UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" FACULDADE DE ENGENHARIA DE ILHA SOLTEIRA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM AGRONOMIA: SISTEMAS DE PRODUÇÃO MURILO DIDONET DE MORAES A EXTENSÃO RURAL PÚBLICA FRENTE AOS DESAFIOS DA PNATER: O CASO DA EMPAER EM MATO GROSSO Ilha Solteira 2018 MURILO DIDONET DE MORAES A EXTENSÃO RURAL PÚBLICA FRENTE AOS DESAFIOS DA PNATER: O CASO DA EMPAER EM MATO GROSSO Tese apresentada à Faculdade de Engenharia do Campus de Ilha Solteira – UNESP como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Agronomia. Especialidade: Sistemas de Produção Orientador: Prof. Dr. Antonio Lázaro Sant'Ana Ilha Solteira 2018 DEDICO À Domingas Francisca de Moraes, pessoa forte e determinada. Exemplo de mulher e mãe. Aos extensionistas rurais brasileiros que se dedicam em construir, junto aos agricultores familiares, um horizonte de possiblidades e oportunidades sustentáveis a toda nossa gente. AGRADECIMENTOS Por mais que as pessoas digam que o ato de escrever este tipo de trabalho seja algo estritamente individual, não é justo desconsiderar as mãos que apoiaram a minha e que, de maneiras distintas, possibilitaram a sua confecção final. Sem a ambição de enumerar todas essas mãos, cito, abaixo, algumas. Primeiramente à Deus, fonte inesgotável de amor. A toda minha família, em especial à minha mãe (Domingas Francisca de Moraes), por todo o esforço, amor e dedicação para que esse sonho se tornasse realidade. Mesmo em meio a todas as dificuldades, nunca desistiu e nem permitiu que eu desistisse. Sou grato a todos os ensinamentos e pela maneira como foram transmitidos: a partir do exemplo. Ao Lázaro, por ter aceitado o convite de participar de mais uma etapa da minha vida acadêmica. Agradeço a cada uma das conversas em que o complicado se tornava descomplicado e a dúvida em solução. Sou grato, acima de tudo, por suar orientações não se contentarem com o simples e o tradicional, mas por irem além e apontarem novos horizontes, despertando capacidades que até então passavam despercebidas. Ao Gilmar por estar presente em todas as etapas da minha caminhada acadêmica, o que acabou tornando-o um ponto de apoio firme e sempre disposto a contribuir para a superação dos obstáculos que apareceram. À Cidinha pelo carinho recíproco que foi construído durante minha estadia em Ilha Solteira. Agradeço seu apoio incomensurável e as palavras de força e alento em momentos que as coisas pareciam tão difíceis. Às amizades construídas durante o período de pós-graduação (Douglas, Flaviana, Elisandra, Flaviana, João e Luciana), mas que extrapolaram o ambiente acadêmico e hoje fazem parte da minha vida social. À Nil e à Vanessa pelo carinho e alegria de todos os encontros e conversas. Ao meu tio Sebastião por ter “abrido às portas” e me acompanhado durante as coletas de dados em Cuiabá. Sem sua ajuda, a conclusão deste trabalho não seria possível, pois não conseguiria ter acesso ao “alto escalão” da extensão rural mato-grossense. Aos amigos Rambo e Cícero Rogerio pelo suporte estratégico durante as longas viagens feitas pelo estado de Mato Grosso. A ajuda de vocês contribuiu de sobremaneira para a coleta e a visita in loco aos nove escritórios regionais da Empaer. À Seaf, na pessoa do Secretário Adjunto de ATER e Assuntos Fundiários e dos Superintendentes de ATER e de Desenvolvimento Rural, por gentilmente ter aceitado contribuir com este trabalho. Estendo meus agradecimentos ao Cristovão, funcionário da Seaf, pela disponibilidade em fornecer os dados solicitados. À Empaer, desde os seus diretores e coordenadores até os extensionistas locais, por aceitar contribuir com o bem mais valioso deste trabalho. Sem a disponibilidade e boa vontade desses profissionais, nada disso teria sido possível. Espero que este trabalho possa contribuir com o aperfeiçoamento desta Empresa que desenvolve um trabalho de significativa importância junto aos agricultores familiares do estado de Mato Grosso. Ao Fagner e sua mãe Silvana pelo acolhimento em sua residência durante as inúmeras viagens entre os estados de Mato Grosso e São Paulo. Sou grato não apenas à acolhida, mas também ao carinho e os momentos de distração, onde os sorrisos espalhavam pelo ar. Por mais contraditório que pareça, essas distrações foram fundamentais para melhorar minha concentração e disciplina, especialmente durante a reta final. Ao Gilmar Mariano pelo apoio e amizade desde os tempos de Pousada da Ilha. Os almoços de sábado e as nossas conversas auxiliaram a manter a mente sã e o foco no trabalho. Ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, na pessoa da Alexandra, pelo auxílio e oportunidade de realizar um estágio doutoral em Coimbra. Ao professor Bruno Sena, orientador em Coimbra, pela forma gentil e carregada de competência com que me recebeu e acompanhou durante todo o período do estágio. Ao professor Pedro Hespanha (Universidade de Coimbra) por todo o apoio durante as coletas de dados em Portugal e pelas conversas que permitiram expandir meu olhar crítico. Aos funcionários da biblioteca do CES (Maria José, Acácio e Inês) pelo trato repleto de eficiência e gentileza. Um dos capítulos desse trabalho foi escrito na referida biblioteca e a maneira diferenciada de funcionamento e atendimento do local conformaram no ambiente perfeito ao estudo e à concentração. A todas as amizades construídas e experiências compartilhadas de maneira intensa durante minha estadia em Portugal. Agradeço especialmente aos amigos Ana Célia, Ana Paula, Cláudia, Elmo, Ernani, Graziele, Hebe, Jean, José Roberto, Luciano, Michel, Mônica, Nára, Natalia, Susy, Pavla, Raniere, Rita, Vanderlei, Vera e Vitória. Ao professor Fernando pela participação na banca de qualificação e reflexões que puderam expandir alguns pontos deste trabalho. Aos professores Leonardo, Nivaldo e Silvia pela participação na banca de defesa. As suas respectivas contribuições permitiram importantes melhorias neste trabalho. Aos funcionários do DFTASE (Departamento de Fitotecnia, Tecnologia de Alimentos e Sócio Economia), especialmente ao Irineu e à Mirian. Ao Programa de Pós Graduação em Agronomia e aos funcionários da Seção Técnica de Pós- Graduação. Aos funcionários da biblioteca da Unesp – Campus de Ilha Solteira. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), pelo apoio financeiro concedido por meio da bolsa de doutorado e da bolsa procedente do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). Por fim, a todos os professores e funcionários da Unesp (Campus de Ilha Solteira) que direta e/ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho. “A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato de ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens”. Paulo Freire RESUMO Historicamente, a extensão rural brasileira esteve orientada para contribuir com o desenvolvimento capitalista no campo. No entanto, a constatação dos impactos socioambientais advindos do modelo de agricultura convencional implicou em críticas que levaram, por sua vez, a um repensar sobre a orientação difusionista tradicionalmente adotada. Contrária a este modelo, a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), criada em 2003 e institucionalizada em 2010, demonstrou uma mudança de postura do governo brasileiro, ao menos no nível do discurso, em querer implantar mudanças significativas nas bases filosóficas da prática extensionista, assim como concentrar seus esforços no público que ficou à margem do processo de modernização (os agricultores familiares). Esta pesquisa objetivou verificar quais são as relações que envolvem Estado/Organização/Agente, no sentido de compreender os limites e potencialidades relativos à prática extensionista e, mais especificamente, à implementação da PNATER na Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (Empaer). Este trabalho, embora tenha envolvido coleta de dados quantitativos, deu ênfase à investigação do tipo qualitativa. Primeiramente, foram realizadas entrevistas semiestruturadas a um dos dirigentes da Secretaria de Estado de Agricultura Familiar e Assuntos Fundiários (Seaf), assim como aos dois componentes da Diretoria Executiva (Diretor Presidente e Diretor de ATER) e aos nove coordenadores dos escritórios regionais da Empaer. Além disso, foi aplicado um questionário, enviado por meio digital (e-mail), junto a 62 extensionistas locais da referida Empresa. Dentre as diferentes vertentes teóricas apresentadas sobre as políticas públicas, as abordagens do neoinstitucionalismo histórico e cognitiva demonstraram ser as mais adequadas para a análise da construção histórica da Lei de ATER, tendo como base a multiplicidade de atores, ideias e organizações implicados no processo. Os resultados empíricos obtidos evidenciaram uma complexa rede de desafios no que tange ao acompanhamento dos pressupostos da PNATER, de modo que em determinadas situações se percebem aderências e em outras divergências. Observou-se que os principais fatores facilitadores a uma atuação da Empaer mais próxima às diretrizes da PNATER foram a conscientização e a disposição dos agricultores em trabalhar com uma agricultura mais sustentável, as atividades de formação, capacitação e experiência dos extensionistas, assim como o seu bom relacionamento com os agricultores. Por outro lado, os principais aspectos restritivos encontrados referem-se às dificuldades de ordem financeira e de recursos humanos, à insegurança na comercialização, à não adesão dos agricultores em relação à proposta e às condições insatisfatórias de trabalho dos extensionistas. Constatou-se que o caminho para a concretização efetiva da Lei de ATER ainda está sendo construído, pois a Empaer atende apenas parcialmente os objetivos e diretrizes apontados na Lei, o que pode ser interpretado como um alinhamento moderado da Empaer com a política vigente de ATER. Palavras-chave: Assistência técnica. Política pública. Agricultura familiar. Desenvolvimento rural sustentável. ABSTRACT Historically, the brazilian rural extension has been oriented to contribute with the capitalist development in the field. However, the realization of the social and environmental impacts from conventional farming model resulted in criticism that led, for yours time, to a rethink about the diffusionist orientation traditionally adopted. Contrary to this model, the National Policy of Technical Assistance and Rural Extension (PNATER), established in 2003 and institutionalized in 2010 (Law n. 12188 of January 11, 2010), has shown a change in the attitude of the Brazilian Government, at least on a theoretical level, in wanting to deploy changes significant in the philosophical bases of extensionist practice, as well as concentrate their efforts on the audience that stayed on the sidelines of the process of modernization (the family farmers). This research aimed to verify which are the relationships that involve State/Organisation/Agent, in order to understand the limits and potentials regarding the practice extensionist and, more specifically, the implementation of PNATER on Company for Agricultural Research, Assistance and Rural Extension of the State of Mato Grosso (Empaer). This work, although it involved collecting quantitative data, gave emphasis to research qualitative type. First, semi-structured interviews were carried out to one of the leaders of the State Secretariat for Family Farming and Land Affairs (Seaf), as well as the two components of the Executive Board (CEO and Director of Technical Assistance and Rural Extension) and the nine coordinators of regional offices of Empaer. In addition, a questionnaire was applied, submitted through digital (e-mail), along the 62 local extension workers of this Company. Among the different theoretical aspects presented on public policies, the historical neoinstitucionalism and cognitive approaches have shown to be the most suitable for the analysis of the historical construction of the Law n. 12188, known as Law of ATER (Law of Technical Assistance and Rural Extension), based on the multiplicity of actors, ideas and organizations involved in the process. The empirical results obtained showed a complex network of challenges with regard to the monitoring of assumptions of PNATER, so that in certain situations they realize adhesions and other differences. It was observed that the main factors that facilitated Empaer‟s activities closer to Pnater‟s guidelines were the awareness and willingness of family farmers in working with a more sustainable agriculture, the activities of training and experience of the extension workers, as well as your good relationship with farmers. On the other hand, the main restrictive aspects found refer to financial difficulties and human resources, insecurity in the marketing, the non-adherence of farmers in relation to the proposal and unsatisfactory conditions of work of extension workers. It was noted that the way to effectively achieve of the Law of ATER is still being built, because the Empaer only partially meets the objectives and guidelines aimed at Law, which can be interpreted as a moderate alignment of Empaer with the current ATER policy. Key words: Technical assistance. Public policy. Family farming. Sustainable rural development. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Organograma vigente da Empaer.............................................................. 29 Figura 2 - Figura com a localização das unidades descentralizadas da Empaer....... 31 Figura 3 - Mapas com a divisão territorial municipal do estado de Mato Grosso, com destaque (em cinza) para os escritórios locais da Empaer em que os extensionistas participaram da pesquisa............................................... 38 Figura 4 - Formação acadêmica dos extensionistas pesquisados que trabalham nos escritórios locais da Empaer – MT, em 2016........................................... 143 Figura 5 - Distribuição percentual dos cargos dos extensionistas que trabalham nos escritórios locais da Empaer – MT, em 2016..................................... 146 Figura 6 - Avaliação qualidade do trabalho desenvolvido pela Empaer – MT junto ao seu público prioritário pelos extensionistas pesquisados dos escritórios locais, 2016.............................................................................. 172 Figura 7 - Avaliação da abrangência do trabalho desenvolvido pela Empaer – MT, junto ao seu público prioritário, realizada pelos extensionistas pesquisados dos escritórios locais............................................................. 173 Figura 8 - Avaliação pelos técnicos locais pesquisados sobre a participação efetivados agricultores familiares nas ações realizadas pela Empaer – MT, 2016................................................................................................... 186 Figura 9 - Avaliação pelos técnicos locais da Empaer-MT pesquisados, quanto à frequência da realização de ações de formação inicial e continuada referentes às diretrizes da PNATER, 2016............................................... 218 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Faixa etária dos extensionistas pesquisados que trabalhavam nos escritórios locais da Empaer - MT, em 2016................................................ 140 Tabela 2 - Faixa de tempo (em anos) que os extensionistas locais pesquisados trabalhavam na Empaer – MT, em 2016....................................................... 157 Tabela 3 - Agricultores familiares existentes e atendidos pela Empaer – MT, em 2016............................................................................................................... 169 Tabela 4 - Procedimentos e/ou instrumentos utilizados pelos técnicos locais da Empaer pesquisados, para identificar as demandas dos agricultores familiares, 2016............................................................................................. 181 Tabela 5 - Fatores que contribuem para uma prática extensionista mais alinhada aos princípios e objetivos da PNATER, na visão dos técnicos locais pesquisados da Empaer – MT....................................................................... 203 Tabela 6 - Fatores que tem limitado uma prática extensionista mais alinhada aos princípios e objetivos da PNATER, na visão dos técnicos locais pesquisados da Empaer – MT, 2016............................................................. 210 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Números da agricultura familiar em Mato Grosso, classificada por região administrativa da Empaer, em 2015............................................................. 28 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS AAO – Associação de Agricultura Orgânica ABA – Associação Brasileira de Agroecologia ABA – Associação Brasileira de Agroecologia ABCAR – Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural ABIO – Associação de Agricultores Biológicos do estado do Rio de Janeiro ACAR – Associação de Crédito e Assistência Rural ACARES – Associação de Crédito e Assistência Rural do Espírito Santo ACARESC – Associação de Crédito e Assistência Rural Estadual de Santa Catarina ACARMAT – Associação de Crédito e Assistência Rural de Mato Grosso ACARPA – Associação de Crédito e Assistência Rural do Paraná AEAs – Associações Estaduais de Engenheiros Agrônomos AIA – Associação Internacional Americana para o Desenvolvimento Econômico e Social ANA – Articulação Nacional de Agroecologia ANATER – Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural ANCAR – Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural APP – Área de Preservação Permanente ASBRAER – Associação Brasileira das Entidades Estaduais de Assistência Técnica e Extensão Rural ASCAR – Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural ASSER – Associação dos Servidores da Embrater ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural ATES – Serviço de Assessoria, Assistência Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento CASEMAT – Companhia de Armazéns e Silos do Estado de Mato Grosso CEASA-MT – Central de Abastecimento do Estado de Mato Grosso CGU – Controladoria Geral da União CMDR – Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural CNA – Confederação nacional da Agricultura CNATER – Conferência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural CNDRS – Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável COBAL – Companhia Brasileira de Alimentos CODEAGRI – Companhia de Desenvolvimento Agrícola do Estado de Mato Grosso CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso CONDRAF – Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável CONEPA – Conselho Nacional dos Sistemas Estaduais de Pesquisa Agropecuária CONTAG – Confederação dos Trabalhadores na Agricultura CREA – Conselho de Engenharia, Arquitetura e Agronomia DAP – Declaração de Aptidão ao Pronaf DATER – Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural DIER – Departamento de Infraestrutura e Extensão Rural DNTR/CUT – Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores DTC – Departamento de Terras do Estado DTT – Departamento de Transferência de Tecnologia EMATER-MG – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais EMATER-MT – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Mato Grosso EMATER-RS – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul EMATERs – Empresas Públicas Estaduais de Assistência Técnica e Extensão Rural EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMBRATER – Empresa Brasileira De Assistência Técnica e Extensão Rural EMBRATER – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural EMPA – Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado de Mato Grosso EMPAER – Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural EPAGRI – Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina ESAV – Escola Superior de Agricultura e Veterinária de Viçosa FAEAB – Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional FASER – Federação Nacional dos Trabalhadores da Assistência Técnica e Extensão Rural e do Setor Agrícola do Brasil FDR – Fundo de Desenvolvimento Rural FETRAF – Federação Nacional dos Trabalhadores e das Trabalhadoras na Agricultura Familiar IBEC – International Basic Economy Corporation IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura INCAPER – Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária INDEA – Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso INTERMAT – Instituto de Terras de Mato Grosso IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IRI – Ibec Research Institute LOA – Lei Orçamentária Anual MAA – Ministério da Agricultura e do Abastecimento MAARA – Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MARA – Ministério da Agricultura e Reforma Agrária MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS – Ministério do Desenvolvimento Social MERCOSUL – Mercado Comum do Sul MIRAD – Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MSTTR – Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais MT REGIONAL – Programa de Desenvolvimento Regional de Mato Grosso OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras ONG – Organizações Não Governamentais PAA – Programa de Aquisição de Alimentos PAPP – Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural PDR-NR – Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República PEATER – Política Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar PGPAF – Programa de Garantia de Preço da Agricultura Familiar PLANAF – Plano de Fortalecimento da Agricultura Familiar PLANAPO – Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar PNATER – Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural PNHR – Programa Nacional de Habitação Rural PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento POLAMAZÔNIA – Programa de Polos Agropastoris e Agrominerais da Amazônia POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados POLONOROESTE – Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil PPA – Plano Plurianual PROALCOOL – Programa Nacional do Álcool PROATER – Programa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar PROBOR – Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal PROCERA – Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária PRODER – Programa de Desenvolvimento Rural de Mato Grosso PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONAT – Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais PRONATER – Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária PRONAZEM – Programa Nacional de Armazenagem PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste PROVAP – Programa de Valorização da Pequena Produção Rural PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores PTA – Plano de Trabalho Anual PTC – Programa Território da Cidadania SAAF – Secretaria de Estado de Agricultura e Assuntos Fundiários SAF – Secretaria de Agricultura Familiar SARC – Secretaria de Apoio Rural e Cooperativismo SDR – Secretaria de Desenvolvimento Rural SEAD – Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário SEAF – Secretaria de Estado de Agricultura Familiar e Assuntos Fundiários SEAF – Seguro da Agricultura Familiar SEDEC – Secretaria de Desenvolvimento Econômico SEDER – Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural SEDRAF – Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar SEDTUR – Secretaria de Estado de Desenvolvimento do Turismo SEMA-MT – Secretaria de Estado de Meio Ambiente SER – Secretaria de Assistência Técnica e Extensão Rural SIBRATER – Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural SICON – Sistema de Informações do Congresso Nacional SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural SRA – Secretaria de Reforma Agrária TCU – Tribunal de Contas da União UFV – Universidade Federal de Viçosa ULTAB – união dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil UNIGER – Unidade de Gestão Estratégia para Resultados UREMG – Universidade Rural do Estado de Minas Gerais SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 20 1.2 Objetivos................................................................................................................ 25 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA, METODOLOGIA E TÉCNICAS UTILIZADAS............................................ 27 2.1 Caracterização da Empaer..................................................................................... 27 2.2 Métodos, técnicas e instrumentos de pesquisa...................................................... 31 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E AGRICULTURA FAMILIAR: CONCEITOS E ABORDAGENS............................................................................................... 40 3.1 Conceitos e tipologias das políticas públicas......................................................... 40 3.2 Abordagens teóricas sobre as políticas públicas: pluralismo/corporativismo, neomarxismo, neoinstitucionalismo e cognitiva.................................................... 49 3.2.1 Pluralismo e corporativismo................................................................................. 50 3.2.2 Neomarxismo......................................................................................................... 52 3.2.3 Neoinstitucionalismo............................................................................................. 57 3.2.4 Cognitiva................................................................................................................ 67 3.3 Considerações........................................................................................................ 82 4 OS CAMINHOS DA EXTENSÃO RURAL PÚBLICA RUMO À LEI DE ATER: UMA TRAJETÓRIA DE INSTITUIÇÕES, PESSOAS E IDEIAS.................................................................................................................. 83 4.1 Histórico da extensão rural no Brasil..................................................................... 83 4.1.1 Início da extensão rural no Brasil......................................................................... 83 4.1.2 A extensão rural durante o Estado Novo: o início da tutela pelo Estado............. 85 4.1.3 A institucionalização da extensão rural: a criação da ACAR............................... 86 4.1.4 O período difusionista inovador e a criação da ABCAR...................................... 89 4.1.5 O regime militar no Brasil: da modernização conservadora à Embrater............ 91 4.1.6 O repensar da extensão rural: a complexificação de movimentos e ideias.......... 95 4.1.7 O fim da Embrater e o início do neoliberalismo................................................... 97 4.1.8 O desmantelamento do serviço público extensão rural e o aparecimento de uma nova categoria social..................................................................................... 100 4.1.9 A ampliação das ideias: o fortalecimento dos movimentos em defesa da agroecologia e da agricultura familiar e a criação do PRONAF......................... 104 4.1.10 O início de uma “nova” extensão rural para a agricultura familiar.................... 108 4.1.11 A criação da PNATER: uma política embasada em diálogos, ideias e pessoas................................................................................................................... 112 4.1.12 A difícil implementação da PNATER.................................................................... 116 4.1.13 A instituição da Lei de ATER e a criação da ANATER: avanços e retrocessos............................................................................................................. 120 4.2 Uma abordagem histórica da extensão rural no estado de Mato Grosso: da Acarmat à Empaer................................................................................................. 126 4.3 Considerações........................................................................................................ 137 5 A EMPAER FRENTE AOS DESAFIOS DA LEI DE ATER......................... 139 5.1 Perfil profissional e acadêmico dos extensionistas da rede pública mato- grossense................................................................................................................ 139 5.2 Planejamento das organizações públicas relacionadas com a extensão rural no estado de Mato Grosso........................................................................................... 158 5.3 Características do público beneficiário das atividades prestadas pela Empaer..... 163 5.4 O trabalho desenvolvido pela Empaer e sua relação com pressupostos da Lei de ATER..................................................................................................................... 187 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 224 REFERÊNCIAS................................................................................................... 230 APÊNDICE A – ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA APLICADA AO SECRETÁRIO ADJUNTO DA SEAF................................. 250 APÊNDICE B – ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA APLICADA AO DIRETOR PRESIDENTE DA EMPAER............................ 253 APÊNDICE C – ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA APLICADA AO DIRETOR DE ATER DA EMPAER.................................... 256 APÊNDICE D – ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA APLICADA AOS COORDENADORES DOS ESCRITÓRIOS REGIONAIS DA EMPAER............................................................................... 260 APÊNDICE E – QUESTIONÁRIO ENVIADO AOS TÉCNICOS LOCAIS DA EMPAER....................................................................................................... 264 20 1 INTRODUÇÃO A partir da década de 1990 intensificou-se o debate entre os diferentes discursos sobre a sustentabilidade, sendo que cada vertente apresenta sua perspectiva sobre o desenvolvimento sustentável e o papel que a agricultura deve desempenhar com vistas à construção de um modelo agrícola sustentável (ALTIERI, 1992; CAPORAL, 1998). Caporal e Costabeber (2000) e também Moreira e Carmo (2004) apontam dois caminhos teóricos principais que têm sido seguidos. O primeiro é o defendido pela corrente ecotecnocrática, a qual tem como pressuposto a necessidade de um crescimento econômico continuado, buscando equacionar a relação sociedade-ambiente e os limites do crescimento, mediante um otimismo tecnológico, artifícios econômicos e mecanismos de mercado. O segundo é pautado na perspectiva etnoecossistêmica, a qual propõe uma mudança no sistema dominante, em favor de estratégias descentralizadas, compatíveis com as condições ecológicas locais e capazes de incorporar as identidades étnicas e valores culturais de cada local. No que se refere aos trabalhos recentes que debatem a extensão rural, nota-se, em sua grande maioria, críticas à Revolução Verde, em função de suas consequências sociais e ambientais negativas, e em relação aos problemas advindos dos modelos convencionais de extensão, baseados na concepção difusionista (FAVERO; SARRIERA, 2009; WEIZENMANN, 2013). É o que se observa também com a promulgação da Lei nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010, que institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – PNATER, conhecida como Lei de ATER. Esta política propõe uma cisão tanto com a corrente ecotecnocrática, ao adotar os princípios da agricultura de base ecológica como enfoque preferencial para o desenvolvimento de sistemas de produção sustentáveis; quanto com a proposta difusionista, ao sugerir uma nova abordagem para a extensão rural, vista na perspectiva de um serviço de educação não formal que reconhece e valoriza não somente os conhecimentos científicos, mas também os conhecimentos empíricos e tradicionais (BRASIL, 2010a). Assim, parece ficar clara a opção por uma ação extensionista mais voltada à perspectiva do desenvolvimento etnoecossistêmico, ao menos enquanto proposta política. Embora essa mudança seja mais recente, a discussão sobre o papel da extensão rural no Brasil ocorre já há algumas décadas. Sabe-se que, historicamente, o serviço de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) sempre esteve orientado para o desenvolvimento capitalista no campo, sendo sua fonte de inspiração os conceitos de adoção e difusão de inovações 21 preconizados por Rogers (1995), o qual propunha uma "metodologia educativa", no sentido de persuadir o público a aceitar o "novo". No entanto, desde o início dos anos 1980, surgiram várias críticas ao modelo de desenvolvimento, fundado na industrialização, por meio da substituição de importações. Críticas essas que, segundo Peixoto (2009), tinham como alvo a falta de sustentabilidade ambiental e socioeconômica do padrão tecnológico modernizador adotado pelo Brasil. Paralelo a este processo, foi somente no período classificado como repensar da extensão rural (SCHMITZ, 2010) que os serviços públicos de ATER começaram a experimentar novos rumos, pois a lógica convencional (difusionista) se tornou insustentável, especialmente pelo fim do crédito subsidiado. Esse processo serviria para que uma porção representativa dos atores envolvidos com a extensão rural entrasse num período de autorreflexão crítica e incorporasse a execução paulatina de um papel social mais acentuado. Contudo, com a extinção da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural - Embrater, em 1990, no primeiro dia do governo Collor, a extensão rural passa por um período de intenso desgaste e desestruturação. Por outro lado, foi também nesta década que houve importantes avanços devido às cobranças construídas por porta-vozes dos movimentos sociais em torno da política nacional de reforma agrária, em especial do serviço de ATER, como o reconhecimento da agricultura familiar como uma nova categoria social e a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (PEIXOTO, 2009). Dentro deste contexto, as instituições públicas de ATER vislumbraram a necessidade cada vez maior de reformularem os referenciais teórico-metodológicos, os objetivos e as diretrizes que até aquele momento orientaram a ação dos seus agentes. Em meio a um ambiente político propício e com compromissos assumidos anteriormente em manter o caráter público e a gratuidade dos serviços de ATER, que os debates associados à reestruturação dos serviços públicos de extensão rural de maneira exclusiva à agricultura familiar foram impulsionados e projetados nacionalmente (DA ROS, 2012b). O marco legal que legitimou esta mudança de postura foi a emissão da Resolução nº26, de 28 de novembro de 2001, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), a qual aprovou uma primeira versão da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão para a agricultura familiar (BRASIL, 2001). A partir daí, em meio a um processo democrático, segundo Caporal (2011), o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) recolheu um conjunto de sugestões de mais de 100 entidades e mais de 500 pessoas, elaborando, com estes subsídios, a PNATER, em 22 2003. A ampla participação dos setores interessados na sua construção, além de assegurar uma alta legitimidade sociopolítica, garantiu que a PNATER incorporasse mudanças que vinham sendo sugeridas havia anos (BRASIL, 2004; CAPORAL, 2011). Contudo, somente em 11 de janeiro de 2010, o Presidente da República sancionou a Lei nº 12.188, que instituiu a PNATER bem como o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária (PRONATER). Esta Lei estabelece como princípios: o desenvolvimento rural sustentável, compatível com a utilização adequada dos recursos naturais e com a preservação do meio ambiente; a gratuidade, qualidade e acessibilidade aos serviços de assistência técnica e extensão rural; a adoção de metodologia participativa, com enfoque multidisciplinar, interdisciplinar e intercultural, buscando a construção da cidadania e a democratização da gestão da política pública; a adoção dos princípios da agricultura de base ecológica como enfoque preferencial para o desenvolvimento de sistemas de produção sustentáveis; a equidade nas relações de gênero, geração, raça e etnia; e a contribuição para a segurança e soberania alimentar e nutricional (BRASIL, 2010a). Comparando a PNATER decorrente da Lei com a PNATER de 2003, Caporal (2011) afirma que houve retrocessos, como a exclusão das referências diretas à agroecologia e a não efetivação de um debate amplo em torno das mudanças realizadas. De qualquer modo, é inegável que o reordenamento jurídico-institucional da extensão rural brasileira acarretou em relevantes benefícios a todo o aparato público de ATER. A análise de Vieira, Bernardo e Lourenzani (2015) sobre as diretrizes da PNATER, por exemplo, apontam que o serviço de ATER nacional encontra-se num ciclo de ascensão e ampliação de atos direcionados ao desenvolvimento rural sustentável. Segundo os autores, esse processo estaria associado à busca pela participação efetiva de todos aqueles envolvidos nas ações implantadas no campo, pois a observância das individualidades de cada produtor, o respeito aos seus saberes culturais e a adoção de metodologias participativas que estimulam a reflexão e a construção de novos conhecimentos são fatores que agem de modo sinérgico e a favor de um objetivo comum: o fomento ao desenvolvimento rural sustentável. No entanto, este reordenamento trouxe, simultaneamente, uma série de desafios para a implementação das diretrizes da Lei de ATER. O mais expressivo desses desafios, segundo Silva, Pinto e Balem (2015), seria a necessidade de substituição do paradigma difusionista, cartesiano e homogeneizador das práticas de extensão rural por metodologias e estratégias que caminhem em direção ao desenvolvimento rural sustentável, de modo a não permanecer limitada a pacotes tecnológicos, bem como a uma perspectiva unidirecional de sujeito-objeto. 23 Nesta perspectiva parece nítida a quebra de paradigma que representou a institucionalização da Lei de ATER. Essa ruptura à prática convencional da extensão rural, no entanto, não deve ficar restrita ao aparato legal e sim alcançar, sobretudo, as agências oficiais de extensão rural, nos níveis estaduais e municipais. Para esse tipo de mudança em instituições, na visão de Blackburn e Holland (1998), são necessárias transformações em três instâncias: métodos e procedimentos, cultura institucional, e comportamento e atitudes pessoais. Neste sentido, qualquer mudança que busque o desenvolvimento rural deve buscar as três instâncias, pois cada uma delas complementa as demais. Embora ainda haja instituições e serviços de ATER que guiam suas ações por um modelo de ação distante das atuais demandas da sociedade, nos últimos anos, tem-se notado esforços por parte destes órgãos no intuito de modificar essa realidade. Observam-se ações no sentido de construir organizações com recursos humanos, técnicos e de gestão, capazes de atender às aspirações do modelo de desenvolvimento agropecuário idealizado. As razões que justificam a manutenção de uma extensão rural amparada por investimentos públicos estão associados à sua capacidade de responder aos anseios socioeconômicos, políticos e culturais dos segmentos sociais aos quais presta serviços. Apesar da generalização do modelo de produção agrícola baseado nos preceitos da Revolução Verde e da modernização agrícola, este já demonstrou sua inviabilidade tanto do ponto de vista ambiental quanto social. Dessa forma, a ação extensionista pautada pela simples difusão de pacotes tecnológicos se tornou desnecessária frente aos desafios do desenvolvimento rural sustentável, o qual carece, por sua vez, de agentes que sejam capazes de contribuir para o desenvolvimento regional e local de cada comunidade que necessita desses serviços (OLIVEIRA; WEHRMANN; SAUER, 2015). Com base nessas diretrizes estabelecidas no plano normativo, torna-se relevante avaliar se as agências públicas de extensão rural estão atuando dentro dos preceitos da Lei que a rege. Desde o primeiro documento divulgado em 2001 até os anos posteriores à sua promulgação (2010), a PNATER tem sido objeto de alguns estudos com o objetivo avaliar o alinhamento das ações extensionistas frente às concepções propostas na Política. Entre estes, destacam-se os trabalhos de Barros (2016); Becker e Anjos (2009); Caporal (2006), Caporal e Ramos (2006), Deponti (2010), Mussoi (2011), Paiva (2012) e Pettan (2010). De maneira geral, as conclusões dos autores apontam para as dificuldades dos extensionistas e das entidades de ATER em se adaptarem às proposições da Lei, tendo em vista que os desafios colocados a esta inovação na extensão rural não são poucos e demandam a quebra de paradigmas historicamente arraigados no âmago dessas entidades. 24 No caso do estado de Mato Grosso, trabalhos como os de Laforga e Vieira (2008), Madeiros et al. (2010), Rambo et al. (2015), Silva (2011) e Vieira e Costa Neto (2012) apontam para as dificuldades que a Empaer (Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural) tem em atuar sob os auspícios da PNATER. Em um estado onde o agronegócio, baseado em grandes propriedades, é o carro-chefe da economia e a estrutura agrária apresenta uma forte tendência ao latifúndio, vislumbra-se uma situação desfavorável à agricultura familiar. Neste contexto que o presente trabalho surge, com o intuito de fornecer contribuições à extensão rural do setor público (especialmente, a Empaer), por meio da análise das relações entre o Estado, a Organização e os Agentes frente aos desafios estabelecidos com a institucionalização da Lei de ATER. Com base em Caporal (1991), parte-se do princípio que identificar e esclarecer os papéis e as relações dialéticas que se estabelecem entre estes três níveis de análise é o elemento chave para compreender os fatores que implicam no estabelecimento de limites à prática dos extensionistas, inviabilizando ou dificultando mudanças na prática cotidiana, mesmo quando estas mudanças são oriundas de propostas elaboradas e sustentadas pelas próprias organizações de extensão rural ou por instâncias superiores. Dessa forma, as questões que direcionam a investigação neste trabalho são as seguintes: 1) Apesar de duramente criticada e questionada, Mussoi (1985) afirma que a extensão rural, devido a sua ação e capilaridade, é o instrumento mediante o qual o Estado leva até o campo suas iniciativas, além de ser considerada uma ferramenta primordial para o apoio aos agricultores familiares. Dessa forma, se a extensão rural tem essa dupla tarefa, quais são os fatores impeditivos e/ou facilitadores a uma atuação conforme os pressupostos da PNATER? 2) A relevância econômica que o agronegócio representa na economia do estado de Mato Grosso pode sugerir uma priorização de ações voltadas para este setor, apesar de, recentemente, o governo estadual ter demonstrado uma sensível mudança de postura. Conforme afirma Caporal (1991), ao assumirem funções de aparelho de Estado, as entidades de ATER passam a sofrer, imediatamente, as influências do poder relacional do Estado classista, fortemente determinado pelos interesses das classes dominantes/dirigentes. Esta argumentação é fundamental para desmistificar quais são os principais entraves às mudanças da prática extensionista, principalmente dentro do contexto Estado/Organização/Agente. 3) Existem alguns desafios que a extensão rural pública terá que solucionar para atuar em direção ao desenvolvimento sustentável. Nesta perspectiva, torna-se prudente questionar, 25 em nível institucional (Secretaria de Estado de Agricultura Familiar e Assuntos Fundiários – SEAF e Empaer), qual o nível de conscientização e a visão da relação existente entre a extensão rural e os pressupostos da PNATER, bem como identificar nos discursos dos dirigentes qual o papel da extensão rural neste enfoque. Diante dos desafios apresentados, os aparatos públicos de extensão devem observar seus papéis de agentes motivadores e modificadores. Porém, para que consigam atingir tal objetivo, é necessário que estas instituições transformem sua prática convencional e introduzam mudanças para que, e a partir disso, possam atender as novas exigências da sociedade. Segundo Bertoldo et al. (2010), ainda são intensos os debates travados na tentativa de implantação prática da PNATER. Apesar de existir um esforço no intuito de transformar a matriz sociológica e extensionista brasileira, a verdade é que os agentes promotores desses processos ainda se deparam com entraves para tirar do papel e colocar em prática essa “nova” maneira de se fazer extensão. Para os autores, cabe aos interessados em adotar e expandir essa metodologia buscar o ponto de estrangulamento entre a teoria e a prática, de modo a inserir como pauta urgente às discussões associadas ao enfoque agroecossistêmico dentro das organizações responsáveis em desempenhar serviços junto ao público da extensão rural pública (agricultores familiares), com o objetivo de romper as barreiras que, em maior ou menor grau, estão anulando a proposta de desenvolvimento sustentável. 1.2 Objetivos Geral Verificar quais são as relações que envolvem Estado/Organização/Agente, no intuito de desvendar os limites e potencialidades relativos à prática extensionista e, mais especificamente, à implementação da Lei de ATER, tendo como objeto de estudo a Empaer- MT. Específicos a) Analisar as diferentes vertentes teóricas sobre as políticas públicas e definir qual delas apresenta os subsídios necessários ao entendimento da construção histórica da Lei de ATER; b) Avaliar como as experiências e os aspectos de formação acadêmica dos extensionistas interferem em sua prática; c) Verificar qual público faz parte do campo de atuação da Empaer e se este está de acordo com os beneficiários da Lei de ATER; 26 d) Identificar qual o conhecimento e a visão dos representantes da Empaer e da SEAF no que concerne aos pressupostos da Lei de ATER; e) Averiguar e discutir quais são os fatores impeditivos e os fatores facilitadores para que a ação extensionista esteja alinhada aos pilares da Lei de ATER. 27 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA, METODOLOGIA E TÉCNICAS UTILIZADAS 2.1 Caracterização da Empaer O Estado de Mato Grosso, cuja dimensão territorial é de 903.366 km², possui uma população estimada de 3.035.122 habitantes e uma das menores densidades demográficas entre as unidades da federação, com 3,36 hab./km² (IBGE, 2010). Conhecido por sua grande dimensão territorial (ocupa aproximadamente 10,61% da área total do país, sendo quase do tamanho de dois países europeus - França e Alemanha - que juntos somam 904.049 km²), o estado de Mato Grosso também ocupa lugar de destaque na produção de commodities ao possuir o maior rebanho bovino do país e ser o maior produtor de soja, algodão, carne bovina e girassol. Exportou, em 2017, mais de 14 bilhões de dólares para os mercados da Ásia, Europa e América do Norte e Central, tendo como principais países de destino a China, a Holanda, o Irã, a Tailândia e a Espanha (MDIC, 2017). Apesar da importância econômica do agronegócio para o estado de Mato Grosso, a agricultura familiar assume o papel de produzir os alimentos que chegam à mesa dos cidadãos mato-grossenses. Com números próximos a realidade brasileira, 70% da comida que vai para a mesa da população do estado provém da agricultura familiar. Dentre as cadeias produtivas mais representativas deste segmento, destacam-se: leite, piscicultura, FLV (frutas, legumes e verduras), mandioca e borracha (que não vai à mesa, mas possibilita produzir os pneus do modal de transporte) (EMPAER, 2015). Segundo dados do último levantamento realizado pela Empaer, em 2015, havia em Mato Grosso 751 assentamentos, 1.372 comunidades tradicionais, onde vivem 104.346 famílias (Quadro 1). A Empaer é o órgão estadual responsável por executar as políticas públicas na área de pesquisa agropecuária, assistência técnica e extensão rural a todas essas famílias assentadas, bem como a todos os indivíduos que compõem o escopo da agricultura familiar, público prioritário no que tange ao atendimento da empresa (EMPAER, 2015; 2016a). A Empaer é definida pelo seu atual Estatuto (2016) como uma empresa pública 1 , vinculada à Seaf, dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio 1 A Lei Complementar nº 461, de 28 de dezembro de 2011 foi a responsável por transformar a forma da constituição social da Empaer, que passou de Sociedade Anônima a Empresa Pública prestadora de Serviços Públicos. 28 e exclusivo do estado de Mato Grosso. A empresa é caracterizada ainda como uma entidade sem fins lucrativos para o desenvolvimento do setor agropecuário, com atuação em pesquisa, assistência técnica e extensão rural à agricultura familiar (EMPAER, 2016a). Quadro 1. Números da agricultura familiar em Mato Grosso, classificada por região administrativa da Empaer, em 2015. Fonte: Empaer (2015). As competências atuais da Empaer são bastante semelhantes aos objetivos presentes no Estatuto de sua criação (EMPAER, 1998), exceto pelo item VI, que teve uma modificação substancial: “desenvolver serviços de análises laboratoriais, produção e comercialização de inimigos naturais de pragas e doenças, sementes, mudas e animais melhorados, visando o desenvolvimento sustentável da produção agropecuária” (EMPAER, 2016a, p. 4). A diferença entre os dois Estatutos insere-se na lógica adotada pela Empaer: enquanto sua versão anterior visava o fomento agropecuário, a atual coloca em destaque o desenvolvimento sustentável da produção agropecuária, denotando assim avanços em seus instrumentos legais que partem de um enfoque reducionista para uma visão mais holística. A estrutura organizacional básica da Empaer envolve sete níveis (Figura 1), porém como nem todos estão envolvidos na temática tratada neste trabalho, decidiu-se por descrever apenas aqueles que apresentam algum interesse para a pesquisa. Desse modo, o primeiro nível a ser apresentado é o da Decisão Colegiada, o qual se localiza no alto da hierarquia organizacional da empresa e é composto pelos Conselhos Deliberativo e Fiscal. Este órgão tem por objetivo deliberar, fiscalizar, orientar e opinar sobre a missão e programação de trabalho da Empaer. Um nível abaixo está a Direção Superior, composta pela Diretoria Executiva, órgão que representa a empresa, coordena e supervisiona suas atividades, de 29 acordo com as disposições do Estatuto, as diretrizes e metas emitidas pelo Conselho Deliberativo (EMPAER, 2016b). Figura 1. Organograma vigente da Empaer. Fonte: EMPAER (2016d). 30 A Diretoria Executiva é formada pelo Gabinete do Diretor Presidente e suas respectivas Diretorias: de Assistência Técnica e Extensão Rural, de Pesquisa e Fomento e de Administração Sistêmica. Por fim, tem-se o nível de Administração Regionalizada e Desconcentrada, que se encontra na ponta da hierarquia e em contato direto com os agricultores familiares. Neste nível estão as unidades de ATER (compostas pelos escritórios regionais e locais) e de pesquisa e fomento (compostas pelos Centros regionais de pesquisa e transferência de tecnologia e os Campos Experimentais de produção) (EMPAER, 2016b). O último levantamento apresentado pela Empaer, no ano de 2017, apresentou uma força de trabalho de 642 empregados. Destes, 541 são efetivos (sendo que 87 estão alocados no escritório central e os outros 454 nas unidades descentralizadas), 85 comissionados (sendo que 43 alocados no escritório central e os outros 42 nas unidades descentralizadas) e 15 oriundos de cooperações com algumas prefeituras municipais (EMPAER, 2017). Quanto a sua presença nos municípios do estado (Figura 2), observou-se a existência de 130 escritórios locais, nove regionais (Barra do Garças, São Félix do Araguaia, Alta Floresta, Juína, Sinop, Barra do Bugres, Rondonópolis, Cáceres e Cuiabá), três centros de pesquisa (Várzea Grande, Sinop e Cáceres), seis campos experimentais em atividade (Rosário Oeste, Nossa Senhora do Livramento, São José dos Quatro Marcos, Tangará da Serra, Juína e Acorizal), quatro viveiros de produção (Cáceres, Sinop, Várzea Grande e Rosário Oeste) e seis laboratórios (todos em Várzea Grande) (EMPAER, 2017; 2016c). 31 Figura 2. Figura com a localização das unidades descentralizadas da Empaer. Fonte: EMPAER (2018). 2.2 Métodos, técnicas e instrumentos de pesquisa Esta pesquisa, embora envolva coleta de dados quantitativos, dará ênfase à investigação do tipo qualitativa, a qual se baseia na obtenção de dados descritivos, colhidos no contato direto do investigador com a situação estudada (KAUARK et al., 2010). Para Chizzotti (2006, p. 28), “o termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e 32 locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível”. De acordo com Michel (2005), este método de pesquisa tem o propósito de analisar, com a maior precisão possível, as características individuais, de grupos sociais ou organizacionais nos seus mais diversos aspectos, de modo a observar, registrar e analisar suas relações, conexões e interferências. Para Martins e Campos (2003), esta abordagem deve ser pautada na observação e análise dos significados e características do fenômeno estudado, não se limitando apenas à quantificação. O pesquisador qualitativo estuda a realidade em seu contexto natural, tal como ocorre, e procura dar sentido ou interpretar os fenômenos de acordo com os significados que possuem para as pessoas implicadas nesse contexto. Por isso, o pesquisador deve livrar-se de qualquer pré-conceito, para que seja possível uma atitude aberta e flexível frente às manifestações que observa, a fim de atingir a compreensão total dos fenômenos (CHIZZOTTI, 2001). Os métodos utilizados para coletar as informações de interesse e alcançar os objetivos da investigação foram a pesquisa bibliográfica e documental, a observação de campo, os questionário com perguntas abertas e fechadas e as entrevistas semiestruturadas. Para Marconi e Lakatos (2005), pesquisa nenhuma hoje parte da estaca zero. Por isso, a utilização da pesquisa bibliográfica é, segundo os autores, algo imprescindível para a não duplicação de esforços, a não descoberta de ideias já divulgadas e a não inclusão de lugares comuns. A pesquisa bibliográfica é aquela desenvolvida a partir de um material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos científicos e, atualmente, outros materiais disponibilizados na internet. A principal vantagem da pesquisa bibliográfica está no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma quantidade de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente (GIL, 2002; KAUARK et al., 2010). O levantamento bibliográfico realizado baseou-se, principalmente, em temas relacionados às políticas públicas (conceitos, tipologias e as diferentes abordagens – pluralismo/corporativismo, neomarxismo, neoinstitucionalismo e cognitiva), à extensão rural (perspectiva histórica, principais avanços e retrocessos) e à Lei de ATER (processos históricos, organizativos e ideias que culminaram na sua concepção, PNATER e ANATER), que formam o eixo central deste trabalho. Por outro lado, o levantamento documental focou os textos e documentos oficiais da Empaer e da Seaf, de circulação aberta ou restrita, além de boletins, manuais, relatórios, 33 programas, estatutos, regulamentos e planos diretores, que tem orientado a prática e estabelecido os objetivos e as diretrizes para a atuação extensionista, ao longo do tempo. Foram utilizados, também, dados provenientes de levantamentos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), MDA, FAO, INCRA e IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). A pesquisa documental se assemelha muito à pesquisa bibliográfica, mas a diferença entre ambas está na natureza das fontes. A pesquisa documental utiliza-se de materiais que ainda não foram analisados (GIL, 2002). De acordo com Marconi e Lakatos (2005), a principal característica da pesquisa documental refere-se ao fato de que a fonte de coleta de dados está restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se designa de fontes primárias, as quais podem ser acessadas tanto no momento em que o fato ou fenômeno ocorre, quanto depois. Segundo Gil (2002), a pesquisa documental constitui uma fonte rica e estável de dados, não exige contato com os sujeitos da pesquisa e, com o decorrer do tempo, torna-se a mais importante fonte de dados em qualquer pesquisa de natureza histórica. Para não permanecer apenas no nível teórico, optou-se pela complementação das informações a partir da coleta das percepções dos atores envolvidos no processo e que são também responsáveis por criar e executar as políticas de interesse do Estado. Antes de dar continuidade a metodologia, torna-se importante destacar que esse trabalho se propõe a apresentar a relação da Empaer e os pressupostos da PNATER, a partir da visão dos próprios atores que compõem seu staff. Em outras palavras, é um trabalho que busca demonstrar como os funcionários da Empaer enxergam a Empresa, seus desafios e perspectivas. Essa visão se aproxima da abordagem cognitiva de análise das políticas públicas, na qual as instituições são vistas, no sentido apresentado por North (1991), como restrições humanamente concebidas e que são responsáveis pela estruturação política, econômica e social. Nesse sentido, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os atores que ocupam cargos públicos no Estado, relacionados às ações da Empaer, para apreender a visão destes sobre os avanços e retrocessos da extensão rural estadual, bem como assuntos relacionados aos pressupostos presentes na Lei de ATER (desenvolvimento rural sustentável, agricultura de base ecológica e adoção de metodologia participativa, com enfoque multidisciplinar, interdisciplinar e intercultural). Realizou-se, primeiramente, uma entrevista com um dos dirigentes da Seaf, neste caso, com o Secretário Adjunto de ATER e Assuntos Fundiários, no mês de março de 2016. Tentou-se, anteriormente, agendar uma entrevista com o Secretário da Seaf, porém, devido 34 aos seus múltiplos compromissos, não foi possível estabelecer uma data em comum acordo. Assim, respeitando os objetivos deste trabalho, optou-se pela entrevista junto ao Secretário Adjunto, o qual se colocou à disposição para contribuir com a pesquisa. Para auxiliar na entrevista e atender todas as questões colocadas, o Secretário julgou necessária a presença do Superintendente de Assistência Técnica e Extensão Rural e do Superintendente de Desenvolvimento Rural. Dessa forma, acredita-se que a entrevista com o Secretário Adjunto foi satisfatória e atendeu as expectativas e propósitos deste trabalho. O principal objetivo da entrevista com o Secretário Adjunto foi entender o papel e o posicionamento do Estado (aqui representado pela Seaf) frente aos desafios propostos pela institucionalização da Lei de ATER, os avanços e entraves, bem como sua relação com a Empaer. Nesta oportunidade, além de apresentar os objetivos da pesquisa à Seaf, foram requeridos alguns documentos que dessem conta do quadro de funcionários e veículos da empresa, assim como suas principais ações no que se refere à extensão rural no estado de Mato Grosso. Após apreender a visão do Governo, neste âmbito mais geral, partiu-se em busca do posicionamento da organização, no caso, a Empaer. Para isso, foram entrevistados alguns componentes da Diretoria Executiva da Empaer, nomeadamente: o diretor presidente e o diretor de ATER. Todas estas entrevistas foram realizadas no mês de março de 2016, na sede da Empaer em Cuiabá. Antes de iniciá-las, foi feita uma apresentação da pesquisa ao diretor presidente da Empaer, o qual demonstrou sua receptividade ao trabalho e se colocou a disposição para auxiliar na obtenção dos dados. Este contato inicial foi de fundamental para toda a coleta de dados realizada na Empresa posteriormente. Para consolidar a visão da organização, entrevistaram-se os nove coordenadores dos escritórios regionais da Empaer (Cuiabá, Rondonópolis, Cáceres, Barra do Garças, Alta Floresta, Barra do Bugres, Sinop, Juína e São Félix do Araguaia), durante os meses de agosto a novembro de 2016. Na maioria das visitas às regionais foi entrevistado o próprio coordenador, apenas nas regionais de Cáceres e Rondonópolis que isto não foi possível (ambos haviam tirado férias), de maneira que o entrevistado foi o profissional que estava na função de forma interina (ambos, porém, já haviam ocupado a função anteriormente e, portanto, conheciam bem a realidade da Empresa e da função). No caso de Cáceres, o profissional que estava ocupando a função solicitou a participação de outra colega do escritório (extensionista social), devido ao fato desta já ter ocupado o cargo de coordenadora daquela regional e ter relevantes conhecimentos sobre a dinâmica do cargo. Já em Rondonópolis, a profissional que estava no cargo de forma interina não pôde realizar a 35 entrevista no dia agendado (sendo que aquela data já havia sido alterada uma vez) e designou um extensionista rural do mesmo escritório para conceder a entrevista. As duas solicitações foram aceitas em virtude da expressiva colaboração da participante do escritório regional de Cáceres e da experiência e valiosas contribuições advindas do profissional entrevistado em Rondonópolis. Dessa forma, julga-se que as duas exceções às regras estabelecidas não afetou em nada os resultados coletados, pois possibilitou captar a percepção dos noves escritórios regionais espalhados pelos três biomas do estado (Amazônia, Cerrado e Pantanal). Em que pese alguns pontos similares, destaca-se que cada uma das entrevistas efetuadas seguiu roteiros específicos no intuito de captar as especificidades de suas respectivas funções. Além disso, todas as entrevistas tinham por objetivo entender como a Empaer vem atuando diante das diretrizes colocadas pela Lei de ATER, os progressos empreendidos e dificuldades encontradas, e se o Estado, representado pela Seaf, tem dado o suporte necessário a esta atuação. É importante ressaltar também que essas visitas in loco foram importantes para a observação das peculiaridades de cada regional, dando especial atenção às causas que dificultam e/ou facilitam o fornecimento de um serviço de ATER satisfatório em termos de qualidade e quantidade. A entrevista, segundo Gerhardt et al. (2009), constitui-se numa técnica para coletar dados não documentados sobre determinado tema. Para sua utilização, há a necessidade de uma interação social, numa situação face a face, na qual uma das partes (o pesquisador) necessita obter informações da outra, a respeito de um determinado assunto, mediante uma conversação de caráter profissional (GIL, 2002; MARCONI; LAKATOS, 2005). No caso da entrevista semiestruturada o entrevistador deve seguir um roteiro, porém tem liberdade de explorar mais amplamente determinadas questões de seu interesse (MARCONI; LAKATOS, 2005). Neste tipo de entrevista são permitidas, e às vezes até se incentiva, eventuais indagações ou levantamentos de dados e informações que vão surgindo com os desdobramentos do tema principal (GERHARDT et al., 2009; KAUARK et al., 2010). A observação também foi uma ferramenta utilizada durante a pesquisa de campo. Esta é uma técnica que busca utilizar os sentidos para apreender determinados aspectos da realidade pesquisada. Neste caso, a observação deve ser exata, completa, imparcial, sucessiva e metódica. Especificando ainda mais o tipo de observação utilizada, pode-se classificá-la em assistemática e não participante. Assistemática por recolher e registrar os fatos da realidade sem que haja o controle ou planejamento prévios, nem mesmo a necessidade do pesquisador utilizar meios técnicos ou perguntas diretas aos informantes. Não participante pelo fato do pesquisador até tomar contato com a realidade estudada, mas não se integrar a mesma. Seu 36 papel, neste caso, é de espectador, não interferindo ou se envolvendo diante do fenômeno estudado. Isto não quer dizer, todavia, que este tipo de observação não seja consciente ou ordenada para um objetivo especifico. Ao contrário, o procedimento possui caráter sistemático (GERHARDT et al., 2009; KAUARK et al., 2010; MARCONI; LAKATOS, 2005). Na etapa seguinte da pesquisa, o questionário foi utilizado com vistas à obtenção das características do perfil dos técnicos que trabalham nos escritórios locais da Empaer, assim como as nuances do trabalho extensionista realizado cotidianamente. Ademais, utilizou-se como base o pensamento de Lipsky (2010), o qual afirma que os profissionais, ao estarem em contato direto com o público beneficiário das políticas públicas, podem fornecer informações mais fidedignas do processo de implantação das mesmas. Neste caso, a abordagem da realidade desses indivíduos teve também o intuito de averiguar quais são os possíveis fatores impeditivos e/ou facilitadores para que a ação extensionista estivesse alinhada aos pilares da Lei de ATER e se havia, neste âmbito, algum tipo de apoio recebido dos escritórios regionais da Empaer. Para obter esses dados foram enviadas cópias do questionário, no segundo semestre de 2016, para todos os escritórios locais por meio digital (e-mail), juntamente com um texto, explicando a natureza da pesquisa, a importância e a necessidade de se obter as respostas. Kauark et al. (2010) apontam a importância do questionário ser acompanhado de uma carta explicativa, na qual deve-se apresentar a proposta da pesquisa, as instruções para preenchimento e devolução, assim como o agradecimento pela atenção, disponibilidade e veracidade das informações prestadas. Além disso, os autores reforçam a importância de se incentivar a contribuição e o retorno dentro das regras estabelecidas em cada caso. A lista com os e-mails e contatos telefônicos foi solicitada anteriormente quando se realizaram visitas aos escritórios regionais da Empaer, oportunidade na qual os coordenadores se comprometeram em receber o questionário e a carta explicativa e reencaminhar a todos os escritórios locais. Esta intermediação dos coordenadores foi uma proposta que partiu deles e visava garantir uma maior taxa de retorno, pois a partir de um de uma solicitação oficial, esperava-se um maior comprometimento por parte dos extensionista locais. Em vários escritórios regionais, essa dinâmica se mostrou acertada e obteve-se uma taxa de retorno satisfatória, porém em outros o índice de retorno, inicialmente, ficou aquém do esperado. No entanto, apesar da utilização dessa dinâmica, a forma de resposta dos extensionistas locais variou: houve casos em que a resposta era repassada ao Escritório Regional, o qual 37 posteriormente fazia o encaminhamento, assim como teve alguns extensionistas que enviaram diretamente as respostas, sem o intermédio do regional. Na busca de se alterar as situações em que as respostas ficaram aquém do esperado, realizaram-se vários contatos telefônicos e via e-mail diretamente com os escritórios locais que não haviam retornado o questionário, relembrando aos extensionistas a importância da sua contribuição para a pesquisa. Esta ação complementar foi bem aceita por boa parte dos extensionistas locais e resultou no alcance de um índice considerado satisfatório (o período de recebimento das respostas foi de agosto de 2016 a janeiro de 2017), dada às circunstâncias e dificuldades deste tipo de levantamento de dados. De um total de 122 escritórios locais (na época do levantamento dos dados), obteve-se a resposta de 55 escritórios (Figura 3), o que corresponde a 45,1% de taxa de retorno. É importante ressaltar que, no total, a soma de questionários respondidos foi de 62, pois, em alguns escritórios locais, mais de um extensionista respondeu ao questionário. Embora sejam do mesmo escritório, as respostas correspondem a pontos de vista distintos, justificando assim a utilização de todo o universo de respostas na análise da pesquisa. Por fim, destaca-se que a meta de se alcançar, em todas as regionais, o percentual mínimo de 30% de respostas dos escritórios locais foi atendida. De acordo com Marconi e Lakatos (2005), os questionários que são enviados para os entrevistados atingem em média 25% de taxa de retorno, portanto, considerando esta premissa, o índice de retorno de 45,1% do total de questionários enviados aos técnicos foi considerado satisfatório. O questionário pode ser definido como um instrumento de coleta de dados, constituído por uma série ordenada de perguntas, a respeito de uma determinada situação. Têm por objetivo levantar opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas. O questionário aqui utilizado fez uso de perguntas abertas e fechadas. Perguntas abertas são as que permitem ao informante utilizar linguagem própria, responder livremente e emitir opiniões. A sua vantagem se encontra na possiblidade de se fazer investigações mais profundas e precisas; entretanto, apresenta alguns inconvenientes posteriores em relação ao processo de tabulação, tratamento, interpretação e análise das respostas. Perguntas fechadas são aquelas que o informante escolhe, dentre uma lista predeterminada, uma resposta que melhor corresponda a sua visão; a vantagem, nesse caso, está na padronização e uniformização, o que auxilia o processo posterior de tabulação e tratamento dos dados coletados (GERHARDT et al., 2009; GIL, 2002; MARCONI; LAKATOS, 2005). 38 O tratamento do material recolhido com a pesquisa de campo foi realizado a partir da digitalização, tabulação e sistematização das informações obtidas por meio da aplicação do questionário e entrevistas junto aos atores do processo e que são responsáveis por executar as políticas de interesse do Estado (integrantes da Seaf e dirigentes e técnicos da Empaer). Figura 3. Mapas com a divisão territorial municipal do estado de Mato Grosso, com destaque (em cinza) para os escritórios locais da Empaer em que os extensionistas participaram da pesquisa. Fonte: Dados da pesquisa. 39 Quanto à interpretação dos dados, optou-se pela utilização de dimensões analíticas de maneira a facilitar a compreensão da dinâmica discursiva a respeito de um mesmo tema, porém sob a percepção de diferentes atores (englobando o eixo Estado/Organização/Agente). Isso quer dizer que, ao se analisar as dificuldades de uma atuação mais próxima aos pressupostos da Lei de ATER, por exemplo, os posicionamentos do Secretário da Seaf, dos diretores, coordenadores regionais e extensionistas locais da Empaer tendem a apresentar semelhanças e distinções que são objeto de análise, com a base no referencial teórico. Diante disso, espera-se que a discussão dentro de eixos temáticos facilite o entendimento e propicie maior fluidez ao texto. Este viés de análise se aproxima do trabalho com categorias apresentado por Gomes (2002). Segundo o autor, a palavra categoria remete a um conceito que envolve elementos ou aspectos com propriedades comuns ou que se relacionam entre si. Utilizadas em qualquer tipo de análise em pesquisa qualitativa, as categorias dever ser empregadas no estabelecimento de classificações, mediante um agrupamento de elementos, ideias ou expressões ao redor de um conceito capaz de abarcar toda essa diversidade (GOMES, 2002). O levantamento documental realizado nos textos, relatórios, regulamentos, atas e documentos oficiais da Empaer e da Seaf foram sistematizados, analisados e permitiram a elucidação de alguns aspectos não captados pelas outras ferramentas metodológicas. Além disso, o conjunto de dados oriundos da pesquisa documental e do levantamento teórico bibliográfico realizado (sobretudo, no que se refere à perspectiva de uma “nova” extensão rural) contribuíram diretamente na elucidação das questões colocadas no início deste trabalho. A apresentação dos dados que compõem este trabalho se deu na forma de tabelas e gráficos, com base na estatística descritiva, e da análise qualitativa do conjunto dos dados levantados. Apesar do trabalho se basear em uma análise institucional, na qual impera o viés estruturalista/funcionalista, será realizado um esforço para interpretar os dados dentro de uma perspectiva crítico/dialética. O eixo teórico que orientou a interpretação dos dados baseou-se nas teorias que formularam as bases para a construção das diretrizes presentes na Lei de ATER (CAPORAL, 2003; CAPORAL; COSTABEBER, 2000; CAPORAL; RAMOS, 2006; FREIRE, 1983). 40 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E AGRICULTURA FAMILIAR: CONCEITOS E ABORDAGENS 3.1 Conceitos e tipologias das políticas públicas O debate a respeito das políticas públicas no meio acadêmico tem sido uma constante nas mais diversas áreas da ciência devido, principalmente, ao arcabouço teórico, instrumental analítico e vocabulário úteis e adaptados a todos aqueles que estudam ou tomam decisões em políticas de saúde, educação, segurança, meio ambiente, agricultura, entre outras. Além dessa vertente, o estudo das políticas públicas é capaz de fornecer as ferramentas necessárias ao entendimento de algumas questões pertinentes, como: quais são os condicionantes do aparecimento e relevância de um problema público em uma comunidade? Quais são as soluções e alternativas viáveis para abrandar ou extinguir tal problema? O que é necessário para a implementação de soluções? Quais são os entraves à efetivação de determinadas políticas? O que deve ser feito para que os resultados esperados sejam alcançados? Quais metodologias são mais apropriadas para avaliar os impactos de uma política pública? (SECCHI, 2010). Souza (2007) aponta três fatores que justificam esta maior visibilidade das políticas públicas. O primeiro está associado às políticas restritivas de gasto, fator cada vez mais latente na maioria dos países, especialmente naqueles denominados em desenvolvimento, e que demandou um maior conhecimento acerca do desenho, implementação e processo decisório das políticas públicas. Outro fator refere-se à mudança de visão do papel do Estado, que passou da política pós-guerra voltada às ideias do economista inglês John Maynard Keynes às ações restritivas de gasto, o que levou à redução da intervenção do Estado na economia. Com isso, alguns governos passaram a condicionar suas políticas públicas ao cumprimento do ajuste fiscal e ao equilíbrio orçamentário entre receita e despesa. Essa agenda, de cunho neoliberal, a partir dos anos de 1980, arrebanhou muitos adeptos principalmente na América Latina, onde os surtos inflacionários são de longa data e recorrentes. O terceiro fator relaciona-se aos países de democracia recente que ainda carecem de coalizões políticas capazes de equacionar, minimamente, o desenho de políticas públicas capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e promover, ao mesmo tempo, a inclusão social da maioria da população. É obvio que a construção dessas políticas está longe de ser fácil ou consensual, pois existem muitos fatores internos e externos envolvidos, assim 41 como interesses conflitantes. Todavia, apenas com a identificação das restrições sistêmicas das políticas públicas e das regras que regem suas decisões, elaboração e implementação, assim como seus processos, é que pode-se estar habilitado a vislumbrar novas possiblidades que guiem as ações político-administrativas. Diante disso, nota-se que estudar as políticas públicas não incide mais em compreender o lugar ou a legitimidade do Estado, mas entender as lógicas implementadas nestas diferentes formas de intervenção sobre a sociedade, identificar os modos de relação existentes entre os diversos atores que interagem neste meio e analisar como a ação pública age frente às dinâmicas imprecisas e evolutivas da fronteira entre Estado e sociedade (MULLER; SUREL, 2002). Uma das características inerentes às políticas públicas é o caráter polissêmico do termo política. Para explicá-lo, recorreremos à interpretação de Frey (2000). Para este autor, o termo subdivide-se em outros três conceitos originários da língua inglesa. Polity é o primeiro deles e se refere à dimensão institucional, que compreende a ordem do sistema político, composto pelo sistema jurídico, e a estrutura institucional do sistema político-administrativo. Já o conceito politics abrange os processos políticos, frequentemente conflituosos, relacionados à imposição de objetivos, aos conteúdos e às decisões de distribuição. Por fim, no quadro da dimensão material, tem-se o conceito de policy associado aos conteúdos concretos, ou seja, a configuração dos programas políticos propriamente dito, seus problemas técnicos e conteúdo material. Ao analisar os três sentidos da palavra política, o termo política pública parece ter mais vínculo com o terceiro. Secchi (2013) reforça esse vínculo ao afirmar que as políticas públicas abordam tanto o conteúdo concreto e simbólico das decisões políticas, quanto o processo de construção e atuação dessas decisões. Todavia, deve-se deixar claro que na realidade política essas dimensões são entrelaçadas e se influenciam mutuamente (FREY, 2000). A origem da política pública em termos de área de conhecimento e disciplina acadêmica nasce, segundo Souza (2006), nos Estados Unidos e difere da tradição e dos estudos europeus nesta área, os quais, por sua vez, focavam mais a análise do Estado e suas instituições do que na produção concreta dos governos. O pressuposto analítico que embasou a vertente americana é o de que, em democracias estáveis, aquilo que é ou não realizado pelo governo é passível de ser formulado cientificamente e analisado por pesquisadores. Do mesmo modo, Secchi (2010) afirma que as atividades ou passividades também fazem parte da política pública. Contudo, se um ator governamental ou não decide não agir 42 sobre determinado problema público, isso não constitui uma política pública. Esta omissão, na verdade, pode ser conceituada como um vazio de política pública, até pelo fato de que, ao agir de modo contrário, tudo seria considerado política pública, o que inviabilizaria a análise e a distinção de seus impactos. Logo, a razão para a existência de uma política pública é a resposta a um problema visto como coletivamente relevante. Após essa primeira abordagem, cabe agora conceituar o termo política pública. Esta se mostra uma tarefa árdua, pois a quantidade de conceitos e definições existentes abrange uma gama significativa de referências. Por isso, decidiu-se abarcar àquelas definições que mais se aproximam do significado que podem contribuir para a análise das questões postas neste trabalho. Howlett, Ramesh e Perl (2013) definem política pública como uma resolução aplicada de problemas, na qual atores cercados por restrições tentam compatibilizar objetivos políticos com meios políticos. Este processo considera, necessariamente, os atores estatais e societários envolvidos nos processos de tomada de decisão e sua capacidade de influenciar e agir, de modo a contribuir cumulativamente para um efeito ou impacto. Por outro lado, tem-se o conceito de Souza (2006) que resume política pública como um campo de conhecimento que objetiva, ao mesmo tempo, colocar o governo em ação e/ou analisar essa ação e, caso seja necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações. Secchi (2010) busca sentido para a compressão do termo políticas públicas nas abordagens estatista e multicêntrica. A primeira defende que o fator determinante se uma política é ou não pública deve ser buscada na personalidade jurídica do ator protagonista, isto é, apenas ao advir de um ator estatal é que se pode considerar tal iniciativa como uma política pública. Isto não significa que os estatistas não admitem a presença de atores não estatais. Ao contrário, destacam sua influência no processo de elaboração das políticas públicas, porém não lhes conferem a prerrogativa de estabelecer e liderar tal processo. A segunda abordagem, multicêntrica, também considera os atores estatais protagonistas no estabelecimento das políticas públicas, porém esse protagonismo é compartilhado com as organizações privadas, organizações não governamentais, organismos multilaterais e redes de políticas públicas. Este trabalho centrará na vertente multicêntrica pelo fato desta agregar melhor a abordagem da política pública que aqui será analisada, notadamente o amplo espectro de fenômenos, organizações e indivíduos que fizeram parte do processo constitutivo da PNATER. A noção desenvolvida por Muller e Surel (2002) também merece destaque. Para estes autores, uma política pública é, tanto uma construção social como uma construção de pesquisa, fator este que dificulta sua identificação e interpretação. O desafio que se coloca, 43 portanto, é o de estabelecer um quadro de análise sistêmica da ação pública e ir além da abordagem sequencial. Ademais, na tentativa de aprofundar mais a noção de política pública, Muller e Surel (2002) definem três aspectos que podem abranger: 1) a política pública como um quadro normativo de ação; 2) como uma combinação de elementos de força pública e de competência; 3) como a construção de uma ordem local. Quanto ao quadro normativo de ação, destacam que para uma política pública realmente existir é necessária uma estrutura de sentido, isto é, diferentes elementos de valor e de conhecimento, bem como os instrumentos de ações particulares, devem estar reunidos com vistas à construção de objetivos baseados nas trocas entre os atores públicos e privados. Para isto, deve-se, primeiramente, tomar a consciência do caráter normativo de todo programa de ação pública. Este caráter pode estar mais ou menos explícito ou fluido e até ambíguo nos textos e nas decisões do governo. Também envolve a questão de saber quem define as normas de ação pública, se são os governos, os partidos, os eleitores, os pesquisadores e até mesmo a sociedade civil. Ainda cabe observar que o contraditório é algo intrínseco a toda política e que dificilmente as medidas e normas estarão reunidas num quadro normativo coerente. É evidente que essas contradições e até mesmo incoerências não impedem que as ações governamentais tenham um sentido. Todavia, este sentido não é unívoco, pois a “realidade do mundo é, ela mesma, contraditória, o que significa que os tomadores de decisão são condenados a perseguir objetivos em si mesmos contraditórios” (MULLER; SUREL, 2002, p.17). O segundo aspecto citado por Muller e Surel (2002), que trata da política pública como uma combinação de elementos de força pública e de competência, envolve o entendimento de que a ação do Estado consiste, tradicionalmente, em elementos de decisão ou alocação de recursos de natureza mais ou menos autoritária ou coercitiva. Neste caso, essas dimensões podem estar mais ou menos nítidas no escopo das políticas públicas. Se tomarmos como ponto de referência as políticas de cunho defensivo e de segurança, a coerção física estará em primeiro plano. De outro modo, ao levar em consideração as políticas reguladoras, a face coercitiva não será mais que potencial, pois mesmo quando não está prevista, como é o caso das políticas redistributivas, nota-se sua sutil presença ao passo que estas tendem a estabelecer detentores de direito, definindo critérios sobre quem receberá ou não os benefícios. Contudo, essa relação dissimétrica entre as ações governamentais do Estado e os cidadãos não deve, de forma alguma, nos direcionar a uma reificação do poder público como um bloco homogêneo e autônomo. Longe disso, a evolução do Estado e suas interações entre espaço público e privado deve ser uma constante ao falarmos de políticas públicas. 44 O terceiro aspecto salienta que a política pública deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma análise ligada a indivíduos e/ou grupos compostos quadros políticos, funcionários de todos os níveis, grupos de interesse, entre outros. Isto justifica a necessidade de entendermos a política pública não como um simples conjunto de decisões, mas um espaço de relações interorganizacionais que ultrapassam a visão estritamente jurídica e desemboca no conceito de ordem local 2 . Está aí, portanto, a importância de se considerar o conjunto de indivíduos, grupos ou organizações que são afetados pela ação do Estado num espaço dado quando se quer analisar determinada política pública. Entretanto, deve-se ter sempre em mente que estes atores representam modalidades e intensidades de participação peculiares, de acordo com suas respectivas capacidades de constituir-se coletivamente e de mobilização de recursos pertinentes (MULLER; SUREL, 2002). Os conceitos até aqui apresentados demonstram que as políticas públicas englobam uma ampla gama de atores que influenciam e são influenciados pelo Estado, sendo que essa interação se dá em forma, grau e instância variados. Neste escopo, um problema público, segundo sua origem e causa, necessitará de um plano de ação específico para atender a particularidade daquele âmbito. É exatamente neste momento que a análise das políticas públicas deve buscar auxílio nas tipologias, as quais, por sua vez, auxiliam a interpretar um fenômeno baseado em variáveis e categorias analíticas (SECCHI, 2013). A tipologia de Theodore J. Lowi é, provavelmente, a mais conhecida. De acordo com o grau de conflito ou consenso que envolve, as políticas públicas podem ser caracterizadas como distributivas, redistributivas, regulatórias ou constitutivas. As distributivas são designadas por um baixo grau de conflito dos processos políticos, pois aparentam apenas distribuir vantagens e não acarretam custos (ao menos diretamente perceptíveis) para outros grupos. Contudo, esse tipo de política tende a gerar benefícios concentrados a alguns atores e custos difusos a toda a coletividade. Um exemplo que pode ser dado são as políticas de subsídio, como a de seguridade rural. Ao contrário das distributivas, as redistributivas são orientadas ao conflito, pois os benefícios concedidos são concentrados a algumas categorias de atores e implicam em custos concentrados sobre outras categorias. O processo redistributivo costuma levar à polarização e ao elitismo, em que se tem um grupo que demanda a efetivação da política e outro que luta para sua extinção. Exemplos podem ser 2 Muller e Surel (2002, p.19), ao utilizarem o discurso de Friedberg (1993), definem ordem social como um “constructo político relativamente autônomo que opera, em seu nível, a regulação dos conflitos entre os interessados, e assegura entre eles a articulação e a harmonização de seus interesses e seus fins individuais, assim como dos interesses e fins coletivos”. 45 vistos nos programas de reforma agrária e benefícios sociais aos trabalhadores (FREY, 2000; SECCHI, 2013). As políticas regulatórias agem no âmbito das ordens e proibições, decretos e portarias. Os processos de conflito, consenso ou coalizão modificam-se segundo a configuração específica das políticas. Tanto os custos quanto os benefícios podem ser distribuídos de forma igualitária entre os diferentes setores da sociedade, ao mesmo tempo em que podem atender interesses específicos e restritos. Essa dualidade é proporcional à relação de forças dos atores e interesses presentes na sociedade. Exemplos para este tipo de política estão nas regras para a segurança alimentar, nos códigos de trânsito ou para operação de mercado financeiro de exportação e importação. Já as políticas constitutivas são as que regem a regra do jogo e, consequentemente, toda a estrutura de processos e conflitos políticos, ou seja, são aquelas que se encontram acima e moldam a dinâmica política das outras três. As políticas constitutivas costuma gerar mais impacto dentro do próprio sistema político-administrativo e, raramente, envolvem setores mais amplos da sociedade. Alguns exemplos são as regras do sistema político-eleitoral e das relações intergovernamentais (FREY, 2000; SECCHI, 2013). Outra tipologia relevante é a desenvolvida por Gustafsson (1983) que se baseia na intenção dos geradores das políticas. Para isso, o autor faz quatro subdivisões das políticas públicas: reais, simbólicas, pseudopolíticas e sem sentido. As reais são aquelas consideradas ideais, pois agrupam a intenção e o conhecimento necessários à resolução de um problema público. As políticas simbólicas estão mais relacionadas ao incremento de capital político do que à real construção das possíveis vias de solvência de um determinado problema público. Em outras palavras, os geradores das políticas podem até reunir as condições para enfrentar um problema, mas não demonstram vontade política em resolvê-lo, em função de diferentes circunstâncias e influências. Diferente da tipologia simbólica, na pseudopolítica o gerador da política apresenta vontade e interesse em resolver o problema, porém lhe falta conhecimento para lidar e estruturar sistematicamente as soluções mais adequadas, o que acarreta em ações paliativas para circunstâncias que carecem de atos efetivos. Já as políticas classificadas como sem sentido abrangem àquelas construídas a partir de um conhecimento não técnico ou adequado sobre determinado problema ou mesmo sem soluções concretas. Em muitos casos, essas políticas não carregam intenções políticas genuínas e são marcadas por interesses na manutenção do status quo. Gustafsson (1983) ressalta, contudo, que a tipologia descrita acima é claramente muito simplista e não pretende encaixar todo o arcabouço empírico que envolve a tomada de decisão em políticas públicas, pois ao invés de quatro modelos, as políticas públicas modernas são 46 caracterizadas por um misto de realidade, simbolismo, incompetência e efetividade em diferentes proporções. Do mesmo modo, Secchi (2013) afirma que as tipologias auxiliam na síntese e análise das políticas públicas, porém deve-se ter em mente que existem algumas limitações. O simples ato de criar tipologias já é uma restrição relevante, tendo em vista que os limites das políticas não são tão nítidos e há a existência de sombreamentos entre as mesmas. Por isso que, ao enquadrá-las dentro de determinadas categorias, corre-se o risco de simplificar demais a questão e desconsiderar fatores que possivelmente auxiliariam o seu entendimento. Outra abordagem do tema que cabe discutir é o ciclo das políticas públicas, também conhecido como ciclo político. Frey (2000) considera que as várias instâncias do processo político administrativo e as relações de poder e influência que envolvem os mais diversos atores dentro da dinâmica construtiva de uma política pública congregam um conjunto de elementos que não apresenta uma linearidade, muito menos um sequenciamento lógico. Por outro lado, as vantagens heurísticas e analíticas oriundas do ciclo político devem ser ressaltadas e justificam sua apresentação. O referido ciclo utiliza-se de fases sequenciais e interdependentes para visualizar e interpretar o modus operandi das políticas públicas. Embora existam inúmeras versões desenvolvidas com este intuito, observa-se que as diferenças se restringem ao número de divisões do ciclo politico, de modo que há uma estrutura básica que permeia as várias propostas bibliográficas. Diante disso, optou-se por apresentar neste trabalho uma percepção que agrupa as visões de Frey (2000), Secchi (2010) e Souza (2007; 2006). O ciclo das políticas públicas pode ser dividido em sete fases: identificação do problema, formação da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção. Em meio à imensidão de possíveis campos de ação política, por que determinados assuntos geram mais interesse político e recebem um tratamento diferenciado, de modo a dar início ao ciclo político? É na busca da encontrar uma resposta para este questionamento que surge a fase de identificação do problema. Deve-se ter em mente, antes de qualquer coisa, que um fato pode ser percebido como problema político por um conjunto de indivíduos, grupos ou organizações dos mais diversos segmentos sociais, como também pelos partidos políticos, agente políticos, organizações não governamentais e pela administração pública. Porém, a mídia e outras formas de comunicação política e social influenciam, de modo e grau diversos, para que determinados problemas ganhem maior relevância política. Em suma, a identificação de um problema é a desconexão entre a realidade pública e uma situação ideal possível. Isso não quer dizer que o problema seja 47 sempre reflexo da deterioração de uma situação em determinado contexto, mas sim do potencial de solução da situação em outro contexto. Ao ser identificado um problema, o ator político se esforçará para que este entre na lista de prioridades de atuação, ou seja, entre na agenda. A formação da agenda é, portanto, a decisão sobre a relevância de ação de um conjunto de problemas ou temas na pauta política atual ou se estes devem ser excluídos ou adiados para uma data posterior. Com base nisso, surge o seguinte questionamento: como os governantes tomam a decisão sobre o que entrará ou não na agenda? A resposta parece estar relacionada a dois aspectos. A avaliação das chances do tema se impor na arena política é o primeiro deles. Para isso, faz-se necessária uma análise sobre os custos, benefícios e viabilidade política das várias opções disponíveis. O segundo é a forma como se constrói a consciência coletiva para o enfrentamento de um dado problema. A construção de uma consciência coletiva pode se dar pela via do processo eleitoral, pelas mudanças nos partidos governantes e pelas transformações nas ideologias, sempre vinculados à força ou à fraqueza dos grupos de interesse. Além disso, a base que dá estrutura à política pública também é um fator poderoso na definição da agenda. Se movimento inicial é dado pela política, “o consenso é construído mais por barganha do que por persuasão, ao passo que, quando o ponto de partida da política pública encontra-se no problema a ser enfrentado, dá-se o processo contrário, ou seja, a persuasão é a forma para a construção do consenso” (SOUZA, 2006, p.30). A partir do momento que o problema entra na agenda, chega-se a terceira fase do ciclo político: a formulação de alternativas. Esta etapa engloba a elaboração dos métodos, programas, estratégias ou ações necessárias ao alcance dos objetivos estabelecidos. Em outras palavras, é a união de esforços com o intuito de estabelecer objetivos e estratégias para analisar as potenciais consequências de cada alternativa de solução. O processo de formulação de alternativas busca escolher a mais apropriada entre várias possibilidades e precede a fase da tomada de decisão. A construção dessas alternativas requer diferentes recursos técnicos, humanos e financeiros e, geralmente, envolvem processos de conflito e de acordo entre os atores “visíveis, ou seja, políticos, mídia, partidos, grupos de pressão, etc. e invisíveis, tais como acadêmicos e burocracia. Segundo esta perspectiva, os participantes visíveis definem a agenda e os invisíveis, as alternativas” (SOUZA, 2006, p.30). O passo que sucede à formulação de alternativas é a tomada de decisão. É o momento em que se busca atender os interesses dos atores e os métodos de enfre