MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO UMA LEITURA DE O CHALAÇA (1994) E DE O FEITIÇO DA ILHA DO PAVÃO (1997) STANIS DAVID LACOWICZ M IT O S H ISP Â N IC O S N O R O M A N C E H IST Ó R IC O B R A SILE IR O S T A N IS D A V ID L A C O W IC Z mitos_hispanicos_capa.indd 1 11/02/2014 09:50:26 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 1 11/02/2014 06:29:04 Conselho Editorial Acadêmico Responsável pela publicação desta obra Prof. Dr. Antonio Roberto Esteves Dra Cleide Antonia Rapucci Dr. Benedito Antunes Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 2 11/02/2014 06:29:04 STANIS DAVID LACOWICZ MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO UMA LEITURA DE O CHALAÇA (1994) E DE O FEITIÇO DA ILHA DO PAVÃO (1997) Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 3 11/02/2014 06:29:04 © 2013 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L149m Lacowicz, Stanis David Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro [recurso eletrônico] : uma leitura de O Chalaça (1994) e de O feitiço da ilha do Pavão (1997) / Stanis David Lacowicz. – [1. ed.] – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2013. recurso digital : il. Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-433-2 (recurso eletrônico) 1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título : O Chalaça. II. Título : O feitiço da ilha do Pavão. III. Título. 13-06413 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 4 11/02/2014 06:29:05 Dedico a Mirielly, Estanislau, Elceni e Ellis Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 5 11/02/2014 06:29:05 Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 6 11/02/2014 06:29:05 Eu tenho por bem que coisas tão assinaladas, e porventura nunca ouvidas nem vistas, cheguem ao conhecimento de muitos e não se enterrem na sepultura do esquecimento, pois pode ser que alguém que as leia nelas encontre algo que lhe agrade, e àqueles que não se aprofundarem muito, que os deleite. Lazarillo de Tormes Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 7 11/02/2014 06:29:05 Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 8 11/02/2014 06:29:05 SUMÁRIO Agradecimentos 11 Palavras iniciais 13 1. O jogo de máscaras do Chalaça 21 2. A ilha como palco 75 3. Confluências (mito e carnaval): a diluição das fronteiras em O Chalaça e O feitiço da ilha do Pavão 131 Considerações finais 187 Referências bibliográficas 193 Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 9 11/02/2014 06:29:05 Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 10 11/02/2014 06:29:05 AGRADECIMENTOS A Mirielly Ferraça, companheira de já um bom tempo, por apoiar-me incondicionalmente e estar sempre ao meu lado, mesmo nas dificuldades. À família: pai, mãe e irmã. Pelo incentivo aos estudos e livros, apoio emocional e, quando necessário, financeiro. Aos amigos assisenses: Marcos, Luana, Kátia, Henrique, An- dré, Luiz. Ao orientador, Antonio Roberto Esteves, por ter confiado em um forasteiro em terras unespianas, pela amizade, grande apoio moral e intelectual e enorme prontidão nas reuniões. Aos professores integrantes da banca de qualificação: profa Maíra Pandolfi e profa Heloísa Costa Milton, pelas grandes contri- buições para a finalização do trabalho. Aos professores da Pós-Graduação da FCL de Assis, em espe- cial dr. João Luís Ceccantini, dr. Odil José de Oliveira Filho, dra Sandra Aparecida Ferreira, pela importância do conhecimento que com eles pude apreender. Aos amigos e colegas de graduação, Pedro, Alexandre, Ana Paula, pelo aprendizado conjunto e pela camaradagem, mesmo dis- tante. E ao pessoal do grupo de literatura: Rafael, Robert, Filipe, por nossas discussões pseudocríticas e pelo bom tempo juntos. Ao Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 11 11/02/2014 06:29:05 12 STANIS DAVID LACOWICZ Juliano, amigo de longa data, com o qual se fomentou o pensa- mento crítico (e chato) e a música. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento da pesquisa de mestrado com bolsas de estudo, possibilitando a dedicação exclusiva ao pro- jeto e a sua conclusão. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 12 11/02/2014 06:29:05 PALAVRAS INICIAIS Partindo de uma noção de discurso como heterogêneo e, con- sequentemente, do pressuposto de que toda obra literária se cons- trói a partir do diálogo entre vários textos, artísticos ou não, que se imbricam no processo de composição, nosso trabalho busca ana- lisar a leitura ou apropriação que dois romances históricos brasi- leiros realizam dos mitos literários hispânicos do pícaro e de Dom Juan. Os romances constituintes de nosso corpus de pesquisa são Galantes memórias e admiráveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes, o Chalaça (1994), de José Roberto Torero, e O feitiço da ilha do Pavão (1997), de João Ubaldo Ribeiro, que serão lidos bus- cando uma aproximação a partir de zonas de confluência, o espaço de apropriação mítico-literária que compartilham. O romance de Torero reescreve situações do Primeiro Império brasileiro e se constrói deslocando a perspectiva para Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, amigo de d. Pedro I, seu secretário par- ticular e de alcova. A personagem histórica do Chalaça deteve grande poder político no Brasil, mas sua imagem foi rejeitada pela historiografia oficial, que o esqueceu ou rebaixou ao mero posto de alcoviteiro real. O romance, por sua vez, parte dessa marginali- zação da personagem efetuada no discurso histórico hegemônico e  “finge” ser os verdadeiros diário e autobiografia de Francisco Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 13 11/02/2014 06:29:05 14 STANIS DAVID LACOWICZ Gomes, utilizando-se do recurso e também mito literário do “ma- nuscrito perdido”, para justificar uma versão apócrifa dos textos. Para fomentar essa mistificação, o romance estabelece uma relação intertextual com o romance picaresco tradicional, engendrando uma série de motivos estruturais e organização textual que paro- diam o relato autobiográfico do pícaro. O romance picaresco, cuja principal característica é a presença do anti-herói pícaro, surgiu na Espanha do século XVI a partir da obra Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, e consolidou-se com os textos Guzmán de Alfarrache, de Mateo Alemán, e Historia de la vida del Buscón, de Quevedo. Com essas obras se estabeleceu o nú- cleo picaresco clássico. Esse gênero pode ser compreendido por meio de um tripé básico, conforme aponta Mario González: a pre- sença do anti-herói pícaro, seu projeto de ascensão social pela tra- paça, a sátira social exposta ao longo desse processo (1994, p.79). A esse tripé deve ser agregado o relato autobiográfico de um indi- víduo às margens da sociedade e que não teria ninguém que lhe narrasse a história, a não ser ele mesmo (González, 1994, p.219). A obra Lazarillo de Tormes é, aliás, evidenciada como parte do arcabouço de leituras da personagem literária do Chalaça, à qual ele recorre como entretenimento em momentos de crise. A relação entre esse romance histórico e a picaresca se dá, então, de texto para texto. De modo similar, a personagem d. Pedro acaba integrando algumas das características geralmente atribuídas ao mito de Dom Juan. Em O feitiço da ilha do Pavão, a incorporação do mito de Dom Juan extrapola o âmbito literário, ou seja, o diálogo vai além do in- tertexto e se alça no imaginário cultural do Ocidente. Esse romance, cuja ação ocorre na imaginária ilha do Pavão, situada no Recôncavo Baiano, no período colonial, efetua uma concentração paródica da sociedade e conflitos dessa época, tendo como mote as tensões sur- gidas pela oposição entre o grupo principal de personagens (e seus ideais de liberdade e igualdade) e as instituições oficiais, como a Igreja e o Estado, que tentam mobilizar uma série de formas de domi nação e opressão. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 14 11/02/2014 06:29:05 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 15 Dom Juan, como se sabe, aparece como personagem literária pela primeira vez na peça teatral El burlador de Sevilla y convidado de piedra, atribuída ao frei Tirso de Molina e situada no barroco espanhol. A personagem já nasce arte e no palco, e, desse modo, a encenação e o mascaramento marcam sua configuração, o jogo de enganos pelo qual ele burla as mulheres e suas famílias. Da perso- nagem literária ao mito, Dom Juan ressurge em uma série de outras obras, tanto em versões conhecidas, como a de Molière, Byron e a ópera de Mozart, quanto em textos de menor valor literário, que redefinem os sentidos da personagem de acordo com os posiciona- mentos ideológicos do autor e da época. Desprendido de qualquer texto literário específico, vagante entre a realidade e a ficção, Dom Juan torna-se um mito literário e cultural. Sua imagem é, assim, resgatável tanto nas esferas eruditas quanto nas populares, defi- nindo-se como um bem espiritual de toda a nossa sociedade. É dessa maneira que ele pode ser visualizado no romance de Ubaldo Ribeiro, uma ideia ou espírito que permeia o imaginário da ilha do Pavão, que se reflete nos desejos e anseios de liberdade das perso- nagens. Tanto Dom Juan quanto a picaresca possuem traços que res- surgem em ambos os romances de nosso corpus. Contudo, em O Chalaça, o relato picaresco (e, em certa medida, o pícaro) se apre- senta com mais força, e, em O feitiço da ilha do Pavão, o mito de Dom Juan é mais representativo. Nosso trabalho priorizará, por- tanto, esse recorte que os próprios textos autorizam, delimitando em cada romance a análise do mito que nele aparece com maior relevo. O ponto inicial que aproxima os dois romances é serem carac- terizados pela crítica como romances históricos contemporâneos. Eles releem a história brasileira por meio de uma perspectiva crí- tica, seja tratando de buscar a alma mítica brasileira a partir da con- jugação de várias culturas, seja para dar espaço a vozes ex-cêntricas, utilizando-se, em geral, de recursos de linguagem, como a carnava- lização, paródia, dialogismo, funcionais para subverter imagens discursivas cristalizadas. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 15 11/02/2014 06:29:05 16 STANIS DAVID LACOWICZ Em combinação com os recursos da carnavalização, da paródia e da intertextualidade, esses romances reiteram os mitos literários do pícaro e de Dom Juan. No caso de nosso trabalho, o mito lite- rário poderia ser encarado, de início, como narrativas compostas em um sistema dinâmico de símbolos, organizadas por vezes em esquemas estruturais e arquétipos. Na literatura, o mito teria um processo semelhante ao do tema, ao mobilizar o relato em torno dele. Contudo, ao passo que o tema seria considerado uma ideia ampla, o mito poderia ser encarado, em algum sentido, como um agrupamento específico de diferentes relações temáticas e, no caso literário, um conjunto de motivos que engendram a construção narrativa. No capítulo “Mito e individualismo”, da obra Mitos do indivi- dualismo moderno, Ian Watt (1997), partindo de Percy S. Cohen em sua fala “Theories of myth”, intenta encontrar o sentido mítico das histórias tratadas em seu estudo, como eles poderiam ser conside- rados mitos. Primeiro, eles certamente trariam algo de simbólico e se relacionam com a estrutura social, algo da própria concepção de Cohen; a ênfase estrutural de Lévi-Strauss também seria aceitável, uma vez que a recorrência de um modelo é verificada na releitura desses mitos, mesmo que para ser superada ou parodiada. A sim- plicidade de suas histórias permite sua modelagem a diferentes contextos, garantindo que eles se apresentem como uma imagem passada, ancorada na tradição, e ao mesmo tempo presente e atuali- zável (Watt, 1997, p.232). A relação com o real é enfatizada, seja por meio de correspondências (o mito para Durkheim ajudaria a descobrir conflitos ocultos da sociedade moderna), seja no sentido de estruturar simbolicamente o mundo. Watt reforça a realidade de fronteira desses mitos literário-culturais, seu caráter ontológico ambíguo, pois não seriam completamente reais ou históricos, ape sar de o público lhes conferir certo grau de realidade (idem, p.233). Eles teriam, desse modo, uma capacidade especial de permanecer na memória e fazer parte de nós; nossa identificação com eles par- tiria do fato de se caracterizarem pela busca por ideais indefinidos e de sucesso incerto, trazendo esse sentido da modernidade como Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 16 11/02/2014 06:29:05 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 17 oposição à perspectiva heroica e épica, referenciando o prosaísmo que marca o momento de surgimento do romance como gênero nar- rativo moderno. A concepção de Watt, pela amplitude, assemelha-se à de Frye: Sendo o mito uma estrutura centrípeta de sentido, podemos fazê- -lo significar um número indefinido de coisas, e é mais frutuoso estudar o que de fato os mitos têm sido levados a significar. O vo- cábulo mito pode ter, e obviamente tem, diferentes sentidos em diferentes matérias. Esses sentidos são conciliáveis com o correr do tempo, mas a tarefa de conciliá-los está no futuro. Em crítica literária, mito significa em última análise mythos, um princípio organizador estrutural da forma literária. (Frye, 1973, p.333) O mito é encarado como uma estrutura agregadora de signifi- cados, que lhe são atribuídos no decorrer do tempo e segundo o contexto da apropriação. Para a literatura, sobretudo, o mito ser- viria como princípio organizador, da matéria narrada e da perspec- tiva estético-filosófica construída pelo texto. No caso de nosso trabalho, o mito literário seria também o que a literatura trans- formou em mito, seja a partir de um modelo representacional da sociedade ou do comportamento humano, convertido em matéria literária. Com relação à organização estrutural de nosso trabalho, no primeiro capítulo, intitulado “O jogo de máscaras do Chalaça”, fo- calizaremos o romance de José Roberto Torero, Galantes memórias e admiráveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes, o Chalaça (1994), e seu diálogo com a picaresca espanhola, em especial com o Lazarillo de Tormes. Aqui, trataremos de como o jogo de máscaras picaresco, reiterado n’O Chalaça a partir do encadeamento de ní- veis e vozes narrativas, propicia a discussão sobre a recriação histó- rica pela linguagem. Efetua-se, assim, certa aproximação entre os períodos da Espanha de Lázaro e o Brasil Império, visualizando suas condições sócio-históricas como equivalentes ou semelhantes (Guillén apud González, 1994, p.14). No Brasil, em vista de um Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 17 11/02/2014 06:29:05 18 STANIS DAVID LACOWICZ modo de produção escravista, percebem-se semelhantes dificul- dades para o desenvolvimento de uma classe média, além de uma economia que dificultava o enriquecimento pelo trabalho e a ascen- são social. Grosso modo, tais fatores referem-se à disparidade entre os ideais burgueses/liberais, importados da Europa, e a realidade so cial brasileira, calcada na escravidão e dividida, basicamente, en- tre latifundiários, escravos e homens livres, estes dependentes dos primeiros por relações de favor (Schwartz, 2000, p.12-8). Assi na- lare mos no romance de Torero, igualmente, motivos estruturais e composicionais característicos do Lazarillo que são apropriados pela narrativa d’O Chalaça, tais quais o processo de ascensão social, o pendor autobiográfico, a construção discursiva da aparência de homem de bem e a ironia em torno da própria escritura. O mito do pícaro surge nesse romance, como mostraremos, por meio da re- cor rência de uma estrutura narrativa, o relato picaresco, e de sig- ni fi cados na configuração da personagem/narrador de Francisco Gomes da Silva. No segundo capítulo, “A ilha como palco”, procederemos à análise do romance O feitiço da ilha do Pavão, a partir da leitura que nele se realiza do mito de Dom Juan. Esse mito se enleia com o próprio mito da ilha do Pavão, que emerge enquanto espaço entre o fictício e o real. Esse local, que estaria fixado no imaginário po- pular do recôncavo, reacende desejos e, com seus laços de sedução, busca envolver o leitor para que ele, relativizando-se no tempo e na própria identidade, consiga ultrapassar as imensas escarpas e rede- moinhos que guardam a ilha e aporte em suas praias. Desse modo, a ilha do Pavão se constrói como um paraíso edênico e de cons- tituição social utópica, no qual se percebe um diálogo tanto com A utopia, de Thomas Morus, quanto com as narrativas do real ma- ravilhoso e do realismo mágico. Os eventos narrativos se encadeiam a partir de tensões, em especial entre dominantes e dominados, aqueles promovendo opressão e esses ansiando por manter a liber- dade que a ilha propicia. Dom Juan surge, então, como afronta às regras da sociedade, criticando o jogo de aparências que rege as re- lações sociais. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 18 11/02/2014 06:29:05 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 19 Por fim, no terceiro capítulo, intitulado “Confluências (mito e carnaval): a diluição das fronteiras em O Chalaça e O feitiço da ilha do Pavão”, buscaremos aproximar os romances de nosso corpus. Primeiro, apontaremos rapidamente para a construção dessas obras enquanto romances históricos contemporâneos, promovendo um processo de releitura crítica da história. Conforme analisaremos na sequência, essa releitura se dá principalmente por meio da carnava- lização, que se alia à metaficção no sentido de romper com imagens cristalizadas acerca da história, do discurso literário e da própria representação da realidade pela linguagem. Tanto a carnavalização como a metaficção são recursos que projetam o leitor no texto e in- serem a obra em uma zona de fronteira tal qual a do mito, entre a ficção e a realidade. Depois, procederemos a leituras cruzadas dos mitos nos romances, ou seja, tratando de Dom Juan n’O Chalaça e da picaresca n’O feitiço da ilha do Pavão. Desse modo, elencaremos elementos primordiais na configuração discursiva de tais obras que fomentam a releitura dos mitos hispânicos e os integram ao propó- sito desses romances. Em seguida, aproximaremos os mitos de Dom Juan e do pí- caro, tanto em seu contexto de surgimento, o barroco espanhol, quanto no período do romantismo. Essa aproximação visa entrever como e quais pontos de contato entre os mitos são perceptíveis nos dois romances e funcionam de modo a relacioná-los. Por fim, re- meteremos à relação que as duas obras estabelecem com elementos do romantismo, como a vingança e a viagem, e como eles se rela- cionam com os dois mitos aqui trabalhados. A construção de nosso estudo se deu, inicialmente, a partir da leitura dos romances em questão, à luz das teorias do romance histórico e da narratologia, procedendo a um estudo formal das obras. A pesquisa bibliográfica que guiou nosso trabalho envol- veu também questões relacionadas à metaficção, à picaresca e ao mito de Dom Juan, conjugados no desenvolvimento de um traba- lho comparado. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 19 11/02/2014 06:29:05 Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 20 11/02/2014 06:29:05 1 O JOGO DE MÁSCARAS DO CHALAÇA O homem culminante do Primeiro Reinado não foi José Bonifácio. Também não foi o Marquês de Barba- cena. O homem culminante do Primeiro Reinado foi o Chalaça. Ninguém conseguiu no Império, durante aque les nove anos desordenados, uma influência tão alta e decisiva. D. Pedro teve para com esse grotesco dizedor de piadas, para com esse seu disparatadíssimo amigo, umas ternuras imperdoáveis. O Chalaça fasci- nou-o. Foi o seu fraco. Foi, talvez, a única afeição certa daquele incerto Bragança [...]. Setúbal, 1947, p.118 Em 1927, o escritor Paulo Setúbal apresentava As maluquices do imperador, romance histórico construído como um conjunto de crônicas voltadas à ficcionalização de fatos concernentes ao nasci- mento do Império do Brasil, ligados à personagem de d. Pedro I. A focalização adotada pelo narrador era explicitamente a do homem de sua época, debruçado sobre uma variedade de obras acerca do período a ser resgatado, muitas escritas por aqueles que o viven- ciaram. Dedicava-se a apresentar os eventos da história, tanto os amplamente conhecidos quanto os levemente apagados, desde a Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 21 11/02/2014 06:29:05 22 STANIS DAVID LACOWICZ chegada da família real portuguesa ao Brasil (1808) até a morte de d. Pedro (1834), narrando o desenvolvimento de questões políticas da nação, bem como aspectos da vida privada que acabavam inevi- tavelmente influenciando a atmosfera oficial. De um modo ou de outro, o texto parecia ter como objetivo ensinar história, ao trazer os eventos de acordo com a historiografia oficial, estabelecendo uma espécie de referência brasileira no que tange aos romances his- tóricos ligados a uma vertente mais tradicional. Além disso, essa obra decorre, pela recorrência temática e devido ao sucesso edito- rial, de outro romance de Setúbal, A marquesa de Santos, de 1925, no qual narra a história de Domitila de Castro Canto e Melo, que viria a se tornar amante “oficial” de d. Pedro, agraciada com o tí- tulo de marquesa em 1826. Em As maluquices do imperador, no en- tanto, como aponta Esteves (2010, p.7), apesar do tom oficialista dos romances de Setúbal, “a popularização e até mesmo a banali- zação da vida privada do primeiro imperador do Brasil ajudavam a dessacralizar os protagonistas da história oficial, humanizando-os e trazendo-os para mais perto da população”. A despeito das questões ligadas à recepção ou à qualidade desse romance, sendo inegável tanto o sucesso com o público quanto a habilidade da escritura, destaca-se ao longo d’As maluquices do im- perador a referência a uma personagem já apontada na obra anterior de Setúbal, mas aqui realizada de tal modo que causaria certo estra- nhamento pelo relevo que teria desempenhado ao lado de d. Pedro. Trata-se de Francisco Gomes da Silva, conhecido como o Chalaça, cuja existência, praticamente esquecida dos manuais e livros esco- lares, e rechaçada do discurso oficial da história, é retomada no texto de Setúbal, o qual lhe dedica um capítulo e reconhece a força política que ele havia adquirido no Brasil. Alguns anos mais tarde, na década de 1990, alguém decide pintar com novas tintas o “renegado” personagem, mas em vez de descrever alguns dos fatos de sua vida pela ótica heterodiegética (Genette, 1979, p.244), de fora e como coadjuvante, resolve adotar um procedimento diferente com os escritos historiográficos. José Roberto Torero, em seu livro de estreia, “dá voz” ao amigo do im- Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 22 11/02/2014 06:29:05 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 23 perador d. Pedro I. Surgem, assim, as Galantes memórias e admirá- veis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes, o Chalaça, romance vencedor do prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, como livro do ano de ficção, em 1995.1 Ocorre, assim, uma alteração no que diz respeito ao “modo” da narrativa, sua focalização e perspec- tiva, estabelecendo na narrativa uma voz autodiegética (idem, p.244), pela qual o protagonista conta sua própria história. Além disso, pelo fato de o romance se apresentar em sua maior parte como um diário, faz-se mais tangível a diferença na distância entre o tempo da narração (tempo da enunciação) e o tempo da história narrada (ou da narrativa, tempo do enunciado), ou seja, entre os acontecimentos e seu registro pelo narrador, que nesse caso seria bastante próxima. Desse modo, eventos são reconstruídos pela lin- guagem a partir de tal motivação estrutural, garantindo certa auto- nomia à obra literária em relação aos discursos oficiais ou ordinários acerca de tais acontecimentos. Além disso, transforma personagens históricos em personagens literários, garantindo-lhes outra exis- tência, apesar da confluência de sentidos entre elas. Sendo uma narrativa autodiegética, o eixo principal do ro- mance acompanha Francisco Gomes da Silva, amigo próximo que desenvolve uma relação de vassalagem para com aquele que foi o primeiro imperador do Brasil. Pelo modo como se conjuga a estru- tura da narrativa desse romance a partir do relato autobiográfico, pelas múltiplas vozes que se articulam no texto e pela recorrência de certos motivos (como a vassalagem a um amo, a reivindicação de seu espaço em um ambiente discursivo que lhe é proibido), pode-se afirmar que o romance d’O Chalaça estabelece um diálogo inter- textual com a picaresca espanhola, especialmente com o Lazarillo de Tormes. Nesse sentido, nossa análise do romance de Torero irá privilegiar como esse diálogo ocorre, enquanto paralelo de con- teúdos e principalmente por meio da organização formal do texto. 1. De acordo com o site da Câmara Brasileira do Livro, disponível em . Acesso em 9/9/2011. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 23 11/02/2014 06:29:05 24 STANIS DAVID LACOWICZ Alguns elementos do enredo, por sua vez, já indicam essa aproxi- mação, que intentamos fazer emersa. No início da obra, nosso “herói” se encontra na França, por volta de 1833, ainda vinculado a d. Pedro por uma bolsa anual que recebia dele. Impedido de dar o “golpe do baú” em uma senhora da alta sociedade francesa, aceita o pedido de seu amo para voltar a Portugal, de onde se distanciara devido à guerra que acometia o país, mas que agora parecia inclinar-se para um destino favorável. Enfrentavam-se, naquele conflito, os que apoiavam d. Pe dro, cons- titucionalistas, e os que apoiavam seu irmão d. Miguel, absolutista tido como o usurpador do trono que pertenceria à filha daquele, Maria da Glória. Isso ocorrera após a morte de d. João VI, a co- roação de d. Pedro como rei de Portugal e a consequente abdicação deste em prol da filha, pelo fato de não lhe ser permitido repre- sentar duas coroas. Era esperado que d. Miguel se casasse com a pequena rainha Maria da Glória, mas, em vez disso, resolveu dar o golpe de Estado. Com a vitória de d. Pedro em algumas batalhas e por seus planos de casamento ou herança terem malogrado, o Cha- laça retorna a Portugal e, reencontrando amigos e lugares de seu passa do, passa a rememorar sua origem e juventude, surgida nesse momento inicial do romance por meio de fragmentos inseridos na narração. Conta, então, que era filho ilegítimo do visconde de Vila Nova da Rainha, a quem sua mãe se entregara almejando o casamento com o nobre, que, no entanto, opta por uma condessa para contrair núpcias. Ainda assim, a mulher consegue o amparo do visconde, que lhe arranja um marido, Antonio Gomes da Silva, oito mil cru- zados e se encarrega da instrução do filho (Torero, 1994, p.35). O momento seguinte retratado de sua vida é a juventude no Semi- nário de Santarém, onde entra em contato com a cultura erudita (idem, p.37). Não muito depois, em 1808, com 18 anos e próximo de receber ordens sacerdotais, recebe carta de seu pai biológico alertando-o para fugir, pois as tropas napoleônicas estavam inva- dindo o país. Presencia, então, o caos em que se encontrava o porto naquele dia em que a corte portuguesa embarcou para o Brasil Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 24 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 25 (ibidem, p.44). Um dos temas da picaresca já se apresenta aqui: a ideia de unir-se aos homens de bem (os nobres), agregar-se a eles para, parecendo, tornar-se um deles; atitude que se reflete na vas- salagem a d. Pedro e, além disso, aparece como herança familiar, aprendida pelo Chalaça com sua mãe. Esses procedimentos ser- viriam, portanto, à ascensão social, que na picaresca e para a perso- nagem de Francisco Gomes não é apenas a manutenção financeira, mas agregar símbolos que os liguem à nobreza, como comporta- mento, vestimenta e, quando possível, títulos. Essa parte inicial do romance alcança o capítulo 15, no qual o Chalaça discute a possibilidade de escrever sua história de modo mais sistemático, especialmente os eventos que o levaram a sua atual posição social. Desse modo, a partir do capítulo 16, começa a apresentar a narrativa de suas histórias, o seu passado, paralela- mente ao que é relatado no diário, os eventos contemporâneos à es- critura. Apresenta, de início, como conhecera d. Pedro em um bar, sendo que, no capítulo seguinte dessa suposta autobiografia, res- gata a sua função junto ao então príncipe, como seu secretário pes- soal e de alcova (Torero, 1994, cap.18, p.65). Relata também sua vida particular, seus relacionamentos casuais e os benefícios de frequen tar a corte e estar próximo da realeza, além das regalias so- ciais que lhe eram proporcionadas (Torero, 1994, cap.21, 23, p.74-6, 82-4). A consistência do romance, bem como o modo como a história surge, depende, sobretudo, da estrutura adotada, no caso interca- lando as duas linhas narrativas. A organização dos textos se dá como se atendesse ao tempo da enunciação, ou seja, estariam apre- sentadas segundo a ordem em que foram escritas, o que também auxilia em certo diálogo entre elas; o narrador de cada uma das nar- rativas fala a partir do mesmo local e tempo de enunciação, durante o período em que escreve seu diário, ele também está escrevendo sua autobiografia. Os dois tipos de textos focalizam, entretanto, épocas diversas que eventualmente se integram, ao final do ro- mance, quando são renarrados na biografia eventos do início da obra. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 25 11/02/2014 06:29:06 26 STANIS DAVID LACOWICZ Contabilizando: dos 63 capítulos do romance, quarenta re- ferem-se a um diário apócrifo do Chalaça, que apresenta eventos ocorridos por volta de 1833-1834, e dá início ao romance; 19 con- sistem na autobiografia, também apócrifa do mesmo Chalaça, que retoma eventos de 1808 até 1834, e é iniciada ao longo do texto (ca- pítulos 16, 18, 21, 23, 26, 28, 30, 32, 34, 36, 38, 40, 42, 44, 46, 48, 50, 52 e 58); e os quatro últimos capítulos tratam de correspondên- cias, nas quais se comenta o destino das personagens (duas das cartas escritas pelos seus dois amigos, João Carlota e Rocha Pinto, outras duas escritas por Francisco Gomes). Na apresentação a se- guir optamos, para fins didáticos, por tratar separadamente a ma- téria narrada em cada tipo de texto, apresentando primeiramente o diário, depois a autobiografia e em seguida as cartas. Na narrativa do diário, logo após o início da autobiografia, ou seja, a partir do capítulo 17, fala-se das reuniões de guerra e, de- pois, da vinda a Portugal de dona Maria e de dona Amélia, respec- ti va mente a filha e a esposa de d. Pedro, agora duque de Bragança, sendo narrada também a festa de recepção para as duas. O Chalaça escreve sobre suas investidas amorosas, o agravamento da saúde de d. Pedro e o receio de que ele morresse e Caetano Gamito ascen- desse politicamente, pois, sendo secreto opositor da monarquia, seria, claramente, contrário ao grupo do Chalaça, agregados do re- gime. A guerra civil pende para a derrota de d. Miguel e consolida- -se aos poucos a ideia de que Gamito ansiava por afastar d. Pedro do governo, bem como, se ele morresse, desposar dona Amélia. Sugere-se também certa atração do Chalaça por ela e chega-se, enfim, ao término da guerra civil, o que nos indica se tratar do ano de 1834. Depoi s, aumenta o receio de Francisco Gomes e seus co- legas em relação a mudanças políticas que poderiam advir com a morte de d. Pedro, o qual, mesmo com a vitória, decide por um ar- mistício com seu irmão, o que desagrada o povo. Em sua ida ao teatro, a indig nação dos populares se faz mais evidente e, ao dis- cursar, ele acaba se enfurecendo e passa mal. Piora sua saúde e, certo da morte próxima, d. Pedro pede para que o Chalaça e Amélia selem a amizade em sua memória. Com o falecimento do rei, os Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 26 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 27 receios por parte de Francisco Gomes sobre seu futuro no paço au- mentam, principalmente quando se fazem mais claras as intenções de Gamito para com dona Amélia e seu anseio de afastar Francisco Gomes do governo. Esse, no entanto, descobre com Dedé, uma das garotas de uma requintada casa de meretrício, um segredo de seu inimigo, qual seja, que ele era pai da filha dela. O Chalaça planeja, então, que isso seja revelado na festa oferecida por Rocha Pinto em homenagem a d. Pedro; quando Caetano Gamito ia pedir em público a mão da viúva de d. Pedro, Dedé surge no local e o inter- rompe, trazendo consigo a filha de ambos, tornando público o se- gredo. O acontecimento mancha a imagem do homem, encerrando, portanto, suas chances com dona Amélia. Aqui termina o diário. No que tange à autobiografia, O Chalaça retoma o período de sua estadia no Brasil, iniciado em 1808, e relata sua proximidade com o então príncipe, angariada em festas e por intermediar suas aventuras sexuais. Os eventos que narra englobam ao longo dos ca- pítulos, por exemplo, uma importante viagem do príncipe e sua comitiva a São Paulo, para averiguar um possível levante contra o governo e apaziguar humores exaltados. Lá, d. Pedro conhece Do- mitila de Castro Canto e Melo, que viria a se tornar sua amante favorita. A comitiva resolve descer a Santos para visitar parentes de José Bonifácio e revisar algumas fortificações. Na volta, além de sofrer problemas intestinais, Pedro recebe uma carta das cortes de Lisboa destituindo-o do posto de príncipe regente e ameaçando- -o, fator que faz com que proclame a independência do Brasil (To- rero, 1994, cap.30, p.106). Nos capítulos seguintes da autobiografia são narrados os even tos ligados à convocação da Assembleia Constituinte para o novo país, bem como sua subsequente dissolução pelo imperador, alegando que desejavam limitar seus poderes políticos. Tropas são mandadas para destituir os líderes da Assembleia e, em seguida, o Chalaça é incumbido de redigir a nova Constituição, baseada em modelos europeus. Os textos da autobiografia apresentam ainda: o casamento do Chalaça com a cigana Marianinha, obrigado que fora Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 27 11/02/2014 06:29:06 28 STANIS DAVID LACOWICZ pelos pais dela por ter engravidado a moça; os receios dos brasi- leiros em voltar à condição colonial pelo fato de o imperador ser português e viver cercado de homens da mesma origem; o nasci- mento da filha de d. Pedro com Domitila de Castro e a morte da imperatriz d. Leopoldina, primeira esposa do imperador (Torero, 1994, cap.40, 42, p.142-5, 149-50). Começava a busca, então, por uma nova imperatriz, projeto ao qual passa a se dedicar o marquês de Barbacena, a fim de se redimir ante o imperador (capítulos 44 e 46). Ele consegue arranjar a futura mulher de d. Pedro, e com a chegada dela e auxílio do marquês, o Chalaça é “expulso” do Brasil (capítulos 48, 50, 52). Em seguida, mostra-se como ele vinga-se do marquês de Barbacena, descobrindo excessos de gastos de dinheiro da Coroa e superfaturamento das notas, quando em sua passagem pela Europa para negociar a boda imperial. Por fim, em cartas, expõe-se o destino de cada um dos personagens, especialmente do protagonista, que sugere ter-se casado com a viúva de d. Pedro e com ela esperar um filho. Ao compor-se enquanto narrativa de extração histórica, o ro- mance entrecruza fatos ficcionais e históricos, mesclando em um mesmo evento a faceta documentável e a ficcional. Isso pode ocor- rer pela opção de uma perspectiva diferente daquela tomada pela historiografia, privilegiando uma visão carnavalizada dos aconte ci- mentos, pela omissão de determinados períodos ou direcionando-se segundo uma interpretação particular de determinadas situações, explorando lacunas e opiniões sobre como se deu esse ou aquele evento. Tais possibilidades se desenvolvem pelo tratamento legado ao material histórico por meio da construção textual, ou seja, a forma atuando significativamente no romance, e também pela ten- são que é criada com relação ao discurso histórico oficial, consti- tuído como intertexto. Voltaremos ainda a essa ques tão ao longo do texto, sendo antes necessário ter-se mais claro o funcionamento do romance. Em O Chalaça, percebe-se a presença de personagens cuja existência é facilmente verificável em documentos ou livros de his- tória, que interagem com seres surgidos pela criação ficcional. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 28 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 29 Desse modo, a própria recriação de Francisco Gomes, d. Pedro e família, o marquês de Barbacena, a marquesa de Santos, dentre vá- rios outros personagens históricos, se confunde com a criação de personagens como Lady Bloomfield, dona do prostíbulo de luxo, a baronesa de Lyon, o mendigo da “Bestofilosofia”, ou mesmo João Carlota, amigo do Chalaça, e outros tantos que, mesmo sem corre- latos históricos diretos, servem para preencher a representação das camadas sociais da época, expressando também a articulação desse narrador por entre elas. Colocando lado a lado personagens de pro- cedência tão variada, o romance sugere o posicionamento crítico acerca da recriação ficcional de personagens históricos, bem como dos eventos que eles encenam, demonstrando o jogo dialógico de toda construção discursiva. Expõe por meio da literatura questões que se estendem a diversas outras formas de linguagem, apon- tando, inclusive, para a problemática pós-moderna da impossibi- lidade de reconstrução do passado que não seja pela via textual, pois “só conhecemos o passado (que de fato existiu) por meio de seus vestígios textualizados” (Hutcheon, 1991, p.157). Aqui, entra em pauta o problema da confusão que frequente- mente causam personagens de extração histórica, ou seja, cujos nomes e caracteres correlacionam-se a seres de existência factual e documentada. Sua reconstrução pela linguagem, contudo, obedece aos princípios da ficção, embora muitas vezes se considere também o documento. Criam-se modelos de “tinta e papel” a partir de uma pretensa realidade, cujo sentido acaba sendo virtual, porque cons- truído a partir dos textos que se põem a registrar seus movimentos. Grosso modo, a personagem literária Francisco Gomes é “real” em sua existência dentro do universo diegético do romance e das re- lações intertextuais que esse estabelece com diversos outros pro- dutos de linguagem, dentre os quais se destacaria o historiográfico, por sua proeminência em nossa sociedade, seu caráter científico, bem como pelo evidente resgate histórico dessa obra. As corres- pondências entre as personagens do romance e as dos livros de his- tória são mantidas na medida em que a literatura buscaria fazer crer, criando pactos de verossimilhança, criando modelos do Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 29 11/02/2014 06:29:06 30 STANIS DAVID LACOWICZ mundo real, versões ficcionais de personagens históricos; mas, ainda assim, mantendo-se a diferença essencial entre personagem literário e personagem histórico. A literatura dá, nesse caso, ilusão de um real, a despeito do também caráter ficcional dos discursos historiográficos, inerente à sua natureza narrativa, conforme vem sendo discutido por historiadores e teóricos nos últimos tempos. Como aponta Mário Vargas Llosa, a constituição da ficcionali- dade não ocorre pelo enredo, mas pela forma particular usada pela literatura na conversão de fato em linguagem, quando mesmo a ex- periência se processa acompanhada pelas palavras, cercada pelos discursos que lhe determinam os caminhos. Porque no es la anécdota lo que decide la verdad o la mentira de una ficción. Sino que ella sea escrita, no vivida, que esté hecha de palabras y no de experiencias concretas. Al traducirse en len- guaje, al ser contados, los hechos sufren una profunda modifica- ción [...] lo que describe se convierte en lo descrito.2 (Vargas Llosa, 2002, p.18, grifo do autor) As palavras de Vargas Llosa se enleiam na problematização pós-moderna acerca da recriação historiográfica como também fic- cional e, no nosso caso, servem para ressaltar que a releitura das personagens e eventos históricos já se faz parcial no momento em que se torna linguagem verbal. A premissa do romance d’O Chalaça, construído como um texto híbrido de história e ficção, articula-se por esta problemática: é apresentado no prefácio (na verdade, a imagem de um prefácio, pois que já inserida no universo ficcional romanesco) que a obra reproduz documentos históricos, estimados pela comunidade his- 2. “Porque não é o enredo que decide a verdade ou a mentira em uma obra de ficção. Senão que ela seja escrita, não vivida, que seja feita de palavras, e não de experiências concretas. Ao traduzirem-se em linguagem, ao serem contados, os fatos sofrem uma profunda modificação [...] o que descreve se converte no descrito.” Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 30 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 31 toriadora, e desse modo encontrados por um José Roberto Torero que se inclui nesse grupo enquanto pesquisador que, então, conse- guiu trazer à luz os textos de Francisco Gomes da Silva, como se coloca na capa do romance. Quem fala no prefácio é um narrador que se faz passar por his- toriador, uma espécie de alter ego do escritor, que relata sua traje- tória em busca dos documentos. Expõe que o plano de pesquisa inicial objetivava os documentos da filha do Chalaça, A. Francisca Stevenson, que havia se casado com um banqueiro e vivera nos Es- tados Unidos. A distância teria sido, então, um dos motivos que impossibilitaram a busca, além da negativa de uma bolsa de es- tudos, tratando ironicamente sobre o mundo acadêmico ou sobre a relativa confiabilidade de tal pesquisador. Os papéis que apresenta, ele os consegue, segundo afirma, com a tataraneta do filho bastardo de Francisco Gomes, no Brasil, tendo, no entanto, de pagar por eles, já que “a tetraneta do famoso Chalaça não cedeu gratuita- mente os papéis para o bem da História” (Torero, 1994, p.10). Esse Torero, apócrifo, alter ego do autor, seria, então, uma espécie de editor, visível no prefácio e em notas de rodapé ao longo da obra, e se encontraria em um nível extradiegético em relação à narrativa de Francisco Gomes, ou seja, fora da diegese. Tudo isso pertence, no entanto, ao âmbito ficcional, pois “não se confundirá o carácter ex- tradiegético com a existência histórica real, nem o carácter diegé- tico (ou mesmo metadiegético) com a ficção”, como é colocado por Genette (1979, p.228) sobre os níveis narrativos possíveis em uma obra. Nesse processo de mise en abyme, são discutidas mistificações de tópicos como o do “documento perdido/encontrado” e a propo- sital equiparação entre aquele que seria o escritor, pessoa física, e uma projeção sua no âmbito literário, duplicação fomentada pela igualdade no nome (levando em consideração que a mistificação também atinge a capa do romance, pois o “prefácio” é assinado como “O Autor”). Isso parece funcionar, além de gatilho para ve- rossimilhança, como motivo estruturador do texto, força-motriz Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 31 11/02/2014 06:29:06 32 STANIS DAVID LACOWICZ que guia a composição e se relaciona intimamente com o modo pelo qual a personagem Francisco Gomes dá a conhecer sua história e, concomitantemente, a história de d. Pedro e do Brasil daquele pe- ríodo. A ideia do manuscrito perdido dá-lhe também uma razão de ser, expondo como tais textos pretensamente históricos, e bastante pessoais, poderiam ter emergido em uma obra publicada. Os es- critos de Francisco Gomes da Silva, certamente funcionais en- quanto meio da narrativa, podem também ser considerados na possibilidade apontada por Genette acerca do diário como “ele- mento de intriga”, aceitável caso se considerem os documentos em sua condição de “manuscrito perdido” que movimenta a busca de historiadores, ideia transformada em um tópico da literatura (Eco, 1985, p.30), um mito literário recorrente em diversas literaturas. A busca dos textos do Chalaça se dá em um nível superior ao diegé- tico em que os documentos, uma vez encontrados, congregariam sua própria existência enquanto textos divulgados, obra publicada, só assim passível de ser lida pelo público ordinário. Há, portanto, uma diferença ontológica entre ambos os Torero, entre autor e narrador, mas cuja mescla é funcional para o desen- volvimento da leitura. Isto porque a “situação narrativa de ficção não se reduz nunca à sua situação de escrita” (Genette, 1979, p.213), o que não se dá apenas pelos conflitos de dados biográficos, mas pela clara inserção que se faz no universo romanesco de José Roberto Torero enquanto personagem de ficção, pesquisador e também trapaceiro em certa medida, pois admite inclusive a possi- bilidade de fraude nos textos. Ainda assim, ele possui existência fixada no romance, diferente de todo o caráter histórico e físico do autor José Roberto Torero, que “nasceu em Santos no dia 9 de ou- tubro de 1963, uma quarta-feira. Formou-se em Letras e Jorna- lismo pela USP. Cursou mas não acabou a graduação em cinema e, depois, coerentemente, cursou e, não acabou, sua pós-graduação em roteiro”. Escritor, jornalista e roteirista para cinema e televisão, Torero possui diversos outros romances, como o Terra Papagalli, que também bebe nas águas da história brasileira, escrito em par- Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 32 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 33 ceria com Marcus Aurelius Pimenta, e se dedica avidamente a crô- nicas e colunas esportivas.3 As questões apontadas sobre o romance indicam de início um jogo de níveis narrativos pelo qual se constitui a obra, um jogo de máscaras tipicamente anti-heroico e que também permite, como afirma Umberto Eco, que o que é dito o seja por alguém autori- zado, alguém da época e que tivesse vivenciado os acontecimentos, “protegendo” a verossimilhança a partir de níveis de encaixe narra- tivo (Eco, 1985, p.9-20). Apresentam-se, por meio desse recurso, camadas pelas quais o autor vai, mesmo que apenas em aparência, distanciando-se da matéria narrada: traveste-se de pesquisador de raridades históricas, criando um pacto de leitura com o leitor pelo qual a obra deve ser lida como os documentos de Francisco Gomes, dispersos em outras máscaras, a da autobiografia, a do diário e a das correspondências. Com relação a tal perspectiva, entra-se em con- fronto com a possibilidade expressa no “prefácio” de fraude nos documentos, explicitando pela metalinguagem o dialogismo ine- rente ao romance: Por questões éticas e exigência do editor, devo advertir que pairam dúvidas sobre a autenticidade destes papéis. O professor Emanuel Rodrigues, da Faculdade de Letras de Lisboa, afirma que o voca- bulário do diário traz expressões pouco frequentes nos textos da época em que pretensamente teria sido escrito, e o professor Segis- mundo Rocha, da Faculdade de História do Porto, notou alguns equívocos de datas e nomes. Porém, creio firmemente que a natu- reza informal que se imprime a um diário possa explicar a colo- quialidade e os eventuais erros históricos do texto. (Torero, 1994, p.10) 3. De acordo com o blog e o site do autor: e . Acesso em 9/9/2011. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 33 11/02/2014 06:29:06 34 STANIS DAVID LACOWICZ Ao possibilitar a confusão entre o autor real José Roberto To- rero e seu correlato ficcional, bem como a ambiguidade na forma de se ler os documentos que é sugerida mesmo dentro do universo da ficção, o romance põe em cena a atitude trapaceira de sua compo- sição, da qual nem mesmo os agradecimentos do romance são pou- pados: “Agradeço ao meu amigo Marcus Aurelius Pimenta, autor de tantos palpites e sugestões que, fosse eu honesto, lhe creditaria metade dessa obra” (Torero, 1994, p.7, grifo nosso). Desse modo, pode-se inferir que a personagem que buscou por esses textos seria apenas um caçador de “documentos” perdidos, que teve de pagar por eles, mas que espera “recuperar ao menos em parte com a pu- blicação do livro” (Torero, 1994, p.10). Surge, portanto, como um narrador-editor: Um dos papéis do editor é ser o responsável pela organização de um certo conjunto de textos. Normalmente, o editor expõe as ra- zões da publicação em um prólogo, que funciona, então, como ins- trumento de persuasão, à medida que pretende estabelecer com o leitor um jogo de verossimilhança. (Santos & Oliveira, 2001, p.34, grifo nosso) Essa caracterização serve ao romance de Torero, sendo que tal editor possibilita uma “[...] voz independente do enredo, uma re- flexão que pode constituir uma outra história [...]” (Santos & Oli- veira, 2001, p.35), questão confirmada nos comentários que o narrador Torero faz ao longo do texto por meio de notas de rodapé. O narrador-editor possibilita o desenvolvimento de uma linha nar- rativa metaficcional, paralela ao enredo, na qual a relação com o leitor é enfatizada. O pretenso prefácio funcionaria, então, como instrumento de persuasão para manipular a recepção do texto. Desse modo, o posicionamento desse narrador extradiegético cor- robora a criação de zonas ambíguas no romance a serem desbra- vadas pelo leitor. Por meio dessas zonas destila-se a ironia em torno do processo de reconstrução narrativa da história, atuando em prol Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 34 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 35 da “necessidade de problematizar, em uma história que se conta, a ação de narrar e o sujeito narrador” (Santos & Oliveira, 2001, p.36). A personagem histórica do Chalaça, apesar de todo o prestígio conseguido no Brasil Império, teve muito do seu sucesso e apelo por acompanhar o membro da família real por entre situações tidas como pouco edificantes, como festejos em bares e bordéis. Este teria sido o possível motivo de ter-se obliterado sua imagem dos registros oficiais, repelido como mero alcoviteiro por receio de que manchasse as construções heroicas pretendidas nos discursos, apesar de ele ter sido detentor de vasta cultura e grande conhecedor de línguas. O romance de Torero apodera-se dessa imagem do Francisco Gomes da Silva histórico como personagem às margens dos discursos hegemônicos e põe em marcha um suposto processo de escritura engendrado por si próprio, projetando um aspecto da história no âmbito da ficção. Nesse intento subjaz sua reinserção nos grandes eventos da história, dos quais fora deixado de lado, movimento de reafirmação que se dá pela via textual, visando a enobrecer sua figura e possibilitando diferentes perspectivas, por baixo e por dentro, de eventos amplamente conhecidos da história brasileira. O jogo de máscaras que se configura na narrativa d’O Chalaça se dá a partir do encaixe de níveis narrativos e da conjugação de dife rentes vozes narrativas, administradas ao longo do texto a partir do diário, da autobiografia, das cartas e do prefácio (que nas obras picarescas é sempre “fingido”, ambíguo). Esse jogo é um dos prin- cipais componentes que permite aproximar o romance de Torero da picaresca espanhola clássica, pois ele se dá de maneira muito se- melhante ao Lazarillo de Tormes, obra inaugural do gênero, no qual as máscaras envolvem o fingimento inerente à trajetória do pícaro e seu processo de usurpação de identidades fingindo ser algo que ele não é: um nobre. O fingimento que distingue a picaresca, portanto, baseia-se em um jogo de máscaras projetado na estrutura narrativa como um todo, principalmente na formatação do narrador, o que se relaciona à proposital confusão entre esse narrador e o autor real. A narrativa Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 35 11/02/2014 06:29:06 36 STANIS DAVID LACOWICZ de Lazarillo de Tormes constrói-se sob a motivação de ser uma cor- respondência/resposta à solicitação sobre a situação presente do protagonista Lázaro (a partir de onde escreve, a situação de enun- ciação), cuja justificativa é dada por meio de seu relato autobiográ- fico. Essa é a motivação interna do texto, e que é explicitada logo após o prólogo, dando à obra Lazarillo um caráter confessional. Sua trajetória deveria, portanto, servir para justificar o seu atual lugar na sociedade e defendê-lo da desconfiança de um “triângulo amoroso” entre ele, sua mulher e o Arcipreste que lhes arranjou o casamento, além de conceder benefícios ao casal e ter a esposa de Lázaro lhe fazendo serviços de índole questionável. Ao instalar esse motivo no início e no final da obra, faz-se dela uma espécie de jogo, em que se defenderá a honra e ironicamente, por meio da nar- ração do trajeto de Lázaro, culminará em denunciá-la como uma mera aparência que se conquista mediante o dinheiro. Desse modo, Lázaro narra sua história com um objetivo claro de ter um bene- fício com isso, no caso, não ter seu matrimônio associado a uma si- tuação desonrosa. Seu discurso apresenta um esmero na construção da imagem de homem de bem: “a preocupação com o discurso bem elaborado e com caráter de verdade é uma constante nas obras pica- rescas”, já que a escritura é tida como uma forma elevada de resis- tência e luta, além de repositório da dignidade do pícaro, impossível de ser conquistada socialmente; isso faz da tomada do foco narra- tivo algo decisivo na mobilidade social (Milton, 1986, p.32). O fin- gimento cria a honra, valor basilar da nobreza, e isso ocorre pela escritura, assumindo a perspectiva da narração. O anonimato do texto, por sua vez, contribui para que se fo- mente a ilusão de que é o próprio Lázaro que narra sua história, apresentada pelo próprio narrador como de “grosero estilo” (Anô- nimo, 2005, p.23), o que na época era considerado o estilo das nar- rativas não ficcionais, ou seja, voltadas à realidade factual. O realce desses pontos é importante por conta da paródia que Lazarillo efetua das novelas de cavalaria, de conteúdo fantasioso e mágico, principalmente no que tange à forma: o romance picaresco recorre muitas vezes a uma linguagem arcaizante e o seu prólogo segue um Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 36 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 37 modelo utilizado em geral para iniciar narrativas de ações extraor- dinárias. O romance picaresco, entretanto, volvendo-se à realidade mais patente da sociedade, acabaria servindo também à denúncia social, ainda que disfarçada pela comicidade (González, 1994, p.95). O discurso autodiegético propicia esse mascaramento: o jogo ambíguo com o leitor para se passar por nobre, tentando romper com as origens e criando discursivamente a honra de “homem de bem”. O prólogo do Lazarillo reafirma o fingimento para com o leitor, pois é nesse momento do texto que o narrador toma a pos- tura de escritor e se dirige a um leitor virtual, antes de adentrar na narrativa de sua trajetória, que possui outro interlocutor, aquele que havia pedido a explicação. No romance de Torero, o prefácio, assim como os prólogos na picaresca, é fingido. O jogo de máscaras já se faz visível na capa, contracapa e na mistificação criada em torno do texto; ele seria considerado o diário verdadeiro de Fran- cisco Gomes da Silva: [...] a trapaça do pícaro atinge o leitor: o narrador se esforça para identificar-se com o autor implícito e assim aparecer como o autor real. Esse processo se constrói por meio de uma motivação realista do texto que conduz o leitor a sentir-se perante um documento e não perante um texto ficcional. (González, 1994, p.268) A motivação realista, parodiada do Lazarillo em O Chalaça, conjuga-se com a atitude persuasiva do narrador no intento de legi- timar a versão do Chalaça dos acontecimentos que narra, sua pers- pectiva acerca da história brasileira. A ambiguidade é instaurada no discurso das duas obras, pois, uma vez que o protagonista tem por objetivo enganar-se a si próprio, isto é transferido à sua ação como narrador e, por conseguinte, tentar-se-á incutir o engano no leitor. Este, contudo, deixa de ser um receptor passivo, construindo sentidos e, se necessário, revendo sua leitura. Como expõe Gon- zález (1994, p.120): “Se quem narra é um pícaro, é fundamental que o leitor desconfie de suas informações e interpretações. Há Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 37 11/02/2014 06:29:06 38 STANIS DAVID LACOWICZ então, um espaço para a ambiguidade entre o narrador e o pro- tagonista, que o leitor deve preencher criticamente”. A autobio- grafia, expressão simbólica da liberdade do pícaro-rebelde, altera a liberdade do leitor ao conduzir a sua percepção, selecionando os fatos que julga importantes para dar sentido à “tese” defendida (Milton, 1986, p.34). Nesse sentido, Milton também afirma que o texto, ao fingir um diálogo, conduz não só a montagem como a lei- tura de seu texto, e, por não haver vozes discordantes, acaba ocor- rendo uma persuasão absoluta, ao menos durante a leitura (idem, p.35). A autobiografia é, então, a arma maior de mascaramento do pícaro para alçar-se a um espaço de prestígio; o pícaro usurpa o foco narrativo, canaliza a percepção do leitor virtual, inventa um leitor formal que lhe serve de suporte narrativo, conferindo esta- tuto de veracidade a sua narração (ibidem, p.36). No romance de Torero, a conjunção do prefácio (equivalente ao prólogo picaresco) com três tipos de textos, a autobiografia, o diário e as cartas, que em um nível narrativo são encontrados por um pesquisador de raridades históricas, correlato ficcional do autor, ligado à presença majoritária do narrador autodiegético nesse romance, indica a relação com o mascaramento típico da pi- caresca. Não é caso, por certo, de tratar anacronicamente a obra de Torero como um romance picaresco, o que seria incorrer em um equívoco grosseiro, pois se trata de um gênero temporal e espacial- mente bastante delimitado (século XVI e XVII), mas de trazer sua condição de obra de extração histórica, ricamente intertextual e que se liga a essa tradição literário-cultural. No nível intradiegético, o Chalaça surge como protagonista e narrador, compondo e organizando o material existente. Por um lado, ele narra os fatos como vão acontecendo, criando um efeito de diário que é sustentado no prefácio; por outro, relembra seu pas- sado, deslocando-se pelo menos quinze anos para compor o que seria sua biografia, referida desse modo por ele. Em certa medida, as duas composições acabam se confundindo, compondo todo o texto como registro da vida desse personagem, em uma mesma Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 38 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 39 obra e com a mesma encadernação, como se apresenta no “pre- fácio” do romance. Nesse sentido, voltamo-nos ao artigo “Narrativa autobiográ- fica: um gênero literário?”, de Antonio Roberto Esteves e Ana Maria Carlos (2009), que expõe os posicionamentos teóricos de maior destaque no que concerne à autobiografia e sua existência enquanto texto literário. Resgatamos de início algumas questões propostas por Philippe Lejeune, que, além de defender a inclusão da autobiografia no sistema literário e seu estudo a partir da esté- tica, criou a noção de “pacto autobiográfico”, que permeia seus es- tudos e consiste na identificação entre autor, narrador e personagem (Carlos & Esteves, 2009, p.11). Apesar de tratar do que chamariam de autobiografia verdadeira, tais pontos podem ser transpostos para o estudo do romance em questão na medida em que, no pro- cesso de leitura do texto, faz-se necessário que se “finja” o pacto autobiográfico dentro de um pacto de leitura que prevê, dentre ou- tras questões, certa suspensão da descrença e entrega ao universo criado pelo discurso. Com isso, as palavras de Paul de Mann seriam mais eficientes para o nosso propósito, ao negar a autobiografia como gênero ou modalidade, mas afirmando-a como “uma figura de leitura que estaria presente, em certa medida, em todo e qual- quer texto” (Carlos & Esteves, 2009, p.12). É realçado, portanto, o papel da recepção, do modo como o leitor virá a encarar os sucessos narrados, fundamental na construção de sentidos do romance e que, em um nível de leitura, deve aceitar a obra como textos es- critos pelo Chalaça. Tal encenação, da qual o leitor faz parte, reitera a ironia com que a obra vem a tratar o material histórico, uma vez que expressa em vários níveis no romance seu caráter dialógico e sua ambiguidade, tida como característica da ironia (Brait, 1996, p.64). Ainda com relação à autobiografia do Chalaça, além da dife- rença formal no corpo do romance por meio de um título para cada capítulo e do texto em itálico, há uma diferente expectativa com relação aos leitores, o que realça o tom de exaltação dos aconteci- Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 39 11/02/2014 06:29:06 40 STANIS DAVID LACOWICZ mentos. Nesses casos, o exagero e o caráter banal dos assuntos dá o tom sarcástico e irônico, ao lado de uma linguagem e títulos que soam como paródia das novelas de cavalaria ou crônicas historio- gráficas: “Onde se relata o inédito nascimento que teve Francisco Gomes e dos ensinamentos que se tiraram desse mesmo fato”; “Onde se conta como viveu no paço Francisco Gomes até que foi chamado a fazer parte de uma altíssima empresa”; “Que trata da mui justa dissolução da primeira Assembleia Constituinte bra si- leira, onde o destemido tenente Gomes da Silva ganhou a medalha da Cruz e Espada”. Intenta-se, assim, o enobrecimento, dando a en- tender que serão tratados grandes feitos heroicos, quando, na ver- dade, não passa de um recurso de linguagem do narrador para exal- tar sua imagem. Lembrando que a picaresca é também uma paródia das novelas de cavalaria, temos aqui uma dupla relação paródica. O diário, por sua vez, aparenta ser mais confessional, o que se dá não apenas pela incerteza de um futuro leitor dos textos (embora possível) ou de como esse seria (sua capacidade de perscrutar os sentidos do texto), mas também pela distância menor entre a nar- ração e os acontecimentos nela narrados. Isto não impede de modo algum que, mesmo aqui, sua escrita não molde uma imagem mais polida e mascarada. Genette, ao comentar sobre o tempo da nar- ração e sua posição relativa à história narrada, distância tida como a principal determinação temporal da narrativa (1979, p.215), expõe que a proximidade entre história e narração produziria um “efeito subtil de fricção” entre o ligeiro afastamento temporal e a simulta- neidade na exposição dos acontecimentos: O diário e a confidência epistolar aliam constantemente aquilo a que em linguagem radiofônica se chama o directo e o diferido, o quase monólogo interior e o relato depois feito. Aí, o narrador é ao mesmo tempo ainda o herói e já outra pessoa: os acontecimentos do dia são passado já, e o “ponto de vista” pode ter-se modificado; os sentimentos da noite ou do dia seguinte são plenamente do pre- sente, e, nesse ponto, a focalização sobre o narrador é ao mesmo Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 40 11/02/2014 06:29:06 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 41 tempo focalização sobre o herói. (Genette, 1979, p.217, grifo nosso) Ao narrador nesse tipo de escritura é possível já uma reflexão sobre a narrativa, ainda que nela deixe-se entrever mais claramente pontos desse mecanismo de conversão do fato vivido em fato nar- rado, pois quem conta a história ainda está bastante próximo da- quele que a viveu. O tom confessional, apenas relativo, é um modo a mais de construção discursiva da imagem, do jogo de enganos pelo qual se põe o narrador ao trazer sua história, mas problemati- zado pela proximidade dos acontecimentos que narra. A imagem dupla de si revela essa outra máscara, pois, no caso do Chalaça, a sinceridade (parcial) é apenas um modo, dentre muitos, de con- quistar a confiança do leitor: admitem-se meias verdades, tira-se uma máscara, ao passo que o resto fica sugerido, em meio a lacunas. Sua “verdade” não surgiria face a face, como em espelho, mas em partes, fragmentada. A ambiguidade na narrativa de Lazarillo, a evolução social da personagem aliada à decadência moral e seu projeto de escritura autobiográfica ligam-se ao leitmotiv do “Cego”, o “não querer ver a si próprio” que se intensifica na trajetória do pícaro: Não se enxergar constitui-se num dos maiores motivos estrutura- dores da narrativa, se lembrarmos que seu primeiro amo era um Cego – que, na verdade, parecia ver mais do que a maioria. Lá- zaro, embora tenha aprendido as lições do Cego, pareceria estar perdendo aos poucos sua capacidade de enxergar. E quando as- sume a função de narrador de sua história, parece não ver a si pró- prio. E isso se dá numa sociedade em que ele mesmo vem nos mostrando a falsidade das aparências. (González, 1994, p.116) Essa perda do senso crítico seria a grande ironia do romance picaresco e de seu narrador, pois ele havia mostrado por meio de sua trajetória a importância da aparência nessa sociedade, bem como a falsidade dela. Assumindo a voz narrativa, ele incorpora Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 41 11/02/2014 06:29:07 42 STANIS DAVID LACOWICZ definitivamente a imagem de “homem de bem”, mesmo sabendo que ela já é motivo de riso. A personagem/narrador o Chalaça compartilha da referida ambiguidade, que surge no modo peculiar de sua composição, distorcendo a história por sua perspectiva. Na relação entre narrador e personagem, a ambiguidade pode ser vista nas inúmeras vezes em que se percebe a disjunção entre a conduta, o que afirma pensar e o que de fato pensaria. Isso ocorre já no pri- meiro capítulo do romance, no qual o Chalaça tenta convencer seu cocheiro Calimério, e principalmente a si próprio, de que as sexa- genárias são melhores amantes do que as raparigas de vinte anos (Torero, 1994, p.11), e nos vários momentos em que procede com fingimento, como quando está namorando a baronesa de Lyon e, depois, no funeral da mesma: Assim que percebi que o padre se dirigia ao salão principal com o objetivo de fazer a última prece por sua alma tive um pensamento brilhante: dirigi-me ao lado direito do esquife e pedi a palavra. [...] Eu fiz então um elogio a pessoa de Marie-Louise, afirmando que era o mais desventurado de todos quanto estavam naquele recinto, porque, dentre todos, era aquele que menos tempo tinha convi- vido com ela – não falei, naturalmente, do uso que fiz nesse tempo, porque seria matéria indecorosa para a ocasião – , e que para me penitenciar de tão grande infelicidade eu me propunha a fazer o pa- gamento de todas as despesas referentes a seu enterramento. Seu filho, comovido, aceitou e agradeceu em nome da família. (To- rero, 1994, p.23) Assim, acreditando que receberia uma boa quantia de herança da baronesa, o Chalaça sente-se à vontade para expressar uma falsa nobreza de espírito e solidariedade para com a família da falecida. A autobiografia de Francisco Gomes inicia-se, no romance, pelo que ele avalia como seu nascimento metafísico, o momento a partir do qual considerava sua trajetória válida de ser transmitida: quando conhece d. Pedro, no Brasil. Desse ponto em diante, nos entremeios do diário, surge a história do Chalaça, ou melhor, sua Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 42 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 43 ascensão social, de simples barbeiro tocador de lundus para emi- nente membro da política brasileira, protegido pelo imperador, se- gundo ele se mostra, como um irmão. Narra, assim, suas atividades extraoficiais, arranjando encontros para d. Pedro com diversas mu- lheres, ironicamente se esforçando por fazer parecer mais digna aos olhos do leitor a sua função: Quanto a mim, mais particularmente, coube-me a graça de ter sido escolhido como favorito do Príncipe d. Pedro no que diz res- peito à intermediação de relações não espirituais com as filhas do belo sexo, serviço que as pessoas de menor instrução, na falta de conhecimentos mais sutis sobre essa arte, denominam alcoviteiro. (Torero, 1994, p.66) O fragmento acima está presente no segundo capítulo da auto- biografia, 18o do romance, intitulado “Onde se relata com muita propriedade a inauguração da leal e permanente amizade do prín- cipe d. Pedro e de seu fiel escudeiro Francisco Gomes da Silva” (idem, p.65). Narra aqui, então, sua infância, a partir da ideia de seu nascimento metafísico, ressaltando no começo do capítulo que, “acima de qualquer outro interesse pessoal, presente ou póstumo, a verdade deve pairar majestosa”, ou seja, traz a tentativa de discurso convincente para relatar a sua história, a sua verdade: “Fatos im- portantes aconteceram, e disso está repleta a história de um homem tão sobranceiro como o meu senhor, e eu poderia esconder-me atrás deles, enganando assim a posteridade sobre a minha verdadeira evolução no paço imperial” (ibidem, p.65). Ao colocar-se como narrador, o Chalaça impõe sua versão dos fatos e estabelece uma relação dialógica com os discursos da história oficial, adentrando em uma zona de embate explicitada nesse fragmento, no qual ele reafirma o seu lugar ao lado de d. Pedro para, desse modo, rea- firmar o esquecido lugar de seu referente histórico ao lado do impe- rador brasileiro. Lançando mão de um discurso irônico, esse fragmento no qual demarca a sua importância histórica encontra-se logo antes de o Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 43 11/02/2014 06:29:07 44 STANIS DAVID LACOWICZ Chalaça explanar e tentar enobrecer suas atividades como alcovi- teiro, reiterando depois que, “nos dez anos que fui criado no paço, não era uma coisa incomum o ser convidado por d. Pedro para noi- tadas, e que era menos incomum ainda essas noitadas terminarem em alcovas de senhoras da sociedade” (Torero, 1994, p.66). Explica que o trabalho, por sua vez, não lhe fazia suar, pois a maioria das mulheres sentia-se honrada em dormir com o imperador, bem como os maridos em emprestar suas esposas para uso real; havia casos também em que os maridos ou os pais eram mais resistentes, mas, segundo ele, apenas para ganharem algum benefício, finan- ceiro ou social. Com isso, o tratamento da privacidade do príncipe e da alcova como se fossem elementos da mais importante matéria his- tórica possibilita uma tensão de sentidos que subjaz à construção da imagem desse narrador, principalmente quando dá a entender que narrará o que em geral se concebe como “fatos importantes”. A tensão ocorre porque o narrador tenta glorificar, enobrecer sua função de um modo que, pela formalidade, acaba soando sarcás- tico, para consigo mesmo e para aqueles que ousaram apagar sua imagem na história brasileira. A ironia vem a propor que Francisco Gomes, exaltando sua função desonrosa, mesmo assim esteve ao lado de d. Pedro em eventos considerados heroicos, como narra em outras passagens do romance. A autobiografia se encerra no capítulo 58 (Torero, 1994, p.204-6) com uma rápida remissão aos acontecimentos na França, sem aludir, certamente, ao insucesso do Chalaça em desposar a ba- ronesa de Lyon, afirmando que ele voltara finalmente a Portugal, ao encontro de seu amo d. Pedro, por amor a sua nação (e não por estarem frustradas as alternativas, como relata no diário): “Os su- cessos de d. Pedro fizeram reacender no meu peito as convicções políticas e o desejo de bater-me pelas instituições livres. [...] Tro- quei o conforto do amor e da riqueza pela luta por um mundo me- lhor para mim e para meus iguais” (idem, p.206). Finge, novamente, a atitude do cavalheiro medieval em sua luta pela comunidade, a despeito do interesse individual. Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 44 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 45 Nesse ponto, a temporalidade das memórias encontra a do início do romance e a correlação entre os diferentes fatos narrados em ambos os textos ressalta o dialogismo de sua escritura. Quando não se trata de semelhanças de eventos vividos pelo Chalaça em Portugal e no Brasil, há o cruzamento de informações, apresen- tadas de modos diferenciados. Faz-se evidente, desse modo, o ca- ráter textual, passível de manipulação das informações segundo o interesse do narrador para com a imagem que será construída de si por aquele que vier a ler tal composição. Esse confronto, além do humor, revela a autorreferencialidade do romance contemporâneo e sua não linearidade na representação discursiva de diferentes pe- ríodos, pontos que estabelecem um pacto de leitura mais dinâmico, possibilitando um espaço amplo para o leitor se movimentar ante signos da história hegemônica. Cria-se, inclusive, um efeito de cir- cularidade temporal a partir da recorrência de eventos semelhantes no diário e na autobiografia, bem como pela conexão entre o final do romance e o seu início. Esses pontos se aliam ao dialogismo e à metalinguagem, ao engendrar perspectivas diferenciadas de eventos históricos conhecidos e revelar o caráter maleável da linguagem na representação da realidade. De fato, a conclusão é que qualquer realidade só pode ser concebida, e de certo modo (re)criada, en- quanto universo significativo, por meio da linguagem. Além disso, verifica-se a deglutição paródica do discurso alheio e de formas discursivas consagradas, como a histórica ou a bíblica, e também de textos literários, bem como a consequente subversão em um dis- curso basicamente carnavalizado e irônico. Para expandir a compreensão acerca do romance de Torero, atentaremos à categoria narrativa da “voz”, voltada, segundo Ge- nette (1979, p.212), às incidências ao nível “em que se conta”, às relações entre enunciados e a instância produtora do discurso nar- rativo, ou seja, a narração. Em se tratando de um diário, a narrativa de Francisco Gomes é, na maior parte do romance, segundo a no- menclatura de Genette, intercalada: “a narração pode, de alguma forma, fragmentar-se, para inserir-se entre os diversos momentos da história como uma espécie de reportagem mais ou menos ime- Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 45 11/02/2014 06:29:07 46 STANIS DAVID LACOWICZ diata” (Genette, 1979, p.216). A narrativa se dá nos intervalos da ação, provavelmente ao final do dia, e por vezes após alguns dias, quando a personagem passa à condição de narrador e revisita os acontecimentos, expressando opiniões e conclusões acerca dos eventos ocorridos, dando indícios de planejamentos futuros, de- monstrando em sua escrita a ambiguidade entre o narrador e o “eu” narrado, no qual a equiparidade já não é possível, dadas a reflexão sobre os fatos, e mesmo a mudança de perspectiva causada na cons- trução narrativa por efeito do caráter motivador do distanciamento temporal (idem, p.217). Com isso, a relativa menor distância tem- poral entre eventos e escritura, bem como o inerente caráter mais confessional dos textos que se pretendem “diário” (comparado com a autobiografia, que se projeta no tempo) fazem nele mais visí- veis certas camadas da personagem, não apenas em suas contradi- ções, mas em sua consciência ambígua dessas e da manutenção de um discurso convincente, devido também ao leve atrito entre “eu” narrador e “eu” narrado. Nesse sentido, o narrador Francisco Gomes, tal qual o pícaro, transmite seu fingimento de personagem ao seu ato narrativo, o que se dá não raro pela apropriação de determinadas formas de lin- guagem, como a lírico-amorosa. Esta pode ser observada quando ele conversa com a baronesa de Lyon sobre deixarem algo um ao outro quando morrerem, ele tentando trazer o tema do testamento e instigá-la a lhe deixar algo. O Chalaça, sentimentalmente, afirma: “Para mim será uma coisa inútil. Se tu morreres, me mato!”, e em seguida, “De ti só quero amor. É toda a riqueza que um pobre como eu pode desejar”. Assim, resgata em sua fala uma atitude român- tica e, ironicamente, disfarça a sua expressa falência financeira: “A Baronesa nada suspeita das enormes dívidas que fizemos para or- ganizar o nosso pobre exército. Nem tampouco sabe que a minha pensão anual havia se convertido – oh, por que tenho que me lem- brar disso? – em fundo para as despesas de guerra” (Torero, 1994, p.17). Não apenas nas palavras se dá a “atuação” de Francisco Gomes, mas também em seu corpo, exibindo toda uma teatrali- dade: “Eu, da minha parte, mantinha os meus olhos fixos nos dela, Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 46 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 47 afetando aquele tipo de expressão enlevada que precede a maioria dos beijos” (idem, p.18). Nesse momento, apresenta essa atitude, paródia não apenas discursiva de atitudes cavalheirescas, que ao leitor hodierno lembrariam inclusive cenas cinematográficas, das mais agridoces, parte do acervo de referências que o romance pro- jeta e ironiza. Por meio da paródia de recursos como teatralidade e melodrama, recorrentes em uma literatura de massa e nas produ- ções românticas do século XIX, o Chalaça ficcional também res- gata a produção da época de seu referente histórico e a satiriza, circunscreve-se em um período e, pelo modo que o faz, acaba por transcendê-lo. Esse jogo entre esconder e revelar a si próprio é recorrente no diário, apontando uma série de camadas, nas quais a apropriação de formas discursivas variadas jaz no cerne da personagem, pois, mesmo no que seria um gênero mais confessional, o Chalaça não prescinde desse jogo de espelhos e lentes, não por incapacidade, mas provavelmente por exercício de sua burla, de suas piadas e da manutenção de autoimagem cômica: Hoje não houve para mim o confortante calor do sol, nem a brisa da tarde me acalentou com seu sopro macio. Nenhum dia foi tão negro como esse desde a criação do mundo. Não, nem o dia em que d. João proibiu a minha entrada no palácio de São Cristóvão, nem o dia em que fui expulso do Brasil, nem o dia em que Pedro Cigano e seus amigos me cobriram de pauladas. (Torero, 1994, p.20) Da mesma forma, com a morte da baronesa, Francisco Gomes adota o tom sentimental e romântico, cuja paródia leva ao humor pela oposição de acontecimentos elencados para comparar ao fale- cimento. Durante a leitura do testamento, ele age como havia se comportado durante o funeral da baronesa, fingindo uma tristeza emotiva e solicitude que não lhe eram verdadeiras; quando seu nome é mencionado, ele incorpora o mais imaculado dos cristãos: “Uma centena de olhos voltou-se para mim. Os meus estavam no Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 47 11/02/2014 06:29:07 48 STANIS DAVID LACOWICZ bico dos sapatos, mas logo desviei o olhar para uma imagem do Se- nhor Jesus. Todos se convenceram da minha piedade” (Torero, 1994, p.31). O pícaro buscaria por meio de sua escritura desenvolver dis- cursivamente a imagem de “homem de bem”, ou seja, de nobre, puro nas origens, lançando mão de um discurso persuasivo e não raro, como soía ocorrer no Lazarillo, parodiando formas discur- sivas enobrecidas, como a novela de cavalaria e sua linguagem ar- caizante: “Yo por bien tengo que cosas tan señaladas, y por ventura nunca oídas ni vistas, vengan a noticia de muchos, y no se entierren en la sepultura del olvido [...]”4 (Anônimo, 2005, p.18). O frag- mento que inicia a obra é apontado por Mário González como paró dia das novelas de cavalaria: nele, afirma que narrará aconte- cimentos extraordinários, quando na verdade focaliza uma rea- lidade bastante palpável (González, 1994, p.95). A autobiografia é, segundo Heloísa Costa Milton, a estratégia narrativa que define o relato e permite a ruptura com a barreira do prestígio, ou seja, a única chance de um indigente social ocupar um espaço literário com as dimensões de um herói: “Como ninguém se dispusesse a tratar artisticamente da vida de um marginalizado, que se revelasse ele mesmo, por sua própria fala” (Milton, 1986, p.32). Desse modo, o narrador autodiegético possui importância es- trutural, pois, se nas novelas de cavalaria os feitos heroicos cau- savam tanto espanto e deslumbramento que motivavam a narração por outras pessoas, tal fascínio se perde na mesquinhez e no ca- ráter desqualificado de Lázaro, tendo ele próprio que dar par de sua história. Segundo González (1994, p.265), “o pícaro narra em primeira pessoa como transgressão da fórmula do ‘historiador’ onis- ciente da novela de cavalaria. Ele é testemunha de uma realidade e já não mais o protagonista narrado dentro de uma história inve- rossímil”. O teor grosseiro de sua história faz com que tenha que 4. “Eu tenho por bem que coisas tão assinaladas, e porventura nunca ouvidas nem vistas, cheguem ao conhecimento de muitos e não se enterrem na sepul- tura do esquecimento [...].” Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 48 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 49 se mascarar, donde decorre a importância dada ao motivo da apa- rência, material e linguística, notada também na preocupação com a vestimenta, pois “a ‘virtude’ em que baseia a estima social é apenas uma aparência que se obtém mediante o dinheiro” (Gon- zález, 1994, p.70). Essa preocupação surge na trajetória do pícaro, acompanhando sua aprendizagem e sua apreensão da ideologia da elite. Se a virtude é aparência, vestindo-se como um nobre, tornar- -se-á um. Francisco Gomes da Silva, tal qual o pícaro, tem por princípio a ascensão social, não apenas por alcançar e manter uma situação financeira estável, mas principalmente por receber um título de no- breza, o baronato. Isso já é verificável no início do romance, nar- rando em seu diário sua intenção de desposar a baronesa de Lyon. Por mais que lhe desagrade a situação, já que a idade da senhora não lhe oferecia a beleza geralmente por ele exigida, acomoda-se pelos benefícios possíveis desse matrimônio, jogando discursiva- mente com o convencimento, muitas vezes para consigo próprio: deitado com sua “amada”, desabotoa o roupão dela “até ver des- pontar diante dos meus olhos aqueles já conhecidos montes sar- dentos que meu conceito de beleza normalmente desaprovaria, mas que adquirem certa graça quando penso no agasalho que me podem propiciar” (Torero, 1994, p.18). Nesse fragmento, ele deixa claro que sua atitude se justifica pela fortuna e prestígio social que a se- nhora pode oferecer-lhe e apresenta o ocorrido de modo a deixar claro que ela não tem nada a perder com isso tampouco. Ainda assim, ele finge mesmo em seu diário, mascarando-se a si próprio para, talvez, mais facilmente proceder em seus projetos não tão nobres e fixando esse que é um de seus paradigmas: unir-se aos grandes para, parecendo, tornar-se um, tal qual Lázaro. O auto fin- gimento também soa como uma tentativa de autoconvencimento para dar-se a tal trabalho e, do mesmo modo, pensando em um possível leitor. Enfim, o projeto do matrimônio é frustrado pela repentina morte da senhora, assim como a possibilidade de uma parte no testamento, o patrimônio, revela-se malograda. Ele havia de tal modo construído a imagem nobre, por ser conselheiro de Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 49 11/02/2014 06:29:07 50 STANIS DAVID LACOWICZ d. Pedro e falseando desinteresse para com os bens da “amada”, que a mulher lhe creditou apenas uma gargantilha de ouro, o primeiro presente que ele havia lhe dado, e de valor apenas simbólico. Fi- nanceiramente arruinado, pois havia convertido sua pensão para o fundo de guerra (em um ato inesperado e do qual se arrependera no dia seguinte, quando as contas chegaram), restava-lhe, portanto, voltar para Portugal e se unir ao seu amo d. Pedro, em uma vas- salagem que lhe propiciava já um posto relativamente estável e su- perior em relação às “pessoas comuns”. Ademais, os projetos de Francisco Gomes e seus anseios de tornar-se um nobre configuram- -se como de origem familiar, percebido na tentativa de sua mãe de ligar-se a um nobre e no comentário que ele faz antes de relatar as suas origens, enquanto pensava nos seus planos frustrados: “Ela [sua mãe] nunca me perdoaria por ter deitado fora tamanha oportu- nidade de ficar rico e tornar-me um nobre./ Esse sempre foi, aliás, o sonho da pobrezita” (Torero, 1994, p.35). Lázaro de Tormes é considerado anti-herói por sua relação opositiva ao altruísta cavaleiro medieval, protagonista das novelas de cavalaria e centro do contexto literário do surgimento da pica- resca (González, 1994, p.60). Não possuindo origem nobre, sem conseguir, desse modo, fazer parte efetiva desse grupo social, o texto do Lazarillo seria, portanto, uma manifestação paralela aos caminhos da burguesia, devido ao individualismo que lhe marca a trajetória, surgido de sua necessidade de sobrevivência em meio a uma sociedade que lhe é hostil, rebelde para com a mesma, mas de modo alienado e individualista, ansioso pela integração no coletivo. O Chalaça surge por semelhantes caracteres: não quer apenas satis- fação financeira, mas, como Lázaro, agregar símbolos da alta classe social (idem, p.72). Contudo, tratando-se de uma sociedade em que os meios ascensionais típicos (como o trabalho) foram frustrados, isso se deve realizar por meio da trapaça e de uma relação de proxi- midade e vassalagem com membros de classe mais alta, mesmo com seu mais baixo estrato. No romance de Torero, pelo modo como a autobiografia se in- tercala com o diário, ela aparenta funcionar como uma série de Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 50 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 51 analep ses, remissões a acontecimentos anteriores ao presente com- posicional do diário. No entanto, a constância dos textos e sua progressão temporal, bem como o fato de sua ocorrência se dar in- dependente do diário, expressam tratar-se na verdade de uma linha narrativa diferenciada; como se, imaginando a linearidade da vida de Francisco Gomes, ela fosse dobrada e o passado, por meio do ato mnemônico, ancorado no presente, tal qual expõe em seu diário: [...] à custa do sacrifício do meu futuro parisiense, o meu passado ressurgiu das cinzas, para fazer as vezes do presente. Por força dessas razões, tenho pensado que já passa da hora de eu em- preender uma perfeita narração dos fatos passados, o que será de proveito meu e das gerações futuras. (Torero, 1994, p.55, grifo nosso) Tal fator permite uma textualidade mais maleável, variando no tom da narrativa e jogando com as múltiplas forças que se aplicam à composição. Com isso, também se apresenta no romance uma motivação interna para o surgimento da autobiografia e se antecipa na construção do diário o início da escritura do outro texto, de- monstrando o interesse para com tal projeto e estabelecendo al- guns pontos como títulos e dedicatória. O fragmento citado, que evidencia pela metalinguagem o caráter discursivo do texto, é se- guido da discussão sobre os procedimentos de composição das memórias, seleção dos fatos, omissão de personagens, enfim, da conduta diante do material narrado, onde se visualiza a preparação e manipulação textual que é efetuada pelo narrador Chalaça. Ele também realça que fará a “perfeita narração” dos fatos, a partir do que se infere que as outras narrativas sobre a história pecam em algum ponto, são imperfeitas ou incompletas. A noção de ter algum proveito com a narrativa funciona ao molde da picaresca: no texto de Lazarillo, a composição era para defender-se da possível situação desonrosa e em algum sentido exaltar o valor do mérito, contrariamente ao do nascimento, da- queles para os quais a Fortuna foi contrária, tendo de lutar para Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 51 11/02/2014 06:29:07 52 STANIS DAVID LACOWICZ chegar a uma situação melhor. O Chalaça menciona que a narrativa será para seu proveito, embora não explicite qual será este, restando ao leitor conferir sentidos sobre essa questão, podendo conjecturar- -se, segundo nossa leitura, que o proveito circunscreve-se ao meta- ficcional, uma espécie de intuição do narrador de que sua história será esquecida; nada mais que o Chalaça ficcional resgatando a problemática de seu referente histórico com relação ao discurso historiográfico. Como mencionado, no primeiro capítulo da autobiografia, o Chalaça expõe seu “Nascimento metafísico”, quando conhece d. Pedro após uma briga em um bar carioca, passando a desfrutar dos benefícios da vida palaciana e da amizade com o membro da família real. Francisco Gomes explica o porquê desse recorte tem- poral: “Adotando esse procedimento, estou certo de que pouparei os meus futuros leitores de enfadonhos relatos sobre os meus pri- meiros passos, minhas notas no seminário, meu primeiro contato com uma mulher e outras coisas assim irrelevantes” (Torero, 1994, p.58-9). Ele intenta, portanto, romper com sua origem plebeia, ponto importante na construção de sua imagem aristocrática. Aqui, na autobiografia, mais do que possibilidade, a leitura futura se mostra como anseio; daí certo cuidado na seleção dos fatos e no re- buscamento da linguagem, o que, no entanto, é denunciado pelo tom comicamente exagerado e pelo diário, com cujas informações estabelece uma relação dialógica. Exemplo dessa relação dialógica pode ser verificado no seguinte excerto, parte do diário, quando ele recorda os tempos de seminarista: Foram tempos duros aqueles, pois tive que conviver com muita coisa alheia à minha natureza [...]. Quanto a mim, faltaria com a verdade se dissesse que era um dos melhores alunos. Mentiria ainda se dissesse que fui um dos razoáveis. Os livros eram-me um fardo penoso, e só a custo de muita palmatória eu decorava aqueles pontos. (Idem, p.38) Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 52 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 53 Esse fragmento dialoga com o anterior mencionado, referente à autobiografia, em que o Chalaça justifica o corte na narração de sua história, iniciando-a pelo nascimento metafísico; o que lá era apenas a citação do que não se falaria, aqui é a confissão de sua tra- jetória. Na construção da imagem de homem de bem, ele tenta fundar-se em uma nova genealogia, que privilegia sua ascensão so- cial e, implicitamente, seu ardil para conseguir unir-se aos “bons”. Além dos pontos que temos elencado para aproximar o ro- mance de Torero com a picaresca, a própria obra traz a referência direta ao romance picaresco como parte do acervo de leituras do Chalaça, obra a qual ele recorria para relaxar em momentos de tensão: “Eu relia um luxuoso volume de aventuras de Lazarilho de Tormes e me esforçava para não ser visto nos momentos em que uma risada me escapava” (Torero, 1994, p.90). Mais do que fazer explícito o diálogo, esse excerto permite perceber alguns aspectos da personagem de Francisco Gomes: as descrições e comentários que expressa durante a obra, sempre envoltos pela burla, apontam um indivíduo extremamente observador, perspicaz em coletar co- nhecimento de índole variada, opiniões, ideias, e degluti-los em seu acervo discursivo. A isso se agrega a mencionada instrução especia- lizada que havia tido no seminário e seu conhecimento de línguas (questão inferida da facilidade que possui em se relacionar em di- versos países e da leitura de escritos estrangeiros), o que explicita sua condição centralizadora de textos, os quais são processados e assimilados. O momento em que o Chalaça narra sua passagem pelo semi- nário, onde tem contato com a cultura erudita, assinala a tentativa de ascensão social por meio da agregação ao clero e aponta de modo paródico para o motivo picaresco da aprendizagem, ressaltado pelas diversas leituras que faz ou aparenta ter feito. Além disso, o conhecimento que apreendia no seminário era redefinido para sua vida pessoal, demonstrando um papel ativo e ardiloso, como coloca no capítulo 10 (idem, p.38-9): Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 53 11/02/2014 06:29:07 54 STANIS DAVID LACOWICZ Trivium: • o Latim serve para afetar sabedoria e impressionar as criadas; • a Retórica é útil para convencer as casadas, e • a Argumentação é um conhecimento mui precioso na polí- tica e no comércio de cavalos. Quadrivium: • a Astronomia é bom assunto para iniciar conversa com as damas; • a Aritmética é essencial para os negócios; • a Música, um conhecimento indispensável para brilhar nos saraus, e • é fundamental o aprendizado da Geometria para bem jogar o eight ball. O modo como absorve o conhecimento demonstra certa comi- cidade na exposição, humor que surge a partir da deturpação do objetivo original da disciplina, que ele não conseguiu aprender no seminário, em prol de um caminho mais útil. Isso indica também a não alienação do personagem pelo conhecimento, o saber tirar pro- veito e aprendizado das situações, mesmo as mais controversas, pois afirma nesse mesmo capítulo que tinha certa aversão aos es- tudos. Mesmo assim, pelo esforço e pressão dos professores conse- guiu aprender alguma coisa: “Todas essas sabedorias me foram de grande valia e tenho que admitir que se não fosse a dedicação do monsenhor Albino eu não teria chegado a tão altos postos. Talvez ainda fosse barbeiro ou sangrador” (Torero, 1994, p.39, grifo nosso). Ele admite que tal conhecimento lhe foi essencial no caminho de aproximar-se das pessoas da elite e para, ao lado de d. Pedro, ser mais do que apenas um companheiro de festas e alcoviteiro, mas seu secretário no que tange a questões do Estado. Desse modo, di- gamos que ele joga com uma fingida dificuldade para o apren- dizado, comicidade que deixa entrever a expectativa de um leitor virtual que se deleitaria com tal momento de sua vida, pois se ele surgisse como um grande conhecedor ou sábio, a identificação com Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 54 11/02/2014 06:29:07 MITOS HISPÂNICOS NO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO 55 o personagem seria mais difícil. Contudo, não se pode dizer que o Chalaça fosse ignorante em matéria de cultura erudita, pois sua tra- jetória demonstra seu conhecimento de línguas e o bom manejo da escrita, seja no esboço da primeira Constituição seja em artigos de jornal para defender o imperador. É pelas letras que Lázaro, segundo Milton (1986, p.33), deixa o anonimato social, donde se infere também que ele teria tido acesso à universidade ou a algum tipo de instrução e ensino siste- matizado. No caso do Chalaça, no sentido da construção do ro- mance, é pelas letras que o Chalaça deixa seu (quase) anonimato histórico, impondo seu espaço dentro dos acontecimentos e da vida no Primeiro Império. Esse lado metaficcional imprime a marca do romance histórico contemporâneo em sua releitura crítica da his- tória, na retomada de vozes marginalizadas. Desse modo, uma questão da imagem em torno da personagem histórica, seu apaga- mento dos discursos oficiais, é apropriada e organizada como fator interno ao romance, um motivo estruturador da narrativa que se mescla a estilemas próprios do modelo narrativo da picaresca. Ou o modelo da picaresca é deglutido pelo romance de Torero e, por meio do produto desse processo, abre-se uma possibilidade válida de trazer para a ficção a personagem histórica de Francisco Gomes da Silva. A lembrança dos tempos de seminarista, da qual falamos antes, havia sido engatilhada, assim relata Gomes da Silva, pelo cheiro de esterco que entrava pela janela, que o fez lembrar estábulos, conse- quentemente, o nascimento de Cristo e, então, o Seminário de San- tarém, onde havia estado na juventude. A atitude memorialista é satirizada no romance pelo caráter grotesco com que se processa, lembrando inclusive a “recordação involuntária” da canônica obra Em busca do tempo perdido, de Proust, mas redirecionada ao caráter cômico do texto “chalacíado”. O romance coloca em questão aqui um fator ligado à escatologia, seguindo a teoria bakhtiniana da car- navalização, em que imagens grotescas, como as fezes, sexo, morte, configuram-se ambiguamente, em uma via dupla de morte/renas- cimento: ao mesmo tempo em que o estábulo lembra a defecação Mitos hispânicos no romance histórico brasileiro.indd 55 11/02/2014 06:29:07 56 STANIS DAVID LACOWICZ dos animais, ele também pode referir-se ao nascimento, o início do ciclo que desencadeará em morte, que fecunda a terra... Isso também remete, em um nível mais profundo de leitura da obra, à apropriação que esse romance realiza de obras consa- gradas da literatura ocid ao longo do texto. Dessas, mostra-se uma relação bastante íntima, ental, cujos diálogos intertextuais se expli- citam por inúmeras e pequenas incorporações discursivo-formais como temos tentado demonstrar, com o Lazarillo de Tormes, ci- tado como uma leitura do protagonista e dos quais toma alguns motivos estruturadores da conduta e da composição literária, re- lação apontada por Milton no artigo “O novo romance histórico brasileiro: O Chalaça, de José Roberto Torero” (1996). Vale lem- brar que Pasqual (2006) trabalha também sobre as relações inter- textuais que o romance de Torero realiza com a tradição literária e, em especial, com a sátira menipeia, trazendo em seu estudo apro- ximações d’O Chalaça com romances como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, e A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne, escritor ir- landês do século XVIII. Evidencia-se com esses estudos a intertex- tualidade do romance de Torero, o modo como se constrói por meio da apropriação e recontextualização do signo alheio, reafirmando as palavras de Umberto Eco de que “os livros falam sempre de ou- tros livros e toda história conta uma história já contada” (1985, p.20). A noção de intertextualidade, segundo Kristeva, a partir do dialogismo bakhtiniano, é de que “todo texto se constrói como um mosaico de citações,