efeito da acumulação [...]”.48 Christine de Pisan trata do seguinte modo essa relação de Carlos V com os livros: Não dissemos ainda do sábio rei Carlos o grande amor que ele teve pelo estudo e pela ciência; e que ele foi assim, bem o demonstra o belo conjunto de notáveis livros e bela biblioteca em que havia de todos os mais notáveis volumes que por soberanos autores foram compiladas, seja da santa Escritura, de teologia, de filosofia, e de todas as ciências, muito bem escritas e ricamente ornadas [...].49 45 VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média, p. 118. 46 A utilização de papel chiffon, mais barato, a partir do século XIII na França, também pode ser vista como o fenômeno que permitiu a diminuição dos custeios para a produção e aquisição dos livros, com sua expansão nos séculos XIV e XV. Cf. Ibid., p. 111-113. 47 GENET, Jean-Philippe. La mutation de l’éducation et de la culture médiévales. Occident Chrétien (XIIe. siècle – milieu du XVe. siècles), Tomo II, p. 409 e 410. 48 VERGER, op. cit., p. 117. 49 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo VI, Livro III, cap. XII, p. 26. (Trad. nossa). Cf. “Ne dirons-nous encore de la sagece du roy Charles la grant amour qu’il avoit à l’estude et à science; et qu’il soit ainssi, bien le démonstra par la belle assemblée de notables livres et belle librairie qu’il avoit de tous les plus notables volumes que par souverains aucteurs ayent este compillez, soit de la saincte Escripture, de théologie, de philozophie, et de toutes sciences, moult bien escrips et richement adornez [...]” . 26 Na página seguinte à citada, a letrada fornece ainda alguns exemplos de títulos que foram traduzidos a mando de Carlos V, como A cidade de Deus e o De Soliloquio, de Santo Agostinho; Le livre du Ciel et du Monde; Ética e Política, de Aristóteles; De Chevalerie, de Végécio; os dezenove livros das Propriétez des choses; Factorum et dictorum memorabilium, de Valério Máximo; o Policraticus de João de Salisbúria.50 Traduções de tratados referentes à espiritualidade também poderiam ser citados, como Homélies de São Gregório, o Traité de l’âme de Hugues de Saint-Victor, o Pèlerinage de l’âme de Guillaume de Digulleville – obra que foi referência para Mézières –, o Livre de l’Enseignement des Princes e Le jeu des échecs moralisés. Finalmente, o Songe du Vergier, tradução do Somnium viridarii, escrito em 1376, de autoria desconhecida e que teria sido de fundamental influência para muitas das obras de seu tempo, especialmente pelo debate nele desenvolvido acerca dos poderes temporais e espirituais.51 Nesse conjunto de obras que foram de interesse do monarca, encontram-se aquelas dirigidas aos cuidados com o espírito, às ensinanças sobre as condutas morais.52 Esses títulos de obras presentes na biblioteca de Carlos V adiantam um pouco sobre as preocupações que norteavam as formas de se pensar o universo cortesão, cada vez mais composto por letrados leigos e oriundos dos centros universitários e já não apenas, como fora até o final do século XIII, caracterizados pela autoridade eclesiástica. Esses homens vieram a preencher cargos e funções que emergiam como necessários ao funcionamento do reino, cabendo a eles ocupar certas funções especialmente no Conselho e nos espaços que circundavam o poder régio. Um movimento, pode-se dizer, simples, levou os mestres, fundamentalmente oriundos das universidades francesas – sobretudo da Universidade de Paris –, a serem chamados para essas funções. Algumas informações e dados numéricos são interessantes sobre o tema em questão. Até meados do século XIV, embora junto à corte pontifical houvesse muitos nobres que se entregaram ao sacerdócio, foram aqueles que obtiveram títulos como graduados, licenciados ou doutores, que receberam benefícios do papado na França. De acordo com dados apresentados por Genet, no pontificado de João 50 Todos os títulos que estão citados na obra de Pisan possuem, em nota do editor, seus correspondentes tradutores. 51 Sobre o conteúdo da biblioteca de Carlos V e traduções de livros em seu tempo, ver: QUILLET, Jeannine. Le roi lettré et as ‘librairie’. In: _____. Charles V. Le roi lettré. Essai sur la pensée politique d’un règne, p. 96-105; CALMETTE, Joseph. Charles V. Paris: Libraire Arthême Fayard, 1945, p. 190-208; GENET, Jean-Philippe. La mutation de l’éducation et de la culture médiévales. Occident Chrétien (XIIe. siècle – milieu du XVe. siècles), p. 112. Sobre o Songe du Vergier, ver: LENIENT, Charles (1826-1908). La satire en France au Moyen Âge. Reprodução eletrônica da edição de Paris: Hachette, 1893, pela BNF : FRBNF37245480; QUILLET, Jeannine. La Philosophie Politique du Songe du Vergier (1378). Sources Doctrinales. O Songe du Vergier será melhor abordado mais adiante. 52 Cf. GENET, op. cit., Tomo II. 27 XXII (1316-1334), segundo consta nos arquivos, aproximadamente 14000 universitários foram beneficiados com privilégios, outros quatro mil foram “gradués”, sendo 2835 juristas. Dentre os clérigos beneficiados com cargos junto às cúrias, ou outros órgãos, a cada três um era universitário, e entre os universitários, a cada quatro, três eram juristas.53 Isso reflete como houve uma preferência pelos universitários, especialmente juristas, os quais ocuparam as funções práticas dentro das instâncias eclesiásticas. Muitos desses mestres passaram a ser chamados para exercerem funções em outras regiões ou reinos, como Alemanha, Inglaterra, Espanha, etc. Houve um aumento na procura pela aquisição de títulos e cursos universitários, entretanto, os cargos oferecidos pela Igreja não acompanharam a demanda desses recém-formados. Assim, coube ao Estado acolher esse excedente; acolher esses homens qualificados para compor as cortes e as funções administrativas e burocráticas, bem como para atuar como médicos, astrólogos, artífices, etc., junto ao reino. Estabelecem-se, assim, as “carreiras laicas”54 ou “os clérigos a serviço do Estado”55. Nesse processo de laicização dos saberes, as universidades, pelo menos durante o século XIV, mantiveram-se como instituições da Cristandade, sob controle e influência da Igreja e suas doutrinas, embora tenham existido processos e tentativas de domínio dos centros universitários franceses pela monarquia, como no caso de Felipe, o Belo, em meio à querela bonifaciana.56 Como resultado, outro movimento se mostrou presente no que tange à produção textual durante o século XIV: o nominalismo proposto por Ockham e que contribuiu na re-configuração dos espíritos dos homens que atuaram nesse processo. Seus tratados de ordem política foram escritos no período posterior ao primeiro quarto do século XIV e, entre eles, destacam-se o Breviloquium de potestate papae, De imperatorum et pontificum potestate e Dialogus. A partir desse momento, o filosofo inglês refugiou-se em Pisa, sob a proteção do futuro imperador Luís IV, o Bávaro, fugindo das perseguições pontificais por suas idéias consideradas heréticas e perigosas ao exercício das doutrinas cristãs. Defendeu que, no estado de natureza, Deus concede ao homem a condição de escolher seus chefes. Sobre isso, na 3ª parte do Dialogus, ele é enfático: “[...] o Império é um direito; este é o exercício de um poder 53 GENET, Jean-Philippe. La mutation de l’éducation et de la culture médiévales. Occident Chrétien (XIIe. siècle – milieu du XVe. siècles), Tomo II, p. 360 e 361. 54 Ibid., p. 363-370. 55 BLANCHARD, Joël; MÜHLETHALER, Jean-Claude. Écriture et Pouvoir. À l’aube des temps modernes, p. 33. 56 GILSON, Etienne. A filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 882 e 883. 28 positivo humano [...]”.57 Por isso, atribuir ao poder uma origem divina significaria dizer que Deus conferiu aos homens o direito de instituir o poder político. Os homens se organizam em sociedades civis. Essa sociedade é fonte de poder, assim como o império. O Império Romano pagão foi responsável pelo Império Romano cristão, por isso seu poder é totalmente independente do poder papal. Na verdade, toda sua reflexão aparenta estar centrada nos limites dos poderes, e não propriamente na importância de suas manifestações e práticas. Os poderes espiritual e temporal não deveriam ser confrontados, pois emanariam da mesma vontade divina, porém, seus espaços de atuação deveriam ser demarcados para que um não viesse a pôr obstáculos desnecessários ao bom funcionamento tanto da fé como da razão. O campo de atuação da igreja seria aquele do espiritual.58 Guilherme de Ockham trouxe grandes contributos para o campo político-teológico por suas considerações sobre a não possibilidade de uma aproximação constante entre a filosofia e a teologia, lançando postulados sobre a autonomia dos aspectos temporais em relação aos espirituais e ferindo, com isso, as instâncias mais elevadas das organizações religiosas de sua época. Cada vez mais foi constante a aproximação entre os princípios da doutrina cristã com modalidades discursivas dirigidas aos corps de policie. Dentro dessa lógica ordenatória dos poderes e tendo em vista os deslocamentos coligados entre o temporal e o espiritual, o fundamental foi orientar e formar os futuros governantes no trato da sua comunidade, que a eles foi dada por Deus para governar. Se no início do século os discursos sobre o poder tinham por objetivo separar as competências, durante a segunda metade do mesmo – sobretudo após a escrita do Songe du Vergier ou na década de setenta, quando Carlos V estimulou a tradução e produção de obras sobre a questão e deu início a tentativas de reconciliação com a Inglaterra –, muitos prudhommes defenderam uma reaproximação dos poderes seculares com os poderes eclesiásticos, especialmente com a ocorrência, no mesmo período, do Cisma do Ocidente (1378-1417), que estimulou o medo de um cisão definitiva entre as esferas. Assim, não deixaram de afirmar a superioridade dos poderes régios diante da Santa Fé, mas sim afirmaram como era importante ao bom governante ter como uma de suas principais virtudes o cuidado com a defesa e com a preservação da Igreja no interior dos domínios seculares. Exemplos desse movimento encontram-se nas citações que iniciaram este capítulo, ou na obra de Christine de Pisan sobre a vida do então “[...] amado príncipe o sábio 57 Essa obra foi possivelmente escrita em três partes, porém, hoje somente temos conhecimento do texto incompleto. Cf. ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia. Antiguidade e Idade Média. São Paulo: PAULUS, 1990, Vol. 1, p. 615. (Coleção Filosofia). 58 QUILLET, Jeannine. D’une Cité l’autre . Problèmes de philosophie médiévale, p. 26 e 27. 29 rei Carlos, quinto daquele nome [...]”,59 na qual ela lembra a devoção deste monarca, ilustrada por suas freqüentes visitas e participações nas festas anuais da Igreja de Saint Denis e da capela do palácio de Paris, bem como por seu apreço e cuidado para com as relíquias santas que ali estiveram guardadas,60 ou ainda, como “[...] o Rei sábio, além de cuidar para que os recursos de seu reino fossem santa e sabiamente distribuídos, tomou para seu conselho todos os prelados mais sábios e de melhor juízo [...]”.61 Jean Gerson, chanceler da Universidade e Igreja de Paris, não deixou de defender em seu discurso proferido na Universidade Paris que, [...] por determinação expressa de Aristóteles em sua Política, que Reino ou reinado é policie & governo melhor & mais durável, conveniente & racional a quem desejar, a exemplo do mundo que não é governado senão por um Deus soberano. [...].62 Entretanto, discursou também sobre a importância da [...] reforma da Igreja da França, fosse para possuir conselhos provincianos segundo os antigos cânones, fosse para confiar a pessoas de grande julgamento & preud’hómie segundo a ordenação de restituição de toda a Igreja, em extirpar essa detestável maldade & execrável cisma [...].63 Desse modo, a mesma poderia contribuir na formação e desenvolvimento da “vie spirituele e divine” de cada monarca.64 Nas universidades dos séculos XII e XIII, cabia aos homens de saber a transmissão e produção do saber intercalado com as doutrinas católicas. Esses homens foram clérigos, monges, bispos, etc. – homens ligados ao sacerdócio – e, por essa razão, sua visão de mundo se mantivera em comunhão com o pensamento cristão. Alguns dos ensinamentos ministrados nas universidades – especificamente as artes e a filosofia – tiveram 59 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo V, Livro I, cap. XXXIII, p. 316. (Trad. nossa). Cf. “[...] prince feu le sage roy Charles, quint d’icelluy nom [...]”. 60 Ibid., Tomo V, Livro I, cap. XXXIII, p. 317. 61 Ibid., Tomo V, Livro I, cap. XV, p. 274. (Trad. nossa). Cf. “[...] le sage Roy, sus l’estat des revenues de son royaume bien sainctement et sagement distribuer, tira à son conseil tous les sages prélas et de plus sain jugement [...]”. 62 GERSON, Jean. Harengue faicte au nom de l Université de Paris devant le Roy Charles sixiesme, & tout le conseil contenant les remonstrances touchant le gouvernement du Roy, p. 4a. (Trad. nossa). Cf. “ [...] par la determination expreffe d’Ariftote en fef Politiquef, que Royaume ou regne eft policie & gouuernement meilleur & pluf durable, conuenable & raifonnable qui fiot, à l’exemple du monde qui n’eft gouuerné que par vn Dieu fouuerain. [...]”. 63 Ibid., p. 46b. (Trad. nossa). Cf. “ [...] reformation de l’Eglise de Fráce, foit par faire concils prouinciaux felon les anciens canons, foir par commettre gens grand fens & preud’hómie felon la cedule de la reftituion de toute l”Eglise, en extirpant ce deteftable maudit & execrable fchifme [...]”. 64 Ibid., p. 41a-43b. 30 como função servir como auxiliares ou complementares ao estudo do Direito, das artes e, principalmente, da Teologia.65 Nos séculos XIV e XV, esses mestres provenientes da escolástica medieval chegam às cortes e ao interior dos corps de policie sem mudar significativamente suas formas de pensar o mundo, mas reordenando essas formas – num movimento que teve início com a Querela Bonifaciana e foi se transformando até os princípios do século XV, com homens como Jean Gerson e Alain Chartier. Jacques Verger procura ressaltar como ao conhecimento clerical sempre foi atribuída uma finalidade prática. Com o movimento de “laicização” do pensamento, não se perde tal finalidade, mas o novo aparelho estatal ganha impulso.66 Passaram esses novos mestres de corte a interrogar sobre como determinadas artes ou doutrinas influíam no espírito humano e sobre se aquilo que se aprendia e ensinava possuía função no cotidiano político e social. Foi nesse momento que ensinar ou aconselhar, fosse nas cortes ou nas universidades, passou a representar, para muitos homens do medievo, uma forma de evidenciar a importância dos saberes para a vida em sociedade. No contexto desse processo é que se encontram as produções normativas dos séculos em questão, não destinadas a modificar o poder político propriamente dito, mas sim a indicar formas de conduzi-lo em favor tanto do reino como de toda a cristandade. Surgem, assim, novas classificações, ordenações e representações do próprio discurso sobre o poder associadas à importância do verdadeiro seguimento da fé e do respeito às leis divinas. A palavra ganhou novo significado. Ela passou a ser um forte – se não o maior – instrumento transmissor de “verdades”. Todos os nomes até aqui citados – Philippe de Mézières, Jean Gerson, Alain Chartier, Christine de Pisan, dentre outros – foram exemplos daqueles que se empenharam sobre seu uso entre o final do século XIV e início do XV; pessoas que tiveram o privilégio de traduzir em linguagem pedagógica as estruturas de poder até então propostas. Naquele momento, participaram diretamente do cenário público de uma França que se centralizava em torno da figura do monarca e, a partir de seus espaços de atuação, aconselharam-no e educaram-no. Por essas razões, convém examinar o lugar ocupado por esses homens nesse período e em que medida eles se fizeram portadores de uma verdade que foi direcionada ao governante régio. As posições que assumiram no início do século XIV em defesa da legitimidade do reinado de Felipe, o Belo, correspondem a um compromisso que esses letrados assumem com a moral e com a vida pública, e que teve seus reflexos nas atitudes e expressões escritas dos proudhommes que compuseram o reinado de Carlos VI na passagem do século XIV para o 65 Cf. LIBERA, Alain de. Pensar a Idade Média, p. 11. 66 VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média, p. 136. 31 XV.67 Os letrados de então, muito possivelmente seduzidos pela tradução do De Oratore de Cícero no século anterior, passaram a se preocupar com o trato retórico, reivindicando para si o direito da palavra voltada para o bem do reino.68 Christine de Pisan, com sua carta direcionada a Isabel da Baviera em 140569 e com o L’Avision Christine70, do mesmo ano, denuncia e profetiza os males provocados pelos conflitos com a Inglaterra, que se desdobravam desde o início do século anterior e a estimulou a escrever, em 1410, Lamentationes sur les maux de la France e Le livre de la paix, suas propostas para uma possível solução das dificuldades.71 Alain Chartier, por sua vez, com seu Le Quadrilogue invectif (1422),72 ditou os caminhos para a pacificação do reino em um debate entre um cavaleiro, um homem “comum”, um clérigo, e uma figura alegórica que representava o reino da França, elaborando argumentos a favor da causa régia. Foi esse engajamento pessoal dos homens de saber da passagem do século XIV para o XV, associado aos seus conhecimentos da retórica, que possibilitou a eles conquistar o respeito e autoridade em seus discursos para serem ouvidos: “[...] os dois indispensáveis para convencer os que detinham o poder a escutar a voz pátria e agirem pelos interesses do reino. [...]”.73 A relação desse discurso com a verdade funda-se sobre a idéia de testemunho, ou seja, na idéia de que tudo que era proposto ou descrito nestes textos devia respaldar-se naquilo que foi vivenciado pelos seus idealizadores. O lugar ocupado por esses homens foi o que lhes possibilitou uma visão privilegiada como testemunhos diretos das ações e acontecimentos nas esferas de poder. Como já foi exposto, Alain Chartier foi “humble secretaire du roy” (humilde secretário do rei), e relembrando os antigos que fizeram de suas plumas seus “glaives des combatans” (espadas de combatentes) em favor da “chose publique” (coisa pública), ele se define como um “lointaing imitateur des orateurs” (distante imitador dos oradores).74 Na obra de Philippe de Mézières, sua noção de verdade aparece através da descrição profética e alegórica que o “velho peregrino” (o próprio Mézières) faz das condições em que se encontravam os reinos da Cristandade (Livro I) e, em especial, a França (Livro II), ou seja, 67 KRYNEN, Jacques. L’ Empire du roi . Idées et croyances politiques em France, XIII-XIVe. Siècles. Paris: Gallimard, 1993, p. 303-308. 68 BLANCHARD, Joël; MÜHLETHALER, Jean-Claude. Écriture et Pouvoir. À l’aube des temps modernes, p. 34. 69 PISAN, Christine de. Epistre à la Reine. In: KENNEDY, Angus J. (ed.). Revue des Langues Romanes, nº 92, 1988, p. 253-264. 70 Id. Livre de l'advision Cristine. Editado por Christine Reno e Liliane Dulac. Paris: Honoré Champion, 2001. 71 Id. La Lamentacion sur les maux de la France. In: KENNEDY, Angus J. (ed.). Mélanges de langue et littérature françaises du Moyen age et de la Renaissance offerts à Charles Foulon. Rennes: Institut de français, Université de Haute-Bretagne, 1980, p. 177-185. 72 CHARTIER, Alain. Le Quadrilogue invectif. E. Droz (ed.). Paris: 1950. 73 Cf. BLANCHARD; MÜHLETHALER, op. cit., p. 35 e 36. 74 Ibid., p. 36. 32 aparece através de suas andanças pela Europa e Oriente como cruzado e cavaleiro, aproximadamente entre os anos de 1340 e 1372, em conjunto com os ensinamentos que ele transmite ao Beau Jeune Cerf Volant couronne (Belo Jovem Cervo Valente coroado) ou Blanc Faucon Pelerin au bec et piez dorez (Branco Falcão Peregrino de bico e pés dourados) – algumas das alegorias que Mézières utilizou para denominar o então jovem Carlos VI.75 A obra inicia-se com uma referencia à parábola bíblica sobre o que fazer dos “besans” (talentos), deixados na terra por Cristo, simbolizando os dons que cada homem recebe de Deus e como bem multiplicá-los (Mateus, XXV, 14-30).76 As irmãs “Ardant Desir” (Ardente Desejo) e “Bonne Esperance” (Boa Esperança),77 “[...] pela graça e vontade da Providência Divina [...]”, recebem a incumbência de encontrar o “sainte arquemiste” (Carlos VI) que cunhava as moedas do “rico tesouro do Paraíso das almas”.78 Enquanto isso, uma de suas mais importantes personagens alegóricas, “A rainha, chamada Rica Preciosa, é posta em figura pela virtude da verdade infalível”,79 a “Royne Verite” (Rainha Verdade), juntamente com suas damas “Paix” (Paz), “Misericorde” (Misericórdia) e “Justice” (Justiça),80 e assim partem pelo mundo averiguando como foram cuidados os “besant du evvangillee”.81 A parábola que Mézières introduz no prólogo resume o fundamento de sua obra: Por Ardant Desir, portanto, e por Bonne Adventure [Esperance], como foi dito no Prólogo, pode-se entender os corações de todos aqueles e de todas aquelas que perfeitamente desejaram a reforma da Cristandade; e que o talento da alma de cada um se multiplique [...], afim de que ao prestar contas dos talentos na morte e no dia do julgamento, cada um possa mostrar as boas obras multiplicadas para o salvamento de sua alma. [...].82 75 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin, Vol. 1, Livro I, Prólogo, p. 86. 76 Ibid, Vol. 1, Livro I, Prólogo, p. 83. Besans foram talentos ou moedas de ouro da Bizâncio antiga. Cf. Dictionnaire du Moyen Français (DMF). In: ATILF/Équipe "Moyen français et français préclassique" . Disponível em: http://atilf.atilf.fr/gsouvay/scripts/g2/renvoi.exe?OUVRIR_MENU=6;BACK;s=4244778960;lem=BESANT;. Acesso em: 05 jul. 2007. 77 Ardant Desir e Bonne Esperance representam o próprio Mézières em seu desejo de reformar o mundo cristão, como o mesmo explica na sua Table Figuree, que se encontra na seqüência do prólogo. Cf. MÉZIÈRES, op. cit., Vol. 1, Livro I, Prólogo, p. 106-114. 78 Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 1, p. 190. (Trad. nossa). Cf. "Par la grace et commandement de Providence Divine [...]"; " riche tresor de Paradis des ames". 79 Ibid., Vol. 1 Livro I, Prólogo (Table Figuree), p. 107. (Trad. nossa). Cf. “La royne, Riche Precieuse appelle, est prinse en figure pour la vertu de verite infallible”. 80 Ibid, Vol. 1, Livro I, cap. 8, p. 218. 81 Besant du evvangillee são os talentos do evangelho de Mateus acima citado. Cf. Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 9, p. 222. 82 Ibid., Vol 1, Livro I, cap. 7, p. 210. (Trad. nossa). Cf. “Par Ardant Desir, doncques, et par Bonne Adventure [Esperance] il fu dit ou Prologue qu’il se puet entendre [pour] les cuers de tous ceulx et de toutes celles qui parfaictement desirent la reformacion de la Crestiente; et que le besant de l’ame de chacun soit multiplie, c’est assavoir que par l’inspiracion de Dieu tous ses commandemens [...] affin que au rendre compte du besant a la mort et au jour du jugement, chacun puisse moustrer les bonnes oeuvres multipliees au sauvement de son ame [...] ”. 33 Para o ex-chanceler, a reconstrução da Cristandade devia sustentar-se na forma como os homens se dedicavam a multiplicar os “bons besans” recebidos de Deus, tendo por finalidade o próprio salvamento do espírito humano. Foi justamente a “Verdade” que foi ao encontro dos homens na terra para observar e alertar sobre os perigos de como estavam sendo cultivados os besans. Mézières, seguindo o preceito pregado pelo apóstolo São João, vale-se da voz de Ardant Desir, em um diálogo com sua irmã Bonne Esperance, para afirmar que “Verite est Dieu”, referindo-se a Royne.83 O autor também apresenta esta personagem, no decorrer da obra, como filha de Deus.84 Foi por meio de uma releitura das Sagradas Escrituras que Mézières, no Le Songe du Vieil Pélérin, defendeu a verdade de suas idéias e pensamentos. Essa fusão do recurso alegórico com o discurso cristológico não era nova e nem representou para a Idade Média “[...] uma simples fabulação, uma fábula destinada a ilustrar de maneira poética um ensinamento moral [...]”, mas uma expressão de um discurso de verdade de uma realidade a ser descrita –85 “[...] e como por maneira de alegoria e de concordância, ele [o peregrino] relaciona todas as coisas à virtude e ao bem forjar o talento da alma”.86 Mézières definiu-se como um sonhador, ou, alegoricamente, possuidor de um “ardente desejo”. Desejo de reformar o mundo, representando todos aqueles que possuem seu mesmo desejo.87 Todos seus sonhos e desejos foram sendo construídos durante toda sua vida como servidor ao lado de seis reis – Mézières foi cavaleiro de Humberto II, da Savóia, onde aprendeu as artes das armas, participando com esse de uma expedição para o Oriente em 1346; em seguida, organizou uma nova cruzada com Hugo IV de Lusignan; em 1349, ajudou Jaime II de Maiorca a recuperar seu reino na Espanha, onde dedicou seus serviços a Afonso XI de Castela até sua morte em 1350. Em 1354 regressa à França, para depois partir em direção à Noruega e Prússia; foi chanceler do rei de Chipre, Pedro de Lusignan, entre 1361 e 1369; em 1372, regressa definitivamente à França, onde veio a se tornar conselheiro de Carlos V e tutor voluntário de Carlos VI após a morte do “sábio” rei, em 1380.88 As posições diversas ocupadas por Mézières, desde sua juventude nos corps de policie – cavaleiro, chanceler, 83 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin, Vol. 1, Livro I, cap. 1, p. 191. 84 Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 76, p. 398. 85 QUILLET, Jeannine. D’une Cité l’autre . Problèmes de philosophie médiévale, p. 238. (Trad. nossa) 86 MÉZIÈRES, op. cit., Vol. 1, Livro I, cap. 7, p. 209. (Trad. nossa). Cf. “[...] Et comment par maniere d’allegorie et de concordance, il [o peregrino] rapporte toutes choses a vertuz et a bien forgier le besant de l’ame”. 87 Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 1, p. 190. 88 Sobre a vida de Mézières ver: JORGA, Nicola. Philippe de Mézières – 1327-1405, et la croisade au XIV° siècle. Paris: Librairie Émile Bouillon, 1896; DUPRONT, Alphonse. Le mythe de croisade. Paris: Gallimard, Vol. 1, 1997, p. 256-298. 34 conselheiro, além de seus conhecimentos como viajante –, propiciaram-lhe experiências suficientes para lhe garantirem propriedade e espaço para falar junto à corte e ao Conselho real, e ao mesmo tempo oferecer ao jovem monarca os caminhos para a pacificação: [...] “Belo Rapaz”, diz a rainha, “por tua jovem idade os hipócritas e inimigos da paz tu não pode bem conhecer, e teu irmão da Inglaterra também não [...] pela graça de Deus meu conselho é esse [...] para breve e firme conclusão da verdadeira paz obter, Belo Rapaz, tu tanto de tua parte, e de teu irmão [...] [devem] primeiramente falar um com o outro e a poucos conselheiros privados, de uma parte e de outra, sem advogados, prelados ou conselheiros cruéis; e pela benção do Santo Espírito revelar tanto a um como ao outro as boas e santas vontades [...], manifestando um ao outro, por grande devoção, as belas visões relativas aos dois e à reforma da igreja e de toda a Cristandade [...].89 Mézières desconfiou e criticou avidamente os homens que cercavam e aconselhavam tanto o jovem monarca francês como Ricardo II da Inglaterra, “Blanc Sanglier” (Branco Javali). Sobre os conselheiros e antepassados deste último, Mézières os descreve como “Noirs Sangliers” (Negros Javalis), que enriqueceram e se vangloriaram pelas guerras. Porém, sua proposta é evangelizar e ensinar o jovem rei inglês a bem utilizar sua “sainte arquimie” (santa alquimia) e sua virtuosa forja, que lhe foi concedida “[...] par grace de votre Pere [...]”, os caminhos que o aproximariam dos besans divinos, incentivando sua amizade com Carlos VI,90 profetizando uma aliança entre os dois reinos e, com isso, o fim da guerra. Ao mesmo tempo em que a juventude de ambos era para ele um elemento importante e positivo, a jovialidade representava a ausência de malícias e uma melhor receptividade aos bons conselhos.91 Encontram-se, portanto, nos exemplos acima citados, alguns elementos que proporcionaram o fundamento de “verdade” para muitos escritores do período. Os mestres não somente diziam ao príncipe o que fazer na ordem das decisões políticas, eles interagiam, dialogavam com o monarca. Cabia a esses escritores medievais traçar as virtudes indispensáveis na composição de uma ética régia. Para que sua posição fosse respeitada e suas 89 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin, Vol. 2, Livro III, cap. 270, p. 376. (Trad. Nossa). Cf. “ [...] ‘Beau Filz,’ dist la royne ‘pour ton jeune aage texl ypocrites et ennemis de la paix tu ne pues pas bien cognoistre, ne ton frere aussi d’Anglaterre. [...] par la grace de Dieu mon conseil si est tel, [...] pour brefve et ferme conclusion de vraie paix obtenir, Beau Filz, tu dyes tant de ta part, en ton frere [...] premierement parler ensemble et a pou de conseilliers privez, de l’une partie e de autre, sans advocaz, prelaz ou conseilliers rigoreux; et par la benediction du Saint Esperit reveler l’un a l’autre les bonnes et saintes voluntez [...] en revelant l’un a l’autre par grant devocion les belles visions touchans a vous deux et a la reformacion de l’eglise et de toute la Crestiente [...]”. 90 Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 77, p. 398-400. 91 MELLO, José Roberto de Almeida. A Guerra dos Cem Anos e os projetos de Cruzada de Filipe de Mézières no “Sonho do Velho Peregrino”. In: Revista de História, Vol. 117, p. 121-142, 12/1984, p. 135. 35 orientações fossem ouvidas, a tradução da verdade divina era fundamental para que fossem os letrados reconhecidos como “portadores da verdade”. Nos escritos desses mestres, a demonstração do conhecimento de verdade se deu por referências feitas aos textos das autoridades antigas e medievais ou pelas Escrituras Sagradas, juntando-se a isso as posições que ocupavam no campo das ações públicas e a descrição de suas experiências vivenciadas na proximidade do poder. No caso específico de Philippe de Mézières e Christine de Pisan, as suas duas obras aqui analisadas em destaque sugerem bem essa posição de onde falavam e para quem falavam, tendo ambos vivido na corte de Carlos V: Mézières como funcionário régio e Pisan, porque seu pai era astrólogo e médico do rei, tinha sido educada como mulher de corte desde sua infância. Suas obras foram direcionadas a conduzir o governo de Carlos VI, tal como o discurso que Jean Gerson proferiu na Universidade de Paris, que tinha também como alvo o jovem monarca. Entretanto, este mestre medieval, além de não ter vivido na corte de Carlos V, foi eclesiástico e chanceler universitário, sendo suas palavras em tal discurso sustentadas fundamentalmente nas Sagradas Escrituras. Mas mais relevantes que tais similaridades foram os pontos em comum em que se fixaram seus discursos sobre a verdade: nas Sagradas Escrituras, nos exemplos dos antigos e na vida e governo do rei Carlos V. Essas características deram a essas duas obras uma condição diferenciada para expor os problemas de seu tempo, ao mesmo tempo em que se diferenciaram de outros Espelhos de Príncipe do mesmo período, por formular modelos de governação para os futuros monarcas, com base nos exemplos do passado e do presente da França e dos reinos próximos. Outra questão importante foi como esses dois pensadores medievais percebiam a si mesmos. Pisan iniciou o Livre des fais et bonnes meur du sage roy Charles V da seguinte forma: Senhor Deus, ouve meus lábios, ilumina meu pensamento [...] para explicar as coisas formadas em minha memória [...]. [...] se é digna coisa que, com as veementes razões provadas e solucionando as dores libertas, exemplos verdadeiros e notórios sejam certificações das coisas conduzidas na ordem da palavra.92 Uma conversa consigo e com Deus para abrir suas lembranças dos “exemples vrais et notoires” da vida do rei Carlos. Antes de falar ao príncipe, os pensadores se voltavam para si na busca 92 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo V, Livro I, Prólogo, p 245. (Trad. nossa). Cf. “Sire Dieux, ouvre mes levres, enlumines ma pensée, [...] à expliquer les choses conceues en ma mémoire [...] si est digne chose que, avec les vehementes raisons prouvées et solues deulx bailleés, exemples vrais et notoires soyent certificacions des choses conduites en ordre de parleure” . 36 de sua fé e sapiência, uma ação pessoal e “individual” de confinamento em si e na sua fé precedia a relação do letrado com seu governante.93 Nesse caso, a descrição de si mesmo era uma maneira de ele mesmo perceber o lugar de onde falava: [...] eu Christine de Pisan, mulher submetida às trevas da ignorância ao olhar do claro entendimento, mas dotada do dom de Deus e natural, tanto quanto do desejo de prosseguir no caminho dos estudos, à maneira dos antigos e antepassados, nossos fundadores, de cuja conduta somos devedores [...].94 A obra aqui estudada de Philippe de Mézières também traz um caso semelhante. Seu texto foi constituído com diálogos entre as alegorias por ele elaboradas. O primeiro diálogo que aparece na obra encontra-se no Prólogo, no qual Providence Divine apresenta à Ardant Desir sua função na terra: [...] Tu Velho Peregrino, que para o grande mistério da bela visão que eu te disse antes, de qual mistério, falando moralmente e em espírito, tu será mensageiro ao mundo, por isso é que, fazendo tu mensageiro, tu não será mais chamado nem Pobre e nem Velho Peregrino, mas serás conhecido na figura de Ardente Desejo tão somente [...].95 A Providência Divina, à qual a passagem se refere, é a própria voz de Deus e, como já foi mencionado e o texto deixa claro, Ardant Desir é a alegoria que Mézières utilizou para se representar na obra. Após essa conversa com a Divina Providência, no primeiro capítulo da obra, o primeiro diálogo será entre Ardant Desir e sua irmã Bonne Esperance sobre a missão que lhes foi atribuída de viajar pelo mundo acompanhando a “Rainha Verdade” e sobre seus predicados divinos.96 Não se deve esquecer que Bonne Esperance é outra figura alegórica que Mézières também utiliza para definir a si mesmo, logo, o início desse capítulo é marcado por uma conversa do Vieil Pelerin consigo mesmo. 93 BLANCHARD, Joël. L'entrée du poète dans le champ politique au XVe siècle. In: Annales. Histoire, Sciences Sociales, p. 44-46. 94 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo V, Livro I, Prólogo, p. 246. (Trad. nossa). Cf. “[...] moy Christine de Pisan, femme soubs les tenebres d’ignorance au regart de cler entendement, mais douée de don de Dieu et nature, tant comme désir se peut estendre en amour d’estude, suivant le stille des primeirains et devanciers noz ediffieurs en meurs redevables, à present, par grace de Dieu et solicitude de pensée, emprens nouvelle compillacion menée en stille prosal [...]” . 95 MÉZIÈRES, Philippe de. Le Songe du Vieil Pelerin, Vol. 1, Livro I, Prólogo, p. 91. (Trad. nossa). Cf. “[...] O tu Vieil Pelerin, que pour le grant mistere de la belle vision que je te disoie avant yer, du quel mistere, parlant moralment et en esperit, tu seras messager au monde, pource est il que, faisant ta messagerie, tu ne seras plus appelle ne Pauvre ne Vieil Pelerin mas seras appelle en figure Ardant Desir tant seulement [...]”. 96 Ibid., Vol. 1, Livro I, cap. 1, p. 190-192. 37 Ao apresentarem a “verdade divina” no início de seus respectivos tratados como fundamento de suas reflexões, Mézières e Pisan indicam que todo seu discurso se sustenta na palavra de Deus e que essa se dirige ao monarca em seu ofício. Portanto, como coloca Pisan, cabia aos jovens príncipes adquirir o “vraye cognoiscence” 97 de si e de sua função para que não se deixasse conduzir pelo caminho dos “maulvais aministrateurs” e àquilo que fugiria dos critérios de “bonnes meurs” do governante, isto é, o orgulho por grande poder, o prazer das delícias carnais, a negação de toda disciplina – do corpo e do espírito – e a presunção.98 Por essas razões ela recomenda que [...] os pais [...] devem cuidadosamente zelar para que seus filhos andem em companhia de pessoas sábias e honestas, e para que tenham uma conduta disciplinada, e que ninguém lhes ensine nem um outro conhecimento sutil; e para isso, procure nos muitos escritos que antigamente os sábios mestres filósofos [...] dedicavam aos filhos dos reis e príncipes [...].99 Por mais que homens como Guilherme de Ockham – e suas abordagens sobre o saber lógico, filosófico e teológico, bem como suas proposições sobre os aspectos físicos da natureza por meio de análises empíricas – emergissem nesse tempo com propostas polêmicas sobre o conhecimento individualizado de Deus, o imperativo da vida espiritual, em especial em letrados como Philippe de Mézières e Christine de Pisan, ainda creditava à Cristandade a capacidade de unificar os povos cristãos em torno de uma causa e propunha a pacificação como resultante da fé e luta por Deus. Parte da obra do primeiro foi uma visão descritiva de seu tempo, em especial os conflitos bélicos presentes em diversas sociedades e reinos da Europa cristã e sobre os castigos divinos aplicados aos povos que desrespeitaram a vontade de Deus de uma “[...] viva imagem da unidade dos corpos sociais [...]”.100 No início do século XIV, muitos dos letrados se fizeram conhecer por suas reflexões contrárias às formulações construídas ao longo dos séculos anteriores. Procuraram afastar-se de um debate circunscrito exclusivamente ao campo religioso para adentrar num espaço de debate que visava ações práticas nas ordens sócio-políticas – debates que, até então, se 97 PISAN, Christine de. Le livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V. In: PETITOT, M. (org.). Collection complète des mémoires relatifs a l’histoire de France..., Tomo VI, Livro III, cap. I, p. 3. 98 Ibid., Tomo V, Livro I, cap. VII-XI, p. 255-266. 99 Ibid., Tomo V, Livro I, cap. VII-XI, p. 255-256. (Trad. nossa). Cf. ”[...] le parens [...] doivent plus singulierement procurer à leur enfens bonne compaignie sage et honeste, et prendre garde à la discipline des meurs, que à leur bailler estat quelconques ne autre nourriture deliée; et pour ce, à ce propoz, treuve-l’en en maintes escriptures que anciennement aux efens des roys et princes [...] estoyent quis sages maistres philozophes [...]”. 100 DUPRONT, Alphonse. Le mythe de croisade, Vol. 1, p. 265. (Trad. nossa). 38 encontravam revestidos asceticamente, como resultado do pensamento eclesiástico101. Entretanto, não havia propriamente oposições aos princípios dogmáticos cristãos – muitos dos que trabalharam os saberes nessa época eram clérigos e monges teólogos e, por isso, convictos de suas crenças católicas –, mas sim a novas maneiras de se pensar o lugar ocupado pelos laicos e pelo “Estado” no controle dos poderes espiritual e temporal. Dessa forma, aquilo que Jeannine Quillet definiu como inversão da “perspectiva” da ordem hierárquica,102 em que o Estado e o príncipe passam a preceder a figura papal, mostra- se sugestivo. O grifo à palavra “perspectiva” serve para chamar a atenção para uma característica já enunciada dos Espelhos, ou seja, novas visões sobre as ordens de poder foram elaboradas e propostas, porém, não houve necessariamente uma inversão real dessa hierarquia antes do final do século XIV e início do XV. Quando os pensadores do início do século XIV deram novo sentido às ordenações dos poderes, eles encontraram também caminhos que levavam ao princípio de conciliação entre os poderes, efetivado no final do mesmo século. Esse procedimento seqüenciado em uma trajetória cujo objetivo último foi o próprio poder, já tinha sido trabalhado por S. Tomás no século XIII, com o seu De regno (1267) – possivelmente o primeiro tratado normativo inspirado na A Política de Aristóteles para pensar a finalidade do poder e não propriamente a sua origem ou legitimidade.103 A tripartição aristotélica em Egídio Romano também interferiu nos desdobramentos da produção normativa do século XIV: sua obra foi dividida em três partes, ordenando os conhecimentos salutares – a ética, a casa e a política.104 A primeira parte da obra instrui o príncipe sobre a ética e o cuidado de si, definindo as virtudes que deveriam moldar os futuros governantes. Os cuidados com o corpo, a saúde, os gestos, seriam um dos primeiros passos para modelar o almejado perfeito monarca, ensiná-lo a tratar de si mesmo. Logo em seguida, na segunda parte, encontramos o trato do núcleo familiar. Por último, na terceira parte, ele coloca a questão da governação, os caminhos que levariam ao bom e mal governo em suas respectivas definições relacionadas ao “bem comum”. A relevância dessa tripartição aristotélica na estrutura dos tratados pedagógicos pode ser percebida em diversos gêneros medievais, inclusive nas crônicas, em que os retratos dos reis são elaborados seguindo esta tripartição. 101 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia. Antiguidade e Idade Média, p. 611 e 612. 102 Cf. QUILLET, Jeannine. D’une Cité l’autre . Problèmes de philosophie médiévale, p. 17. 103 BLANCHARD, Joël; MÜHLETHALER, Jean-Claude. Écriture et Pouvoir. À l’aube des temps modernes, p. 12. 104 BUESCU, Ana Isabel. Imagens do príncipe. Disc