unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DE BAURU FACULDADE DE CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA � � CARMEM LIDIA PIRES MARTINEZ FORMAÇÃO DE PROFESSORES E AVALIAÇÃO FORMATIVA: análise de um projeto de interação universidade-escola TESE DE DOUTORADO UNESP BAURU 2009 1 CARMEM LIDIA PIRES MARTINEZ FORMAÇÃO DE PROFESSORES E AVALIAÇÃO FORMATIVA: análise de um projeto de interação universidade-escola Tese apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru, para a obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências). Orientador: Profa. Dra. Lizete Maria Orquiza de Carvalho BAURU 2009 2 CARMEM LIDIA PIRES MARTINEZ FORMAÇÃO DE PROFESSORES E AVALIAÇÃO FORMATIVA: análise de um projeto de interação universidade-escola Tese apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru, para a obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências). BANCA EXAMINADORA: Presidente Profa. Dra. Lizete Maria Orquiza de Carvalho Instituição Universidade Estadual Paulista - UNESP/Ilha Solteira 2º Examinador Profa. Dra. Maria Lúcia Vital dos Santos Abib Instituição Universidade de São Paulo - USP/São Paulo 3º Examinador Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira Instituição Universidade Estadual Paulista - UNESP/Bauru 4º Examinador Prof. Dr. Antonio Fernando Gouvêa da Silva Instituição Universidade Federal de São Carlos - UFSCar/Sorocaba 5º Examinador Prof. Dr. Marcelo Carbone Carneiro Instituição Universidade Estadual Paulista - UNESP/Bauru Bauru, 23 de junho de 2009. 3 Dedico este trabalho A minha Família. Ao meu saudoso pai, Nilson. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos os Professores que contribuíram com a minha educação- formação, ao longo da minha vida e de forma especial: à Professora Dra. Lizete Maria Orquiza de Carvalho, por me permitir caminhar ao seu lado todos esses anos. Sua orientação corajosa e competente guiou os meus passos. ao Professor Dr. Washington Luiz Pacheco de Carvalho, por me apoiar nessa jornada e contribuir com sua escuta atenciosa. aos Professores Doutores da Pós-Graduação, pela oportunidade de compartilhar os saberes da academia. aos Professores Doutores da banca examinadora, pelo carinho da leitura atenciosa e valiosas contribuições para o enriquecimento desse trabalho. aos colegas de jornada e amigos do Grupo de Pesquisa “Educação Continuada de Professores e Avaliação Formativa”, pelo desafio que compartilhamos. às supervisoras da Seção de Pós-Graduação, Ana Lúcia Grijo Crivellari e Andressa Ferraz Castro, pelo atendimento sempre carinhoso. aos Professores da Escola Estadual de Urubupungá, de Ilha Solteira, pela entrevistas e dados de pesquisa. aos colegas e amigos da Escola Estadual Miguel Marvullo, por me incentivarem a não desistir nunca. à Professora Sueli Terezinha Ribeiro Soares Toledo da Silva pela revisão e contribuições a este trabalho. à Professora Marlene de Almeida Lemos pela doação de sua biblioteca. à Professora Maria Nilza Lemos Pires, minha primeira professora, minha mãe. ao meu marido, Marcel, companheiro nas viagens intermináveis. à minha Família que amo mais que tudo nessa vida! À Deus, obrigado! 5 MARTINEZ, C.L.P. Formação de professores e avaliação formativa: análise de um projeto de interação universidade-escola. 2009. 154f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências) Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009. RESUMO Este trabalho coloca em foco um projeto de parceria entre universidade e escola que teve duração de seis anos. Nosso objetivo foi identificar, a partir de entrevistas e análise documental, as interlocuções e ações coordenadas pelos professores, interpretando-as como possibilidade de aperfeiçoamento da prática docente, e estabelecer relações entre os nexos do projeto e a educação para a avaliação formativa, a partir dos referenciais da Teoria Crítica. Assim, investigamos os aspectos do Projeto Urubunesp que apoiaram o processo educação- formação do professor para a implementação da avaliação formativa. Nossos dados revelaram, por um lado, o potencial do projeto de favorecer atitudes de inserção dos professores em processos de formação cultural, evidenciando aspectos de transparência, convite-atrativo, acolhimento e dialogicidade. Por outro lado, apontou que os posicionamentos individuais refletem um movimento de busca coletiva dos professores pela recontextualização de heteronomias e enfrentamento de antinomias, o que torna viável a construção de autonomias, no sentido da humanização. Nossa análise nos permite afirmar que uma parceria entre universidade e escola que busca a isomorfia entre a implementação da avaliação formativa e a educação de professores, de uma escola, pode significar um ‘ir além’ do ‘terreno pantanoso’ que caracteriza a prática cotidiana da escola pública estadual dos nossos dias. Isso dependerá da medida em que os esforços auto-organizativos, os quais produzem os movimentos da parceria e são também por eles produzidos, puderem estabelecer uma meta comum que sustente a tensão entre o par dialético, convite sempre aberto para o conhecimento e busca incansável pelo consenso. O primeiro abre possibilidades para o professor se tornar sujeito ativo na construção e reconstrução da própria história, para ‘ser mais’, permitindo suas adesões às situações de autonomia e de liberdade de busca constante, que só existem no ato responsável do ‘ser inconcluso’. O segundo favorece uma prática social que permite o posicionamento dos professores, múltiplas inserções do grupo, e uma práxis de avaliação formativa transformadora, na relação professor/aluno. Palavras chaves: Formação de professores; avaliação formativa; formação cultural; teoria crítica; autonomia; antinomia; heteronomia; gaps; projeto de parceria; universidade-escola. 6 MARTINEZ, C.L.P. Formação de professores e avaliação formativa: análise de um projeto de interação universidade-escola. 2009. 154f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências) Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009. ABSTRACT This work focuses a six-year project of partnership among university and school. Our objective was to identify, by means of interviews and documental analysis, interlocutions and actions coordinated by the teachers, looking for possibilities of improving teachers’ practice, and to establish a connection among project nexus and a formative-assessment- oriented education, from the Critical Theory point of view. So, we searched for aspects of the Project that supported a teacher education process for the implementation of formative assessment. On one hand, our data revealed a potential of the project to favor attitudes of insertion of the teachers in the cultural formation process, putting in evidence aspects of transparency, sense of community, appealing-invitation, and dialogicity. On the other hand, it pointed that teachers’ individual positioning reflects a movement of collective searching for re-contextualizing heteronomy e facing antinomy, what makes the processes of autonomy construction viable and more probable to happen. Our analysis allowed us to assert that a partnership among university and school that search for an isomorphism between formative assessment implementation and teacher education may represent to go beyond the ‘marshy terrain’ that characterizes the state public school of our days. This will depend on the extent to which the self-organizing efforts, that produces the partnership movements and it is produced by them, can set common goals that support a tension between the following dialectic pair: open-invitation to knowledge and continuous search for consensus. The first one opens possibilities for the teachers to become subjects in the construction and reconstruction of their own history, to ‘be more’, contributing to their adhesion to situations of autonomy and constant search for liberty, that only exist in the responsible act of the inclusive being. The second one favors a social practice that allows teachers’ positioning, group’ multiple insertions, e a formative-assessment transforming praxis, in the teacher/student relation. Keywords: teacher formation; formative-assessment; cultural formation; critical theory; autonomy; antinomy; heteronomy, gaps; project of partnership; university and school. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 UM PANORAMA TEÓRICO SOBRE O PROCESSO CRÍTICO DE FORMAÇÃO- PRÁTICA-AVALIAÇÃO DOS PROFESSORES................................................................ 19 1.1 A Tendência crítica e sua influência na formação/ação dos professores.. 19 1.2 A teoria crítica........................................................................................... 23 1.3 A influência da filosofia na avaliação educacional: diferentes perspectivas históricas............................................................................... 26 1.3.1 A perspectiva essencialista............................................................... 27 1.3.2 A perspectiva racional-científica...................................................... 28 1.3.3 A perspectiva dialética..................................................................... 30 1.3.4 A perspectiva incerta........................................................................ 33 1.4 A perspectiva da avaliação formativa no contexto atual........................... 34 1.5 A perspectiva da implementação de projetos na formação/avaliação de professores................................................................................................. 37 CAPÍTULO 2 EDUCAÇÃO-FORMAÇÃO E EMANCIPAÇÃO POR THEODOR W. ADORNO.......... 42 2.1 Introdução.................................................................................................. 42 2.1.1 Emancipação e esclarecimento......................................................... 43 2.1.2 Autonomia, heteronomia e antinomia............................................... 46 CAPÍTULO 3 DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO...................................................................... 50 3.1 Introdução.................................................................................................. 50 3.2 Propósito da pesquisa................................................................................ 51 3.3 Critérios de validade.................................................................................. 52 3.4 Métodos e técnicas de coleta de dados...................................................... 52 3.4.1 A entrevista como prática reflexiva.................................................. 53 3.4.2 Análise documental.......................................................................... 54 3.5 Metodologia de análise e organização dos dados...................................... 54 3.5.1 Parte I: A Narrativa do Projeto “A Prática da Avaliação Formativa em uma Escola Pública”.................................................................. 55 3.5.2 Parte II: Crítica Institucional e Criação Coletiva............................. 56 3.5.3 Categorias de análise........................................................................ 59 8 CAPÍTULO 4 O PROJETO “A PRÁTICA DA AVALIAÇÃO FORMATIVA EM UMA ESCOLA PÚBLICA”............................................................................................................................ 63 4.1 As etapas do processo................................................................................ 63 4.1.1 Pn1: Situação inicial......................................................................... 63 4.1.1.1 Análise de Pn1..................................................................... 64 4.1.2 Pn2: Início do processo..................................................................... 69 4.1.2.1 Análise de Pn2..................................................................... 71 4.1.3 Pn3: Processo em andamento............................................................ 74 4.1.3.1 Análise de Pn3..................................................................... 75 4.1.4 Pn4: Culminância do processo.......................................................... 81 4.1.4.1 Análise de Pn4..................................................................... 81 4.1.5 Pn5: Estado final............................................................................... 86 4.1.5.1 Análise final......................................................................... 86 CAPÍTULO 5 PROFESSORES DE CIÊNCIAS COMO INTERLOCUTORES NA IMPLEMENTAÇÃO DA AVALIAÇÃO FORMATIVA.................................................... 90 5.1 Expressões e descrição da realidade: 1º momento.................................... 91 5.1.1 Exórdio, crenças e auto-avaliação..................................................... 92 5.1.2 Pesquisa individual........................................................................... 102 5.1.3 Interação EEU/UNESP..................................................................... 108 5.1.4 Síntese do 1º Momento..................................................................... 113 5.2 Crítica do material expresso: 2º momento................................................. 116 5.2.1 Leituras individuais e/ou em grupo................................................... 117 5.2.2 Reuniões técnicas.............................................................................. 119 5.2.3 Discussões individuais...................................................................... 121 5.2.4 Reuniões semanais............................................................................ 123 5.2.5 Síntese do 2º Momento..................................................................... 125 5.3 Criação coletiva: 3º momento.................................................................... 127 5.3.1 Ciclo de seminários no PGP e na EEU............................................. 127 5.3.2 Desenvolvimento do relatório de pesquisa....................................... 129 5.3.3 Participação em eventos.................................................................... 130 5.3.4 Síntese do 3º Momento..................................................................... 132 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 143 ANEXOS............................................................................................................................... 153 9 INTRODUÇÃO per angusta ad augusta: pelos caminhos ásperos é que se conquistam os locais elevados. Delineando caminhos O modo como percebemos e definimos um problema é muito importante para determinar, entender e focalizar os aspectos mais relevantes que condicionaram uma exploração dos dados. Nesse sentido, o olhar que procuramos lançar, desde o início de nossa pesquisa, sobre a interlocução formação de professores e avaliação formativa, teve um posicionamento crítico, traduzido não apenas como propósito de apontar e analisar os obstáculos, superados ou não, mas principalmente, como intenção de identificar as potencialidades das ações capazes de favorecer essa relação. Entretanto, esse sentido crítico foi sendo delineado, ao longo de uma trajetória que percorremos juntas, orientanda e orientadora, desde 1999. A professora Lizete vem estudando essa interlocução, juntamente com outros professores da universidade, desde que retornou de um pós-doutoramento no exterior, trazendo para a arena de discussões, as questões de sala de aula que poderiam aproximar os professores da universidade e os professores da escola básica, em torno de uma problemática que vinha permeando as práticas avaliativas dos dois grupos. Assim, nasce o Projeto Urubunesp (ORQUIZA-DE-CARVALHO, 2005). Eu, como professora da educação básica, atuando na época como coordenadora- pedagógica, também inserida no contexto da escola pública e nas mesmas questões pertinentes, entrevi a possibilidade de refletir com meus colegas as nossas práticas pedagógicas, em especial as avaliativas; de melhorar a relação professor-aluno e conseqüentemente o ensino e a aprendizagem. Nesse intuito, formamos um grupo de cinco professores de ciências de uma escola de educação básica, para explorar o potencial da avaliação formativa. Dito assim de forma sucinta, esse foi o meu Projeto de Mestrado (MARTINEZ, 2001). Nesse sentido, ‘caminhamos juntas por caminhos diferentes’. Compartilhávamos referenciais teóricos (NÓVOA, 1992; ABRECHT, 1994; BLACK & WILIAM, 1998b; 10 PERRENOUD, 1999; SCHÖN, 2000), mas, indiscutivelmente, as nossas visões decorriam de um quadro teórico-prático com amplitudes distintas e imensuráveis. O conhecimento que construímos juntas, ocorreu a partir dessa relação que estabelecemos entre as leituras, as discussões e as ações que realizamos. Inicialmente, a necessidade de reflexão, como modelo de formação, nos influenciou muito, pois propunha uma série de intervenções que tornou possível, na relação teoria-prática, um novo olhar, aguçando a possibilidade de interpretar e de promover ações de intervenção e de mudanças. Entretanto, hoje percebo mais claramente, que nos distinguimos, nesse aspecto, pois buscávamos mudanças epistemológicas diferentes. O grupo da universidade buscava uma mudança de epistemologia da prática para a epistemologia da práxis, ou seja, a práxis como uma ação final que traz, no seu interior, a efetiva relação dialética entre teoria e prática. Para o nosso grupo do mestrado, professores de educação básica, inseridos em um contexto de sala de aula, não existia uma consciência da práxis, enquanto sujeitos interagindo socialmente, discutindo as políticas públicas sobre as finalidades do ensino e sua organização. Esses elementos não foram evidenciados em nossa análise. Assim, nesse trabalho, pretendemos apontar a confluência de nossas perspectivas com uma visão mais atual, a qual vem permeando a questão da formação de professores e a avaliação formativa. Nessa circunscrição, a interação universidade-escola. Para tanto, apenas para introdução de nossos questionamentos, levando em conta sua influência inicial nesse processo, utilizamo-nos de Schön (2000), que, embora reconhecidamente situado em outra perspectiva1, habilmente problematiza o dilema existente entre o conhecimento profissional, rigoroso, baseado na racionalidade técnica, situado no ‘alto da topografia irregular da prática’ e as ‘zonas de práticas pantanosas e indeterminadas’ (p.15) nas quais os problemas são caóticos e confusos, desafiando as soluções técnicas. Nesse contexto, podemos localizar a Universidade, os teóricos, os saberes acadêmicos, no topo desse plano elevado onde os problemas, possíveis de serem administrados, prestam-se à solução através da aplicação de teorias e de técnicas baseadas em pesquisa. Por outro lado, mas ainda no topo, “os órgãos governamentais, com suas metas, seus objetivos, seus recursos, seus procedimentos, suas estratégias e, sobretudo, seu tempo ou ritmo de ação” (LÜDKE, 2003, p.27) ou ‘plano legal’ (SEVERINO, 1986, p.128), configurado por dispositivos legais e normas jurídicas, estabelecidas pelas políticas públicas educacionais. Na parte baixa, a prática do ‘meu mundo real’, principalmente nas salas de aula 1 Schön tem sido criticado por ter fundamentado sua proposta de formação a uma reflexão reduzida ao espaço da própria técnica (ZEICHNER, 2003). 11 das escolas públicas configuradas com estruturas pouco claras, com formas caóticas e indeterminadas. Visto dessa maneira, as relações estabelecidas entre esses planos sempre foram ‘verticais’ (FREIRE, 1985, p.32). Identificando-nos e imersos nessa realidade por quase trinta anos, procuramos, neste trabalho, examinar um projeto envolvendo profissionais que percorrem esse caminho áspero e tortuoso, de maneira inversa, ‘virada de cabeça para baixo’ (SCHÖN, 2000, p.21). Essa inversão de sentido parece favorecer um novo olhar, para entender a relação existente entre o conhecimento e a prática profissional, superando os limites convencionais que determinam esse caminho. Este, caracterizado por um campo aberto à investigação, com epistemologia própria decorrente da prática docente tanto dos universitários, formadores de professores, como dos professores do ensino fundamental e médio (FIORENTINI, SOUZA, MELO, 2003), visa a uma regularização na topografia atual da prática profissional. Do nosso ponto de vista, essa nova perspectiva, no âmbito da escola de educação básica, estabelece uma relação mais ‘horizontal’ que tende à planície “enquanto projeto, enquanto desenho de um mundo diferente, menos feio, o sonho [...]” (FREIRE, 1992, p.47). Freitas (2008) colabora com essa investigação à medida que assume a hierarquia dos professores acadêmicos como problemática, introduzindo a questão da potencialidade do trabalho conjunto para lidar com as diferenças de “campo” e “estrutura” estabelecidas, utilizando os referencias de Bourdieu (2004) e Freire (1997). Nesse propósito, delineamos inicialmente a primeira perspectiva que construímos e que norteou o problema de pesquisa desta tese. Em seguida, abordamos os objetivos, as hipóteses e a questão de pesquisa, em uma perspectiva mais atual, mas igualmente inconclusa, a partir de experiências vivenciadas pelas pesquisadoras e de uma revisão bibliográfica sobre o assunto. O problema na relação formação de professores e avaliação formativa Durante a elaboração do projeto de mestrado, foi possível delinear a minha trajetória profissional, refletindo sobre os meus processos de formação, enquanto professora mediadora, e me descobrir como professora-pesquisadora. O contato com a formação de professores iniciou-se em 1996, com a minha função de coordenadora-pedagógica, em uma escola de educação básica de minha cidade. Foi nessa escola que desenvolvi o trabalho de pesquisa, a partir de uma prática compartilhada com os meus colegas de trabalho. No início, nossos questionamentos estavam imersos, principalmente, na relação 12 teoria/prática: como diminuir a percepção que os professores têm sobre a enorme ‘distância’ entre as teorias propostas e a prática pedagógica? Quando o professor percebe que a teoria pode ser útil para reorientar sua prática? Os programas de formação continuada contribuem para diminuir essa percepção? Replicando, planejamos um processo de estudo e de reflexão/ação, em conjunto com outros professores de ciências, sobre a própria prática de avaliação e de ensino, a partir de referenciais teóricos de Paul Black e Dylan Wiliam (1998a,b), influenciadas, principalmente, pelo texto intitulado Inside the black box: raising standard through classroom assessment (ou simplesmente Dentro da Caixa Preta) que aborda, especificamente, a questão da implementação da avaliação formativa em sala de aula. Destarte, no período de 1999 a 2001, exploramos o potencial da prática reflexiva da avaliação formativa na educação de professores em serviço, que era um padrão de referência fortemente ‘imposto’ aos professores na época. Esse processo culminou em nossa dissertação, defendida no Programa de Pós Graduação em Educação para a Ciência da Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru, em dezembro de 2001, sob o título: “Explorando o Potencial da Avaliação Formativa: análise de uma experiência centrada na escola” (MARTINEZ, 2001). Para Black e Wiliam (1998a), os conceitos de avaliação formativa, de auto- avaliação e de feedback ‘se sobrepõem fortemente’, referindo-se a todas aquelas atividades empreendidas pelos professores e seus estudantes que fornecem informações, para serem usadas de fato, para modificar as atividades de ensino e de aprendizagem. Usando Ramaprasad (1983), esses autores destacam que o propósito do feedback é utilizar a informação para alterar, de algum modo, a lacuna entre o nível atual e o nível de referência sistêmica. O que significa dizer, que o feedback não pode ser apenas entregue ao aluno como uma resposta simplesmente, muitas vezes de forma codificada, sem interação; ou mesmo, entregue para uma pessoa que não está envolvida na situação ou não pode modificá-la, como acontece quando ela é dada aos pais ou ao responsável pelo aluno. Nesse sentido, a avaliação formativa supõe investimento, por parte do professor, na promoção contínua do envolvimento do aluno com sua auto-avaliação, entendida como envolvimento na produção de análises próprias da situação atual e desencadeamento de pequenas ações para lidar com ela. Para tal, a relação professor-aluno requer comunicação de objetivos claros, e o professor deve, além de apontar quais avanços foram significativos na aprendizagem, propor ao aluno maneiras de melhorar e alternativas de ações compartilhadas. Assim, fomos, aos poucos, entendendo que a proposta de melhoria da avaliação implicava que a atenção da pesquisa não contemplava apenas as necessidades do aluno, mas 13 principalmente as do professor, pois é ele quem tem que investir esforços teóricos/práticos para produzi-la. Essa questão nos conduziu para análise de alguns aspectos importantes na relação formação de professores e avaliação formativa, apontados por Black e Wiliam (1998a,b): a ‘valorização do feedback’ entre alunos e professor requer mudanças significativas na prática de sala de aula; a necessidade de ‘envolver ativamente os alunos’ para uma aprendizagem efetiva, requer, ‘fundir ensino com aprendizagem’; os ‘resultados da avaliação sejam reavaliados e novos ajustes sejam feitos’ para que a avaliação cumpra o seu papel formativo; requer investimentos pelo professor, na auto-estima dos alunos; dar oportunidade para todos os alunos de se sentirem encorajados a buscar metas estabelecidas e assumidas por ele mesmo; requer ‘incentivo à auto-avaliação’. Esse enfoque dado à “avaliação enquanto prática social, [...] o seu papel institucional, em relação à sociedade, à economia e à cultura local” (Allal, 1986), vem ao nosso encontro quando entendemos que o espírito da avaliação formativa pressupõe a possibilidade de reflexão contínua sobre as ações realizadas, visando a modificações sutis, à medida que se acredita que, as condições para elas ocorrerem já se tornaram socialmente favoráveis. Em nossa análise, utilizando as formas de regulação que a avaliação formativa pode assumir2 (ALLAL, 1986; ABRECHT, 1994; PERRENOUD, 1999; BLACK e WILIAM, 1998a), pudemos estabelecer um paralelo entre a auto-avaliação do aluno e a auto-avaliação do professor, pressupondo uma comunicação constante e direta entre ambos. Para tanto, propomos uma valorização da diferença de significados entre os termos ‘lacuna’ e gap ou ‘desnivelamento’. Segundo Villani e Orquiza (1995), quando o sujeito se depara com um conhecimento que gostaria de ter, sente-se insatisfeito, caracterizando-se aí uma lacuna a ser preenchida. Por ‘lacuna’, entendemos então a simples diferenciação entre dois pontos de vista, sem importar quem é o sujeito que a percebe, se é o pesquisador, o sujeito da pesquisa, o professor ou o aluno. Por gap ou ‘desnivelamento’, entendemos que o sujeito percebeu a lacuna e reconheceu a relevância nela implícita. Segundo Kluger e DeNiasi (1996) a comparação entre um padrão de referência e o estado presente pode ser feita em termos de igualdade, de distância e de diagnose. No caso de nossos dados, as referências implícitas nos desnivelamentos detectados estavam contidas em uma afirmação do texto, ou em uma inferência feita por um dos professores. Nessa ocasião, identificamos diferentes níveis de ação dos professores classificados em diferentes categorias: de gaps imensos a gaps ativos. Assim, 2 Retroativa, quando se refere à remediação; proativa, voltada para a consolidação e aprofundamento das competências; interativa, inclui o aspecto da comunicação – a interatividade entre professor e aluno. 14 quando um padrão de referência acaba por se impor aos professores, ainda lhes cabe resolver a questão de como reagir diante dele. Somente indícios de mobilização garantem que o padrão de referência ganhou status de meta a ser perseguida. Partindo do reconhecimento de situações em que o professor definiu um gap ou desnivelamento (estabelecimento de uma lacuna diante de um referencial com o qual ele se identificou), pudemos perceber que ocorreu um processo regulador de auto-avaliação, de autoformação. Os resultados dessa pesquisa nos forneceram algumas pistas para a compreensão de dificuldades existentes no tocante à disseminação da avaliação formativa na escola (BLACK e WILIAM, 1998b): quanto aos professores – aqueles que trabalhavam mais freqüentemente nos esquemas de gaps imensos e grandes não estariam preparados para oferecer oportunidades para que seus alunos se auto-avaliassem, uma vez que eles mesmos não eram capazes de manter a teoria pedagógica e a prática educativa em tensão permanente; quanto à avaliação formativa – a disseminação na escola implicava, antes de tudo, a promoção de oportunidades abertas de reflexão dos professores sobre a relação entre teoria e prática; quanto ao processo - o investimento em profundidade na formação de alguns sujeitos, não era suficiente para promover a disseminação (BLACK e WILIAM, 1998b, p.11) de todos e com todos em seu entorno social. Tomando certa distância desse nosso trabalho de mestrado, percebemos a necessidade de investigar, de forma mais crítica, as situações que envolviam os posicionamentos dos professores quanto ao que chamamos de gaps, de mais pesquisas sobre a situação favorável para que o professor sinta-se encorajado a investir mais na análise dos sistemas macro (educacional), meso (escolar) e micro (sala de aula): que ele possa refletir criticamente nas possibilidades/impossibilidades de modificar o ‘sistema de ensino’; sobre a viabilidade ou a inviabilidade do trabalho colaborativo no cotidiano escolar e ‘se arremesse’ na reflexão sobre estratégias e ações pedagógicas. Objetivos e hipótese da pesquisa Em 2002, com a minha efetivação na direção de uma escola estadual, o repertório pessoal de ‘saberes profissionais’ tornou-se mais amplo, voltado não apenas para a ‘profissão professor’(TARDIFF, 2000), mas para a análise de uma rede de relações interativas que ocorrem em seu interior. Nessa nova trajetória, como diretora efetiva de uma escola com 1.200 alunos, de ensino fundamental e médio, ratificamos a necessidade de valorizar o trabalho colaborativo, 15 de vivência investigativa com a proximidade entre estudo e prática cotidiana, de circunstâncias que fomentam as reflexões do dia a dia envolvendo alunos, professores e pais. Essa perspectiva possibilitou-nos visualizar a escola como uma organização, que é uma coletividade, com uma fronteira relativamente identificável, com uma ordem normativa, com sistema de comunicações próprio. (LIMA, 2001) Nesse sistema educativo, assim como em qualquer outra organização de trabalho, pressupõe-se que todo profissional, além de estar ligado a um grupo, precisa dominar uma série de capacidades e habilidades especializadas que o torne competente na realização do seu trabalho. Isso requer formação permanente ou desenvolvimento profissional, estendendo-se ao terreno das capacidades, habilidades, atitudes, valores apoiada em uma reflexão dos sujeitos sobre as ações que realizam no seu local de trabalho. (DELUIZ, 1995). Assim, nessa perspectiva, professores, funcionários e gestores, que consideramos educadores escolares, devem se apropriar do compromisso com a construção de uma nova organização escolar, mais autônoma e mais criativa. Entretanto, essa não tem sido uma tarefa fácil. Os profissionais que atuam nas escolas têm vivido sob a tutela dos órgãos centrais do sistema educacional, cuja gestão centralizadora e burocrática não privilegiou a participação, a tomada de decisão e o compromisso com a construção real de um projeto político pedagógico da escola. (LIMA, 2001). Assim, ao lançarmos um olhar investigativo sobre essa questão da tutela em que estamos submetidos, pudemos detectar que ela tem se manifestado através de diferentes posicionamentos de cada educador e do coletivo escolar, em diferentes situações. Percebemos que os professores, mais intimamente ligados ao processo de ensino e aprendizagem, muitas vezes defendem posições mais vantajosas para sua ‘profissão docente’, o que acaba por reduzir muito suas preocupações de análise aos problemas e situações de sala de aula. Ao problematizar suas visões sobre a prática docente, enfatizam a dificuldade em cumprir o seu papel como educador. Entretanto, existe claramente uma dificuldade em assumir uma crítica mais efetiva sobre as condições do seu trabalho ‘com uma linguagem de possibilidade’ (CONTRERAS, 2002). Isso é compreensível quando assumimos que não estamos acostumados a exercer o papel de intelectuais críticos (GIROUX, 1997), pois tanto a compreensão dos fatores sociais e institucionais que condicionam a nossa prática educativa, como a emancipação das formas de dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são processos espontâneos que se produzem naturalmente. O intelectual crítico está preocupado pela captação e potenciação dos aspectos de sua prática profissional que conservam uma possibilidade de ação educativamente valiosa (CONTRERAS, 2002). 16 Mas quando e como nos tornamos intelectuais críticos? Gradativamente. Quando possibilitamos uma reflexão voltada para uma ação crítica e transformadora de uma prática individual para uma práxis coletiva, o que exige, além de uma capacidade comunicativa entre os membros da equipe habilidades cognitivas (o saber por quê), técnicas (o saber fazer) e afetivas (o saber relacionar-se), com “objetivos educacionais justificáveis” (ZEICHNER, 1992). Segundo as políticas oficiais (BRASIL, 1996, 2001, 2002), o que a sociedade espera do professor é o domínio de conhecimentos gerais da sua área e específicos de sua atividade; capacidade de pensar de forma abstrata; capacidade de relacionar os conhecimentos entre si, e estes com a realidade; capacidade de analisar as situações e compreendê-las; capacidade de trabalhar de forma cooperativa em grupo e pelo aperfeiçoamento do grupo; capacidade de avaliar o resultado do seu trabalho e agir para melhorá-lo. Ser educador, hoje no Brasil é, antes de mais nada, um ato de fé: na capacidade do ser humano de se transformar; nas possibilidades da escola, enquanto organização; na potencialidade da ação coletiva do magistério e em sua capacidade de atualizá-la. É a necessidade de não ser espectador e ousar arriscar gestos. (FISCHMANN, 1999, p.91). Como diz Roseli Fischmann (ibid.), trabalhar em educação requer esperança, muitas vezes em um contexto adverso, e os problemas que surgem quando os membros de uma comunidade escolar engajam-se em um processo de inovação nos conduzem para uma questão central, na educação atual, que é a mudança da cultura escolar. Thurler (2001) defende que uma cultura escolar muda e se desenvolve quando as pessoas encontram novos problemas, acolhem os recém-chegados, assumem novas tarefas, constroem novos saberes ou redistribuem os papéis. A construção de um projeto, qualquer que seja ele, um “projeto de ação pedagógica da escola”, ou mesmo um “projeto de pesquisa específico para a escola”, somente obterá êxito de se transformar num processo, se tiver objetivos claros e realistas, metodicamente planejado. Esse processo, segundo Thurler (2001), mobiliza competências individuais e coletivas para a gestão de projetos. Com essa perspectiva em tela, entendemos que mudanças na formação de professores em serviço podem ser garantidas na forma de parcerias3 entre universidade e escola de educação básica. Essa medida vem sendo discutida e adotada por diversos autores (FOERSTE, 2002; LUDKE e CRUZ, 2005) e pelo governo como necessária para aproximar 3 Parcerias institucionais, para discutir especificamente a formação docente, entendida como um desafio de busca pela ampliação da atuação política dos professores para melhoria da escola pública. (FOERSTE, 2002). 17 as instituições formadoras interessadas na qualificação docente e na construção de um ensino público de melhor qualidade. Nesse contexto, os espaços públicos e o tempo escolar4 precisam ser repensados como possibilidades de garantia do diálogo entre os educadores. Há que se construir uma nova perspectiva para a ousadia de questionar, de desenvolver e de coordenar ações; para superar as limitações em relação às mudanças, com a incorporação de inovações no campo de um saber já conhecido, com iniciativas para buscar o autodesenvolvimento, tendo em vista o aprimoramento do trabalho; capacidade de monitorar desempenhos e buscar resultados; capacidade de trabalhar em equipes interdisciplinares. Como recomendaria Paulo Freire, há que se “problematizar o futuro” sem o considerar como “inexorável”, considerando todas as possibilidades numa perspectiva de autonomia, criatividade, consciência crítica e ética. (FREIRE, 1981; 1992; 1997). Neste sentido, o Projeto denominado A Prática da Avaliação Formativa em uma Escola Pública (codinome Projeto Urubunesp), realizado em parceria com alguns pesquisadores da Faculdade de Engenharia da UNESP e a Escola Estadual de Urubupungá, ambas na cidade de Ilha Solteira, no período de 1999 a 2005, constituiu uma fonte significativa de dados devido à amplitude das investigações que suscitou. Podemos caracterizar a Escola Estadual de Urubupungá (EEU) como uma escola pública que contava na época com aproximadamente 2000 alunos e 60 professores, oferecendo três modalidades de ensino: ensino médio regular, ensino para jovens e adultos e telecurso, funcionando nos períodos da manhã, tarde e noite. Durante os cinco anos de desenvolvimento do Projeto Urubunesp o número de professores participantes variou bastante, mas podemos considerar que de certa forma, houve o envolvimento de quase todos eles em alguma das muitas fases do projeto, o que resultou em muitos trabalhos de pesquisa (ORQUIZA-DE-CARVALHO, 2004, 2005, 2005a; ARATO, 2006; FREITAS, 2008). O exame dos trabalhos, desenvolvidos pelos professores (Anexo 1), nesse projeto de parceria, mostrou estudos sobre formação de professores com temas relacionando CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) e Aprendizagem; História Oral e CTSA; Avaliação Formativa e Aprendizagem do aluno e do professor; Ensino e Trabalho Colaborativo; Língua Portuguesa e Literatura; Psicologia, Adolescência e Educação; Laboratório Didático; Filosofia e Aprendizagem. (ORQUIZA-DE-CARVALHO et al. 2004; 2005). Levando em conta que parte desses estudos, realizados pelos diversos pequenos 4 Tempo escolar entendido como horas de trabalho que compõem a jornada do professor. 18 grupos de pesquisa, buscou compreender a rede de inter-relações que se estabeleceram entre professores e, entre professores e alunos, na sala de aula, nos laboratórios, na escola e na comunidade local, delineamos a nossa pesquisa com o intuito de investigar a coordenação de ações realizadas pelos professores participantes e os aspectos formativos envolvidos no âmbito do Projeto Urubunesp. Destarte, formulamos a nossa questão de pesquisa: quais são os aspectos do projeto Urubunesp que favoreceram o processo educação-formação do professor para a implementação da avaliação formativa? Dessa forma, com o objetivo de evidenciar os aportes teóricos que delinearam essa investigação, descrevemos um breve panorama teórico sobre o processo crítico de formação do professor e abordaremos as diferentes tendências e perspectivas que vêm influenciando a respectiva profissão em seu processo de formação continuada integrado às práticas de avaliação. Acreditamos ser de fundamental importância destacar as perspectivas históricas e evidenciar o caráter de evolução da avaliação formativa como forma de compartilhar nossa visão sobre esse processo. Buscando subsidiar pesquisas em Educação para a Ciência, enfatizamos, ainda, a forma de intervenção e a contribuição do pesquisador no ambiente escolar. 19 CAPÍTULO 1: UM PANORAMA TEÓRICO SOBRE O PROCESSO CRÍTICO DE FORMAÇÃO - PRÁTICA - AVALIAÇÃO DOS PROFESSORES Tornar inteiramente supérfluas suas funções parece ser, apesar de todas as reformas benéficas, a ambição do sistema educacional. (Max. Horkheimer eTheodor W. Adorno, 1985) Neste capítulo apresentamos uma rápida visão da Pedagogia Crítica que utilizamos para embasar esta pesquisa sobre formação de professores e avaliação formativa, procurando evidenciar a influência da Filosofia nas concepções e práticas pedagógicas e avaliativas ao longo da história da humanidade. 1.1 A Tendência crítica e sua influência na formação/ação dos professores Iniciamos nosso enfoque pelas teorias críticas da Educação, também chamadas de progressistas, a partir da década de 60, na qual elas se apresentam como expressão do compromisso de propostas pedagógicas voltadas para os interesses da maioria da população, deslocando a discussão dos conceitos pedagógicos, como a pedagogia tradicional fazia, para a questão do poder e da ideologia na educação. Paulo Freire (1999) contribui com essa visão abordando, inicialmente, a educação/alfabetização de adultos, baseada em princípios filosóficos e práticas de uma concepção popular de educação, conhecida como o “Método Paulo Freire”5. Essa concepção, chamada de Pedagogia Libertadora, embora criada dentro de uma proposta não-escolar de educação, consegue, com seus princípios de problematização e dialogicidade, ao longo dos anos, divulgar também experiências formais em vários estados brasileiros, na América Latina e no mundo. Outra característica fundamental na produção de Paulo Freire (1987) é a dimensão política. Como educador, ele defende “uma ação política junto aos oprimidos”, pois seu pensamento sempre esteve voltado para uma educação para a liberdade, para que homens e mulheres possam ser reconhecidos como sujeitos históricos. Para tanto, a educação tem uma 5 Paulo Freire dizia em entrevista com Pelandré (2002) que não tinha um método de ensinar, mas certo método de conhecer. Tinha curiosidade e compromisso com o outro, para uma compreensão crítica ou dialética da prática educativa. 20 “ação cultural” que permite a leitura crítica do mundo, objetivando a transformação da realidade. Nessa perspectiva, não existe transmissão de conhecimentos, envolvendo uma relação vertical onde o professor ensina e o aluno aprende. Para Freire (1987) ambos “se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem” (p.38); e, certamente isso não seria possível fora do diálogo. Nessa forma de expressão horizontal de se relacionar, o professor dialógico reconhece o saber do aluno, assim assume outro papel como educador. Acho que o papel de um educador conscientemente progressista é testemunhar a seus alunos, constantemente, sua competência, amorosidade, sua clareza política, a coerência entre o que diz e faz, sua tolerância, isto é, sua capacidade de conviver com os diferentes para lutar contra os antagônicos. É estimular a dúvida, a crítica, a curiosidade, a pergunta, o gosto do risco, a aventura de criar (FREIRE, 1991, p.54). Nesse sentido, Freire e Shor (1992) dialogam sobre a construção do conhecimento a partir de uma investigação conjunta. No caso da educação, o conhecimento do objeto a ser conhecido não é de posse exclusiva do professor, que concede o conhecimento aos alunos num gesto benevolente. [...]. Em outras palavras, o objetivo a ser conhecido é colocado na mesa entre os dois sujeitos do conhecimento (p.65). Essa opção, de participação decisiva do aluno na construção do conhecimento é, na proposta de Paulo Freire, tanto uma opção democrática quanto uma forma pedagógica mais eficiente de construir conhecimento com os alunos. Nesse sentido, a função do professor, como orientado no processo educativo, é fundamental. Nessa visão, o “método” de Freire é visto muito mais como uma Teoria do Conhecimento do que uma metodologia de ensino. Os princípios da dialogicidade e da problematização como atos educativo-políticos são estendidos para o ciclo gnosiológico: ensinar, aprender e pesquisar. (FREIRE, 1997). Contrapondo, a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, tendência também considerada progressista, propõe, nos anos 80, nova discussão, a partir do compromisso com as classes populares e com a qualidade da escola pública: o sólido domínio dos conteúdos, por professores e alunos, como condição de participação efetiva nas lutas sociais. Nessa perspectiva, esses conteúdos não são abstratos, mas concretos, indissociáveis da realidade social. Essa tendência que tem em Demerval Saviani (1982) uma de suas maiores expressões, ao contrário de Freire, faz uma clara separação entre educação e política. A educação tornar- se ia política apenas se permitisse às classes populares a apropriação do conhecimento 21 produzido pelas classes dominantes. A noção de Libâneo (1987) do fazer crítico inclui quatro pressupostos, que definem bem a essência dessa tendência: • Uma abordagem crítica supõe estreita interdependência entre educação e realidades sociais e, portanto, compreende a educação como uma das manifestações de condições sociais concretas. Tais condições sociais, no contexto brasileiro, têm características de desigualdade, interesses de classe, divisão social do trabalho. • Os interesses dos grupos dominantes se opõem à formação da consciência de classe dos grupos dominados, razão por que procuram controlar a escola (o que não significa que consigam totalmente). O impedimento da elevação desse nível de consciência se dá na forma de descaso pela educação, permitindo ao povo apenas o conhecimento rudimentar. • Levar a educação a sério supõe contrapor a essa educação uma nova cultura nascida entre as massas, trabalhando o senso comum “de modo a extrair o seu conteúdo válido (o bom-senso) e dar-lhe expressão elaborada com vistas à formação de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares” (Saviani, 1982). • O saber-fazer crítico identifica-se, portanto, com a luta para que a escola pública se transforme num poderoso instrumento de “progresso da massa”, e de onde se afirma o papel indissociável da competência técnica (o domínio do saber e do saber fazer) e do seu sentido político. A relação do professor com o aluno não se caracteriza pela igualdade, já que dele é esperado o domínio desses conteúdos e desses métodos necessários, visando à aquisição crítica. Sua ação é intencional; como orientador, exerce também importante papel. A ação do professor é sistemática, preparada e disciplinada, como expressão de seu compromisso com a difusão do conhecimento. A produção crítica dos educadores brasileiros, a partir da década de 60, ocorre num contexto mundial de transformações e de movimentos expressivos: a liberação sexual, a guerra do Vietnã e os respectivos movimentos de protesto, entre outros exemplos, eram de fato o melhor cenário para que o pensamento crítico se desenvolvesse em vários países. Na Inglaterra, Michael Young; na França, Louis Althusser, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron; nos Estados Unidos, Michael Apple. Isso para citar alguns estudiosos que 22 marcaram, por diferentes caminhos, a produção crítica no que diz respeito à escola capitalista. Bourdieu e Passeron (1992), por exemplo, defendem que a escola não inculca a cultura dominante nos alunos das classes dominadas, apesar do currículo se expressar como um código próprio dessa cultura. Na verdade, esses alunos são excluídos do processo porque não conseguem se acostumar a um código cultural que lhes é estranho, porque não diz respeito a sua classe. Nesse sentido, a escola, para os autores, deve reproduzir para tais alunos as condições que os filhos das classes dominantes têm na própria família. A igualdade formal, diz Bourdieu (1998), acaba por justificar a indiferença em relação às desigualdades diante do ensino e da cultura transmitidas na escola “(...) tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. A Pedagogia Multicultural surge, na década de 60, nos Estados Unidos. Trata-se, inicialmente, da expressão de movimento em torno da preocupação com os direitos civis, a partir de educadores, muitos vindos das comunidades afro-americanas, que também apoiavam as lutas de diversos grupos étnicos de todo o país. Nessa perspectiva, caracteriza-se, portanto, como uma prática sócio-política. No processo educacional, o multiculturalismo acaba trazendo discussões essenciais como gênero, raça e sexualidade ao processo educativo. E ainda, faz pensar na questão da igualdade de acesso à escola para todos. Nesse contexto, muitas questões foram levantadas: de qual escola estamos falando? A que veicula conteúdos hegemônicos? A formação de professores poderia ser uma das saídas fundamentais de discussão das desigualdades, discussão dos preconceitos e das possibilidades das múltiplas culturas como um fator de enriquecimento na sociedade? Peter McLaren (1997), que vem estudando intensamente o assunto, considera que a Pedagogia Crítica é uma pedagogia engajada, uma pedagogia que faz uma opção política. Nessa perspectiva, a escola não é vista apenas como espaço de reprodução das desigualdades sociais, mas como esferas públicas abertas à luta política. Em outras palavras, professores tanto podem desempenhar uma função conservadora quanto transformadora. O primeiro passo em direção a uma atitude crítica, diante da escolarização e do mundo, é refletirmos sobre a nossa experiência, a nossa prática enquanto educadores. Segundo o autor, essa teoria pedagógica não é homogênea: ela incorpora contribuições teóricas desde a Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse, entre outros), as teorias da reprodução, as análises de Gramsci, Foucault, à pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Não é, portanto, uma teoria que se pretende pronta e acabada. Por isto, concordando com tais pressupostos, assumimos nesse trabalho um 23 quadro teórico que procura evidenciar a tendência da ação política do professor quando inserido em um processo crítico de formação, no qual as propostas críticas pautam-se em uma perspectiva emancipatória, visando à superação das práticas pedagógicas, voltadas à problematização, ao diálogo, ao questionamento e indagação. Assim, reportamo-nos à teoria crítica. 1.2 A teoria crítica A Teoria Crítica, muito discutida hoje, principalmente, no processo de formação de professores como expressão de ideais que orientam a prática, no sentido qualitativo, e enfrentando os questionamentos de “como as coisas são” e “como as coisas deveriam ser”, abrange noções de moral, ética, política e direito (NOBRE 2004). Configurada nesse sentido, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em geral, se constitui uma das perspectivas mais importantes do início do século XX que foi marcado pelo pensamento crítico e anti-autoritário de filósofos como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamim, Hebert Marcuse e Leo Lowenthal, filiados ao Instituto de Pesquisa Social. Esses filósofos se dedicaram ao estudo crítico da sociedade, sobretudo uma crítica das possibilidades da razão, tal como foi concebida pelo iluminismo, pela não realização da pretensão de libertar os homens da tirania e do obscurantismo (MOREIRA, 2001). Teoria Crítica expressa ainda a questão do Iluminismo – Aufklärung ou Esclarecimento 6 – e o interesse na emancipação da humanidade. Essa teoria associa-se a uma série de conceitos práticos, tais como razão, linguagem, ação, sujeito, liberdade, igualdade, autonomia, progresso, direitos humanos, entre outros. Esses conceitos são apontados indiretamente por Horkheimer (1980), em seu ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crítica, quando tece uma crítica à Teoria Tradicional, fundada por Descartes, e ao seu conceito de razão. A crítica refere-se ao fato de os teóricos tradicionais não considerarem, nos seus estudos, as origens dos problemas sociais, as situações reais nas quais a ciência é aplicada, bem como os fins para os quais é utilizada. A crítica de Horkheimer, como também de Adorno, é feita a uma forma de razão acrítica, desvinculada dos fatos históricos que, por isso, perdeu de vista a sua proposta originária de emancipação do homem (MOREIRA, 2001). Nessa perspectiva, o pensamento crítico busca, prioritariamente, a concretização 6 Essa tradução expressa com maior fidelidade não apenas o significado histórico-filosófico, mas também o sentido mais amplo do termo – o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática. (NT in Horkheimer; Adorno: Dialética do Esclarecimento, 1985). 24 da emancipação do homem de suas relações de opressão e, por isso, dedica-se à superação do paradigma da consciência em prol da construção de um paradigma do sujeito, em que o homem com as suas ações sociais constitui o objetivo da análise, haja vista ser ele o realizador de todas as suas formas históricas. Os aportes teóricos, utilizados pelos frankfurtianos, ancoram-se não somente nas teorias tradicionais, mas, principalmente, nas teorias weberiana e marxista e na psicanálise de Freud. De acordo com Rouanet (2001), Theodor Adorno e Max Horkheimer compartilham com Freud a crença de que a civilização só é possível ao preço da mutilação do homem. Comungam também com este, em oposição ao marxismo mecanicista, a idéia da autonomia e validade intrínseca da cultura. Para eles, a psicanálise, oferecendo o método para explicar o lado inconsciente do processo social, abre a possibilidade de diálogo com a crise social, com os sintomas da desintegração social e da crise da identidade que se manifestava em apática, alienação e anomia social (MOREIRA, 2001). Assim, a teoria crítica caracterizando-se pela sua abertura em relação a outras teorias, tais como “o idealismo, o materialismo, o marxismo, dos quais absorve elementos importantes rejeita aqueles que se tornam fechados, monísticos, apolíticos, a-históricos e a- sociais ou separados da sociedade” permitindo um trabalho de análise multidisciplinar (ROUANET, 2001). Horkheimer e Adorno (1985), na obra A Dialética do Esclarecimento, ao interrogarem a natureza da razão, argumentam que esta, ao opor-se ao mito, acaba convertendo-se em mito, porém, em forma de razão científica. O iluminismo que, na forma de razão científica, surgiu como superação do mito e grande agente de liberdade e de conquista da maioridade do ser humano transforma-se, ele próprio, em mito, ou melhor, ao mito retorna ao consolidar-se como forma de poder e de dominação tirando da atividade científica a capacidade de reflexão e autocrítica. Sobre o caráter mítico escrevem: A liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter percebido com a mesma clareza, que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe da regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não incorporar a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele estará selando seu próprio destino (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.13). Nesse sentido, a coexistência do mito e da razão, da evolução e da regressão, constitui um dos fatores contraditórios que oferecem obstáculos ao processo de emancipação, pois a razão que possibilita o domínio do homem sobre a natureza possibilita, também, o 25 domínio do homem sobre o homem. Então, ao tentar destruir o mito através do recuo à filosofia e à crítica, a razão instrumentaliza-se e perde o seu caráter libertador (MOREIRA, 2001). Nesse embate, Horkheimer e Adorno e (1985) afirmam: A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram que escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie (ibid.p.43). O que os autores estão denunciando é o processo de reificação do indivíduo, através da autodomesticação à ordem reinante em que “a verdade transforma-se numa atitude prática, e esse culto pragmatista passa a considerar como legítima somente a experiência científica, conforme é desenvolvida nas ciências naturais”. Trata-se do que Horkheimer denunciou de “razão instrumental”, em que a razão é reduzida a um mero instrumento provocando, ela própria, a sua autodestruição (ibid. p.52). Assim, o culto ao pragmatismo e à cientificidade provoca mais irracionalidade e desumanização, de tal forma que a própria cultura transforma-se em uma grande indústria cultural para a dominação e a consolidação do poder econômico. Além disso, reduz a possibilidade da reflexão própria do processo criativo, em que o indivíduo passa a se identificar com o objeto transformando-se, ele próprio, em mercadoria, dificultando o exercício da reflexão crítica e impedindo a sua individuação. Trata-se, portanto, de uma indústria cultural que professa a ideologia da razão instrumental, em que a individuação e a diferença são banidas, tornando obsoleto e sem valor tudo aquilo que foge aos padrões estabelecidos. O poder da indústria cultural traz uma falsa diversão, a atividade que distrai no sentido literal do termo, isto é, que desencaminha, que desorienta, que empobrece o espírito e a sensibilidade (PUCCI, RAMOS-DE-OLIVEIRA, ZUIN,1999). Esse processo de manipulação das preferências demonstra a razão realizando o seu contrário, ou seja, o homem agindo contra ele próprio. Considerando as dificuldades da razão de concretizar o seu projeto de emancipação, pretende-se que a teoria crítica possa “criar pontos de referência autônomos para a racionalização crítica, numa adaptação estética e não objetivante do homem e da natureza” (HABERMAS, 1987, apud ORQUIZA-DE- CARVALHO, 2005a), buscando saídas alternativas para a superação da hegemonia do domínio tecnológico. 26 A teoria crítica oferece, portanto, uma significativa contribuição para a elucidação da trajetória percorrida pela razão, em sua transição ao longo da modernidade. Freitag (1986) assevera que, nessa trajetória, os frankfurtianos passaram de um marxismo ortodoxo, quando ainda se concebia a possibilidade de uma revolução proletária, à radicalidade da dialética negativa, como expressão de desesperança. Para Nobre (2004) reside a importância de retomar a expressão original “Teoria Crítica“ para dar significado à demarcação de um campo teórico que valoriza e estimula a pluralidade de modelos críticos em seu interior. Nesse sentido, cabe a ela uma orientação para a emancipação expressa através de um comportamento crítico em relação ao conhecimento que se pretende apreender, produzido sob condições sociais capitalistas e à própria realidade social (ibid. p.33). Com essa perspectiva emancipatória em tela, parece-nos pertinente fazer uma retrospectiva, bastante ampla, mas fundamental, para delinearmos aspectos desse campo teórico que apontamos como relevantes no processo de formação de práticas pedagógicas e avaliativas do professor. 1.3 A influência da filosofia na avaliação educacional: diferentes perspectivas históricas As concepções e práticas de avaliação, ao longo da história da humanidade, sempre estiveram ligadas às concepções de julgamento de valor ou de medida, sobre objetos, pessoas ou sobre si mesmo. A narrativa da evolução histórico-ideológica do conceito de avaliação pode ser situada na tendência teórica-metodológica atual, que, tendo por referência a trajetória apontada por Saul (1991), traça um paralelo com os aspectos filosóficos mais relevantes do processo histórico. Inicialmente, a avaliação, que era conduzida como um ato técnico remetido aos sábios e filósofos passa, posteriormente, aos peritos do sistema educacional. Entretanto, essas concepções inseridas em um contexto social, vêm sendo vistas, progressivamente, como um ato comunicativo de interação entre as partes integrantes do processo. Registros indicam que, em 2.205 a.C., o imperador chinês Shun utilizou a medição, como forma de avaliação, para promover ou demitir oficiais do seu governo. Desde que o homem tomou consciência de sua natureza humana, sentiu-se desafiado a dar um sentido às coisas, a explicar a sua existência e a sua humanidade. Os mitos e as formas religiosas tornaram-se as principais narrativas para dar explicações às coisas, para dar um sentido à própria natureza e ao seu próprio agir. 27 Do ponto de vista avaliativo, o homem, procurando a verdade sobre um mundo, que não conseguia explicar, deu respostas míticas e religiosas a certas questões e atribuiu a um Deus ou a entidades sobrenaturais, a responsabilidade pelo acontecimento das coisas. A filosofia surge então, na Grécia Antiga, por volta do século VI a.C., quando o homem, buscando explicar como são as coisas, procurou dar-lhes sentido a partir da própria capacidade racional, com explicações lógicas e coerentes. É quando a consciência assumindo- se plenamente como razão lógica identifica-se como logos e passa a entender que toda a realidade é possuída e ordenada por esse logos (ARANHA; MARTINS, 1991). Lobo Neto et al. (2000), destacando algumas abordagens filosófico-científicas da realidade, buscam visualizar e apreender, sob ângulos diferentes, os sentidos das coisas, do ser. 1.3.1 A perspectiva essencialista O olhar essencialista de pensar, também chamado de metafísico, nasce com a filosofia, e mantém-se hegemônico até o século XVI d.C. quando surge o modo moderno de pensar, o científico. A preocupação fundamental dos filósofos gregos, nesse período da Antiguidade, representados por Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles, entre outros, é conhecer e chegar à verdade em si, à essência das coisas, assumindo-se que a razão humana é capaz de atingir, conhecer o núcleo imutável de todas as coisas, de todos os seres, de saber o que de fato são em si mesmos. O conhecimento, segundo esse modo de pensar, dá-se, porque a razão humana é capaz de apreender naturalmente, chegar à essência das coisas. Esta é apreendida, seja por um processo de pura intuição intelectual, designado de Idéia, por Platão, seja por iluminação divina, como acreditava Agostinho, seja ainda por um processo de abstração, a partir da experiência sensível, como defendiam Aristóteles e Tomás de Aquino (LOBO NETO et al., 2000). Sócrates dizia “Conhece-te a ti mesmo”, estabelecendo uma forma elementar de auto-avaliação e introduzindo as questões avaliativas como parte da metodologia de ensino. Na Idade Média, período em que o cristianismo dominou a mundo das idéias, o critério de avaliação, utilizado na educação escolástica de nobres e religiosos privilegiados, era a repetição e assimilação integral dos saberes dos doutores e sábios. Os doutores medievais, ao refletirem sobre o irracional, preparam os caminhos da razão e abrem novas perspectivas para a avaliação. 28 Com a renovação cultural que ocorreu no Renascimento, a ciência fundamentada na observação e na experiência foi favorecida e houve modificações na maneira de avaliar, que adquiriu um caráter subjetivo, ou seja, de acordo com o senso de análise do professor. 1.3.2 A Perspectiva racional-científica O olhar moderno, enfocando a natureza física e o homem, a partir da perspectiva racional-científica, substitui o projeto metafísico pelo projeto da ciência. Os filósofos modernos defendem que só podemos ter certeza da verdade de nossos conhecimentos quando conhecemos por intuição intelectual, isto é, através da nossa própria atividade de consciência enquanto atividade intelectual; ou por fenômenos, transmitidos pelas intuições, impressões sensíveis. Nesse sentido, essa epistemologia racionalista, mudando os critérios de justiça, de bondade e de educação, orientou tanto a postura filosófica quanto a científica; ou seja, o homem assume uma nova postura em face de si mesmo e do mundo. Pronuncia-se contra a autoridade dogmática e a favor de uma ciência fundamentada na observação e na experiência. Nesse contexto, a maneira de avaliar sofre modificações. Descartes (1987), representante eleito desse racionalismo idealista, propôs a conciliar o caráter objetivo da verdade com o caráter subjetivo do que poderia ser apontado como verdadeiro. Para esse filósofo, a verdade é objetiva; o problema é o “critério da verdade”, levando-se em consideração as diferenças individuais. A subjetividade acolheria a razão, e esta, para Descartes, era o “bom-senso”, aquilo que ele dizia que era o que havia “de mais bem distribuído entre os homens” (GHIRALDELLI, 2005). Por sua vez, o racionalismo empirista abre a consciência para o mundo, mas escraviza a razão às impressões sensíveis. De acordo com esse caminho, o científico moderno, o único conhecimento possível e válido é aquele que se tem por intermédio das idéias formadas a partir das impressões sensíveis. Para os empiristas, como Francis Bacon (1979), John Locke (1978), David Hume (1973), todo o nosso conhecimento provém da percepção do mundo externo ou do exame da atividade de nossa própria mente, que é uma tábua rasa. Assim, tanto para os idealistas como para os empiristas, não há garantias de que estejamos conhecendo de fato a realidade em si mesma, como pretendiam os metafísicos. O que conhecemos são idéias, representações dessa realidade que recebemos em nossa consciência. (LOBO NETO et al., 2000). Essas duas perspectivas da era moderna – a idealista e a empirista – apesar de suas 29 diferenças, têm em comum o fato de só se apoiarem nas “luzes” naturais da razão, que, na realidade, só podem “iluminar” o objeto na medida em que ele é montado no âmbito da consciência. A partir do “penso, logo existo”, de Descartes (1987), o indivíduo passa a ser a base do novo quadro teórico, do novo sistema de pensamento. Nele, a subjetividade é o termo dominante na relação sujeito/objeto, enquanto conhecimento. O filósofo alemão Immanuel Kant (1991), por meio de seu criticismo, buscou superar a oposição, a dicotomia entre os racionalistas idealistas e empiristas, desenvolvendo uma teoria do conhecimento que integra aspectos de ambos. Para ele o conhecimento pressupõe a existência de formas lógicas anteriores à experiência sensível, mas que só exercem alguma função se aplicadas sobre conteúdos empíricos fornecidos pela última. Isto é, as visões unilaterais, seja do idealismo para o qual a razão só pode conhecer com certeza as idéias de que já dispõe, as idéias inatas, seja do empirismo que vê na experiência sensível a única fonte de conhecimento, são insuficientes para explicar o conhecimento, segundo Kant (ARENDT, 1993). No entanto, a síntese kantiana também possibilita a volta à metafísica idealista, através do pensamento de outros filósofos, como Hegel (1994) que prioriza novamente o sujeito e a intuição intelectual; e Augusto Comte (1988) que prioriza o objeto e a experiência sensível, como uma justificativa epistemológica da ciência. Neste contexto, a partir do século XVII, a avaliação sobre as qualidades e o rendimento dos alunos (mensuração da capacidade humana) torna-se sistemática e é realizada através de exames escritos, de provas objetivas, de testes padronizados em grande escala, que mediam mais a inteligência do aluno do que o seu rendimento escolar. No entanto, não havia distinção entre medir e avaliar. Somente na Idade Contemporânea, que abrange o final do século XVIII, torna-se imprescindível a construção de um sistema educativo absolutamente novo, no qual a educação da criança passa ao domínio exclusivo do Estado. Há forte reação ao ensino humanista tradicional, influenciado pelo Laicismo, Racionalismo, Enciclopedismo e pelo Naturalismo. Nos séculos XIX e XX, de acordo com Santos (1951), predominam as correntes pedagógicas do individualismo, do socialismo, do nacionalismo e do pragmatismo: - no individualismo, a educação é um fenômeno essencialmente individual, pois é concebida a partir da liberdade, da autonomia e da irredutibilidade do indivíduo sobre a sociedade. Nesse caso, avalia-se o aperfeiçoamento da individualidade, da capacidade criativa e os atributos individuais do ser humano. - no socialismo, ao contrário, afirma-se o primado da sociedade sobre o indivíduo, pois o 30 homem é simples produto da sociedade. A coletividade é uma entidade que não se confunde com a soma dos indivíduos; é uma realidade em si. A ação educativa ou avaliativa, nessa corrente, gravita em torno da comunidade que é a educadora. - a educação socialista nada mais é do que uma forma de socialismo, na qual a sociedade é representada pelo Estado ou Nação. O homem, nesse caso, é um simples produto dos interesses e prerrogativas do Estado ou Nação. O civismo é a virtude avaliada no indivíduo. - o pragmatismo, por sua vez, nasceu da pretensão de conciliar as divergências existentes entre as correntes filosóficas e de ultrapassar as limitações impostas ao conhecimento humano pelo idealismo Kantiano e pelo naturalismo positivista. Sua principal característica é a de conceber a verdade subordinada à ação, como instrumento da prática e da experiência. 1.3.3 A perspectiva dialética Em 1859, com a publicação de Darwin sobre a origem das espécies, o homem passou a ser analisado como uma unidade dentro de um sistema exterior, tornando-se necessário então, conhecer a sua história, seu ambiente, seu desenvolvimento genético e filogenético, sua posição na ordem das espécies e os meios pelos quais se adapta ao seu ambiente. Surgem, nesta época, os métodos biográficos da história familiar, o estudo comparado e uma crescente sensibilização em relação à importância das diferenças individuais em capacidade, atitude e realização. Durante o século XIX, ciência e filosofia adquirem plena autonomia. Nesse período, há um fecundo desdobramento da ciência e o surgimento de novas perspectivas filosóficas que lançam as raízes da filosofia contemporânea. Severino (1994) destaca que, “no âmbito da filosofia, multiplicam-se as novas orientações”: na linha do subjetivismo, surge a fenomenologia de Husserl, Scheler e a genealogia de Nietzche, procurando unir a dialética com o naturalismo, a sociologia e a economia; surge o marxismo e o naturalismo; surge a psicanálise de Freud, Jung (LOBO NETO et al., 2000). Nesse novo contexto, o olhar metafísico (essencialista) e o naturalista exclusivamente científico, nos moldes positivistas e de raiz iluminista (luz da razão a iluminar a realidade e a humanidade), revelam-se insuficientes para explicar e dar sentido à realidade. Um novo modo de pensar, caracterizado pela retomada, negação e superação do olhar metafísico e científico, vem sendo buscado desde o século XIX até o momento presente é o olhar dialético. Seu elemento fundamental está no princípio básico de que a compreensão 31 do real, e o conhecimento que dele temos são radicalmente históricos. Isto é, entende que a realidade não está dada, mas vai se constituindo. Essa nova visão possibilita a passagem de uma concepção estática do mundo – que podia ser explicado apenas pelo movimento local, circular, para uma concepção dinâmica, de mundo em transformação, de processo. Coube ao filósofo alemão Hegel (1994) a tarefa de redimensionar todo o pensamento ocidental, que até então estivera refém da lógica formalista da não-contradição. Para tanto, ele recupera idealisticamente a lógica contraditória de Heráclito. Criticando as tradições racionalistas e iluministas de se olhar a realidade sem bases históricas, assim como o subjetivismo kantiano, Hegel vai formular o modo dialético de pensar a realidade. Para ele a consciência se constitui historicamente por meio de “um tríplice e contínuo processo contraditório de interação” (LOBO NETO et al., 2000). Com Karl Marx (1983) e Friedrich Engels (1998), a dialética adquire um status filosófico (o materialismo dialético) e científico (o materialismo histórico). A base do pensamento marxista é o modo de pensar histórico inaugurado por Hegel (1994). Embora discordando do seu olhar metafísico, idealista, Marx aproveita sua lógica dialética e vai aplicá-la tão somente ao mundo da realidade histórica concreta, ou seja, à natureza e, sobretudo, à sociedade. O trabalho, para Marx (1983), é visto como práxis, enquanto atividade humana que incorpora o homem no seu todo, pensamento (cabeça) e ação (mãos). Ao agir, o homem transforma a natureza e a sociedade e, ao provocar essas transformações, ele também é transformado. E isso se estende a partir da tríade dialética, ao infinito. Nesse processo, sujeito e objeto se determinam, constituem-se mutuamente. Cabe ainda chamar a atenção para os avanços que a concepção filosófica da práxis vai conseguir com Gramsci (1966), filósofo marxista italiano. Gramsci, fixando-se primordialmente na reflexão da superestrutura social, traz uma grande contribuição para a compreensão da ordem social e política, em particular da educação. As concepções de paradigmas avaliatórios surgem, em momentos históricos, influenciados pelos diferentes contextos sociais, filosóficos e científicos. Souza (1998) destaca a influência do paradigma positivista em toda a área educacional, orientada pela literatura americana até a década de 70, que priorizou a informação quantitativa, a objetividade dos instrumentos, a coleta e análise de dados, a ênfase nos produtos e o método hipotético-dedutivo. 32 Assim, só depois deste período, ampliou-se o foco para avaliação de projetos, programas, currículos e para as instituições. Os avaliadores que conjugam as idéias de uma visão global avaliam a aprendizagem e o currículo não como algo estanque, desvinculado dos aspectos políticos e sociais, mas com uma visão do todo. Foi com Ralph Tyler (1978), considerado o ‘pai da avaliação educacional’ (ABRECHET, 1994, p.33), que a relação existente entre objetivos, conteúdos e avaliação adquiriu a concepção de processo contínuo, na busca do aperfeiçoamento das ações. Sintetizando seu modelo, Tyler (1978) o descreve como um processo pelo qual o currículo e os planos de ensino são desenvolvidos e avaliados; a análise das avaliações oferece os indicadores que apontam para a necessidade de reforçar os aspectos positivos e redirecionar o processo onde o planejamento sofreu desvios. Além disso, na concepção de Tyler (1978), esse processo deve ser contínuo, na busca de aperfeiçoamento das ações. O importante desse paradigma é descrever bem. Em quase todos os trabalhos sobre a medida e avaliação em educação, até os meados dos anos 60, a avaliação apresenta uma perspectiva individual, relacionada com o aprendizado do aluno. Quando Bloom e seus colaboradores, em 1964 (BLOOM et al., 1983), postulou a pedagogia do domínio, dando ênfase especial à avaliação como controle de qualidade, isto é, como um meio para aperfeiçoar um processo, estava possibilitando uma transposição à pedagogia e às aprendizagens dos alunos. Michel Scriven (1967), professor de Filosofia Pura, treinado na Lógica da Ciência, preconiza que “os avaliadores devem julgar tanto os objetivos quanto os resultados”. Afirmou ainda que a definição de avaliação de Tyler (1978) de “determinar se os objetivos haviam sido alcançados”, era demasiado restrita, já que estas conclusões, ou tinham pouco interesse, ou eram prejudiciais caso os objetivos não fossem válidos. (SOUZA, 1998). Foi então, a partir dos conceitos desenvolvidos por Scriven (1967), que as ‘funções’ da avaliação passaram a ser destacadas. Para esse autor, o objetivo da avaliação é julgar o mérito de alguma coisa. Ele classifica as funções em ‘formativa’ e ‘somativa’ (apud ABRECHT, 1994, p.68). A expressão “avaliação somativa” refere-se à avaliação que pretende, ao final de um período, dar uma visão geral sobre o desempenho do estudante. A avaliação formativa, em oposição, expressa a função reguladora (acompanhamento, correção e reorientação) que ocorre durante o processo, utilizando informações como feedback para modificar as atividades de ensino e de aprendizagem (BLACK e WILIAM, 1998a,b). 33 1.3.4 A Perspectiva incerta O pensar contemporâneo tem-se caracterizado por uma multiplicidade de correntes científicas e filosóficas. Essa característica, expressão do esgotamento do modelo iluminista de pensar, torna difícil, senão impossível, enquadrar o pensamento contemporâneo em um modelo de conhecimento. Num primeiro momento, o ocaso da racionalidade iluminista manifesta-se como crise dos paradigmas. Paradigmas competitivos, como o positivista e o marxista, revelam-se insuficientes para a abordagem científica e filosófica da realidade. Frente aos avanços e descaminhos da ciência, torna-se geral a desconfiança sobre o valor do conhecimento. Novos desafios são colocados à competência explicativa das teorias, hipóteses, premissas e leis fundadoras do pensamento científico moderno. A relatividade de Einstein, a microfísica, a termodinâmica, a microbiologia têm ampliado o universo das indagações dos cientistas. Cada vez mais eles se vêem confrontados com novas verdades e com incertezas sobre verdades há muito estabelecidas. Assim, se a era moderna nasce de uma revolução intelectual que desafia os pressupostos da filosofia e das ciências medievais, o desenvolvimento da perspectiva contemporânea começa com uma revolução semelhante que desafia o poder explicativo das categorias modernas, do projeto iluminista. Dentre as novas teorias que têm despertado o interesse dos educadores, podemos destacar os chamados paradigmas holonômicos – o pensar pós-moderno, que pretendem restaurar “a totalidade do sujeito individual, valorizando a sua iniciativa, a sua criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência” (GADOTTI, 1995). A denominação olhar incerto, que não se constitui como um sistema, refere-se mais a uma postura, à postura pós-moderna. Entre os elementos reveladores da pós-modernidade está a invasão da tecnologia eletrônica, da automação, e da informação, que causa certa perda de identidade nos indivíduos. A pós-modernidade se caracteriza também pela crise de paradigmas. Faltam referenciais... O pós-moderno surge exatamente como uma crítica à modernidade, diante da desilusão causada por uma racionalização que levou o homem moderno à tragédia das guerras e da desumanização (GADOTTI, 1995, p.305). Os princípios filosóficos sempre influenciaram os avaliadores que transpuseram para as ciências sociais e para a educação em geral os métodos científicos originalmente construídos para investigar a natureza física. 34 Sá Barretto (2001) destaca que, neste novo contexto, a avaliação vai além de uma visão unidimensional e incorpora os aspectos humanos, sociais e éticos envolvidos no processo, de forma a reunir informações descritivas sobre o objeto, situações e as condições que a cercam. Torna-se importante especificar as informações relevantes sobre padrões de valor e de mérito, compartilhar informações e negociar decisões. A negociação, segundo a autora, é a palavra-chave desse novo enfoque em que critérios, procedimentos e recomendações movem-se na teia da linguagem que começa na interação comunicativa entre sujeitos que fazem uso da crítica dialógica. Contribuindo para essa perspectiva, Penna Firme (2000) traz à discussão, nos olhares do novo milênio, um novo conceito associado à avaliação – o empowerment –, entendido como potenciação, fortalecimento ou energização e descrito como um novo enfoque de atuação do avaliador que assume um papel de orientador das ações, tanto para promover interações comunicativas que possibilitem a negociação entre os atores, quanto para fortalecer as competências identificadas e impulsionar a busca de autodesvelamento e de auto- aperfeiçoamento dos avaliados. Sob essa nova ótica, altera-se completamente a dinâmica comunicativa que envolve o contexto avaliativo. Muda-se sua representação simbólica e ressignifica-se o processo. A avaliação, tornando-se compartilhada (auto-avaliação, avaliação emancipatória, avaliação dos pares, avaliação formativa), busca sempre múltiplos olhares e volta-se para o desenvolvimento e para a aprendizagem e não mais para o controle. Severino (1999 apud PUCCI, RAMOS-DE-OLIVEIRA, ZUIN, 1999) salienta que a formação filosófica do educador é extremamente relevante e imprescindível, tanto no campo da produção do conhecimento, como no campo da avaliação dos fundamentos do agir e no campo da construção da imagem da própria existência humana. No entanto, o mesmo autor, ainda nos lembra que existem vários fatores que dificultam a apropriação, por parte dos educadores, pois, em seu processo formador, “além das deficiências pedagógicas e curriculares intrínsecas”, há também a “falta de mediações e de recursos culturais” (p.7). 1.4 A perspectiva da avaliação formativa no contexto atual Neste trabalho, assumimos desde o início o potencial da avaliação formativa como propulsor para o processo crítico de formação do professor, de suas práticas pedagógicas e avaliativas. Dessa forma, precisamos ressignificar o seu conceito. 35 O termo avaliação tem sido usado de muitas maneiras por diversos autores, e é freqüente, até mesmo dentro de uma escola, dada a diversificação entre os professores. Black e Wiliam (1998a,b) referem-se a todas aquelas atividades empreendidas pelos professores e seus estudantes as quais fornecem informação para ser usada como feedback para modificar as atividades de ensino e de aprendizagem. Tal avaliação torna-se avaliação formativa quando a evidência é de fato usada para adaptar o ensino às necessidades dos estudantes. De uma forma ampla, a avaliação formativa pode ser definida como “a prática da avaliação contínua que pretende melhorar a aprendizagem em curso” (PERRENOUD, 1999). Para este autor, o ponto de partida, para descrever o processo de interação social envolvido nos processos de avaliação formativa, é a regulação, isto é, “o conjunto das operações metacognitivas do aprendiz e de suas interações com o meio que modificam seus processos de aprendizagem no sentido de um objetivo definido de domínio” (p.78). Na interação com o meio, o aprendiz recebe “informações sobre o seu desempenho numa ação” (BLACK e WILIAM, 1998a), podendo ter diferentes reações para a sua percepção do desnivelamento ou do distanciamento entre dois níveis de referência, aquele que ele atribui à mensagem recebida e aquele que ele associa ao estado presente. Diante da mensagem recebida, o aprendiz poderia se perguntar: “há diferença entre os dois níveis?”; ou “qual é a aproximação entre eles?”; ou ainda “o que eu devo fazer para chegar lá?”. Black e Wiliam (1998a) argumentam que a função formativa seja atribuída ao feedback, somente no último caso, ou seja, quando o aprendiz utiliza a informação recebida para alterar a lacuna percebida. Nesse caso, sua resposta, adquirindo um caráter formativo, estabele a valorização da auto-regulação do processo de aprendizagem ou auto-avaliação. Sobre a auto-regulação (auto-avaliação), Perrenoud (1999) afirma que “não se trata mais de multiplicar os feedbacks externos, mas de formar o aluno para a regulação de seus próprios processos de pensamento e de aprendizagem”. Segundo Sadler (1989 apud BLACK e WILIAM, 1998a), a ação do aprendiz poderá ser inibida se o desnivelamento for visto como largo demais. Assim, o processo da avaliação formativa consiste em caminhar por sucessivas aproximações e por constantes redefinições de metas. Há muitas pesquisas sobre avaliação (SAUL, 1991; PERRENOUD, 1999; SOUZA, 2000), mas uma base teórica sobre avaliação formativa, aplicada em sala de aula, é difícil de ser encontrada. Algumas pesquisas indicam que uma avaliação é formativa, no sentido de ajudar a aprender, e que deve estar voltada muito mais à regulagem da aprendizagem do que à classificação. A utilização da avaliação formativa, como estratégia 36 reflexiva, proporciona informações acerca do desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem, com a finalidade de ajustar esse processo às necessidades das pessoas a que se dirige. É uma avaliação que contribui para melhorar a aprendizagem, pois informa ao professor e ao aluno seu desenvolvimento, seus sucessos e fracassos, o seu próprio caminhar. Nesse sentido, Villas Boas (2006) tem estudado “a importância da avaliação formativa no processo de formação de professores, para que, como conseqüência, ela seja praticada em todas as escolas de todos os níveis”. Para a pesquisadora, os professores aprendem a avaliar, enquanto se formam, vivenciando o feedback e transformando-o em automonitoramento. Nesse processo de desenvolvimento da autonomia intelectual, as avaliações informal e formal, além da auto-avaliação, formam um conjunto de informações que contribuem com a aprendizagem duradoura. O Governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria da Educação, tem estabelecido uma legislação correlata à avaliação vigorando, desde 1998, que embasa a Proposta Pedagógica e o Regimento Escolar das Escolas Estaduais (Parecer CEE Nº 67/98 e Resolução SE – 61/07) os quais, centrando seus princípios e metas na avaliação como principal elemento do currículo e como parte fundamental do processo ensino-aprendizagem, destacam o caráter formativo da avaliação no processo. Assim, a avaliação formativa fundamenta-se na observação e no registro do desenvolvimento do aluno, em seus aspectos cognitivos, afetivos e relacionais, decorrentes das propostas de ensino (MURRIE, 2008). Para tanto, é requerido do professor que ele conheça cada aluno em particular, estabelecendo as competências que dominou, seu estilo pessoal, seus métodos de estudo e seus interesses. Tanto o professor quanto o aluno, precisam ter claros os padrões estabelecidos sobre o que é necessário aprender, além do caráter significativo e funcional dessa aquisição. As situações de aprendizagem devem ser definidas e determinadas de forma temporal com mecanismos próprios para identificar a aprendizagem de cada aluno e o nível de interação entre o ensino e a aprendizagem. Nesse processo, espera-se que o professor seja capaz de desenvolver mecanismos para reconduzir o ensino, caso a turma, ou parte dela, não tenha um desempenho satisfatório. Nessa perspectiva, a avaliação formativa possibilita o acompanhamento do processo de aprendizagem do aluno, de suas estruturas de pensamento, a ponto de entender o que ele não está aprendendo. Assume o caráter de uma prática ativa, dinâmica e flexível, numa perspectiva construtivista, voltada para uma tomada de consciência do aluno sobre o seu próprio processo, e do professor, sobre a sua prática pedagógica e processo de ensino. Jimenez Peña (2005) nos lembra que embora o discurso pedagógico hoje esteja 37 voltado para as práticas construtivistas e as formas diferenciadas de educação, como é o caso da avaliação formativa, a escola vive um grande paradoxo. Numa mesma escola, convive-se com formas diferenciadas de ensino e avaliação, sinal de que os educadores estão vivendo um período de grande transição, refletido na insegurança e no mal-estar de um bom número de professores. Seja pelas condições institucionais que se apresentam como obstáculos (estrutura), seja pela falta de capacitação, a maioria sente muita dificuldade em aplicar os princípios da avaliação formativa (JIMENEZ PENA, 2005, p.15). Essa questão também é salientada por Perrenoud (1999), quando observa que a avaliação formativa ‘participa da renovação global da pedagogia, da centralização sobre o aprendiz, da mutação da profissão de professor’ requerendo ‘formadores relativamente polivalentes’, capazes de criar situações de aprendizagem portadoras de sentido e de regulação e dispostos a desencadear mudanças nas próprias práticas (p.121). A escola tradicional ou mesmo aquelas de vanguarda que apresentam inovações pedagógicas propondo-se à mudança, possuem limites de estrutura, valores e crenças da comunidade e dos próprios professores que as impedem de implementar, de forma imediata, a avaliação formativa. 1.5 A perspectiva da implementação de projetos na formação/avaliação de professores Para o professor assumir novas tarefas e responsabilidades, como membro da comunidade e como agente de mudança no sistema social, ele precisa estar atento e procurar construir conhecimentos ao invés de apenas transmiti-los. Um recurso pedagógico que estrutura a formação de professores e alunos reflexivos é o desenvolvimento de projetos. Além de provocar a articulação entre a formação e pesquisa, essa técnica articula teoria e prática, formação profissional com pessoal. Almeida e Júnior (2000) pesquisam sobre projetos e ambientes inovadores e destacam que ...um dos símbolos de evolução do ser humano e de uma sociedade é sua capacidade de planejar, pensar adiante, prever seu futuro para melhorá-lo... o novo cidadão projetista não aceita a realidade só porque sempre foi assim. Ele nega-se à repetição triste e desumanizadora dos fatos, rebelando-se por meio de seus sonhos (ibid.p.64). Pedro Demo (1998) argumenta que, “se quisermos criatividade, consciência crítica, cidadania de sujeitos capazes de história própria individual e coletiva” precisamos tornar o aprender um desafio reconstrutivo ou formativo. Assim, ele, defendendo a pesquisa 38 como ambiente da aprendizagem, não abandona os conteúdos formais, mas apenas propõe uma organização diferenciada, com privilégio para as habilidades básicas. Para a construção de um projeto, precisamos destacar a presença da avaliação como um dos componentes do processo educativo, nas instituições de ensino, com um caráter de investigação. Nesse caso, a avaliação exerce uma função essencial na construção e na manutenção da qualidade das ações. A avaliação é, ao mesmo tempo, produto e fator de planejamento, ou seja, a avaliação e o planejamento de qualquer ação educacional guardam entre si uma relação dialética. Por um lado, como parte integrante do próprio plano de ação, em qualquer nível do sistema educativo, macro ou micro, seja ele um plano global ou um projeto específico, o modelo de avaliação adotado está subordinado às linhas políticas, sociais, filosóficas e pedagógicas das ações que se pretendem executar, devendo estar coerente com elas. Por outro lado, a avaliação tem um caráter de pesquisa cujos resultados alimentam o processo, oferecendo subsídios para a tomada de decisões e/ou para situar desvios na ação e realizar as correções necessárias. Desse modo, a avaliação torna-se um ato de reflexão, de investigação e de ação visando à transformação da prática educativa e ao crescimento dos indivíduos (HOFFMANN, 1994). Quando o professor quer refletir e coletar informações que lhe possibilitem melhorar a qualidade de sua atuação profissional, deve se auto-avaliar. Consideramos que esse nível de avaliação é um dos elementos mais importantes da prática docente, pois nele o professor toma consciência de seus limites e de suas possibilidades. Através dessa reflexão, o docente visualiza a abrangência de seu trabalho, as competências necessárias para responder às necessidades sociais e educacionais. Antes de qualquer coisa, o professor precisa saber quais as metas que pretende alcançar, reconhecer e adotar como referencial às expectativas que a escola, os alunos, os outros colegas de profissão e a própria sociedade, na qual está inserido, têm do seu desempenho. No que diz respeito a esse aspecto, sabemos que são múltiplas as habilidades requeridas para ser um profissional competente; dentre todas elas, a avaliação é um fator preponderante que visa não apenas ao desempenho dos alunos, mas a seu próprio desempenho, a sua formação e a seu aperfeiçoamento. Diante de inúmeros desafios enfrentados pelo docente, Vasconcelos (1994) apresenta duas alternativas: ‘justificar para não mudar’ ou ‘compreender para transformar’. O cuidado com seu crescimento docente passa, entre outras coisas, pela opção de escolher qual dos dois caminhos seguir: acomodação ou transformação. 39 Benjamin Bloom e colaboradores (1983) estabeleceram uma taxonomia das habilidades de pensamento cognitivo que auxilia no estabelecimento de objetivos de ensino, e, portanto, de questões avaliativas. De acordo com os autores, o processo cognitivo passa por seis domínios, na seguinte seqüência: conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação ou julgamento. Essas competências cognitivas guardam entre si uma relação hierárquica, de complexidade crescente, em que cada categoria depende do domínio da competência anterior. Embora as categorias de Bloom tenham sido uma referência muito utilizada pela pedagogia do controle, a categorização é reconhecida como válida e utilizada, mesmo pelos adeptos das abordagens pedagógicas transformadoras, que a recomendam como referência para o professor “estabelecer uma seqüência de complexidade crescente mais adequada e de acordo com o nível em que se encontram seus alunos” (ROMÃO, 1998, p.108). Mais recentemente, vários estudiosos pesquisam em busca de um melhor entendimento da mente humana, o que se refletiu nos estudos a respeito do potencial do cérebro (ALENCAR, 1997), da existência de inteligências múltiplas (GARDNER, 1994) e dos processos de pensamento (COLL, PALACIOS, MARCHESI, 1996). Os estudos da natureza do processamento realizado pelo cérebro trouxeram à luz conhecimentos sobre as modalidades de funcionamento dos hemisférios, identificando as funções realizadas pelo hemisfério esquerdo, como operações lógico-analíticas: argumentação, conhecimento, razão, ciência, análise, entre outras. Já operações intuitivo/sintéticas – simbolismo, síntese, intuição, emoção, arte, criatividade, valores, entre outras – estão ligadas ao funcionamento do lado direito do cérebro, ficando as operações motrizes/operacionais – motricidade, pragmatismo, ação, iniciativa, impulsividade – ligadas à estrutura comum do cérebro (GARDNER, 1994). A Didática passa a se preocupar com as operações do pensamento, cognitivas, criativas, valorativas, desde as operações mais simples para estimular o pensamento, como a comparação, a classificação, a observação, até a interpretação, a crítica, passando pela indução, dedução, aplicação, entre outras. Para que as operações se desenvolvam, é preciso que sejam estimuladas e exercitadas. As operações ordenadas e praticadas com freqüência geram autonomia de pensamento, pensamento crítico. Para atingir tal autonomia, as operações devem converter-se em habilidades, que precisam ser fortalecidas e aperfeiçoadas. Webb (1995) faz considerações importantes sobre os propósitos da avaliação quando se quer medir a competência e/ou o desempenho de um indivíduo, ou a produtividade do grupo e/ou a habilidade das relações interpessoais estabelecidas no grupo. O importante, para esse autor, são os pontos da avaliação que têm que estar claros para aqueles que serão avaliados, tais como: o propósito da avaliação, a meta do trabalho de grupo, os procedimentos 40 e critérios utilizados na avaliação e a consistência desses três aspectos. Nesse sentido, a avaliação não aborda apenas aspectos cognitivos, mas também subjetivos e sociais. Assim, a perspectiva de implementação de projetos na formação/avaliação de professores torna-se mais ampla e efetiva para garantir uma mudança no sistema educacional. Utilizando as recomendações elaboradas por um conjunto de professores e pesquisadores em Didática das Ciências, em 1995 (MENEZES, 1996), todo programa que visa à formação continuada deve reconhecer as necessidades formativas dos professores, levando em consideração as condições do seu local de trabalho; deve ainda refletir sobre as possíveis estratégias de formação e estar orientado pelos seguintes princípios: ser parte integrante do trabalho docente, promover a autoformação e o trabalho coletivo, desenvolver convênios de colaboração com outras instituições, envolver os professores da própria escola, priorizar a formação permanente, estabelecer a avaliação como processo contínuo fo