0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARIA CAROLINA FLORENTINO LASCALA A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS FRANCA 2011 0 MARIA CAROLINA FLORENTINO LASCALA A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. Orientadora: Profa. Dra. Riva Sobrado de Freitas FRANCA 2011 1 Lascala, Maria Carolina Florentino A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a implementação de políticas públicas brasileiras / Maria Carolina Florentino Lasca- la. –Franca : [s.n.], 2011 217 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientadora: Riva Sobrado de Freitas 1. Direito internacional público. 2. Sentenças internacionais – Brasil. 3. Direitos humanos. I. Título CDD – 341.1219 2 MARIA CAROLINA FLORENTINO LASCALA A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente:______________________________________________________ Profa. Dra. Riva Sobrado de Freitas. 1º Examinador(a):___________________________________________________ 2º Examinador(a):___________________________________________________ Franca, _____ de _______________ de 2011. 3 Para Letícia, minha alegria. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente à professora Dra. Riva Sobrado de Freitas, que depositou sua confiança na realização deste trabalho, foi uma mestra para mim e é um exemplo a ser seguido, por sua sabedoria e dedicação ao magistério. Agradeço aos meus pais, Domingos e Maria Abadia, base sólida da minha vida e da minha formação, que me incentivam a crescer sempre e me ajudam diariamente para isso acontecer. Agradeço ao Rodrigo, pelo nosso amor, que me faz uma pessoa melhor. Agradeço a Letícia, minha filha abençoada e encantadora, fonte de minha inspiração e por quem luto por um futuro mais justo. Agradeço a toda minha família, em especial meu irmão Thiago, minha cunhada Cristina, minhas queridas Maria Júlia e Luísa, Vó Stela, Vô Tino, Tia Mercedes, Tio Gastão, Tia Tereza, Tio Tininho, Tia Coe, Tio João, Tia Bê e minhas primas Marina, Daniela, Adriana, Ana Maria e Débora e ainda à minha linda afilhada, Elena, que contribuíram com muito amor quando eu mais precisei. Agradeço, por fim, a todos os funcionários e professores do curso de pós- graduação em Direito da UNESP, principalmente aos professores Dra. Yvete Flávio da Costa e Dr. Alfredo José dos Santos, que estiveram na minha banca de qualificação, e também a todos os colegas da turma de 2009, pela sempre pronta ajuda. Muito obrigada a todos! E eternamente a Deus: “Deus o nosso protetor: ¹A pessoa que procura segurança no Deus Altíssimo e se abriga na sua sombra protetora ²pode dizer: Ó Senhor Deus, tu és o meu defensor e o meu protetor. Tu és o meu Deus; eu confio em ti” (Salmo 91, 1-2). 5 “O entrelaçamento das ordens jurídicas interna e internacional é um dado importante da atualidade institucional, com visível tendência à expansão. Aos olhos do eminente professor francês Louis Favoreu, é precisamente aí que se encontra o novo direito constitucional” (Luís Roberto Barroso) 6 LASCALA, Maria Carolina Florentino. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a implementação de políticas públicas brasileiras. 2011. 217 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. RESUMO A presente dissertação se propõe à análise da implementação das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferidas em desfavor do Estado Brasileiro, notadamente em relação às medidas de não repetição, que são medidas a serem adotadas pelo Estado condenado, consistentes em evitar novas violações de direitos humanos. Trata-se de imposição internacional ao Estado de que adote políticas públicas tendentes à concretização dos direitos humanos que restaram violados. Primeiramente, será possível concluir pela legitimidade da jurisdição desta Corte, após análise do novo conceito de soberania que se formou com a afirmação dos direitos humanos na comunidade internacional. Será resumidamente estudado o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, cujo principal documento é a Convenção Americana, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que prevê a jurisdição internacional da Corte Interamericana, a qual o Brasil aderiu. Passando à análise das sentenças condenatórias desta Corte, será visto que elas geralmente determinam o pagamento de indenização pecuniária à vítima e a adoção das citadas medidas de não repetição, dentre outras obrigações de fazer. Para fins de execução dessas sentenças internacionais, será feita a comparação delas com as sentenças judiciais brasileiras que, igualmente, condenam o Estado no plano interno. Assim, será estudada a relação dos três poderes do Estado com as políticas públicas, destacando-se o controle judicial dessas políticas, seus limites e sua eficácia. Além das muitas dificuldades enfrentadas pelo controle judicial, em razão dos princípios da separação dos poderes, da discricionariedade do mérito dos atos administrativos e das restrições orçamentárias, será possível notar que os problemas tendem a ser mais graves quando há tentativa de controle por uma sentença internacional. Apesar disso, este estudo se propõe à busca pela efetividade dos direitos humanos pelo cumprimento dessas sentenças internacionais, sempre da forma mais adequada à Constituição Federal Brasileira. Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. jurisdição internacional. sentença internacional. políticas públicas. controle judicial. 7 LASCALA, Maria Carolina Florentino. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a implementação de políticas públicas brasileiras. 2011. 217 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. ABSTRACT The purpose of this dissertation is to analyze the implementation of the decisions awarded by the Inter-American Court of Human Rights to the detriment of the Brazilian State, especially regarding the "non-repetition measures", which are to be adopted by the convicted States to prevent further human rights violations. In fact, these are international requirements forcing the State to adopt public policies that lead to the effectiveness of human rights. Analyzing a new concept of sovereignty, conceived by the affirmation of human rights in the international community, it will be possible to attest the legitimacy of the Inter-American Court jurisdiction. A brief survey will be done on the Inter-American human rights protection system, whose main document is the American Convention, known as Pact of San José, Costa Rica. This document establishes the Inter-American Court international jurisdiction, which Brazil has adhered to. In relation to the Court´s decisions, it will be demonstrated that they generally establish the payment of monetary compensation to the victims and the adoption of non-repetition measures by the convicted State, besides other obligations. In order to study the implementation of the international decisions, a comparison will be made among these decisions and the decisions awarded by the Brazilian courts which equally condemn the State. Thus, the relationship between the three Powers of a State and public policies will be analyzed, highlighting the judicial review of those policies, their limits and effectiveness. Besides the various difficulties faced by judicial control, due to the principles of the separation of powers, the administrative acts merit discretion and budget constraints, problems tend to be more severe in case of an international decision. Nevertheless, this dissertation aims to analyze the effectiveness of human rights through the implementation of those international decisions, seeking adequacy to the Brazilian Federal Constitution. Keywords: Inter-American Court of Human Rights. international jurisdiction. international decision. public policies. judicial control. 8 LISTA DE SIGLAS ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental CEJIL Centro pela Justiça e o Direito Internacional CF Constituição Federal CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos EC Emenda Constitucional EUA Estados Unidos da América IDH Índice de Desenvolvimento Humano IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias LOA Lei Orçamentária Anual MST Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra OEA Organização dos Estados Americanos ONU Organização das Nações Unidas RENAME Relação Nacional de Medicamentos Essenciais SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça SUS Sistema Único de Saúde 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11 CAPÍTULO 1 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ...............20 1.1 A anunciação dos direitos humanos ...............................................................20 1.2 A relativização da soberania em prol dos direitos humanos ........................25 1.2.1 Histórico e conceito de soberania.....................................................................25 1.2.2 O surgimento de um novo Estado ....................................................................28 1.3 Os Direitos Humanos no mundo......................................................................30 1.4 Os Direitos Humanos no Brasil........................................................................34 1.5 A internalização dos tratados internacionais de Direitos Humanos ............37 1.5.1 Análise da prisão civil do depositário infiel ......................................................46 CAPÍTULO 2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS ...........54 2.1 A Organização dos Estados Americanos........................................................54 2.2 A Convenção Americana de Direitos Humanos .............................................57 2.3 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos.........................................59 2.3.1 Caso dos Índios Yanomami (n° 7.615) .............................................................63 2.3.2 Caso José Pereira (n° 11.289) .........................................................................64 2.3.3 Caso da Penitenciária do Carandiru (n° 11.291) ..............................................66 2.3.4 Caso Corumbiara (n° 11.556)...........................................................................68 2.3.5 Caso Maria da Penha (n°12.051) .....................................................................69 2.4 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ................................................71 2.4.1 A legitimidade da jurisdição internacional ........................................................71 2.4.2 As sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos ..........................75 2.4.3 A execução da indenização pecuniária ............................................................79 2.4.4 As medidas de não repetição ...........................................................................89 CAPÍTULO 3 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS...........................94 3.1 Primeiras considerações sobre políticas públicas ........................................95 3.2 Das dificuldades de execução das políticas públicas .................................101 3.3 A divisão de poderes e as políticas públicas ...............................................106 10 3.4 O controle judicial das políticas públicas .....................................................110 3.4.1 O custo dos direitos........................................................................................110 3.4.2 Decisões judiciais e direitos fundamentais .....................................................113 CAPÍTULO 4 AS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS...............124 4.1 Análise dos casos brasileiros na Corte Interamericana de Direitos Humanos ............................................................................................125 4.1.1 Caso Damião Ximenes Lopes (n° 139) ..........................................................126 4.1.2 Caso Nogueira de Carvalho e Outro (n° 161).................................................130 4.1.3 Caso Arley José Escher e Outros (n° 200).....................................................133 4.1.4 Caso Sétimo Garibaldi (n° 203)......................................................................138 4.1.5 Caso Gomes Lund e Outros - Guerrilha do Araguaia (n° 219) .......................141 4.1.5.1 Sobre a ADPF n° 153/DF ............................................................................144 4.1.5.2 O desfecho do Caso Gomes Lund pela Corte Interamericana de Direitos Humanos....................................................................................................145 4.2. Medidas Provisórias.......................................................................................147 4.2.1 Caso da Penitenciária Urso Branco................................................................149 4.2.2 Caso da Penitenciária de Araraquara.............................................................151 4.2.3 Caso do Complexo Tatuapé...........................................................................154 4.2.4 Caso Unidade de Internação Socioeducativa................................................ .155 4.3 A cooperação jurídica internacional com a Corte Interamericana de Direitos Humanos...........................................................................................................159 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................164 REFERÊNCIAS.......................................................................................................168 ANEXO ANEXO A - Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos........184 11 INTRODUÇÃO Tão importante quanto anunciar direitos humanos é garantir a sua efetividade na prática. É justamente sobre a implementação das decisões garantidoras desses direitos, por meio de imposição judicial de realização de políticas públicas, que será a abordagem deste trabalho. Em verdade, este estudo se concentra nas sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em desfavor da República Federativa do Brasil, notadamente no que diz respeito às condenações para a adoção de políticas públicas promotoras dos direitos humanos. O Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos1, conhecida como o “Pacto de San José da Costa Rica”, em 1992, que prevê a atuação da Comissão e da Corte Interamericana, órgãos autônomos dentro do sistema interamericano que possuem competência para a fiscalização e responsabilização dos Estados em casos de violações de direitos humanos. Como será visto, qualquer pessoa pode exercer o direito de petição perante a Comissão Interamericana, alegando a responsabilidade de um Estado- parte por descumprimento dos deveres elencados no Pacto de São José. Após análise, a Comissão pode submeter o Estado a julgamento pela Corte. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão de caráter jurisdicional, cuja legitimidade ativa foi somente concedida aos próprios Estados e à Comissão. Após o devido processo legal, ela profere sentença vinculando o Estado que a tenha aceitado explicitamente. Em caso de condenação, pode determinar a reparação das vítimas e até mesmo a adoção de medidas de não repetição, ou seja, que o Estado adote medidas tendentes a evitar novas violações de direitos humanos como à ocorrida. 1 CONFERÊNCIA ESPECIALIZADA INTERAMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 22 nov. 1969a. Disponível em: . Acesso em: fev. 2011. 12 Desde que aceitou a jurisdição internacional da Corte Interamericana, com o Decreto Legislativo n° 89/982, o Brasil já teve cinco casos julgados3 (Caso Ximenes Lopes; Caso Nogueira de Carvalho; Caso Escher e Outros; Caso Garibaldi e Caso Gomes Lund e Outros - Guerrilha do Araguaia). Em 2006, quando nosso país recebeu sua primeira condenação na Corte Interamericana, surgiram as dúvidas iniciais sobre qual seria a melhor forma de se executar essa sentença internacional no sistema jurídico interno. Portanto, as primeiras sentenças desta Corte proferidas em desfavor do Estado brasileiro foram indutivas para o início do presente trabalho, que foi avançando com o aprofundamento das questões que envolvem o tema. A metodologia empregada permeia discursos interdisciplinares, procedendo-se com especial atenção à relação que o Direito Internacional guarda com o instrumental teórico do Direito Constitucional. Assim, são apresentadas, de forma dialética, as principais posições doutrinárias nacionais e estrangeiras a respeito do assunto. Além disso, utiliza-se o método indutivo com o fito de analisar a evolução da jurisprudência nacional e internacional, em especial a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal. O objetivo é buscar sugestões para a conciliação do Direito Interno e as sentenças internacionais, de maneira legal e sempre na prevalência dos Direitos Humanos, demonstrando que a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos é constitucional diante do ordenamento jurídico brasileiro, que a sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana se equipara a uma sentença nacional para fins de execução e que a efetividade das nossas normas constitucionais pode advir, também, de uma recomendação ou mesmo condenação internacional, sem que isso signifique ofensa à soberania brasileira. 2 BRASIL. Decreto Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998. Aprova a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 4 dez. 1998. p. 2. Disponível em: . Acesso em: jul. 2011. 3 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Casos contenciosos vs. Brasil. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 13 O tema é atual e instigante na medida em que as sentenças proferidas pela Corte Interamericana em relação ao Brasil são bastante recentes, com perspectivas de novos julgamentos em breve. Partindo do pressuposto de que a submissão à jurisdição internacional desta Corte não subtrai parte da soberania do Estado, mas, ao contrário, legitima-a, este estudo busca analisar a Corte Interamericana como fomentadora das políticas públicas, na medida em que ela pode aconselhar os Estados signatários e mesmo condená-los a adotar determinadas condutas positivas na realização dos Direitos Humanos. É sabido que a Constituição Brasileira de 1988 foi um marco para o avanço da proteção dos direitos humanos, que elevou o princípio da dignidade da pessoa humana ao status de fundamento do Estado Democrático de Direito. Além disso, elencou a prevalência dos direitos humanos dentre os princípios que regem suas relações internacionais, o que significa a abertura do sistema jurídico interno ao sistema internacional de proteção destes direitos4. Sendo assim, possibilitou a adesão do Brasil à jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No primeiro capítulo, a título introdutório, será analisado o novo conceito de soberania que se formou com a afirmação dos direitos humanos na comunidade internacional, não mais baseado no clássico “poder absoluto e ilimitado do Estado”, concluindo pela prevalência da dignidade humana independentemente de fronteiras territoriais. A ordem mundial formada após a Segunda Guerra Mundial e a globalização trouxeram esse novo conceito de soberania, que sofreu adequações em face das mudanças históricas e sociais dos últimos tempos. Considerando não haver perspectivas de desaparecimento dos Estados5, é útil, para os que se dispõem a trabalhar pela consecução de uma ordem política e social justa, reconhecer o Estado atual qualitativamente diferente daquele criado no século XVI. Planejar o progresso e o bem-estar é condição indispensável para que 4 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 4. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2007. p. XI. 14 a humanidade possa viver em paz.6 Desta forma, a postura adotada pelos últimos governos brasileiros tem sido a de buscar uma posição de destaque do Brasil na comunidade internacional, notadamente entre os demais países da América, como uma nação pacífica, de economia próspera e que respeita os direitos humanos e a democracia. A proteção dos direitos humanos, por muito tempo, foi concebida somente dentro dos limites de cada Estado soberano. Porém, quando as relações internacionais se intensificaram, foi possível coexistir um sistema de proteção dos direitos fundamentais com o sistema de proteção internacional dos direitos do homem. O discurso sobre a universalização dos direitos humanos deflagrou-se no pós-guerra, quando a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional. O Direito Internacional passou a ser visto como complemento do Direito Público interno e, com mais profunda análise, é possível dizer que o direito internacional pressupõe a existência de um direito interno, de um Estado soberano, o qual é condição da possibilidade de sua prática. Igualmente, o surgimento de Cortes internacionais como mecanismo de controle dos tratados assinados em prol desses direitos mostrou-se um fator importante para a evolução do conceito de soberania. Portanto, um país com tantas perspectivas positivas não deveria receber condenações internacionais por violações de direitos humanos, justamente porque prega a prevalência destes direitos e a busca pela dignidade humana como fundamento de todos os seus atos. Finda esta contextualização, inicia-se a análise dos direitos fundamentais no Brasil positivados. A partir de 1985 e com a efetiva instauração da democracia em 1988, deu-se início a uma aceleração na inserção de normas de proteção de direitos humanos. É preciso partir do pressuposto de que a Constituição Federal de 1988 prevê a prevalência dos direitos humanos como princípio a reger suas relações 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2007. p. 192. 15 internacionais (artigo 4º, II). Nesse sentido, será analisada a internalização dos tratados internacionais de direitos humanos e a posição atual da jurisprudência e doutrina pátria. O segundo capítulo trata do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, cujo principal documento é o Pacto de São José da Costa Rica, que prevê a jurisdição internacional da Corte Interamericana, a qual o Brasil aderiu expressa e espontaneamente em 1998. No ano seguinte, especificamente no dia 22 de novembro de 1999, a brasileira I.X.L.M. exerceu seu direito de petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, levando ao conhecimento das autoridades internacionais as atrocidades cometidas contra seu irmão Ximenes Lopes, que culminaram com a morte dele dentro de uma clínica psiquiátrica em Sobral, no estado do Ceará. Alegou-se culpa do Estado brasileiro, uma vez que a clínica em que Ximenes Lopes foi internado prestava serviços públicos pelo Sistema Único de Saúde - SUS, além de ser injustificável a demora na prestação judicial e omissão na condução da investigação dos fatos. Em regra, ao receber a denúncia, a Comissão decide sobre sua admissibilidade, solicita informações ao governo denunciado e, se entender necessário, pode ainda encaminhar o caso para julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após longa análise do Caso Ximenes Lopes (Caso nº 12.237), a Comissão Interamericana o apresentou para julgamento pela Corte em outubro de 2002. Na Corte, o Brasil acabou sendo condenado por violação dos direitos consagrados nos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pessoal), 8º (direito às garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial), do Pacto de São José. Será visto que a Corte Interamericana costuma utilizar o conceito de reparação integral que contempla a garantia de não repetição (o Estado deve assegurar que os atos lesivos não se repetirão), a obrigação de investigar os fatos e sancionar os responsáveis (trata-se de medida que exige o devido processo legal e o tempo razoável para o seu desfecho) e a reparação material de natureza pecuniária e simbólica (indenização). 16 A natureza dos direitos protegidos e reconhecidos por uma sentença internacional já é motivo bastante para que o Estado brasileiro busque mecanismos que assegurem a efetividade da tutela jurisdicional deferida e não interponha obstáculos que possam significar, em última instância, a negação da própria justiça. Apesar de tudo, o Brasil ainda não possui legislação específica sobre a forma de cumprimento das decisões da Corte, apesar de já ter sido condenado quatro vezes. A despeito da falta de legislação interna orientando a forma a ser seguida, o Estado brasileiro ainda não tem se furtado ao cumprimento das sentenças condenatórias da Corte. Convém lembrar que as sentenças da Corte são sentenças equiparadas à sentença nacional para fins de execução e não se confundem com a sentença estrangeira, assim considerada aquela proferida por autoridade de outro país e que, para ter força executória no Brasil, deve passar pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (artigo 105, I, i, da Constituição Federal). A homologação de sentenças estrangeiras decorre do princípio costumeiro internacional que desobriga o Estado a reconhecer decisões emanadas de outras soberanias. O procedimento perante o STJ objetiva certificar que a sentença estrangeira não ofende a soberania nacional nem a ordem pública e que se reveste dos requisitos extrínsecos indispensáveis à sua homologação. Diferente é a situação da sentença internacional. Tendo em conta que o tribunal internacional profere sentenças por força de um tratado assinado e ratificado pelo Estado-parte, em que este transferiu parcela do seu poder de imperium quando se sujeitou à jurisdição daquele, não há que se falar em desrespeito à autonomia e à exclusividade da jurisdição do Poder Judiciário brasileiro ao acatar tal decisão sem necessidade de homologação. Dessa forma, quando o Brasil ratificou a Convenção Americana, e especialmente quando reconheceu a competência da Corte em 1998, igualmente transferiu parte do seu imperium para aquele tribunal. Nesse sentido, pode-se afirmar que suas decisões não necessitam de homologação na ordem interna7. Realmente, ao ratificar o Pacto de São José, o Brasil assumiu o dever 7 PETIOT, Patrick. A responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violação de direito humanos: o pagamento de reparações. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2005. p. 169. 17 de adequar seu ordenamento jurídico à normativa internacional (artigo 2º) e também a isso se soma a vedação de invocar questões de ordem interna para descumprir ou cumprir imperfeitamente as decisões de uma Corte Internacional, como referido no artigo 27 da Convenção de Viena sobre os tratados. No entanto, apesar de haver projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, não houve um posicionamento institucional sobre a forma de execução dessas decisões a nível interno, gerando incertezas e insegurança jurídica. Ante a atual situação, há clara necessidade de legislação disciplinando o assunto. Somente assim o Brasil estará fortalecendo a jurisdicionalidade atribuída à Corte Interamericana, o que demonstra maior respeito às suas decisões e o mais importante: representará maior respeito aos direitos humanos. Refletindo sobre qual seria a melhor forma de se executar a sentença internacional no nosso sistema jurídico, pode-se partir da comparação com as sentenças nacionais. Quanto ao pagamento das indenizações às vítimas fixadas pela Corte, serão discutidas as formas jurídicas de se cumprir com esta determinação pelo Estado condenado. Apesar de todas as controvérsias sobre a matéria, será visto que esta é a parte menos complexa de ser executada. A própria Corte Interamericana, em suas resoluções de supervisão de sentenças, já afirmou que a dificuldade de cumprimento de suas decisões está no tocante à adoção pelos Estados das medidas de não repetição, principalmente por não existir um consenso sobre qual o procedimento a ser adotado8. Se a tarefa jurisdicional de controlar as políticas públicas pelo Estado já é penosa, muito mais será quando o órgão que profere a sentença condenatória é uma corte internacional. Empecilhos suficientes já existem quando a sentença condenatória advém de um órgão do Poder Judiciário Brasileiro. A sentença judicial que condena um ente federado à obrigação de fazer, consistente em realizar determinada política pública, enfrenta barreiras em razão do princípio da separação dos poderes, da discricionariedade administrativa e das restrições orçamentárias. 8 MAEOKA, Erika. O acesso à justiça e a proteção dos direitos humanos: os desafios à exigibilidade das sentenças da Corte Interamericana. p. 94. Disponível em: . Acesso em: fev. 2011. 18 Tratando-se de sentença internacional, os problemas tendem a ser maiores, motivo pelo qual se deve buscar soluções adequadas ao nosso ordenamento jurídico vigente. Implementar as medidas de não repetição das violações de direitos humanos é fazer com que o Estado condenado adote políticas públicas tendentes a concretizar os direitos humanos, especificamente aquele direito declaradamente violado. Principalmente em um Estado Social de Direito, a atividade governamental deve ser toda pautada pelo respeito à dignidade humana, o que se viabiliza na prestação de serviços públicos com eficiência. Assim, no terceiro capítulo, será discutida a relação dos três Poderes da República com as políticas públicas e como cada um deles possui responsabilidades próprias no contexto geral, até mesmo o Poder Judiciário. Em quase todas as sentenças condenatórias da Corte Interamericana contra o Brasil houve a constatação da violação das garantias judiciais e demora na prestação da jurisdição. Ou seja, os três Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - apresentam falhas na proteção dos direitos humanos, o que deve ser eliminado por completo. A análise da execução das sentenças internacionais que condenam o Estado brasileiro à realização de políticas públicas para promover direitos humanos e evitar novas violações partiu da equiparação mutatis mutandi com as sentenças nacionais que igualmente condenam os entes federados, pessoas jurídicas de direito público, a medidas assemelhadas. As sentenças judiciais que impõem ao Estado a realização de uma obrigação de fazer, consistente em promoção de um direito fundamental, não pode invadir a discricionariedade administrativa do Poder Executivo, cuja função primordial é administrar o dinheiro público. Portanto, serão vistas as hipóteses em que o controle judicial das políticas públicas é válido e constitucional, representando o sistema de freios e contrapesos, existente para o fortalecimento da democracia. No quarto capítulo, será vista a jurisprudência que se formou na Corte Interamericana de Direitos Humanos tendo o Brasil como parte no contencioso internacional. Será possível concluir que todo o poder imperativo do sistema interamericano advém do respeito a ele dado pelos Estados-partes. 19 Todos os esforços para a criação desse sistema e sua manutenção foram e são em razão da dignidade humana e, portanto, a cooperação jurídica interacional é extremamente relevante para lhe dar efetividade e também para fortalecer este mecanismo de proteção dos direitos humanos, o que significa, dentre outras medidas, dar cumprimento às sentenças da sua Corte. Aplicar os ensinamentos da sentença internacional é apenas uma das muitas problemáticas a serem vividas no Brasil em razão do entrelaçamento das ordens jurídicas interna e internacional, que deverão ser solvidas de forma justa e adequada à Constituição. Aliás, o inter-relacionamento entre ordenamentos jurídicos distintos está em crescente expansão e é precisamente aí que se encontram os grandes desafios do novo direito constitucional9. Os direitos humanos foram declarados formalmente para o fim de serem materializados. O cumprimento das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos é a demonstração de respeito a estes direitos, aos tratados internacionais que os declararam e à própria efetivação da democracia brasileira. Logo, não há dúvidas de que devem ser encontradas alternativas constitucionais para se dar cumprimento a estas decisões, reparando os danos eventualmente causados e evitando que outros da mesma espécie venham a ocorrer no futuro. 9 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.129. 20 CAPÍTULO 1 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, os direitos humanos ganharam destaque e projeção internacional. A evolução desses direitos se intensificou e o homem foi sendo visto de forma cada vez mais ampla. A intensificação das relações entre os Estados que se seguiu, fez surgir um novo direito internacional, preocupado com a preservação da própria humanidade. A paz passou a ser entendida como pressuposto da efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional, ao mesmo tempo em que a democracia foi consagrada como o ambiente político propício para o desenvolvimento dos direitos dos cidadãos.1 Não tardou para o direito internacional público passar a reconhecer a pessoa humana como sujeito de direitos no plano internacional. Também a proteção internacional dos direitos humanos, expressa nos tratados multilaterais assinados pelos Estados, passou a dominar o pensamento contemporâneo ocidental. Assim, o processo de internacionalização dos direitos humanos é fenômeno recente, como consequência deste pensamento de que a proteção dos direitos do homem não está restrita a este ou aquele Estado soberano, mas é universal. 1.1 A anunciação dos direitos humanos Os direitos humanos foram declarados formalmente no século XVIII, resultantes de uma série de fatores históricos, políticos e econômicos. Estes fatores podem ser identificados pela criação dos Estados Modernos, o surgimento do capitalismo e o desenvolvimento das ideias iluministas. Logo após o fim da Idade Média, formaram-se as monarquias absolutistas e os impérios coloniais ibéricos. Com a ascensão da burguesia, buscou- 1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 1. 21 se uma fórmula política para extinguir os privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a nobreza, a que chamaram de democracia.2 Sendo assim, no século XVIII, o conceito de democracia foi resgatado dos gregos antigos e reelaborado com o intuito de limitação dos poderes dos monarcas, pregando as liberdades individuais que favoreceriam a burguesia. A democracia moderna foi, então, reinventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, com a independência dos Estados Unidos (antiga colônia da Inglaterra) e a Revolução Francesa. A Declaração de Direitos do bom povo da Virgínia e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão são os dois documentos formais que marcaram o nascimento dos direitos humanos. A Declaração de Direitos da Virgínia3, que antecedeu em alguns dias a independência dos Estados Unidos, em 1776 já dispunha sobre os valores liberais, a igualdade dos homens e o poder do povo para a condução daquela nação que viria a ser a maior potência mundial dos séculos seguintes. Veja-se o conteúdo de seus primeiros artigos: Artigo 1° - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Artigo 2° - Toda a autoridade pertence ao povo e por consequência dela se emana; os magistrados são os seus mandatários, seus servidores, responsáveis perante ele em qualquer tempo. Artigo 3° - O governo é ou deve ser instituído para o bem comum, para a proteção e segurança do povo, da nação ou da comunidade. Dos métodos ou formas, o melhor será que se possa garantir, no mais alto grau, a felicidade e a segurança e o que mais realmente resguarde contra o perigo de má administração. Todas as vezes que um governo seja incapaz de preencher essa finalidade, ou lhe seja contrário, a maioria da comunidade tem o direito indubitável, inalienável e imprescritível de reformar, mudar ou abolir da maneira que julgar mais própria a proporcionar o benefício público. [...]. 2 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 49. 3 DECLARAÇÃO de Direitos do bom povo da Virgínia. Williamsburg, 12 jun. 1776. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. (grifo nosso). 22 Igualmente influenciada pelo iluminismo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão4 foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte da França em 1789 e trouxe valores humanos considerados universais: Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. Artigo 2º - A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Artigo 3º - O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. [...]. Da análise destes documentos, verifica-se que há o reconhecimento dos direitos individuais, mas não dos direitos sociais, que viriam a ser enunciados somente mais tarde. A sociedade liberal que se formou naquele momento, logo se revelou cruel para o crescente número de trabalhadores subordinados às empresas capitalistas e, na primeira metade do século seguinte (XIX), já era grande a pobreza do proletariado. Foi somente no século XX que os movimentos de classe consolidaram os direitos econômicos e sociais. As primeiras Constituições a reconhecer esses direitos foram a Constituição Mexicana de 19175 e a 4 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DA FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Paris, 2 out. 1789. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 5 MÉXICO. Constitución Política De Los Estados Unidos Mexicanos. Diario Oficial de la Federación, 5 feb. 1917. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 23 Constituição Alemã de Weimar6 de 1919, que marcaram a crise do Estado Liberal e se tornaram paradigmas para a social democracia. Os direitos sociais são direitos do homem enquanto trabalhador, membro da sociedade, de um grupo, e têm por fim a melhoria da sua condição de vida. Inicialmente, foram associados a movimentos anticapitalistas e, por isso, só puderam prosperar no momento histórico em que houve a transformação da produção industrial no final do século XX. Em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos7 foi proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), aproveitando os ensinamentos de todas as declarações de direitos humanos anteriores a ela e abrangendo direitos individuais e sociais: A ASSEMBLÉIA GERAL proclama a presente DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIRETOS HUMANOS como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. Artigo 1° - Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. [...] Em 1979, o jurista Karel Vasak criou a expressão “gerações de direitos do homem” para explicar a evolução da anunciação (positivação) dos direitos humanos no mundo, sendo a primeira geração a dos direitos civis e políticos, a segunda geração seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais e a terceira geração seria a dos direitos de solidariedade, como direito à paz e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 6 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 189-199. 7 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal de Direitos Humanos. 1948. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. (grifo nosso). 24 Deste modo, pode-se dizer que, historicamente, a primeira geração de direitos humanos, que compreende as liberdades clássicas, negativas ou formais, foi seguida pela anunciação da geração dos direitos sociais, econômicos e culturais, traduzidos pelas liberdades positivas, que exigem uma atuação positiva do Estado para a sua consecução. Posteriormente, foram declarados formalmente os direitos humanos de terceira geração, que são os de titularidade coletiva, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a autodeterminação dos povos, além de outros direitos difusos e coletivos. Os direitos humanos de primeira geração realçam o princípio da liberdade, os de segunda geração enfatizam o princípio da igualdade e os de terceira geração são relacionados ao princípio da solidariedade. E assim, as gerações de direitos humanos podem ser identificadas com o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade, conclui Manoel Gonçalves Ferreira Filho8. Há quem critique a expressão “geração de direitos”, como Antônio Augusto Cançado Trindade9, pois o termo pode conduzir à falsa ideia de que há a substituição de uma “geração de direitos” pela outra, quando na verdade, há uma soma desses direitos. Além disso, os direitos humanos são indivisíveis e devem ser vistos como um todo, complementando-se uns aos outros. Porém, muitos doutrinadores, como Norberto Bobbio, reconhecem essas gerações, que possuem nítido caráter didático e querem expressar a historicidade dos direitos humanos. Mais recentemente, acrescentou-se uma quarta geração de direitos humanos, ligada à bioética, e até mesmo chegou-se a falar em uma quinta geração, referindo-se aos direitos relacionados à informática e à internet.10 8 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 57. 9 CANÇADO Trindade questiona a tese de "gerações de direitos humanos" de Norberto Bobbio. In: SEMINÁRIO DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: A Proteção Internacional. CONFERÊNCIA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 5., 2000, Brasília, DF. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2000. Disponível em: . Acesso em: jul. 2011. 10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 5-6. 25 O estudo dos direitos humanos é, portanto, todo voltado ao estudo da história da humanidade, da formação e desenvolvimento dos Estados e das nações. Por isso é que se diz serem os direitos humanos históricos.11 Pelo fato de estarem intimamente ligados ao conceito de direitos naturais, porquanto inerentes ao homem, independentemente do Estado, os direitos humanos sempre existiram, mas tiveram sua declaração formal em momentos distintos, como visto acima, de acordo com as necessidades sociais. 1.2 A relativização da soberania em prol dos direitos humanos Para a realização dos direitos humanos, seja no plano interno, seja no plano internacional, surgiu uma nova concepção de soberania do Estado, voltada à manutenção da paz e preservação da humanidade. Deste modo, o conceito clássico de soberania foi reformulado, e de poder absoluto passou a ser limitado pelo princípio da dignidade humana. 1.2.1 Histórico e conceito de soberania Encontrar o conceito exato do termo “soberania” é um desafio ao Direito Constitucional e ao Direito Internacional. Ora é tomado como sinônimo de “autonomia”, ora como sinônimo de “independência”, mas sempre associado a “poder do Estado”. O termo foi empregado por séculos como delegação divina, absoluta e ilimitada. Surgiu no mesmo instante em que surgiram os primeiros Estados Absolutistas, governados por monarquias despóticas. Conforme apontado por Dalmo de Abreu Dallari12, a soberania é um dos elementos caracterizadores do Estado, assim como o território e o povo. Portanto, ela nasce no momento em que também nasce o Estado, sendo que o conceito de soberania se consolida concomitante com a formação dos Estados Modernos no século XVI. 11 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 2 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 74. 26 O primeiro estudo realizado sobre o termo “soberania” teria sido Les six livres de La République, de Jean Bodin, em 1576, em que o autor a define como “poder absoluto e perpétuo” de uma República (Estado), baseando-se na situação da monarquia francesa daquela época.13 Jean Bodin teria sido um defensor do “direito divino dos reis” e, assim, em um Estado soberano, a vontade do rei seria expressão da vontade de Deus, portanto, inquestionável e absoluta. Em 1762, com O contrato social, Jean-Jacques Rousseau deu grande destaque ao estudo da soberania, concluindo por transferir sua titularidade da pessoa do governante para o povo, o que influenciou a Revolução Francesa com a ideia de que o poder do governante não pode ultrapassar os limites da vontade popular.14 A partir de então, vários filósofos começaram a questionar a divindade do governante e, para a criação dos Estados democráticos, chegou-se à conclusão de que a soberania do Estado provinha mesmo da vontade popular. No plano interno de cada Estado, a soberania se expressa pelo poder de criar leis. Logo, soberana é a fonte da qual nascem as leis. Torna-se claro que, nos Estados Absolutistas, quem criava as leis era o monarca, chamado de soberano. Já nas democracias, soberano é o povo. No plano internacional, soberania significa “autonomia” na medida em que o Estado é capaz de se autodeterminar, governando-se a si próprio, sem depender de outros e sem sofrer interferências não autorizadas por ele mesmo. Para René-Jean Dupuy, a soberania tem por corolário a igualdade dos Estados e, para Celso de Albuquerque Mello, a soberania é a grande característica do Estado enquanto pessoa internacional com capacidade de agir.15 Como características da soberania (fonte de criação das leis de um Estado capaz de se autodeterminar), cita-se a unidade, a indivisibilidade, a inalienabilidade e a imprescritibilidade. Ou seja, dentro do Estado há somente um poder supremo reconhecido pela ordem constitucional, que não se divide entre os entes da Federação, que não perece com o tempo nem é possível de ser transferido 13 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 76. 14 Ibid., p. 78. 15 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Curso de direito internacional público. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 95. 27 para outrem. Além disso, a soberania permite que o Estado seja livre para acolher ou não o direito internacional. Sinteticamente, pode-se dizer, então, que soberania é o poder do Estado de se autodeterminar, de definir suas próprias regras no âmbito de seu território e de ser independente em relação à comunidade internacional, que o reconhece e o respeita. O conceito de soberania foi e ainda é objeto de inúmeras obras teóricas de cientistas políticos, internacionalistas, estadistas, havendo concepções sob aspectos variados. Alguns a definem sob o ponto de vista político (como o fez Kelsen); outros, sob o ponto de vista jurídico; mas é sempre constante a noção de poder intrinsecamente ligado ao Estado, pois somente este pode organizar seu governo, seus legisladores e sua jurisdição. Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari16: [...] a soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica. É óbvio que a afirmação de soberania, no sentido de independência, se apoia no poder de fato que tenha o Estado, de fazer prevalecer sua vontade dentro de seus limites jurisdicionais. A conceituação jurídica de soberania, no entanto, considera irrelevante, em princípio, o potencial de força material, uma vez que se baseia na igualdade jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência. Neste caso, a prevalência da vontade de um Estado mais forte, nos limites da jurisdição de um mais fraco, é sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma violação de soberania, passível de sanções jurídicas. E mesmo que tais sanções não possam ser aplicadas imediatamente, por deficiência de meios materiais, o caráter antijurídico da violação permanece, podendo servir de base a futuras reivindicações bem como à obtenção de solidariedade de outros Estados. Apesar da construção do conceito de soberania tal como visto, muitos doutrinadores já previam ser ela limitada pelo direito divino, pelo direito natural e pelo direito das gentes. Atualmente, isto é inegável. 16 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 84. (grifo nosso). 28 Em decorrência dos últimos acontecimentos na história das sociedades democráticas, o conceito de soberania começou a sofrer alterações, principalmente com a intensificação das relações internacionais comprometidas com a proteção dos direitos humanos. Continua sendo característica própria dos Estados, mas cedeu espaço ao Direito Internacional, visando a objetivos mais elevados, como a integração das nações para o progresso econômico, social ou humanitário. 1.2.2 O surgimento de um novo Estado As duas grandes guerras mundiais foram determinantes para a reestruturação dos Estados, bem como para a redefinição do cenário internacional. O autor Philip Bobbitt17, na obra A Guerra e a Paz na História Moderna, apresenta sua teoria de evolução dos Estados. Com o fim do feudalismo, as nações em formação se organizaram em reinos. Essas nações evoluíram para o surgimento do Estado Moderno. E este, por sua vez, está em transformação em decorrência dos últimos acontecimentos globais. Bobbitt afirma, então, que a “nação-Estado” evoluiu para o “Estado- nação”, que, por sua vez, está cedendo lugar ao novo “Estado-mercado”, que seria amplamente influenciado pelas empresas multinacionais18. O modelo de Estado-nação (Estado Moderno) vincula a soberania às suas fronteiras territoriais. Significa dizer que, dentro de suas fronteiras (no âmbito interno), o Estado é supremo em relação ao seu direito e, fora (no âmbito internacional), tem o direito de reconhecimento pelos outros Estados na medida em que for capaz de defender suas fronteiras. Ocorre que esse modelo de Estado enfrenta hoje uma crise de legitimidade, em razão dos seguintes desafios citados por Bobbitt19: a) o reconhecimento dos direitos humanos como normas requerem a adesão de todos os Estados, independentemente de suas leis internas; b) armas nucleares e de destruição em massa fizeram com que a defesa simplesmente das fronteiras dos Estados se tornassem insuficientes; c) a proliferação de ameaças globais (danos ao meio ambiente; fome; migrações) transcendem as fronteiras do Estado; d) a 17 BOBBITT, Philip. A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formulação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 191-226. 18 Ibid. 19 Ibid., p. 196. 29 expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na movimentação de investimentos de capital, de maneira que os Estados se veem tolhidos na administração de seus problemas econômicos; e) a internet e os avanços na informática fizeram surgir uma nova comunicação global. Em razão disso, a ordem constitucional do “Estado-nação” vem se transformando e, reflexamente, também a sociedade internacional vem sofrendo modificações. Após a história provar o triunfo das democracias liberais diante dos governos autoritários, sejam de direita (como o fascismo) ou de esquerda (como o comunismo), os Estados encontram outras dificuldades para cumprir suas responsabilidades de promessa de fornecer segurança (paz), desenvolvimento econômico e social (bem-estar). Portanto, a tendência mundial é fazer surgir uma nova ordem constitucional nos Estados que reconheça os novos desafios da sociedade globalizada e afaste o conceito de soberania tal como previsto na formação dos Estados Modernos, priorizando a dignidade da pessoa humana. Principalmente com a integração dos países em blocos, a exemplo da União Europeia e do Mercosul, a soberania mostra-se mais flexível, sendo relativa, divisível e mesmo delegável. Até mesmo a intervenção operacionalizada pela Organização das Nações Unidas passou a ser legítima em certos casos. Do mesmo modo, em face da proteção internacional dos direitos humanos, tornou-se legítima a intervenção na jurisdição doméstica dos Estados que desrespeitem esses direitos, sem que isso signifique ameaça à soberania nacional. Em primeiro lugar, porque os organismos internacionais foram criados pelos próprios Estados engajados em causas maiores como a proteção dos direitos humanos, a busca da paz mundial, o progresso das relações econômicas, entre outras. Quando assim agem, os Estados transferem parte do exercício da soberania a estes organismos, sem renunciá-la. Somente o Estado soberano pode aderir aos organismos internacionais e isso significa a nítida manifestação do poder de se autodeterminar e da sua independência internacional, pois apenas pode transferir o exercício de um poder quem realmente o possua e sobre ele seja livre. 30 Com a internacionalização dos direitos humanos, muitos doutrinadores afirmam que a relativização da soberania estatal atua em benefício da efetivação desses direitos e justifica-se em prol do bem comum universal.20 Flávia Piovesan21, em uma palestra proferida em 1999, explicou: Só há direitos humanos, globais, internacionais, universais, com soberania flexibilizada. [...] Portanto, no que tange ao impacto do Direito Internacional dos Direitos humanos na concepção de soberania, destaco a afirmação do Secretário-Geral da ONU, quando diz que, ainda que o respeito à soberania do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica. Uma das maiores exigências, diz ele, do nosso tempo, é a de repensar o conceito de soberania. Enfatizar os direitos dos indivíduos e dos povos é uma dimensão da soberania universal. [...] Lembro-me de um livro que li há pouco do Professor Abram Chayes, da Universidade de Harvard, chamado The New Sovereignty, em que ele diz que a soberania não pode mais consistir na liberdade dos Estados de atuarem independentemente e de forma isolada à luz do seu interesse específico e próprio. A soberania hoje consiste, sim, numa cooperação internacional em prol de finalidades comuns. Nesse sentido é que se afirma que a soberania dos Estados foi flexibilizada diante da internacionalização dos direitos humanos. 1.3 Os Direitos Humanos no mundo Como visto, com a evolução histórica, também o conceito de soberania ganhou novas perspectivas. Com as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, os Estados constataram a potencialidade das armas bélicas que podiam levar à destruição de todo o planeta. 20 O autor Rogério Taiar, analisando Norberto Bobbio (A era dos direitos), Fábio Konder Comparato (A afirmação histórica dos direitos humanos), Celso Lafer (A soberania e os direitos humanos. In: Revista de Cultura e Política “Lua Nova”, n° 35, p.137-148. São Paulo: CEDEC, 1995), dentre outros, chega à conclusão que a relativização da soberania se faz em prol dos direitos humanos. (TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos: uma discussão sobre a relativização da soberania face à efetivação da proteção internacional dos direitos humanos. 2009. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 258-259). 21 Palestra proferida no Seminário Internacional “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no dia 1° de outubro de 1999, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília – DF. PIOVESAN, Flávia. Princípio da complementaridade e soberania. Revista CEJ, Brasília, DF, n. 11, p. 71-74, maio/ago. 2000. 31 Buscando a paz e planejando o futuro, criou-se a Organização das Nações Unidas em 1945, e, em 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecendo que a dignidade é inerente a todos os homens e que seus direitos universais e inalienáveis são pressupostos para a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Neste novo cenário internacional que se formou, intensificou-se o discurso sobre a universalização dos direitos humanos e a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção desses direitos constituía questão de interesse e preocupação global. Conforme o pensamento de Hannah Arendt22, após as barbáries cometidas por Hitler, se fez necessária a reconstrução dos direitos humanos, começando por reconhecer que o ser humano tem direito a ter direitos. As relações internacionais se intensificaram e foi possível coexistir um sistema de proteção dos direitos fundamentais dentro de cada Estado com o sistema de proteção internacional dos direitos do homem, sendo assinados vários tratados internacionais, alguns com abrangência global, outros regionalizados. Estes tratados internacionais protegem especialmente os direitos dos homens, sem preocupação com as prerrogativas dos Estados. Enquanto o sistema global, formado pela ONU, enfoca a igualdade dos homens e das nações, os sistemas regionalizados, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), trazem particularidades próprias em busca de justiça local. Sobre o assunto, Alberto do Amaral Júnior23 afirma: Enquanto os instrumentos gerais consideram o homem um ser abstrato que merece por isso tratamento igual, incompatível com quaisquer discriminações, as convenções especiais focalizam as especificidades e diferenças entre os seres humanos, fatores que justificam o tratamento particularizado sob pena de se cometer injustiça. O sujeito de direito deixa de ser um ente genérico para ganhar especificidade decorrente da raça, da idade, do gênero ou de qualquer outra razão que necessite ser observada de modo peculiar. 22 Descrito em: LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 23 AMARAL JUNIOR, Alberto. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. p. 448. 32 De fato, ao lado do sistema global de proteção dos direitos humanos, foram criados os sistemas regionalizados, como o europeu, o africano e o americano, os quais coexistem e se completam. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, formado pela OEA, tem como documentos a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem24 e a Convenção Americana de Direitos Humanos25, também conhecida por Pacto de São José da Costa Rica. Este sistema, assim como o europeu, confere ao indivíduo personalidade jurídica internacional, isto é, o ser humano passou a ser sujeito de direito internacional, capaz de possuir e exigir direitos e obrigações de cunho internacional. O reconhecimento de que os seres humanos têm direitos sob o plano internacional implica a noção de que a negação desses mesmos direitos impõe, como resposta, a responsabilização internacional do Estado violador. Com efeito, se, no exercício de sua soberania, os Estados aceitam as obrigações jurídicas decorrentes dos tratados de direitos humanos, passam então a se submeter à autoridade das instituições internacionais, no que se refere à tutela e fiscalização desses direitos em seu território.26 Ressalta-se ainda que a proteção internacional dos direitos humanos é complementar e subsidiária à proteção já oferecida pelo Estado, tendo o propósito de suprir lacunas, pois já cabe ao sistema jurídico-normativo nacional a tarefa de realizar esta proteção no plano interno. Devido a este caráter subsidiário dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos é que surgiu o princípio do esgotamento dos recursos internos, sendo até mesmo uma forma de respeito à soberania dos Estados e tolerância à capacidade de se autotutelar nessas questões.27 24 NONA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL AMERICANA. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Bogotá, 1948. Disponível em: . Acesso em jun. 2011. 25 CONFERÊNCIA ESPECIALIZADA INTERAMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 22 nov. 1969a. Disponível em: . Acesso em: fev. 2011. 26 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 9. 27 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O esgotamento dos recursos internos no direito internacional. Brasília, DF: Ed. UnB, 1984. 33 O princípio do esgotamento dos recursos internos é constantemente alegado no contencioso internacional, perante as Organizações Internacionais, e por elas acolhido quando provado o engajamento estatal para a solução do litígio. No entanto, existindo realmente falha no sistema interno de proteção dos direitos humanos, pode haver a atuação de uma dessas Organizações em prol da prevalência dos direitos humanos, seja por recomendações ou mesmo por condenação, impondo obrigações internacionais28. Também já foi reconhecida a possibilidade de o indivíduo pleitear seus direitos na esfera internacional até mesmo contra seu próprio Estado. É o que acontece no sistema regionalizado europeu e americano. O Brasil é membro da Organização dos Estados Americanos e ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, admitindo que qualquer cidadão brasileiro, que se sinta agredido pelo Estado por violação de um direito humano, possa denunciá-lo à Comissão Interamericana. O procedimento é relativamente simples, mas um dos requisitos para a aceitação da demanda pela Comissão é a observância do princípio do esgotamento dos recursos internos, pelo qual cada Estado tem poderes suficientes de criar mecanismos internos para proteger os direitos humanos em seu território. Sendo assim, pode-se afirmar que os casos efetivamente julgados pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos são demasiadamente graves, uma vez que o Estado por si só não foi capaz de proteger um direito fundamental do cidadão. Especificamente no caso brasileiro, a gravidade de uma condenação internacional está justamente no fato de que, apesar de a Constituição da República ser extensa na enunciação formal dos direitos humanos, os mecanismos estatais não foram suficientes para assegurar o gozo desses direitos pelo cidadão. 28 Após a criação de Cortes Internacionais, estes organismos internacionais passaram a proferir sentenças condenando os Estados violadores de direitos humanos, como será visto adiante. 34 1.4 Os Direitos Humanos no Brasil A Constituição da República Federativa do Brasil29 de 1988 dispõe em seu primeiro artigo que “todo o poder emana do povo” e também afirma que a soberania é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Esta Carta demarcou, no âmbito jurídico, o processo de redemocratização do Estado brasileiro ao consolidar a ruptura com o regime autoritário militar, instalado em 1964, e ao consagrar os direitos e garantias fundamentais. Nas palavras de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”. A partir dela os direitos humanos ganharam relevo extraordinário, como jamais haviam tido anteriormente no Brasil. Esta Constituição reconheceu ainda que o princípio da dignidade humana confere sentido a todo o ordenamento jurídico, sendo pressuposto de todos os demais direitos. Foi por isso que veio expresso como fundamento da República (artigo 1º, inciso III), acompanhando todo o movimento constitucionalista Pós-Segunda Guerra, que o consagrou como um superprincípio.30 Como elemento fundamental de qualquer ordem constitucional, a dignidade da pessoa humana é inerente à vida e superior à organização de qualquer Estado. Nas palavras da Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha31, dignidade é: [...] pressuposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê- la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré- estatal. 29 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 30 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 26. 31 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes apud CALAIS, Camila Leal. A dignidade da pessoa humana e a Organização Mundial do Comércio. In: SEGALLA, José Roberto Martins; ARAUJO, Luiz Alberto David. 15 anos da Constituição Federal em busca da efetividade. Bauru: EDITE, 2003. p. 59. (grifo nosso). 35 No mesmo sentido, de que a dignidade humana deve ser tida como o propósito de todo estatuto jurídico, ensina Alexandre de Moraes32: [...] a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre se menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. [...] O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do individuo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do direito romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido). Nas palavras de Paulo Bonavides, “[...] nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade humana.”33 Destarte, é possível concluir que a dignidade humana é um princípio maior que orienta tanto o direito interno como o direito internacional e impõe a observar o ser humano como o centro do universo jurídico. A partir do final do século XX, a proteção da dignidade humana alcançou patamar de princípio fundamental, conferindo unidade aos sistemas constitucionais e sendo utilizado até mesmo como princípio de hermenêutica das normas internacionais internalizadas pelos Estados. Completamente de acordo com esta visão, a Constituição de 1988 trouxe a dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil e 32 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 46-47. 33 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. p. 233 apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 31. 36 ainda, para resguardar este superprincípio, previu um título especial para os direitos fundamentais (Título II), anunciando minuciosamente os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos políticos já consagrados nos instrumentos internacionais anteriormente mencionados, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por conseguinte, além dos direitos individuais, a Constituição de 1988 dispõe sobre outros direitos humanos, considerados de segunda ou terceira geração, de acordo com a classificação vista anteriormente, ampliando o rol de tutela quando comparada com as Constituições anteriores. Ao prever tantos direitos fundamentais, o constituinte optou por explicitar os principais valores da sociedade brasileira e atribuiu a eles expressão jurídica, muitas vezes como metas a serem atingidas, pois previstos em normas programáticas. O fato de algumas normas de direitos fundamentais serem programáticas não significa que tenham menor eficácia. O §1º do artigo 5º da Constituição estabelece que todas as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, reforçando a imperatividade desses dispositivos, o que significa que independem de outras normas para terem efetividade. Da análise de todo o texto constitucional, é possível concluir que há outros direitos fundamentais dispersos, não incluídos no Título II, como a maioria dos direitos previstos no Título VIII, Da Ordem Social, que trata, por exemplo, da criança, do idoso, da saúde, da educação, da cultura, dentre outros assuntos caros à sociedade brasileira. Pode-se mesmo dizer que há os direitos fundamentais expressos no texto constitucional, os implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, e os expressos nos tratados de direitos humanos firmados pelo Estado brasileiro. Deste modo, verifica-se ser bastante ampla a proteção formal em relação aos direitos fundamentais, ou seja, há um elevado número de normas disciplinando o tema. A Carta de 1988 foi também a primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger o Estado nas relações internacionais (artigo 4º, II, CF). Isso significa a fixação de 37 valores a orientar a atuação estatal no cenário internacional. Implica, também, o compromisso de adotar uma posição política contrária aos Estados em que os direitos humanos sejam gravemente desrespeitados e a de aceitar sua responsabilização quando ele próprio for o violador. Ante esta sistemática normativa constitucional, foi possível a ratificação de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos pelo Estado brasileiro, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 1.5 A internalização dos tratados internacionais de Direitos Humanos Os tratados internacionais são hoje a principal fonte de obrigação do direito internacional. São acordos vinculantes e obrigatórios entre Estados ou entre Estados e Organizações Internacionais, mas só se aplicam àqueles que expressamente consentiram em sua adoção. Após a ratificação do tratado, ele se torna imperativo e vinculante, não podendo o Estado signatário se abster do seu cumprimento. Conforme o artigo 27 da Convenção de Viena 34, a qual é a Lei dos Tratados, uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado. Quando o Estado não concorda com todo o teor do tratado, normalmente, permite-se sejam formuladas “reservas”, que é uma declaração unilateral feita pelo Estado aderente, com o propósito de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas previsões, quando de sua aplicação no seu território. As reservas devem ocorrer durante o procedimento de vinculação ao tratado e ser compatíveis com o objeto e o propósito dele. No Brasil, podem ser feitas pelo Legislativo ou pelo Executivo. Pelo Legislativo ocorre quando há a aprovação do texto com restrições. Quando feitas pelo Executivo, devem ser 34 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Viena, 26 maio 1969. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 38 justificadas na Mensagem Presidencial dirigida ao Congresso e, após, confirmadas por este órgão. Entretanto, nos tratados de direitos humanos, a maioria dos estudiosos do tema não admite sejam feitas reservas. Consoante as palavras de Cançado Trindade35: [...] o atual sistema de reservas a tratados (formulação e objeção, como resquícios da reciprocidade), consagrado nas duas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986), eivado de contratualismo, mostra-se manifestamente inadequado aos tratados de direitos humanos. Estes se erigem em premissas distintas dos tratados clássicos (a regulamentarem interesses recíprocos entre as partes), inspirados que são na noção de garantia coletiva dos direitos do ser humano e dotados que são de mecanismos de supervisão próprios, a requerer uma interpretação e aplicação guiadas pelos valores comuns superiores que abrigam. Ainda sobre serem inadequadas as reservas em tratados de direitos humanos, Alberto do Amaral Júnior36 expõe: Esse método propicia a fragmentação das obrigações convencionais e se mostra inadequado aos tratados sobre a proteção dos direitos humanos, que exigem a apreciação das reservas sob ótica distinta. É sabido que tais tratados, por instituírem garantias coletivas e protegerem a dignidade do homem, reclamam consideração especial afeita aos traços próprios que os singularizam. Não é aceitável por esse motivo que o alcance das obrigações convencionais dependa da vontade das partes, em flagrante antagonismo com as razões superiores que inspiraram a estipulação desses compromissos. É digno de nota o fato de que a Convenção de Viena não indicou qual órgão deverá pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma reserva com o objeto e o fim do tratado, bem como examinar a sua eventual ilegitimidade perante uma norma de jus cogens. De qualquer forma, todo tratado internacional é assinado pelo chefe de Estado, que se obriga diante da comunidade internacional a dar cumprimento ao que está sendo ali acordado. No Brasil, constitucionalmente, o Presidente da República 35 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Apresentação à obra. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. XXXIII. (grifo nosso). 36 AMARAL JUNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. (grifo nosso). 39 tem competência para negociar e assinar tratados (artigo 84, VIII, CF), podendo delegar estes poderes ao Ministério das Relações Exteriores. Após esta etapa, o Presidente da República envia à Câmara dos Deputados a Exposição de Motivos do Decreto, juntamente com uma Mensagem ao Congresso Nacional. A elas acompanha a tradução do texto do tratado, além de parecer jurídico, analisando a sua legalidade e o seu mérito. A Câmara é competente para aprovar o tratado (artigo 49, I, CF) e o faz em sessão única, por maioria absoluta de votos, presentes a maioria absoluta do total de membros da casa. Em seguida, o tratado é remetido ao Senado Federal (artigo 52, IV,V,VII,VIII,CF), que depois da aprovação é promulgado pelo Presidente do Senado. Então, o Decreto Legislativo é publicado no Diário Oficial desta casa legislativa. Por fim, o Presidente da República ratifica o tratado por Decreto Presidencial, submetendo-o à publicação no Diário Oficial da União, bem como a uma segunda publicação no Diário do Congresso Nacional. Somente a partir de então o tratado adquire imperatividade no âmbito do direito interno e, em geral, passa a ter força de lei ordinária. Este é o procedimento chamado de internalização dos tratados internacionais, pelo qual as suas regras se tornam parte do direito interno. Ocorre que, em relação aos tratados sobre direitos humanos, surgiram dúvidas quanto à necessidade de sua aprovação pelo Congresso Nacional e principalmente sobre ter ele status de lei ordinária após a sua aprovação. É que muitos dos direitos previstos em tratados de direitos humanos já estão reproduzidos na Constituição de 1988 como direitos fundamentais e possuem, inclusive, a condição de cláusulas pétreas (artigo 60, §4º, IV, CF). Afirmar a necessidade de aprovação pelo Congresso desses tratados seria rebaixar direitos que estão no alto da pirâmide hierárquica das normas e que representam os maiores valores da humanidade já que, após todo o procedimento, o tratado passaria a ter status de lei ordinária. A Constituição consagra em seu artigo 5º, § 2º, que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios 40 por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Flávia Piovesan37 reflete sobre o tema, enfatizando que os tratados internacionais de direitos humanos possuem valor jurídico de norma constitucional independentemente de aprovação pelo Congresso Nacional: A Constituição assume expressamente o conteúdo dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que estes direitos não sejam enunciados sob forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional. É inegável que a Carta de 1988 trouxe um avanço incomparável no campo dos direitos humanos. Alguns autores, inclusive, com base no artigo 5°, §2°, da CF, entendem que a própria assinatura do tratado internacional sobre direitos humanos, gera, desde então, direito subjetivo aos particulares. Seria possível a invocação imediata de tratados e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei. Portanto, atribuem aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil o status de norma constitucional. Veja-se a opinião de Cançado Trindade38: Assim, a novidade do art. 5º, §2°, da Constituição de 1988 consiste no acréscimo, por proposta que avancei, ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte. Com o mesmo posicionamento, leciona Pedro Dallari 39: Essa norma constitucional, concebida precipuamente para disciplinar situações no âmbito interno do País, pode e deve ser vista, se associada ao inciso II do art. 4º, como instrumento que procura dar coerência à sustentação do princípio constitucional de relações 37 PIOVESAN, Flávia. A Constituição de 1988 e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Revista Especial, São Paulo, p. 40, 1997. (grifo nosso). 38 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentais básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 631. 39 DALLARI, Pedro. Normas internacionais de direitos humanos e a jurisdição nacional. Revista Especial do Tribunal Regional da 3ª Região: Seminário Incorporação dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, São Paulo, p. 25, 1997. (grifo nosso). 41 exteriores em pauta e que, por isso mesmo, possibilita ao Brasil intervir no âmbito da comunidade internacional não apenas para defender a assunção de tal princípio, mas também para, em um estágio já mais avançado, dar-lhe materialidade efetiva. Outro não é o pensamento de Flávia Piovesan40, como já explicitado: Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Essa conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do Texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. Apesar de todo o esforço e brilhantismo com que a teoria monista dos tratados sobre direitos humanos é defendida, afirmando que os tratados de direitos humanos têm status de norma constitucional desde a sua ratificação no plano internacional, há outra vertente doutrinária sobre o assunto: os dualistas que afirmam a necessidade desses tratados também serem aprovados pelo Congresso, quando somente passam a ter status de lei ordinária. A teoria dualista e a teoria monista discutem os problemas que surgem entre tratados internacionais e normas de direito interno. A primeira prevê que o Direito Internacional e o Direito interno são dois mundos distintos, sem nenhuma comunicação direta e imediata. Já a monista defende a universalidade do ordenamento jurídico e que o direito internacional e o interno são comunicáveis e inter-relacionáveis, sendo que um não pode ignorar o outro. Aqueles doutrinadores que defendem a teoria monista se dividem em duas principais correntes: os que defendem que o direito nacional de cada Estado deve prevalecer sobre o tratado internacional e os defensores de que o direito internacional deve prevalecer sobre o direito interno. No campo jurisprudencial, a Corte Suprema Brasileira teve por muito tempo posicionamento firme dualista: entendia ser necessário que o tratado de direitos humanos assinado pelo Presidente da República fosse aprovado pelo 40 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 31. (grifo nosso). 42 Congresso Nacional para adquirir status vinculante na ordem jurídica interna, além de ser hierarquicamente considerado lei ordinária, inferior, portanto, às normas constitucionais. Em vários julgados afirmou-se que o Pacto de San José da Costa Rica, o qual proíbe qualquer prisão civil que não seja a do devedor de alimentos, não se sobrepunha à norma constitucional que possibilitava a prisão civil do depositário infiel.41 Em muitos casos levados ao Judiciário brasileiro, tentava-se alegar a inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel porque contrária à disposição do Pacto de São José, que só admitia a prisão civil em caso de devedor de alimentos. Porém, o STF, reiteradas vezes, decidiu que o Pacto tinha força de lei ordinária no Direito Brasileiro e não revogou o Decreto-Lei n° 911/69 que era lei especial sobre alienação fiduciária. 41 Alguns julgados nesse sentido: EMENTA: "Habeas corpus". Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. - Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. - Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. "Habeas corpus" indeferido, cassada a liminar concedida. (HC 72131 / RJ - RIO DE JANEIRO, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MOREIRA ALVES, Julgamento: 23/11/1995) EMENTA: - Recurso extraordinário. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil. - Esta Corte, por seu Plenário (HC 72131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º , LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. - Esse entendimento voltou a ser reafirmado recentemente, em 27.05.98, também por decisão do Plenário, quando do julgamento do RE 206.482. Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. - Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica no sentido de derrogar o Decreto-Lei 911/69 no tocante à admissibilidade da prisão civil por infidelidade do depositário em alienação fiduciária em garantia. - É de observar-se, por fim, que o § 2º do artigo 5º da Constituição não se aplica aos tratados internacionais sobre direitos e garantias fundamentais que ingressaram em nosso ordenamento jurídico após a promulgação da Constituição de 1988, e isso porque ainda não se admite tratado internacional com força de emenda constitucional. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 253071 / GO – GOIÁS, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, DJ 29-06-2001 PP-00061) EMENTA: PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO INFIEL. LEGITIMIDADE. ART. 5º, INC. LXVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 72.131 (Plenário, 23.11.95), decidiu ser legítima a prisão civil do devedor fiduciante que não cumprir o mandado judicial para entregar a coisa ou seu equivalente em dinheiro, tendo em vista que houve recepção do Decreto-Lei nº 911/69 pela Carta Política atual. Entendimento reafirmado no julgamento do RE 206.482 e do HC 76.561 (Plenário, 27.05.98). Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 270296 / GO – GOIÁS, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, DJ 14-09-2001 PP-00063) 43 Para tentar pôr fim à discussão, a Emenda Constitucional nº 45/2004, que ficou conhecida como a “Reforma do Judiciário”, acrescentou o § 3º ao artigo 5º, dispondo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. O constituinte derivado dispôs, então, que para o tratado de direitos humanos ter status constitucional precisa passar pelo mesmo procedimento de aprovação das emendas constitucionais. Não obstante, a polêmica doutrinária continuou. É que os dualistas passaram a entender que somente os tratados internacionais de direitos humanos submetidos ao procedimento de aprovação das emendas constitucionais pelo Congresso Nacional, conforme o § 3º do artigo 5º, passariam a ter status hierárquico constitucional. Por sua vez, os monistas passaram a afirmar que a partir da edição do §3º do artigo 5º será necessário que o tratado de direitos humanos se submeta ao procedimento diferenciado das Emendas para adquirir hierarquia constitucional, mas que os tratados anteriores à EC n° 45/04 continuam como antes, ou seja, com hierarquia constitucional que lhes fora dada pelo § 2º do mesmo artigo 5º. Nesse sentido é a opinião de Flávia Piovesan42 sobre o novo § 3º do artigo 5º da Constituição Federal: Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emenda Constitucional n° 45/2004, têm hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais. Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do direito brasileiro. Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5º, § 3º, vem a reconhecer de modo explícito a natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse modo, a existência de um regime 42 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 73-74. (grifo nosso). 44 jurídico misto, que distingue os tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado quorum de três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam a ter status formal de norma constitucional tão-somente pelo procedimento de sua aprovação. Se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda n° 45/2004, por força dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição, são normas material e formalmente constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos humanos, a serem ratificados, por força do § 2º do mesmo art. 5º, independentemente de seu quorum de aprovação, serão normas materialmente constitucionais. Contudo, para converterem-se em normas também formalmente constitucionais deverão percorrer o procedimento demandado pelo § 3º. Portanto, constata-se que o constituinte reformador não conseguiu extinguir as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias existentes. Aliás, ao agir de forma ambígua, permitiu a alguns juristas interpretar que os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que não tenham sido aprovados pelo quórum qualificado continuam a ser equiparados à legislação ordinária. Sobre o assunto, Marcelo Dias Varella43 discorre no sentido inverso ao de Flávia Piovesan, a respeito dos tratados anteriores à EC n° 45/04 possuírem status infraconstitucional: O crescimento da importância dos tratados de direitos humanos é identificável em diversos Estados. A constituição federal da Argentina, com a reforma de 1994, incorpora o mesmo dispositivo (artigo 75, n° 22). Não apenas para direitos humanos, a Constituição do Peru, de 1993, possibilita que qualquer tratado tenha valor constitucional, desde que aprovação siga o mesmo rito e quórum dos projetos de emendas constitucionais (artigo 57). Quando o tratado sobre direitos humanos não atinge esse quórum, mas é aprovado com um quórum inferior, ele será ratificado pelo Estado brasileiro, mas não terá valor de texto constitucional, apenas de norma infraconstitucional, como qualquer outro tratado. Antes da EC 45, havia grande discussão sobre o valor normativo dos tratados de direitos humanos. F. Piovesan defendia a hipótese da equivalência constitucional, o que foi apoiado por diversos juristas no Brasil. A tese não prevaleceu e os tratados anteriores à EC 45 devem ser considerados com força de norma infraconstitucional. Ao contrário, quando se considera que os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem status constitucional, várias são as consequências. Por exemplo, os direitos e garantias individuais neles previstos podem ser considerados 43 VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional público. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 50-51. 45 cláusulas pétreas, normas constitucionais invioláveis e irrevogáveis, nos termos do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Além disso, o cidadão brasileiro estaria autorizado a invocar, diretamente, direitos e liberdades internacionalmente assegurados pelo tratado sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para sua exigibilidade e impleme