UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro TERRITÓRIOS E MEMÓRIAS: NARRATIVAS DE MULHERES QUE MIGRARAM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX Douglas Beiro Rio Claro (SP) 2009 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro TERRITÓRIOS E MEMÓRIAS: NARRATIVAS DE MULHERES QUE MIGRARAM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX Douglas Beiro Financiamento: CAPES Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, Área de concentração: Organização do Espaço, para obtenção do título de Mestre em Geografia sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Pezzato. Rio Claro (SP) 2009 3 Comissão Examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ ______________________________________ Aluno Rio Claro, ____ de _______________ de ________ Resultado ___________________________________________________ 4 À Angelina, Odete e Zulmira Artífices da arte narrativa 5 Agradecimentos Primeiramente, agradeço a presença de meus pais, Osvaldo e Maria Aparecida, irmãos, Sandro e Luciano, cunhadas, Sandra e Ana Paula, e sobrinhos, Agnaldo, Luciano Rodrigo e Júlia, que me acompanharam nessa experiência. À orientação atenciosa e presente do Prof. Dr. João Pedro Pezzato. À Angelina Guedes Siqueira, Antonia de Lima do Nascimento dos Santos, Francineide Pinheiro Lima Rosolem, Izaura Lopes, Maria Aparecida Moreira, Nair Lima do Nascimento, Odete Procópio Morelli, Pedrinha Helena Simões Sopran e Zulmira Rosseto Borcato colaboradoras que, sem as suas narrativas de memórias, este trabalho não existiria. A CAPES através da bolsa que foi de vital importância para o desenvolvimento da pesquisa. A todos os funcionários da Biblioteca da UNESP, Rio Claro. À Profa. Dra. Maria Rosa R. M. de Camargo, coordenadora do Projeto de Educação de Jovens e Adultos (PEJA), pertencente ao Departamento de Educação da UNESP de Rio Claro, pela leitura atenta, participação em exame de qualificação e de defesa deste estudo. Agradeço a todos os educadores e bolsistas que fizeram e fazem parte do projeto coordenado por esta professora, especialmente, Fábio Nunes que também esteve acompanhando o desenrolar desta pesquisa que acontecia paralelamente a sua, defendida na UNICAMP em 2009. À Profa. Dra. Solange T. de Lima Guimarães pela leitura atenta e sugestões em exame de qualificação e defesa contribuindo com o nosso posicionamento dentro da geografia, atento as relações do ser humano com o planeta, dessa forma, buscando uma relação mais responsável com as coisas do mundo. Aos profissionais que compuseram o Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP, Campus de Rio Claro (SP), durante o período de desenvolvimento da pesquisa, sob a coordenação da Profa. Dra. Silvia Ap. Guarnieri Ortigoza e Prof. Dr. Fadel David Antonio Filho (vice-coordenador). Maria Benedita Barbosa (Maíca) e Ubirajara Gerardin Junior pelos serviços prestados atenciosamente. Às professoras e professores pesquisadores do Laboratório de Pesquisa em Ensino de Geografia e Cartografia deste Programa de Pós-Graduação: Rosângela, Amanda, Elza, Geórgia, Helia, Levon, Lígia, Paulo, Rafaela, Raquel, Suely, Tânia e Walkiria. Aos funcionários, professores e alunos da UNESP, Campus de Rio Claro, que me acolheram nessa experiência de vida, a experiência universitária. Aos companheiros de 6 graduação e pós-graduação, Alberto Dudena, Alexandre Marques, Cleberson Aparecido dos Santos, Elói Venturini Jr., Fernando Pena, Francisco C. Nascimento Jr., Lincoln Gonçalves e Rodrigo Crivelaro e a todos que moraram na Casa Quatro da moradia estudantil da UNESP de Rio Claro, estarão para sempre na memória. Às companheiras e companheiros do CEMEI Alexandre Sartori Faria, Distrito de Joaquim Egídio, Campinas (SP), novos acompanhantes para uma nova experiência, a experiência com a educação infantil. À Carolina, pela compreensão, força e presença. À Força Divina que a tudo permeia e ao universo de potencialidades no qual fazemos parte. Gratidão a todas e a todos. 7 “Há um vilarejo ali onde areja um vento bom” (Marisa Monte. Vilarejo) 8 Resumo TERRITÓRIOS E MEMÓRIAS: NARRATIVAS DE MULHERES QUE MIGRARAM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX O presente trabalho busca registrar narrativas de mulheres que experienciaram a migração interna no decorrer da segunda metade do século XX, período de grandes mudanças espaciais ocorridas na paisagem brasileira. A partir de memórias e experiências construímos narrativas, nas perspectivas da geografia humanística e cultural, para refletir as representações sobre o espaço vivido. Neste contexto, utilizamos a metodologia da História Oral não apenas para a construção de dados, mas também como subsídio para a reflexão sobre a construção de memórias de estratos pouco considerados no cenário social brasileiro. Tomamos a experiência feminina migrante como referência para o registro das representações de sujeitos que vivenciaram o processo de configuração de paisagens e territórios no período e espaço determinado. Cabe observar que esses sujeitos “pouco aparecem na documentação escrita” e que o período em estudo foi marcado por profundas mudanças sociais, econômicas e espaciais. Como essas mudanças se dão nas falas e imagens de mulheres que experienciaram o processo migratório? Que espaço é vivido e como as paisagens se apresentam nas representações dessas migrantes, sujeitos itinerantes em territórios migratórios? Palavras-chave: Geografia. Migração Interna Brasileira. História Oral. Imagens. Rio Claro (SP). 9 Abstract TERRITORIES AND MEMORIES: NARRATIVES OF WOMEN WHO MIGRATE IN THE SECOND HALF OF THE TWENTIETH CENTURY This paper record narratives of women who experienced internal migration during the second half of the twentieth century, a period of major changes occurring in the landscape space Brazilian. The memories and experiences from building narratives, from the perspectives of humanistic and cultural geography, to reflect the representations on the area lived. In this context, we use the methodology of oral history not only for the construction of data, but also subsidy for the construction of reflection on the memories of little strata considered in the Brazilian social scene. We experience a female migrant with reference to the record of the representations of subjects who experienced the process of configuration of landscapes and territories over the period and a space. It should be noted that these individuals "just appear on written documentation" and that the period was marked by profound social changes, economic and spatial. As these changes occur in the discourse and images of women who experienced the migration process? Space that is lived and how the landscapes are presented in the representations of these migrants, subject traveling in territories migration? Keywords: Geography. Brazilian Internal Migration. Oral History. Images. Rio Claro (SP). 10 SUMÁRIO Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 Resumo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 Abstract. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introdução Compondo narrativas migrantes: mulheres em Rio Claro (SP). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 PARTE I: Memórias e Geografias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 1. Memória como fenômeno social e a História Oral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 1.1. Pequena nota sobre narrativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2. Representações, geografias e memórias subterrâneas: Paisagens e territórios a partir dos espaços da experiência: os lugares. . . . . . . . . 24 PARTE II: Territórios migratórios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37 3. Apontamentos sobre a virada da urbanização brasileira.. . . . . . . . . . . . . . . . . . .38 4. Os depoimentos: os espaços na experiência feminina migrante. . . . . . . . . . . . . 43 4.1. Entrevistas 1: “A gente sempre está atrás de uma melhorazinha, né?”. . . . . .44 5. “Derrubando mato”: Entrevistas 2: configurando espaços a partir das travessias de três mulheres. . . 48 6. Configurando travessias: lugares, paisagens e territórios em transformação. . 72 7. Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Referências bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Apêndice. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 11 Introdução Compondo narrativas migrantes: mulheres em Rio Claro (SP) Será esta uma única narrativa? Ou um entrelaçamento de narrativas – a do pesquisador, das mulheres depoentes, das referências bibliográficas, textuais e imagéticas? Ou ambas as questões? Sendo o narrar “a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198) e a fonte que recorrem todos os narradores é a “experiência que passa de pessoa a pessoa” acreditamos que estes escritos se encontrem na última questão: temos aqui tanto uma única narrativa como uma composição com marcas de diversas experiências. Expliquemo-nos... Nossas reflexões começaram a tomar forma entre os anos de 2003 e 2005, quando aluno de Licenciatura em Geografia1 na cidade de Rio Claro (SP) participamos do Projeto de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) como educador-bolsista2. Neste projeto trabalhamos na 1 Na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Rio Claro (SP). 2 O PEJA é um projeto de formação de educadores que oportunizava reflexões e diálogos com outros participantes – educadores, educandos e coordenadores – sobre as questões pertinentes ao cotidiano da educação com adultos. Está vinculado a Pró-Reitoria de Extensão (PROEX), da UNESP. Nesse projeto, as turmas de educandos eram organizadas e denominadas conforme o local onde ocorriam, como: a Turma dos Funcionários 12 turma do Jardim Esmeralda, dentre outras, onde desenvolvemos algumas reflexões que nos conduziram a esta pesquisa. Os encontros com esta turma aconteciam em bairro homônimo3 durante dois a três dias por semana, no período da tarde, com um grupo composto em sua maioria por mulheres, tendo apenas um homem, esposo de uma delas, aposentado que chegou a freqüentar certo período. Não era a única turma feminina do projeto, assim como outra turma, do “Consulado da Mulher”, mas se diferenciava por ser de mulheres que se consideravam “do lar”, com uma ou outra exceção, que trabalhavam eventualmente como diaristas ou faxineiras, como se autodenominavam. De um grupo de quinze educandas e um educando, cerca da metade tinha mais de 50 anos de idade. Somado a esse dado, um outro intrigava: a presença de pessoas que não eram naturais de Rio Claro. Isso também ocorria em praticamente todas as turmas do projeto, mas na turma do Jardim Esmeralda se sobressaía, inclusive com o único integrante masculino. Havia, entretanto, uma exceção, uma senhora nascera no município de Rio Claro, contudo, ela também participou do processo migratório, viveu em outras cidades em parte significativa da fase adulta para retornar na velhice para a cidade natal. Nosso problema foi sendo delineado a partir de três aspectos principais: a presença feminina que havia experienciado a migração, a faixa etária dessas educandas – acima dos cinqüenta anos –, além da busca tardia por escolarização. Sobre a faixa etária, remetia a pessoas que experienciaram a migração durante o período de transformações significativas na paisagem em razão da urbanização brasileira que se efetiva na segunda metade do século XX, especificamente, nas décadas de 1950 e 60, quando o país passa de uma população de maioria rural, situação que se inverte na década de 70. Questão essa que reflete, além de dados evidentemente quantitativos, outros aspectos de ordem espacial, social, cultural e ambiental. Desse modo, instigava-nos a buscar saber sobre as representações espaciais das mulheres, das razões para as suas travessias, da condição de um dia terem sido migrantes, da Universidade; da Comunidade (esta acontecia dentro do campus universitário, como a anterior, mas atendia pessoas da comunidade externa); do “Consulado da Mulher” – que mais tarde passou a ser denominada da “Usina do Trabalho” (mais detalhes, ver ARAUJO, 2006); turma do DAAE (Departamento Autônomo de Água e Esgoto), formada por funcionários desse departamento; e a Turma do Jardim Esmeralda. Projeto presente em diversos campi da Universidade, em Rio Claro está vinculado ao Departamento de Educação e desde o seu surgimento em 2001 (aos dias de hoje) está sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Rosa R. M. de Camargo. 3 Um bairro popular que surgiu durante as décadas de 1970 e 80. O Jardim Esmeralda faz parte de uma região da cidade separada pela Via Washington Luís, o que aumenta, de certa forma, a sensação de segregação do restante da cidade, sendo a estrada uma fronteira, uma barreira “geográfica”, entre duas áreas diferenciadas, dos bairros novos (composta, geralmente, de imigrantes nacionais de outras cidades do estado de São Paulo e também de outros estados e moradores naturais empobrecidos de Rio Claro que não têm condições para se estabelecerem na outra área) e dos bairros antigos – aproximando de certa forma às considerações abordadas por Elias e Scotson (2000). 13 sobre as transformações territoriais ocorridas em centros urbanos, dos quais do Sudeste, região na qual se inclui o município de fixação das depoentes. Quanto à busca por escolarização podemos assinalar que faz parte das peculiaridades dos sujeitos na modalidade de educação de jovens e adultos assinalada por Oliveira (1999, p. 59): Assim, apesar do recorte por idade (jovens e adultos são, basicamente, “não crianças”), esse território da educação não diz respeito a reflexão e ações educativas dirigidas a qualquer jovem ou adulto, mas delimita um determinado grupo de pessoas relativamente homogêneo no interior da diversidade de grupos culturais da sociedade contemporânea. O adulto, no âmbito da educação de jovens e adultos, não é o estudante universitário, o profissional qualificado que freqüenta cursos de formação continuada ou de especialização... Ele é geralmente o migrante que chega às grandes metrópoles proveniente de áreas rurais empobrecidas, filhos de trabalhadores rurais não qualificados e com baixo nível de instrução escolar (muito frequentemente analfabetos), ele próprio com uma passagem curta e não sistemática pela escola e trabalhando em ocupações urbanas não qualificadas, após experiências no trabalho rural na infância e na adolescência, que busca a escola tardiamente para alfabetizar-se ou cursar algumas séries do ensino supletivo (grifo nosso). Identificamos que estes aspectos relacionados acima estabelecem especificidades quanto às formas desses sujeitos experienciar o mundo, ou seja, uma “visão de mundo” (TUAN, 1980), como representação singular desses sujeitos em relação a sociedade maior no qual estão inseridos. A partir de experiências de mulheres que trilharam o processo migratório durante a “virada da urbanização brasileira”4 perguntamos quais representações constroem sobre as mudanças nas paisagens nesse período. Em outras palavras, que espaço é vivido e como as paisagens se apresentam nas representações dessas mulheres com experiências migrantes, sujeitos itinerantes em “territórios migratórios”? A ciência geográfica – não somente – que tem sido construída a partir do discurso masculino omitindo a “abordagem da mulher como sujeito social”, também construtora de espaços e representações (SILVA, 2005, p. 175). Assim, enfatizamos a necessidade de promoção de outras narrativas, outras geografias, outras memórias sobre o processo de efetivação da “urbanização do território” (SANTOS, 2005). Oliveira Júnior (2005) propõe: “pensar e inventar outras interpretações para o mundo, a de permitir olhares diferenciados e diversificados às coisas do mundo”. Há a especificidade da experiência migrante, de mulheres de grupos sociais não hegemônicos, com possibilidades de construções de 4 Procuramos chamar de “virada da urbanização brasileira” o período que vai da década de 1950 a 1970, quando a população urbana suplanta a população rural em proporção. Santos (2005, p. 77) denominou de “revolução urbana brasileira”. 14 “memórias subterrâneas” (SIMSON, 2000), de “culturas alternativas” (COSGROVE, 1998) às imagens-memórias oficiais que, de certa forma, são impostas, principalmente, pelos variados meios de comunicação da atualidade. Estamos nos referindo a representações carregadas de memórias. Isto posto, objetivamos registrar percepções, construir interpretações e representações sobre as mudanças espaciais ocorridas na paisagem brasileira no decorrer da segunda metade do século XX a partir de narrativas de memórias de mulheres que experienciaram o processo da migração interna no referido período. Desse modo, utilizamos as perspectivas da geografia humanística e cultural para registrar e refletir a respeito das representações do espaço vivido. Neste contexto, utilizamos a metodologia da história oral, não apenas para a construção de dados, mas como subsídio para a reflexão sobre a construção de memórias de extratos pouco visíveis no cenário social em relação às transformações na paisagem e no território brasileiro. Refletir sobre a experiência migrante e o delineamento de “territórios migratórios” que se estabelecem com esses percursos e a relação de “enraizamento” que através da dialética construção-destruição-reconstrução poderá ou não estabelecer espaços que poderíamos denominá-los de lugares. Por tratar de representações migrantes a partir de memórias de mulheres com idade entre 67 a 80 anos, cabe o alerta de Martins (1993, p. 12): Assim como a devastação da floresta destrói definitivamente espécies de vegetação úteis, a devastação ou mutilação de grupos sociais diferentes do nosso suprime modos de viver e de pensar, bem como destrói saberes que representam um germe de alternativa para a desumanização acelerada que estamos vivendo. Admitimos que memória seja fenômeno social e sua existência é resultado de múltiplas interações no tempo e no espaço. Neste contexto, ao dar visibilidade a memórias subterrâneas, em relação a outras memórias presentes em sociedade, expressa a opção política deste intento. Dividimos o estudo em duas partes principais, que, por sua vez, são subdivididos em capítulos. Na primeira parte temos os capítulos 1 e 2. No primeiro, buscamos relacionar a memória como fenômeno social trabalhada através da metodologia da História Oral. Não somente os produtos da metodologia biográfica, como os contextos de suas construções, 15 propiciam o afloramento de aspectos objetivos e subjetivos que entrelaçados vão compondo “travessias”, demarcando territórios, construindo paisagens específicas, paisagens femininas migrantes e lugares. Esses lugares não são necessariamente fixos no espaço, podem ser lugares móveis, “lugar/movimento” nos dizeres de Lima (1996). Está atrelada a locomoção de grupos familiares, como lugares seguros em relação aos espaços desconhecidos do caminho e que vão compondo “territórios migratórios” (SILVA, 2007). No segundo capítulo são discutidos o conceito de representação social e as abordagens humanística e cultural em geografia. Buscamos as contribuições que nos levaram ao cumprimento de nossos objetivos. Acreditamos que elas permitem trazer, de forma assumida, a subjetividade como aspecto inerente da construção da pesquisa sem estar separada da objetividade que a contém. Caminhamos para a PARTE II onde estão do terceiro ao sétimo capítulo. No capítulo 3 tratamos da migração interna como processo conjugado a modernização e a conseqüente urbanização de alguns centros durante o século XX. Nos capítulos seguintes buscamos estabelecer o diálogo com os depoimentos, estes delineando territórios a partir de paisagens representadas nas narrativas, paisagens que dialogam com a experiência, com as paisagens exteriores às colaboradoras, depoimentos que são a intersecção entre o contexto social e o individual (QUEIROZ, 1991, p. 24). Esses contextos não estão separados, mas sim, compõem identidades num tempo de globalização, de sociedade do esquecimento (SIMSON, 2000; SILVA, 2001). Encerramos com as “Considerações finais”, capítulo sétimo, onde fazemos análise dos resultados mirando o futuro, haja vista, por tratarmos de um tema móvel, as perspectivas de espaço e tempo nas narrativas entrelaçadas são relativas, contextuais. 16 PARTE I Memórias e Geografias 17 1. Memória como fenômeno social e História Oral Para a compreensão de uma experiência espacial, na qual nos propomos pesquisar, deliberamos o papel da memória como matéria constitutiva de representações migrantes de mulheres idosas. Bosi (1987, p. 9) escreve sobre a memória como “afloramento do passado” combinado “com o processo corporal e presente da percepção”: Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando- se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1987, p. 9). Pollak (1989; 1992) compõe a memória, essa “força subjetiva”, em, pelo menos, três aspectos que lhe são inerentes: primeiro, por acontecimentos, tanto os pessoais quanto os vividos pelo grupo social no qual a pessoa se sente pertencer, “vividos por tabela”, onde também estão os eventos que não necessariamente estão no espaço-tempo da pessoa ou grupo; segundo, a memória é constituída por pessoas ou personagens; e, finalmente, pelos lugares. 18 A memória é um processo extremamente seletivo, como a memória coletiva é resultado de um jogo de forças entre grupos sociais, “a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização” (POLLAK, 1992, p. 204). O que é endossado por Bosi (1987, p. 17) para quem a memória “é trabalho” e que, na “maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado”. O passado não sobrevive na memória “tal como foi”: A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor (BOSI, 1987, p. 17). Apoiando-se em Halbwachs (1990) para o qual há tantas memórias quantos grupos existem, Bosi (1987) chama atenção a respeito da memória como processo social: as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre o corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo... Se lembramos é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar: “O maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, nô-las provocam” (1987, p. 17). Guarinello (1994) diz que em suas atividades como historiador e arqueólogo o colocaram frente a frente com as fraquezas da memória: “com os esquecimentos forçados pelos acasos da preservação, com a consciência do muito que não pode ser lembrado, porque não sobreviveu”. Ele completa dizendo que o arqueólogo, mais do que o historiador “opera seleções mais dramáticas”, ao que diríamos o pesquisador que lida com a construção da memória está sujeito a essas seleções dramáticas, por ter que fazer constantemente escolhas. E voltando ao raciocínio desse autor, o arqueólogo: é obrigado a destruir os sítios arqueológicos para escavá-los e preservá-los como documentos. E assim fazendo, o arqueólogo acrescenta aos documentos seus próprios silêncios e desatenções. Para os arqueólogos, memória e esquecimento são os dois produtos inseparáveis de seu próprio trabalho – 19 aquilo pelo que não se interessou, no momento da escavação, aquilo que não observou, ou aquilo que não descreveu, perdeu-se para sempre. A arqueologia, de certo modo, me fez ver como a memória que produzimos é frágil e seletiva (GUARINELLO, 1994 – grifo nosso). Acompanhando o processo de construção da memória está presente o esquecimento, outra face da mesma moeda. Como fenômeno social e individualmente construído podemos dizer que há uma ligação entre memória e identidade: a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204). Mori (1998, p. 8) chama atenção a respeito da memória como pressuposto teórico, “como instrumento de reconstrução da identidade” e, ao escolhermos os procedimentos da metodologia da história oral – denominados também de método biográfico (cf. SIMSON, 1998; 2000; 2003) –, estaremos tratando com esse “material” social e teórico que é a memória de mulheres que experienciaram a migração e, a partir dos depoimentos orais, construímos também os dados para a pesquisa: é um tipo de trabalho que, investigando processos profundos de reconstrução do self, a que esse reelaborar da memória individual e grupal necessariamente nos conduz, provoca transformações tanto nos entrevistados como nos pesquisadores, criando muitas vezes aquilo que denominamos de uma parceria fecunda, a qual tem geralmente como resultado um trabalho altamente enriquecedor (SIMSON, 2003, p. 103). Kenski (1996, p. 297), fala da necessidade, em se tratando do trabalho com memória, de uma perspectiva interdisciplinar que possa abranger os fenômenos numa sociedade cada vez mais complexa. Como uma das formas escolhidas para as construções das narrativas, o relato oral, técnica de produção de material utilizada por cientistas sociais, vem sendo desenvolvida desde as primeiras décadas do século XX, com um breve obscurecimento com o desenvolvimento das técnicas quantitativas nos anos de 1940. Ressurge a partir dos “novos meios de captar o real”, equipamentos de registros sonoros e imagéticos, disseminados logo após a Segunda Guerra Mundial. Como exemplo pioneiro dessa nova fase encontramos referência ao trabalho 20 de Oscar Lewis, “Os filhos de Sanchez” (QUEIROZ, 1991; THOMPSON, 1992), na década de 1960, que: embora se considere hoje discutível a maneira pela qual agiu, ao colher as várias histórias de vida de membros da família Sanchez, mostrou como utilizar um novo meio de registro, recolheu precioso repositório de dados, criou documentos cuja exploração é ainda possível, apesar das dúvidas levantadas. (QUEIROZ, 1991, p. 2) O relato oral como atributo humano de transmissão cultural pode dizer respeito ao passado remoto quanto ao passado recente: “tanto veicula noções adquiridas diretamente pelo narrador, que pode inclusive ser o agente daquilo que está relatando, quanto transmite noções adquiridas por outros meios que não a experiência direta, e também antigas tradições do grupo ou da coletividade” (QUEIROZ, 1991, p. 3). São os acontecimentos, um dos três componentes constituintes da memória, assinalada acima (POLLAK, 1992). Queiroz diz que nessa cultura narrativa que acompanha a história humana “encerra uma primeira transposição”, a experiência transformada em palavra oral: “Um primeiro enfraquecimento ou uma primeira mutilação ocorre então, com a passagem daquilo que está obscuro para uma primeira nitidez – a nitidez da palavra – rótulo classificatório colocado sobre uma ação ou uma emoção” (1991, p. 3), ou seja, o narrador como intérprete entre o indizível e o dizível. Podemos lembrar de outra transposição que ocorre com a passagem do oral para um signo – o desenho ou a escrita: “Da mesma forma que desenho e palavra escrita constituem uma reinterpretação do relato oral, também o indivíduo intermediário, por mais fiel que seja, acrescenta sua própria interpretação àquilo que está narrando”. Reconhecendo essas características da metodologia da história oral, optamos, dessa forma, por uma abordagem qualitativa em pesquisa, pois “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada”, enfatizando “mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 13), ao que Erickson (1989) também denomina de método de investigação interpretativa. Como Simson (2006, p. 74) diz, “trabalho no âmbito da História Oral (...) exige, para uma boa qualidade da análise, uma percepção do contexto em que a coleta do relato se deu e uma captação das mensagens não orais que o informante transmite na relação com o pesquisador”, daí a importância do pesquisador participar de todo o processo de produção do relato, acompanhando os detalhes da captação que vão além da mensagem falada, composta 21 desde as reações corporais do informante e do pesquisador, os silêncios, como os dados do ambiente em torno. A construção propriamente da narrativa é uma etapa intermediária que é antecedida por um processo de criação de laços que vão se consubstanciando até chegar a sua captação: “Além disso a análise propriamente dita é construída levando em conta o significado daquele relato no âmbito de um conjunto de depoimentos que são gerados pela rede ou redes de informantes, construídas pela pesquisa” (SIMSON, 2006, p. 75). Como foi dito anteriormente as redes foram sendo tecidas a partir dos espaços de educação de adultos que vivenciamos junto as depoentes e foram se transformando em vínculos de respeito e amizade. Simson (2006) aponta que uma análise válida dos relatos orais é possível através do “método comparativo e respondendo às perguntas fundamentais (Quem fala? De onde fala? Por que fala?)” (2006, p. 75). Os conteúdos dos depoimentos são perspectivas que realçam a diversidade de experiências que são trazidas à tona: quem fala? São mulheres idosas que experienciaram a migração, denotando um ponto de vista específico, realçando conflitos, desigualdades presentes no meio social, desigualdades econômicas, de classes e, também, nesse caso, de gênero. Já o de ‘onde falam’ pode comportar desde o espaço geográfico de quem fala, como os espaços na hierarquia social ocupados por quem está falando. O ‘por quê’ de estar falando é algo que pode ser interpretado na construção dos relatos, nas transcrições, como nas análises das mesmas. Num primeiro momento ele não é claro, sendo necessário aquele olhar atento que fala Simone Weil (apud BOSI, 2003, p. 210): “O método para compreender os fenômenos seria: não tentar interpretá-los mas olhá-los até que jorre a luz. Em geral, o método de exercer a inteligência que consiste em olhar”. Por outro lado, o olhar do pesquisador é seletivo e pode amputar dados que poderiam ser relevantes, mas assumimos as nossas incompletudes e as possibilidades de não realçar aspectos que poderiam ser relevantes. Mori (1998) propõe três etapas na construção da análise. Primeiramente, a partir da chamada “leitura flutuante” onde, no contato com os depoimentos transcritos, se deixa invadir pelas impressões proporcionadas pelo texto que devem ser anotadas como referências iniciais. Nas próximas leituras se busca um maior aprofundamento procurando “captar o obscuro, o desconexo, o implícito (...) impressos nas lacunas e entrelinhas de cada história” (MORI, 1998, p. 9). Num último momento, buscando estabelecer um quadro mais nítido, esquemas de leituras, categorias alcançadas e analisadas são comparadas entre si buscando pontos referenciais que estruturem as memórias. A narrativa final pode ser considerada como 22 resultado de um conjunto de narrativas compondo uma montagem, um reordenamento conforme os objetivos propostos. Para tanto, buscamos construir narrativas que envolvem depoimentos temáticos5: “a narrativa é tanto o fenômeno que se investiga como o método da investigação” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 12), que pressupõe uma busca por uma relação de igualdade com aqueles que irão contribuir com seus depoimentos (CONNELLY; CLANDININ, 1995; PORTELLI, 1997), denominada de natureza colaborativa: “todos os participantes se vem a si mesmos como membros de uma comunidade que tem valor para ambos, para investigadores e praticantes, para teoria e para a prática” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p.18). 1.1. Pequena nota sobre narrativa No exposto, apontamos a importância da idéia de narrativa – “faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198) – que permeia todo este trabalho de pesquisa. Benjamin (1994, p. 205) escreve que, como uma arte em vias de extinção, “é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação”. A extinção se dá por causa da enorme difusão das informações que teve inicio com a invenção da imprensa no período moderno. Como atividade artesã, necessita do contato entre pessoas, envolvendo “a alma, o olho e a mão” (BENJAMIN, 1994, p. 220) daqueles que participam de sua concepção. O narrar é substanciado tanto pelas experiências de quem narra, imprimindo na narrativa “a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (1994, p. 205), como as experiências gravadas em sua alma relatadas por outros, vividas assim “por tabela”: Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único? (BENJAMIN, 1994, p. 221). 5 Na História Oral, especificamente, a técnica de construção de depoimentos há um direcionamento deliberado pelo pesquisador a partir dos objetivos propostos pela sua pesquisa (cf. QUEIROZ, 1991). 23 A ação de narrar envolve todo corpo do narrador: seu olhar que envolve a assembléia de ouvintes e seus gestos que não se limita às movimentações das mãos, mas como parte da expressividade humana6: Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito (BENJAMIN, 1994, p.220-221). Por tratarmos de memórias migrantes de mulheres que já se encontram no período da velhice, Benjamin sugere que essa fase da vida humana dá uma autoridade característica a quem narra: a experiência da morte tantas vezes presenciada durante a vida como sua proximidade eventual por causa da idade: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade” (BENJAMIN, 1994, p. 208). Dessa forma, as narrativas construídas nesta pesquisa, como alerta Bosi (1987, p. 1), não tem a proposta de amostragem, aproximando ao que André (1984) se referiu ao estudo de caso. A partir de uma perspectiva qualitativa, que não necessariamente pretende abarcar a totalidade dos acontecimentos, buscamos interpretar a especificidade de panoramas, de “representação singular da realidade”, que é “multidimensional e historicamente situada” (ANDRÉ, 1984, p. 52), atentamos em tecer registros de memórias de mulheres em territórios migratórios. Os depoimentos foram gravados e armazenados em fitas cassetes que foram transcritos para a facilitação da análise, além do diário de campo que nos acompanhou em todo percurso de estudo. Nos relatos buscamos os aspectos que se aproximam e, por outro lado, o que se diferenciam, buscando relações às transformações espaciais brasileira tendo em foco as perspectivas das representações migrantes, especificamente, da experiência migrante feminina. 6 Sobre a idéia de gesto ver Zagonel (1992). 24 2. Representações, geografias e memórias subterrâneas: Paisagens e territórios a partir dos espaços da experiência: os lugares Como Bachelard (1993; 1997), nos valemos da imagem poética para as nossas reflexões a respeito das representações migrantes. Segundo o poeta Fernando Pessoa uma paisagem exterior está em íntima relação com uma paisagem interior: EM TODO o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção (...) essas paisagens fundem-se, interpenetram-se (PESSOA, 1980, p. 73-4). O poeta faz questão de enfatizar com letras maiúsculas: “EM TODO o momento...”. Paisagens não somente como cenários sensíveis – visuais, táteis, olfativos, sonoros – “detonadores de memória” (LIMA, 1996, p. 15), mas como paisagens representadas a partir de memórias especificas que relacionadas à idéia de experiência, conforme sugere Jorge Larrosa (BONDIA, 2002, p. 21), como sendo “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (grifo nosso), não o que simplesmente passa, acontece, ou toca. Paisagens que se dão da 25 reverberação da experiência no e com o mundo, nas construções nos e dos sujeitos sociais que constroem e reconstroem suas representações em relação com outros sujeitos e com espaço próximo e/ou distante. Em outras palavras, como diz Schama (1996, p. 17): “Antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas”. São paisagens representadas a partir das narrativas das memórias sobre os espaços experienciados. Ab´Saber (2003, p. 9) escreve que a paisagem é uma “herança”, o que dizer, então, da paisagem representada a partir da experiência migrante de mulheres? Bem, para falar de paisagem como representação leva em consideração a centralidade humana nas representações. Não há paisagem sem a presença humana7. A percepção, como “processo presente” (BOSI, p. 7) de direcionamentos dos sentidos, é influenciada pelas representações dos sujeitos, portanto, não são aleatórias e muito menos neutras, carregam em si toda bagagem social e cultural de quem percebe. Essa herança quando trabalhada através da História Oral como método pode se transformar em memória como objeto de estudo (SIMSON, 1998; 2000; 2003). Lefebvre (1966, p. 140) estudando escritos de Marx e Engels já se referiu que são “os homens que produzem as suas representações, as suas idéias – os homens reais, ativos, condicionados pelo desenvolvimento determinado das potências produtivas”, dessa forma, há o diálogo entre sujeito e objeto, aspectos que não se excluem na construção do conhecimento8. Para o educador Paulo Freire (1979; 1990; 1997) o mundo deixa de ser mero suporte, meio da vida biológica, para ser mundo a partir do momento em que o ser humano intervém nesse suporte de forma significativa e criativa, uma apropriação cultural do planeta poderia dizer os geógrafos culturais: Inventando a linguagem com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível a tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiúra do mundo (FREIRE, 1997, p. 58). O que vem ao encontro da experiência migrante, de sujeitos desenraizados que foram, de certa forma, obrigados a agir sobre o mundo forjando uma visão, uma representação 7 Aspecto que, de certa forma, detalha Keith Thomas em “O predomínio humano” (1989). 8 Marx e Engels já definiam a unidade entre sujeito e objeto que estavam separados nos pensamentos de Feuerbach e Hegel (LEFEBVRE, 1966). 26 peculiar. “O homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece” (MERLEAU–PONTY, 1996, p. 6), ao que Freire (1997, p. 64) acrescenta: “estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros”. O que faz do ser humano um ser que se realiza em relação com outros seres e espaços, um ser inacabado, em permanente movimento: Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, em esculpir, sem filosofar, sem pontos de vistas sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, em assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível (FREIRE, 1997, p. 64). O ser humano como ser social, que se produz em relação com o seu contexto de vida, é um ser que cria representações do mundo que habita. Suas referências não estão restritas ao seu tempo presente, mas abrange sua bagagem cultural que o liga ao seu passado: “Na realidade não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (...) “Um outro dado entra no jogo perceptivo: a lembrança que ‘impregna as representações’” (BOSI, 1987, p. 8). Para Guareschi (2003, p. 20) as representações não são ações somente cognitivas, mas também afetivas e sociais. O conceito de representações sociais foi desenvolvido por psicólogos sociais, em especial Moscovici, a partir dos estudos do sociólogo Émile Durkheim sobre as representações coletivas. Para Moscovici (1978, p. 25) foi “Durkheim o primeiro a propor a expressão ‘representação coletiva’. Quis assim designar a especificidade do pensamento social em relação ao pensamento individual”. Dessa forma, há preponderância do social nos produtos das representações: “Toda representação é composta de figuras e de expressões socializadas. Conjuntamente, uma representação social é a organização de imagens e linguagens, porque ela realça e simboliza atos e situações” (MOSCOVICI, 1978, p. 25). Representar vai além da ação de organizar a realidade para nos sentirmos integrados a mesma, é “de fato, edificar uma doutrina que facilite a tarefa de decifrar, predizer ou antecipar os seus atos” (MOSCOVICI, 1978, p. 27). A representação é um conceito e, ao mesmo tempo, um componente da realidade. Moscovici fala da “quase” tangibilidade das representações, sendo, ao mesmo tempo, substância simbólica (um conteúdo das interações sociais) e prática (a forma desse conteúdo): Elas circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações 27 trocadas, delas estão impregnados. Sabemos que as representações sociais correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e, por outro, à prática que produz a dita substância (1978, p. 41). Os pesquisadores da chamada Escola de Chicago denominaram de “interacionismo simbólico” quanto “a natureza simbólica da vida social”. As “significações sociais devem ser consideradas como ‘produzidas pelas atividades interativas dos agentes’” (BLUMER, 1969 apud COULON, 1995, p. 19). A representação reproduz, mas: essa reprodução implica um remanejamento das estruturas, uma remodelação dos elementos, uma verdadeira reconstrução do dado no contexto dos valores, das noções e das regras, de que ele se torna doravante solidário. Aliás, o dado externo jamais é algo acabado e unívoco; ele deixa muita liberdade de jogo à atividade mental que se empenha em apreendê-lo. A linguagem aproveita-se disso para circunscrevê-lo, para arrastá-lo no fluxo de suas associações para impregná-lo de suas metáforas e projetá-lo em seu verdadeiro espaço, que é simbólico. Por isso, uma representação fala tanto quanto mostra, comunica tanto quanto exprime. No final das contas, ela produz e determina os comportamentos, pois define simultaneamente a natureza dos estímulos que nos cercam e nos provocam e o significado das respostas a dar-lhes (MOSCOVICI, 1978, p. 26). Moscovici conclui que a representação social “é uma modalidade de conhecimento particular”, singular, única em sua natureza, que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos (...) possuem uma função constitutiva da realidade, da única realidade que conhecíamos por experiência e na qual a maioria das pessoas se movimenta. Assim, uma representação social é, alternativamente o sinal e a reprodução de um objeto socialmente valorizado (1978, p. 26-7). Formar uma representação é vincular “a um sistema de valores, de noções e práticas que confere aos indivíduos as forma de se orientarem no meio social e material, e de o dominarem”. E também, “propondo-os aos membros de uma comunidade a título de veículo para suas trocas e de código para denominar e classificar de maneira clara as partes do seu mundo, de sua história individual e coletiva” (MOSCOVICI, 1978, p. 27). Representar é, ao mesmo tempo, “veículo” e “código”, transporta o que representa e é inteligível por entre os pares que a utiliza. Dá forma aos conteúdos das comunicações. Para a teoria das representações sociais o senso comum não é um conjunto de saberes menores, como representações que são, “é um corpo organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam inteligível a realidade física e social, 28 inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana de trocas, e liberam os poderes de sua imaginação” (op. cit. p. 28). Em outras palavras, “para o chamado homem moderno a representação social constitui uma das vias de apreensão do mundo concreto” (MOSCOVICI, 1978, p. 44). Diferente de Durkheim, para quem as descrições produzidas pelos agentes sociais “são vagas e ambíguas demais para que o pesquisador lhes possa dar um uso científico”, onde os aspectos subjetivos não pertenceriam ao domínio sociológico, a idéia do interacionismo simbólico afirma que é a concepção que esses mesmos agentes “têm do mundo social que constitui, em última instância, o objeto essencial da investigação sociológica” (COULON, 1995, p. 20). Com a interpretação interacionista: O agente aprende a construir seu ‘si’, e o dos demais, graças à sua interação com estes (...) os ‘si’ adquirem um significado social, tornando-se fenômenos sociológicos, que constituem a vida social. O estudo sociológico deste mundo, portanto, deve analisar os processos pelos quais os agentes determinam suas condutas, com base em suas interpretações do mundo que os rodeia (COULON, 1995, p. 20). Poderíamos traduzir esse si como o aspecto da construção da identidade e que, pela primeira vez na pesquisa social, o interacionismo simbólico “dá lugar teórico ao agente social como interprete do mundo que o rodeia”, levando em conta “o ponto de vista dos agentes sociais, pois é através do sentido que atribuem a objetos, indivíduos e símbolos que os rodeiam, que eles fabricam seu mundo social” (COULON, 1995, p. 22). A construção da identidade se relaciona ao que Weil (1979) escreveu sobre o “enraizamento”: O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente (WEIL, 1979, p. 347). Encarada como uma “categoria explicativa” (GARCIA, 1997, p. 12), discutir o enraizamento como sentimento de pertencimento de um grupo que possui um determinado lugar social, implica discutir a questão da identidade, como “um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto, e não uma essência ou substância a ser examinada” (HALL, 2006, p. 15). 29 Para Hall (2005), o sujeito contemporâneo não é visto como possuidor de uma identidade fixa, essencial ou permanente. Pelo contrário, “identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (2005, p. 12-3). Como “celebração móvel”, ou mesmo “líquida” (BAUMAN, 2005), ela é “definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (HALL, 2005, p. 13). No sujeito contemporâneo há identidades contraditórias: empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2005, p. 13). A questão da identidade denota o caráter “intersubjetivo” das representações que se travam nas construções socioespaciais: “A existência do outro como “outro eu”, dá-nos acesso a um mundo que não é mais unicamente o da experiência particular, mas o mundo ‘intersubjetivo’ que existe para todos” (SERPA, 2001). A percepção como condicionada pelas representações é sempre intersubjetiva e histórica, ou seja, passa pelo crivo da cultura, “nunca é (...) única e racional” (BEZZI, 1996). Para o intuito deste trabalho, as categorias “tradicionais” da geografia – paisagem, território e lugar – servem como eixos para a análise das representações dos espaços experienciados. A idéia de lugar que sugere Weil (1979) nos parece de vital importância para entendermos a relação das pessoas aos espaços da experiência. Sobre o tema, escreve Tuan (1983, p. 4): “Os lugares são centros aos quais atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades”. Relph (1979, p. 18) assinala que esta categoria comporta muito mais que o sentido de localização: se conhecemos lugares com afeição profunda e genealógica, ou como pontos de parada numa passagem através do mundo, eles são colocados à parte porque significam algo para nós e são os centros a partir dos quais olhamos, metaforicamente pelo menos, através dos espaços e para as paisagens. 30 Nesse sentido, os lugares são espaços nos quais os sujeitos estabelecem ligações de familiaridade e afetividade. São espaços da experiência “apropriados através do corpo” (CARLOS, 1996, p. 22). Esta categoria focaliza as outras categorias espaciais – paisagem e território – em torno das intenções e experiências humanas. Conhecemos o mundo “através e a partir dos lugares nos quais vivemos e temos vivido, lugares que clamam nossas afeições e obrigações. Neste sentido (e há muitos outros) lugares são existenciais e uma fonte de auto-conhecimento e de responsabilidade social” (RELPH, 1979, p. 16). Dardel (1952) fala do lugar como ponto de partida da experiência geográfica onde as bases da existência e condição humana se estabelecem. “Nós podemos trocar de lugares, mudar, mas isso é ainda a procura de um lugar; precisamos de uma base para estabelecer nossa Existência e realizar nossas possibilidades, um aqui a partir do qual descobrir o mundo, um acolá para o qual ir” (1952, p. 56 - grifo do autor). O processo de enraizamento e o de desenraizamento (cf. SILVA, 1999; 2001; GUILLEN, 2001; FROCHTENGARTEN, 2009) podem se dar como uma relação afetiva com os lugares experienciados, como topofilia ou topofobia9 e, dessa forma, entendidos a partir da experiência espacial (TUAN, 1983; RELPH, 1979) de quem as vivenciou. Ou nos dizeres de Lima (1996, p. 15): o espaço vivido, experienciado como uma forma viva, onde fica clara a percepção dos lugares como “capsuladores do tempo e detonadores da memória”... A leitura da paisagem encontra-se deste modo, vinculada à percepção sensível do espaço, onde de acordo com Bueno (1994, p. 14), os “verbos conhecer e viver desdobram-se em padecer, esperar, amar, discutir, negar, em síntese, experienciar...” (grifo da autora). O que para Sartori (2000, p. 13): “A realidade objetiva inclui a percepção ambiental como fruto da experiência vivida e sentida, uma vez que o corpo humano não termina em seus limites físicos, estendendo-se nas coisas e nas pessoas com as quais se relaciona cotidianamente”. Se buscamos tratar de representações de mulheres que experienciaram o processo da migração interna brasileira – um processo compulsório, precário, gerado em tensões sociais e econômicas – poderíamos relacioná-las aos “sujeitos da experiência” (BONDÍA, 2002, p. 25): o “sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um 9 Se topofilia é o laço afetivo que liga as pessoas a espaços, paisagens e lugares, topofobia, ao contrário, é a repulsa ou sentimento de medo por determinado espaço, ou paisagem ou lugar (AMORIM FILHO, 1996; BACHELARD, 1993; LIMA, 1996, p. 77; RELPH, 1979; TUAN, 1980). 31 espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade e ocasião”. Nesse caso, a migração podendo ser uma última escolha, última opção, limiar de um mundo para o inicio de um outro desconhecido, buscar por algo além da sobrevivência, dignidade talvez, materializado na relação com o mundo do trabalho (BEIRO, 2005; RESENDE, 1986). Errantes como ciganos os caminhos trilhados podem, como sugere Lima (1996, p. 77), ser entendidos como lugar/movimento, que vão estabelecendo “territórios migratórios” (SILVA, 2007). Quando se trabalha com a idéia de territórios migratórios é necessário levar em conta os espaços de origem e destino, além dos lugares intermediários, como os de passagem e aqueles que servem como instalações temporárias no percurso da migração. O território migratório é um espaço organizado e significativo que mantém uma lógica própria (SILVA, 2007). Na configuração dos territórios migratórios os espaços de origem e de destino estão “unidos e próximos socialmente”. Formados pelos migrantes, esses territórios são tecidos no tempo e no espaço da itinerância por uma rede de relações e de significados, onde os primeiros são sujeitos privilegiados como testemunhos para se entender parte do processo migratório brasileiro. Se para Larrosa os sujeitos da experiência são eles próprios “territórios de passagem” (BONDÍA, 2002, p. 26), nesse entender, os migrantes são eles também, metaforicamente, “territórios”. A idéia de “território mostra que a compreensão dos lugares e das paisagens não se realiza sem limites e limitações propostas, opostas ou impostas pelos homens” (SEEMANN, 2002/2003, p. 45) e o migrante vive um processo, geralmente, ligado às tensões sociais que deixa marcas tanto na paisagem como nos próprios sujeitos. Wright (1947 apud LOWENTHAL, 1982, p. 103) chamou de terrae incognitae as representações geográficas que as pessoas trazem em seu íntimo. Nossa proposta, de certa forma, vislumbra as categorias paisagem e território a partir da categoria lugar: esse espaço da experiência, não necessariamente, imediata, mas mediada pelas memórias migrantes de mulheres, assim, não é necessário que os fatos e objetos estejam próximos no tempo e no espaço. Na pesquisa proposta, a assunção da subjetividade junto à objetividade é permitida através de abordagens humanísticas e culturais. Essas abordagens apresentam características e temáticas comuns, mas, para Holtzer (1993, p. 111) o que pode diferenciá-las é que a primeira enfatiza “o mundo vivido e a intencionalidade humana como fator de modificação e de 32 ligação com o hábitat”. Como aponta Christofoletti (1982, p. 22) “os geógrafos humanistas argumentam que sua abordagem merece o rótulo de ‘humanística’, pois estudam os aspectos do homem que são mais distintamente humanos: significações, valores, metas e propósitos”. Amorim Filho (1996), após listar os principais autores da percepção ambiental – como tema humanístico – identificando suas raízes a partir do século XIX, destaca o trabalho do geógrafo Yi-Fu Tuan que, desde o início dos anos de 1970, “tem apresentado novos e fundamentais conceitos para a compreensão do ambiente e das aspirações do homem em termos de qualidade ambiental” (1996, p. 141). A partir de um simpósio sobre percepção ambiental e comportamento10, propõe Tuan: um projeto humanista para a geografia, ou, como (...) sugere, uma diversidade de possíveis ‘aproximações humanistas’, tais como: as atitudes do indivíduo em relação a uma região; a concepção, pelos indivíduos, da sinergia homem– natureza; atitudes dos povos acerca do ambiente e as cosmografias nativas (HOLTZER, 1993, p. 118). Ao falar sobre a relação que as pessoas vão estabelecendo com o espaço geográfico Tuan (1980, p. 285) esclarece: “Todos os homens compartilham atitudes e perspectivas comuns, contudo a visão que cada pessoa tem do mundo é única e de nenhuma maneira fútil”. Por outro lado, Claval (2002, p. 135) salienta que a geografia cultural agrupa pesquisas “que têm em comum a ênfase no papel das representações, crenças e sistemas de idéias na formação das paisagens e na organização do espaço”. Quando dizemos acima sobre “paisagem interior”, como representação, ela tem um papel importante na transformação das paisagens, pois seus portadores são agentes ativos nas construções de espaços. Não são apenas as “memórias ou culturas dominantes e oficiais” que produzem paisagens, mas outras memórias, outros agentes sociais, não evidentes no cenário social, também participam dessas construções. Relacionando a questão da memória na perspectiva histórica e social pode ser tratada em pelo menos duas formas que se inter-relacionam: de um lado, a memória coletiva ou oficial (geralmente legitimada pelas classes dominantes da sociedade) e, de outro, as memórias subterrâneas ou marginais. Vamos nos deter em memórias que se enquadram nessas últimas, “que correspondem a versões sobre o passado dos grupos dominados de uma dada sociedade” (SIMSON, 2000, p. 63). 10 Ver LOWENTHAL, 1967. 33 Enquanto as memórias oficiais encontram ressonância social chegando até mesmo a se materializar nos chamados “lugares da memória” (NORA, 1993) – monumentos, suportes concretos variados, textuais, obras de arte, entre outros –, por outro lado, as subterrâneas ou marginais somente se expõem “quando conflitos sociais as evocam ou quando os pesquisadores que utilizam do método biográfico ou da história oral criam as condições para que elas emerjam e possam ser registradas, analisadas e passem, então, a fazer parte da memória coletiva de uma dada sociedade” (SIMSON, 2000, p. 64 – grifo da autora). Essas memórias se encontram guardadas “no âmago de famílias ou grupos sociais dominados nos quais são cuidadosamente passados de geração a geração” (idem, p. 64). Nessa perspectiva, Simson (1998), apoiando-se no semiólogo Yuri Lotman, enquadra cultura como sendo também memória: A cultura é a memória longeva de uma comunidade (...) e não um simples depósito de informações: é um mecanismo organizado de modo extremamente complexo que conserva as informações, elaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as a um outro sistema de signos (...). Somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória (LOTMAN apud SIMSON, 1998, p. 33). Quanto à importância desse patrimônio é “a cultura de uma sociedade” que “fornece os filtros através dos quais os indivíduos que nela vivem possam exercer o seu poder de seleção realizando as escolhas que determinam aquilo que será descartado e aquilo que precisa ser guardado ou retido pela memória” (SIMSON, 2000, p. 64 – grifo da autora). A esses filtros pode-se relacionar os aspectos identitários ao se viver num dado grupo. Somadas as prerrogativas humanísticas, as representações são guiadas pelos contextos socioculturais nos quais os sujeitos vão construindo suas trajetórias, conforme alerta Cosgrove (1998, p. 104): “uma posição diferente na sociedade significa uma experiência e consciência diferentes, até certo ponto uma cultura diferente”. O que faz aparecer dentro de uma mesma sociedade concepções diferenciadas: “Há, portanto, culturas dominantes e subdominantes ou alternativas, não apenas no sentido político (...) mas também em termos de sexo, idade e etnicidade” (COSGROVE, 1998, p. 105). A abordagem humanístico-cultural não é um subconjunto autônomo dentro da geografia humana, mas a importância em desenvolvê-la: é reconhecer que, ao lado das lógicas econômicas, sociais ou políticas em ação na vida coletiva, existem outras que dizem respeito às particularidades dos 34 sistemas de representação, dos signos e dos símbolos pelos quais apreendemos o mundo e conseguimos nos comunicar (CLAVAL, 2002, p. 136). Claval (2002, p. 141-2) nos traz uma definição de cultura a partir da antropologia: como conjunto daquilo que os homens recebem de herança ou que inventam; ela é feita de tudo aquilo que é transmissível (...) é o conjunto de representações sobre as quais repousa a transmissão, de uma geração a outra ou entre parceiros da mesma idade, das sensibilidades, idéias e normas. Ela inclui a imagem do meio ambiente próximo e os conhecimentos, práticas e ferramentas que permitem tirar partido dele. A transmissão cultural não acontece simples e puramente, pois quem recebe essa herança faz uma (re)leitura, (re)interpreta a partir da bagagem cultural, da leitura de mundo, que traz consigo11. Por outro lado, a cultura como aquilo que “os homens inventam”, por ser justamente uma invenção, criação, reconstrução a partir do que é transmitido pelas gerações mais antigas, representa o caráter dinâmico do que se traduz como cultura – uma constante com respeito às invenções da memória, o que justamente denota sua riqueza de possibilidades (cf. AMADO, 1995). Além de considerar o universo humano em sua dimensão material, Claval (2002) levanta outras questões que passam pelos significados, como esforços que tentam organizar o mundo. Um aspecto nos remete a construção-conservação-transmissão da memória como cultura: Passar mensagens ou difundir conhecimentos é, antes de tudo, um problema de comunicação. Isso pode ser verificado por um fato: as sociedades se transformam quando os meios de que elas dispõem para anotar as informações, conservá-las e fazê-las circular se modificam (CLAVAL, 2002, p. 141). Sobre a questão da comunicação, Moscovici (1978) aponta: jamais se reduz à transmissão das mensagens de origem ou ao transporte de informações inalteradas. Ela diferencia, traduz, interpreta e combina, assim como os grupos inventam, diferenciam ou interpretam os objetos sociais ou as representações de outros grupos. (...) No processo de comunicação, acompanhamos passo a passo a gênese das imagens e dos vocabulários sociais, seu conúbio com as regras e os valores dominantes, antes que componham uma linguagem definida, a fala da sociedade. Uma fala bem feita, para ser escutada, trocada e fixada na prosa do mundo (1978, p. 28-9). 11 Para Paulo Freire (1990, p. 11) “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra... mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”. 35 As pessoas, ou os grupos sociais, como portadores dessas mensagens, trazem consigo o espaço que percorreram. “Os fatos culturais interessam à geografia porque o espaço e o ambiente intervêm nos processos de transmissão e constituem um dado essencial daquilo que se transmite de uns para os outros” (CLAVAL, 2002, p. 142). As prerrogativas espaciais como fatos sociais condicionam as culturas que sobre elas são geradas e ressignificadas. Cultura não é herança apenas: Ela comporta elementos novos, é o fruto de uma incessante atividade inventiva. Os lugares onde as idéias germinam não são distribuídos ao acaso: as regiões de densidade elevada e os grandes centros urbanos favorecem os encontros e as trocas, o que estimula as reflexões. (...) Os estudos dos processos culturais, evidentemente, têm uma dimensão coletiva, pois as concepções do mundo, da natureza ou da sociedade – que nos abrem a todas as influências, ou nos isolam do resto do mundo – exprimem as atitudes de preferências de um grupo que tais concepções definem. A geografia cultural contribui para explicar por que as células sociais se opõem, ou por que se integram em construções mais amplas (CLAVAL, 2002, p. 143 e 145). No caso do ser migrante, ao entrar em um espaço desconhecido, adentra num espaço onde a paisagem e sua organização lhe informa os lugares e as posições sociais de seus integrantes: “relembram suas hierarquias e designam aqueles que nelas ocupam posições de influência ou autoridade” (CLAVAL, 2002, p. 146). Relegam aos recém-chegados, geralmente, às ruas, favelas, cortiços e bairros populares. A essas imposições, Bosi (2003), voltando à definição de enraizamento de Weil, relaciona a função simbólica materializada no espaço a partir da idéia de desenraizamento no qual – aqueles já desenraizados – são submetidos: A metáfora de Simone Weil ganharia uma força inesperada se enxergássemos nos loteamentos populares como a terra é raspada pelo trator que condena o solo à esterilidade. Roubando-se a camada de terra-mãe, fértil, escura, o morador fica impedido de plantar no torrão árido e vermelho sobre o qual assenta a casa. E a palavra “homem” deriva de “húmus”, chão fértil, cultivável. Assim começam os bairros de periferia, despojando o homem da terra de sua humanidade (2003, p. 177). Quanto a essa infertilidade nos bairros populares é testemunhado pelo depoimento de Angelina (Capítulo 5). Paul Claval (2002, p. 146) fala que “a paisagem carrega a marca das culturas que a formaram: inicialmente, marca funcional (...) em seguida, marca simbólica”. Como exemplo 36 traz a colonização do Meio-Oeste dos Estados Unidos: “Um quadro geométrico é imposto a uma natureza diversa e proliferante: isso traduz uma firme desconfiança com relação a forças que parecem incontroláveis”. Relacionamos este exemplo às demarcações das terras nas chamadas “franjas pioneiras” assinaladas por Monbeig (1984), no norte do estado do Paraná e oeste de São Paulo. O primeiro caso é comum nessa lógica geométrica de demarcação. Diferente do ocorrido no vizinho estado paulista, onde o fracionamento territorial acompanhava, geralmente, os traçados do relevo, os interflúvios e os canais dos rios. Na porção oeste de São Paulo, apesar de também estar sob a mesma lógica de expansão agrícola que estava condicionada o estado paranaense, há implícito outros valores culturais de quem as colonizou e começou a organizar esse espaço que no início do século XX eram denominados de “terrenos desconhecidos habitados por índios” (FITTIPALDI, 2006). Enquanto em São Paulo, com certa evidência, a “marcha pioneira” era financiada pelo poder público e grandes fazendeiros, com as linhas de ferro acompanhando os espigões e as terras férteis para a cultura do café, nas terras do Paraná, além desses aspectos, há ações de companhias inglesas dentro de uma lógica próxima a colonização estadunidense como no exemplificado por Claval (2002). Os exemplos paranaense e paulista são significativos do entrelaçamento entre os aspectos humanísticos com os culturais neste estudo, pois eles são desvelados nas narrativas migrantes que vamos ver à frente. 37 PARTE II Territórios migratórios 38 3. Apontamentos sobre a virada da urbanização brasileira É conhecida a intensidade da migração interna brasileira a partir de meados do século XX (COSTA, 1996; DURHAN, 1973; GUILLEN, 2001; SANTOS, 2005; SANTOS; SILVEIRA, 2001), mas pouco se sabe sobre as representações daqueles que a experienciaram. Assim, sugere Queiroz (1991, p. 18): “saber como agiam os ‘silenciosos’, aqueles que pouco aparecem na documentação escrita, isto é, as camadas de baixa renda; saber como encaram sua existência diante das modificações velozes em curso”. Ou como adverte Sérgio Buarque de Holanda: “fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história”12. Não se pode ignorar que o processo migratório ocorre durante toda história brasileira, acompanhando os “ciclos” econômicos e as mudanças dos espaços internos de atração. Mas há uma diferenciação nesse processo durante o século XX: o altíssimo grau de urbanização. Para Lefebvre (2001, p. 19) a urbanização, juntamente com a industrialização, faz parte de processos mundiais. O Brasil estando inserido nesse contexto reage às exigências dessa internacionalização, aspecto este verificado nos direcionamentos políticos em favor da 12 Epígrafe em BITTENCOURT, 2007, p. 185. 39 modernização dos processos produtivos que são também refletidos na mobilização de mão-de- obra pelo território. A urbanização brasileira que começou a se implementar nas décadas finais do século XIX atinge índices ainda não conhecidos pelo país até então13. A virada da urbanização ocorre entre as décadas de 1950 e 70 quando a população passa de maioria rural para maioria urbana nessa última década. Período denominado por Santos (2005) de “revolução urbana brasileira”, é marcado pelo esvaziamento das áreas rurais e o conseqüente inchaço das cidades médias e grandes: Desde a revolução urbana brasileira, consecutiva à revolução demográfica dos anos 50, tivemos, primeiro, uma urbanização aglomerada, com o aumento do número – e da população respectiva – dos núcleos com mais de 20 mil habitantes e, em seguida, uma urbanização concentrada, com a multiplicação de cidades de tamanho intermediário, para alcançarmos, depois, o estágio da metropolização, com o aumento considerável do número de cidades milionárias e de grandes cidades médias (em torno do meio milhão de habitantes) (SANTOS, 2005, p. 77). Como processo que ocorre concomitante a outras mudanças espaciais, a migração interna, conforme Durhan (1973, p. 16) vem “se instaurando desde 1930 quando o migrante nacional passa a substituir o imigrante estrangeiro como mão-de-obra mobilizada para promover o desenvolvimento econômico”. Esse processo começa a se intensificar após a Segunda Guerra Mundial, onde a economia capitalista mundial “passou por um novo surto de internacionalização” (PINTAUDI; CARLOS, 1995, p. 11) e, dentre outros motivos, com contribuição do Plano de Metas durante o governo de Juscelino Kubitschek e implantação da “revolução verde” para a modernização da agricultura: O rápido processo de adoção de inovações tecnológicas na agricultura e a intensificação da concentração fundiária provocaram o êxodo de milhares de colonos, parceiros, arrendatários e pequenos proprietários, os quais se deslocaram seja em direção às novas regiões de fronteira agrícola do Centro- Oeste e Norte do Brasil, seja em direção aos centros urbanos mais industrializados, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro (HESPANHOL, 2004). O que para Durhan (1973, p. 13) significou a “destruição do modo de vida tradicional”: 13 “Pode-se dizer que uma sociedade está se urbanizando na medida em que o crescimento da população urbana é maior do que o da população rural” (BRAGA & CARVALHO, 2004, p. 105). 40 Desapareceram as relações de trabalho como parceria e colonato, que davam certa autonomia ao produtor e nas quais o acesso à terra constituía parte da remuneração do trabalhador. Tanto na Zona da Mata, no Nordeste, como, de modo cada vez mais geral, no Estado de São Paulo, a aplicação de legislação trabalhista no campo vem resultando na expulsão do trabalhador da fazenda para a cidade, e na criação da categoria de ‘volante’, trabalhador rural que mora na cidade e constitui uma mão-de-obra mobilizada por empreiteiros para as diferentes tarefas agrícolas de diversas propriedades rurais. É a partir da década de 1940 que começam a ser sistematizados estudos sobre a migração interna, com estudos geoestatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estudos econômicos e pesquisas desenvolvidas por cientistas sociais (AZEVEDO, 2002, p. 17-8). Santos (2005) destaca a “inversão quanto ao lugar de residência da população” no período de 1940 a 1980 apesar dos dados anteriores à primeira década não serem confiáveis quanto à metodologia empregada para verificação dos residentes nas cidades: População total e urbana no Brasil Censo População Total População Urbana Índice de Urbanização Índice de crescimento Populacional Índice de crescimento Urbano 1900 17.438.434 - - - - 1920 27.500.000 4.552.000 16,55 % 43,08 % - 1940 41.326.000 10.891.000 26,35 % 33,46 % 37,19 % 1950 51.944.000 18.783.000 36,16 % 25,70 % 72,46 % 1960 70.191.000 31.956.000 45,52 % 35,13 % 70,13 % 1970 93.139.000 52.905.000 56,80 % 32,69 % 65,55 % 1980 119.099.000 82.013.000 68,86 % 27,87 % 55,02 % 1991 150.400.000 110.990.990 73,80 % 26,28 % 35,33 % 2000 169.799.170 145.800.000 85,87 % 12,90 % 31,36 % 2006 186.119.238 165.832.920 89,10 % 9,61 % 13,74 % Fontes: ROCHA, 2006; SANTOS, 2005. Os altos índices de crescimento populacional brasileiro no início do século XX se dão pela incrementação da migração estrangeira. Posteriormente, os índices vão decaindo até a década de 1960, onde há um ligeiro crescimento, para depois voltar a cair até chegar aos 9,6 % de 2006, índice baixo comparado aos períodos anteriores. Quanto ao direcionamento da população pelo território, a migração estrangeira e depois com a migração interna, para a região sudeste é favorecida não só pela acumulação propiciada pela monocultura cafeeira e a 41 nascente indústria na “republica velha” como pelas políticas modernizadoras do período após a Segunda Guerra Mundial e subseqüentes décadas, de 1950, 60 do governo JK e o “milagre brasileiro” de 1970 no período militar, criando infra-estruturas que favoreceram a circulação não somente de pessoas, como de mercadorias e de informações. População urbana e rural no Brasil Ano do Censo População Total População Urbana % População Rural % 1940 41.236.315 12.880.182 31,24% 28.356.133 68,76% 1950 51.944.397 18.582.891 35,77% 33.361.506 64,23% 1960 70.070.457 31.303.034 44,67% 38.767.423 55,33% 1970 93.139.037 52.089.984 55,93% 41.049.053 44,07% 1980 119.002.706 82.436.409 69,27% 36.566.297 30,73% 1991 146.825.475 110.990.990 75,59% 35.834.485 24,41% 2000 169.799.170 145.800.000 85,87% 23.999.170 14,13% 2006 186.119.238 165.832.920 89,10% 20.286.318 10,90% Fonte: ROCHA, 2006. Tanto o crescimento quanto a concentração populacional nas áreas urbanas, como centros de atração de pessoas, acompanham dessa forma os direcionamentos políticos deliberados pelas políticas públicas durante a história recente do país que, por outro lado, refletiram as escolhas das pessoas nos rumos que escolheram para migrar. Quanto ao ato de migrar, Damiani (1991, p. 63) lembra que “para Max Sorre o impulso migratório raramente é um fato simples; resume-se num acúmulo de necessidades, desejos, sofrimentos e esperanças”, sendo que para George (1978, p. 106) as locomoções “são especialmente ingratas para as criaturas que delas participam e que são forçadas a viver durante anos de modo anormal, expostas a todas as tentações e degradações”. Nos espaços de atração, para os migrantes, geralmente, lhes sobram os empregos negados pelos trabalhadores locais, mal remunerados e de condições precárias. O que para uns podia ser sintoma da modernização da sociedade, para outros a migração era um problema: A concepção de migração como problema é constituída pela classe dominante e na variante paternalista tutora das classes subalternas. Mas, o problema real, aquilo que a migração representa para o migrante, fica fora desta perspectiva. Às vezes se supõe que ouvindo e transcrevendo a fala do migrante está revelando a sua realidade profunda e sua interpretação do problema. Sabendo que a sociabilidade brasileira dominante é marcada e bloqueada por enormes 42 dificuldades no reconhecimento do outro, isto é, diferente, igual (SOUZA, 1993, p. 47). Sabemos que a nossa análise do problema não revelará a “realidade profunda e sua interpretação”, mas buscamos a especificidade, outros olhares diferenciados sobre a questão como alertamos nas páginas anteriores. Resende (1986) apesar de não ter trabalhado especificamente com a temática migração, discute narrativas que a locomoção pelo território permeia os relatos de alunos trabalhadores de Belo Horizonte (MG). Nos relatos são freqüentes a percepção da relação campo–cidade ou pequena cidade–grande cidade, como sentido da movimentação dos depoentes pelo território nacional. A autora selecionou e analisou alguns relatos de história de vida encontrando evidências de saberes geográficos, onde é percebido que as experiências de migrantes contribuem com a construção de conhecimentos sistematizados pela geografia. A análise das trajetórias de vida segundo Resende (1986, p. 133) possibilita a produção de um conhecimento original. O vivido seleciona e ordena. Vinculado ao trabalho, o “espaço de origem”, por exemplo, será sempre referência para comparação com outros espaços; “o espaço de busca”, geralmente, “idealizado, glamourizado e depois assustadoramente sofrido, mas de qualquer modo um espaço de experiência direta”. Esses espaços de experiência direta, de sonhos, conflitos e frustrações geram ressignificação, uma forma peculiar de concebê-los: É, pois, a luta pela sobrevivência com a sua cota compulsória de medo, solidão, dor, morte, mas também de astúcia e arte em relação à natureza, bem como de tensão velada ou ostensiva face às normas da divisão social do trabalho, que forja essa visão particular, essa maneira própria de encarar a relação indivíduo/espaço que chamamos espaço real (RESENDE, 1986, p. 132). O foco de nosso estudo são as representações de mulheres que experienciaram o processo migratório a partir do que chamamos de virada da urbanização, período que abrange as décadas de 1950 a 1970. Este período será destacado a partir da escolha pelas mulheres que experienciaram esse processo durante esse momento histórico, com os seus depoimentos sobre suas travessias e as mudanças na paisagem. A partir de construções de narrativas feitas em parcerias onde buscamos os significados justamente com aquelas que vivenciaram as transformações como ‘atrizes’ – como agentes sociais. 43 4. Os depoimentos: os espaços na experiência feminina migrante Enfatizamos nosso objetivo principal, o de construir representações do espaço migratório a partir do registro de narrativas de memórias das mulheres que experienciaram a migração interna. As falas são apresentadas com poucas correções, apenas o que consideramos necessárias para facilitar a leitura. Como sugere Menezes (1992, p. 170), procuramos manter os estilos, as expressões características e os vícios da linguagem falada. Aqui deixamos o alerta sobre o caráter delicado de se lidar com lembranças do período de itinerância, ainda mais, como já sinalizamos acima, de sua característica compulsória de se viver esse processo. Se há histórias que muitas vezes se pretende esquecer, também há as que provocam nostalgia. Vontades contraditórias que subsistiram nesse processo de construção. Os depoimentos foram captados em dois momentos, ou fases. Primeiramente, fizemos entrevistas exploratórias individuais com um grupo de oito mulheres da Turma do Jardim Esmeralda. As entrevistas foram semiestruturadas a partir de três questões básicas: Qual cidade nasceu? Em quais cidades morou antes de se mudar para Rio Claro? Quais as razões (para a entrevistada) dessa movimentação, desde a cidade onde nasceu até a cidade atual (Rio Claro)? A esse momento chamamos de Entrevistas 1. 44 Para o segundo momento, foram selecionadas, das primeiras entrevistas, duas depoentes, Odete e Angelina, cuja vivência no processo migratório abrangia as décadas da virada da urbanização e seus depoimentos traziam grande riqueza de detalhes que poderiam ser explorados para o estudo das representações sobre o espaço e os territórios migratórios. A esse grupo foi acrescentada a narrativa de Zulmira que não havia participado daquelas entrevistas e que se dispôs a colaborar. No contexto, ela é uma espécie de líder comunitário do bairro que chegou a freqüentar as aulas, mas justamente, por causa de suas atividades na comunidade, não permitia a sua assiduidade. As Entrevistas 2 foram realizadas durante o ano de 200714 onde às depoentes era sugerido que falassem dos lugares onde viveram, de acontecimentos que lembrassem, as pessoas que acompanhavam, etc. As nossas interferências surgiam a partir do que era relatado, não tendo preocupações prévias de roteiros preestabelecidos, deixamos as colaboradoras relatassem as lembranças de suas travessias migrantes. 4.1. Entrevistas 1: “A gente sempre está atrás de uma melhorazinha, né?” Sobre os trechos selecionados das Entrevistas 1 apresentamos alguns apontamentos. Além de serem exploratórias, nos trouxeram informações importantes, dentre as quais, os motivos que as levaram a migrarem, como apontam os trechos a seguir15: “Eu precisava trabalhar, né? Eu vim trabalhar de empregada e estou aqui até hoje”. Pedrinha Helena Simões Sopran (grifo nosso). A expressão “né” é resultado de outras duas palavras: não é. Pode ser uma pergunta que, geralmente, aparece nas conversas informais, como pode ser um pedido de confirmação do que está sendo falado para quem ouve. Semelhante às terminações em diminutivo – em 14 Com exceção de Odete que falecera meses antes das Entrevistas 2. Utilizamos seu rico depoimento da primeira fase. 15 As Entrevistas 1 por serem exploratórias e breves não achamos necessário o fichamento temático, apenas trazemos no corpo do texto os trechos selecionados. Já as Entrevistas 2 por serem mais extensas trazemos dentro da narrativa de pesquisa o fichamento temático e os trechos analisados. Em Apêndice estão as entrevistas completas. 45 inho, por exemplo, (Ver trajetória de Angelina, no capítulo 5) – é uma forma de aproximação entre as pessoas que participam de uma comunicação oral. “É por causa que meu irmão veio para cá, né? E minha mãe veio atrás dele. Ele veio primeiro para arrumar serviço. Veio morar na casa de meu tio Paulinho e logo atrás nós viemos”. Francineide Pinheiro Lima Rosolem “Eu acho que o motivo assim de trabalho, né? Que os pais da gente queriam procurar serviço em outro lugar. Porque tinha meu irmão solteiro, então, ele veio trabalhar em frigorífico. Foi por motivo de trabalho mesmo. Em José Bonifácio tem gado e frigorífico. Nós viemos do sítio, de Neves Paulista, para ele trabalhar aí no frigorífico de José Bonifácio”. Maria Aparecida Moreira “Porque depois por lá não deu certo. Depois mudamos de lá de Campinas. De lá de Jaguariúna mudamos para aqui perto de Cordeirópolis, numa chácara perto de Cordeirópolis. E depois nós trabalhávamos naquela chácara... tomava conta de seis chácaras”. Izaura Lopes “Acompanhando o marido, né?!” Odete Procópio Morelli Se os motivos para itinerância passavam pela questão da busca por emprego, as iniciativas não partiam delas, elas iam para onde decidiam ir os homens da família, acompanhando os familiares, pais, maridos, irmãos e tios. “A gente sempre está atrás de uma melhorazinha, né? Porque a gente estava no estado de Minas, gosto muito de lá, porque lá é minha terra que eu nasci. Nunca mais. Amo minha terra, amo a minha família, amo meu povo todinho é de lá. Só que é muito difícil, a vida lá é muito difícil. Então falaram que o Paraná era muito bom, então a gente sempre procurando uma melhorazinha, né? As pessoas que as vezes viam pra cá e voltava lá e falava que aqui era 46 muito bom e o povo vinha vindo, foi vindo mesmo, foi vindo em peso, outros pra cá, outros pra outros estados e foi deixando Minas... procurar uma vida melhor, né? (grifo nosso) Angelina Guedes Siqueira “A família da minha mãe morava tudo aqui. Então eles vieram... só ela morava lá. [Por que eles vieram?] Porque é um lugar melhor, né? Era muito difícil as coisas. Eu lembro que a minha mãe trabalhava na roça com meu pai, que eu ficava em casa cuidando das crianças. Meu pai, ele trabalhava na cana”. Antonia de Lima do Nascimento dos Santos “Por causa eu tinha muita vontade de vir embora para São Paulo, porque lá no Ceará era o seguinte, a gente era que nem escravo lá. Porque a gente não tinha nada, trabalhava com patrão. E a gente, a obrigação deles queria que a gente fizesse de tudo, né. Lavava roupa para... como é que fala? Como é meu Deus? Deixa pensar aqui como é que eu quero falar. Por causa que nós morávamos com ele e nós não tínhamos terra. E como nós não tinha terra, nós morávamos com eles. E ele queria que a gente fizesse as coisas de graça para eles, né. Lavava muita roupa para a minha patroa, sabe? Cada trouxona de roupa, sabe? E tinha vez que eu chegava em casa não tinha nada, só tinha água do pote. Tinha nada para colocar no fogo, né. E aí eu pegava as roupas dela. O que ela fazia, mandava lavar. Depois eu chegava lá com uma trouxona de roupa tudo limpa, né. Mandava entrar lá dentro, porque ela era rica, né? Ela era rica minha patroa. E ela mandava colocar lá dentro do quarto dela, em cima da cama, para as outras empregadas dela dobrar, para depois passar para ela as roupas. Mas sabe como é que era, tudo de graça. Lá não tinha pagamento de nada não, nem um pouquinho. Nós éramos assim que nem escravo lá no Ceará, por isso que eu tinha vontade de vir embora aqui para São Paulo. Eu achava assim, que a gente viesse aqui para São Paulo a gente melhoraria mais de condições, não ficaria muito sofrendo”. (grifos nosso) Nair Lima do Nascimento Nessa primeira fase de entrevistas com pretensões que, a princípio, seriam meramente exploratórias, nos revelam retratos pungentes e densos de espaços sociais que deixam marcas 47 profundas nas memórias dessas mulheres. Verifica-se que eram estabelecidas verdadeiras redes entre pessoas e informações sobre os espaços de atração migratória. Parentes, familiares e conhecidos que comunicavam sobre os lugares que poderiam proporcionar melhores condições de vida. Ao que poderia parecer que as mulheres estavam entregues às vontades de partir dos homens da família, por outro lado, havia também o desejo por parte delas de desbravarem novos caminhos. A busca por melhores condições de vida podia significar a fuga de uma condição muito precária. O que podia parecer um sofrimento passivo era preenchido pela busca interior por soluções para sair daquele sofrimento: “por isso que tinha vontade de vir embora”. Esperança não era uma espera, e sim visualizar possibilidades: “que a gente viesse aqui... a gente melhoraria mais de condições, não ficaria muito sofrendo”. A escolha pela migração era uma deliberação contra a exploração, nem se fosse apenas “atrás de uma melhorazinha”. Essas primeiras entrevistas nos instigavam a detalhar um pouco mais as representações migrantes femininas. Dessa forma, nos encaminhamos para as Entrevista 2 em que tivemos a colaboração de três mulheres que nos conduziram em suas narrativas. 48 5. “Derrubando mato”: Entrevistas 2: configurando espaços a partir das travessias de três mulheres Para traçarmos os apontamentos para as configurações dos territórios migratórios a partir das narrativas as Entrevistas 2 fornecem imagens mais detalhadas. Abaixo buscamos montar as trajetórias individualizadas dos três depoimentos da segunda fase, a partir dos textos resultantes das entrevistas gravadas e transcritas de Odete, Zulmira e Angelina. Esta ordem foi estabelecida a partir da cronologia das entrevistas, de Odete (em novembro de 2004), Zulmira e Angelina (as duas últimas foram entrevistadas em dezembro de 2007). Sugerido por nós, Angelina e Zulmira escolheram, de seus acervos fotográficos pessoais, algumas imagens que remetem as lembranças de suas travessias. Dessas imagens selecionamos aquelas que traziam marcas de espaços experienciados. Como não tivemos contato com fotografias de Odete, incluímos, a partir das sugestões de seu depoimento, imagens que pudessem dialogar com as suas memórias. 49 Odete Procópio Morelli Data da entrevista: 11 de novembro de 2004. Período da tarde. Local: Salão do Centro Comunitário do Jd. Esmeralda, Rio Claro (SP). Não temos a data exata de nascimento de Odete, pois após seu falecimento, em 2007, não tivemos acesso a seus dados. Em 2004, quando realizamos esta entrevista não a perguntamos, mas ela dizia na ocasião que tinha 72 anos, ao que deduzimos que tenha nascido por volta de 1932. Inicia o relato a partir das cidades de nascimento: Ribeirão Preto e Nova Granada (?), “duas cidades pertinho” (essa última, na realidade, está perto de São José do Rio Preto e não Ribeirão Preto; a confusão pode ser justificada, talvez, pelo fato de ter se mudado aos dois anos de idade). Não sabemos ao certo em qual cidade ela nascera. Lista os lugares onde morou ao partir, junto à família, para o estado do Paraná: Cambé, Rolândia, Maringá, Uniflor (cidade em que se casou) e Nova Esperança. Disse que viveu muito tempo em Formosa do Oeste (PR), onde comprou “um mato” junto com o marido. Com 29 anos, ajudou derrubar mato com facão. Descreve o cotidiano naquele lugar: - Tinha onça, sim. Eu tinha uns 29 anos. Fomos derrubar mato no facão. Achemos umas minas d´águas muito bonitas. Lavava roupa, fiz tanque pros patos nadar e eu brincava com as crianças lá. Nesse cenário, narra o encontro com uma onça. O marido lhe pergunta: - Escuta, você sabe se tem um gatinho pintadinho, assim? - Ah, tem bastante! - Ah, olha lá em cima do pau! E narra o que se sucedeu: - Quando eu olhei! Meu Deus do céu!... (Foto 1) 50 Foto 1: Caça a onça 1. Fonte: Miranda (2003, capa). Lembra dos fazendeiros que tinham alugado gente para matar a onça (Foto 2): - Porque estava pegando muito bezerro no pasto. Para cá era mato, para lá era pasto, invernada. Foto 2: Caça a onça 2. Fonte: Miranda (2003, capa). - Catei as crianças, pus dentro de um rancho de palmito, que se a onça desse um trapo o rancho caía... (Foto 3) 51 Foto 3: “Catei as crianças, pus dentro de um rancho de palmito, que se a onça desse um trapo o rancho caía”... Fonte: Cândido (2001, p. 91). Os homens armados (seriam jagunços?) atiraram na onça que conseguiu subir numa árvore, onde recebeu muitos tiros até morrer. Foram encontrados dois filhotes que viviam num oco da árvore. Com o marido criaram os filhotes até o momento em que ficou com medo deles comerem as mãozinhas de seus filhos. Então, resolveram vender para o homem do circo. Foi em Uniflor que derrubaram mato e não Formosa do Oeste como deduzimos conforme a ordem do relato. De lá foram para Maringá (PR) colher café. Não diz os motivos da mudança – de deixarem as terras que tinham adquirido para derrubarem mato e desenvolverem lavoura, para irem trabalhar como volante na colheita de café. De Maringá se mudaram para Guaíra onde seu avô tinha um sítio. Viajaram bastante como trabalhadores volantes na lavoura de café. Depois de Guaíra voltaram para uma fazenda perto de Maringá onde tinha “minjolo” para fazer farinha de mandioca e de milho, foi onde o marido aprendeu a fazer rapadura e açúcar batido. Ela dá dois períodos de tempo em que morou nessa fazenda: primeiro fala em três anos, depois doze. De lá mudou para a fazenda “Raminho” perto de Foz do Iguaçu. Deduzimos que ela esteja falando de Rami, fazenda essa que deu origem ao município de Ramilândia (PR) a caminho de Foz do Iguaçu; outras informações relatadas apontam para esse fato. O rami é “uma planta têxtil, introduzida no Brasil em 1939, no sul do Estado de 52 São Paulo, mas que foi descoberta como uma extraordinária forrageira, principalmente por sua riqueza em proteínas”16. Descreve o processo de colheita do “raminho” que “ia para a fábrica de Maringá para fazer jeans”. Fala das mutilações que ocorriam por causa do tipo de trabalho nessa fazenda: - A máquina comeu a mão de um rapaz e comeu a mão de uma moça. Eles indenizavam a pessoa, mas ficava aleijado! Viveram cinco anos nessa fazenda plantando “café 40%”: - Nós plantávamos, o mantimento era nosso, o café era do patrão. Não deixava os filhos trabalharem diretamente com o rami: - Os moços ficaram doidos para trabalhar – disse - De jeito nenhum, meus moços, minhas moças! Não vai! Eu estou vendo o que está acontecendo com os outros lá! Conta do processo de divisão da fazenda entre os herdeiros que resultou na vinda para Rio Claro depois de desistirem de ir para “Martelândia” (acreditamos ser Matelândia, Paraná, cuja localização vem se somar ao que ela esteja falando realmente da fazenda Rami): - Nós vimos um caso triste em ‘Martelândia’, então nós não compramos (a passagem). Aí compramos para Rio Claro. Não conhecia ninguém em Rio Claro, nós viemos estranhos. Em Rio Claro, moraram primeiramente na Vila Asteca: - Ali pertinho da rodoviária, umas casas feias para o lado de lá (da Via Washington Luís). Nessa vila, que ainda há, morou por um ano, sendo trazida para onde hoje é o Jardim Esmeralda por um senhor chamado por ela de “seu Servino”, com quem moraram por quatro anos. Perguntado sobre as razões de sua migração, responde que foi por estar acompanhando o marido que, segundo ela, nasceu em uma cidade perto da dela, Osvaldo Cruz [que na verdade estão, aproximadamente, a 239 Km de Nova Granada17, por exemplo, talvez um caso de “distância estrutural e afetiva” (Gallais, 2002)] e que após uma história pessoal de perdas e desencontros de familiares, quando casado com Odete, começou a busca por parentes vivos. Ela mesma se inclui em busca dos seus. Em suas andanças perde contato com os pais e irmãos. Voltou para o estado de São Paulo para procurá-los. Revela outro caso de distância 16 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rami, acessado em 07/05/08. Sobre a origem do município de Ramilândia (PR) ver o sítio: http://www.prdagente.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=788 , acessado em 07/05/08. 17 Os dados de distância “objetiva” (em quilômetros), que aparecem nas narrativas, foram conseguidos a partir do sítio da internet Google Earth. 53 afetiva: diz que Mirante do Paranapanema, última cidade em que teve contato com os pais, “é bem pertinho” de Rio Claro. O que estão, na realidade,