UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANA E SOCIAIS RODOLFO NOGUEIRA DA CRUZ DO EXEMPLO A SER CONSTRUÍDO Conduta e postura dos clérigos seculares na Castela dos séculos XIV e XV FRANCA 2018 RODOLFO NOGUEIRA DA CRUZ DO EXEMPLO A SER CONSTRUÍDO Conduta e postura dos clérigos seculares na Castela dos séculos XIV e XV Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História Área de concentração: História e Cultura Orientadora: Susani Silveira Lemos França FRANCA 2018 Cruz, R o d o lfo N o g u e ira da. D o ex em p lo a ser constru ído : conduta e postura d os c lér ig o s secu lares na C astela d os sécu lo s X IV e X V / R o d o lfo N o g u e ira da Cruz. - Franca : [s.n .], 2 0 1 8 . 182 f. D isser ta çã o (M estrad o em H istória). U n iv ersid a d e E stadual P aulista . F acu ld ad e de C iên c ia s H um anas e S ocia is . O rientadora: S u san i S ilv e ira L em o s França 1. Igreja C ato lica - C lero. 2. C astela e L eão (Espanha). 3. Tratados. I. Título. C D D - 9 4 6 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira - CRB8/8773 RODOLFO NOGUEIRA DA CRUZ DO EXEMPLO A SER CONSTRUÍDO Conduta e postura dos clérigos seculares na Castela dos séculos XIV e XV Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” , como pré- requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Orientadora: Susani Silveira Lemos França BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof.a Dr.a Susani Silveira Lemos França, UNESP/Franca 1° Examinador: Prof. Dr. Leandro Alves Teodoro, UNESP/Franca 2° Examinador: Pro.a Dr.a Carolina Coelho Fortes, UFF/ Niterói Franca,___d e _________________de 2018. Para minha família e amigos. AGRADECIMENTOS Agradeço ao financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo n° 2016/02154-3) e o apoio do grupo Escritos sobre os novos mundos: uma história de construção de valores morais em língua portuguesa (FAPESP - Processo n° 2013/14786-6) os quais possibilitaram a execução dessa pesquisa. À orientação, carinho e amizade de Susani Silveira Lemos França que, fazendo-se sempre presente, tornou-se o maior exemplo para este trabalho. Sem seus esforços, correções e sua enorme competência seria impensável obter os resultados aqui apresentados. Agradeço por sempre me inspirar por meio de seu esmero com as letras e ensinar de modo ímpar os caminhos de um historiador. À amizade e companheirismo de Jean Marcel Carvalho França, Ana Carolina de Carvalho Viotti, Rafael Afonso Gonçalves e Thiago Henrique Alvarado. O apoio e as leituras que prestaram a esta pesquisa foram fundamentais e indispensáveis. Sou grato pela presença nas incontáveis boas horas e por inflamarem diversas reflexões e discussões que fazem parte desta dissertação e da minha formação. Agradeço de forma especial ao Waslan Saboia Araújo e à Janaina Salvador Cardoso, amigos de longa data com quem pude dividir, mais do que o aluguel, minhas preocupações, anseios e conquistas. A compreensão, as leituras, as discussões e os conselhos que constantemente ofereceram só podem ser retribuidos com gratidão. Também a Gabriel Ferreira Gurian, que sempre se fez presente e cuja a amizade é indispensável! A todos os membros do grupo Escritos sobre os novos mundos que participaram dos reuniões que auxiliaram essa pesquisa. Em especial aos amigos: Clara Bras dos Santos, Simone Ferreira Gomes de Almeida, Michelle Souza e Silva e Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida Meus agradecimentos aos professores doutores Terezinha Oliveira, Carolina Coelho Fortes e Leandro Alves Teodoro que participaram das bancas de qualificação e defesa e ofereceram suporte e sugestões para o aprimoramento do trabalho. Aos meus maiores exemplos, meus pais: José Cesar Caetano e Maria Angélica Nogueira, por todo o incentivo, apoio e suporte em todos os momentos. O que me ensinaram foi fundamental para enfrentar os desafios que se apresentaram. Também aos meus diletos irmãos Afonso Nogueira da Cruz e Raquel Nogueira da Cruz. A vocês meu respeito, admiração e carinho. Obrigado! O sacerdote deve consolidar com as obras sua pregação, de modo que informe com o exemplo o que ensina com palavra. Em efeito, é autentica aquele ensino que acompanha o modo de viver, porque nada há de mais vergonhoso que se recusar a executar em obra o que ensina na prédica. Então, pois, só se expõem com proveito a pregação quando se segue eficazmente a prática. S. Isidoro de Sevilla, Los três libros de las “Sentencias” CRUZ, Rodolfo Nogueira da. Do exemplo a ser construído: conduta e postura dos clérigos seculares na Castela dos séculos XIV e XV. 2018. 182 f. Dissertação (Mestrado em História e Cultura Social) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, 2018. RESUMO Durante os séculos XIV e XV, o reino de Castela assistiu a um considerável aumento dos escritos voltados à correção e ao ensino dos homens de Igreja, sobretudo, no que dizia respeito à maneira correta de se portarem e exercerem seus ofícios. Nos livros sinodais e registros dos concílios do reino, bem como em tratados para confessores, livros de apólogos e em outras obras dadas a conhecer por dignidades eclesiásticas daquela época, os clérigos seculares foram frequentemente apresentados como mal instruídos e pouco conhecedores da doutrina. Não era sem o risco de serem penalizados, como indicam tais escritos, que esses homens faltavam com seu dever de ensinar, julgar e gerir os bens eclesiásticos ou pecavam por meio de suas ações desvirtuosas e aparência desonesta. Era-lhes recomendado, assim, que atentassem às regras próprias de seu estado e demonstrassem erudição e decoro. Foi nos séculos XIV e XV, portanto, que os bispos, arcebispos e outros membros do clero reforçaram no reino a ideia de que esse estado possuía a vocação para servir de exemplo a outros fieis. Diante dos leigos na confissão, nas missas, nos banquetes e, amiúde, no momento da transmissão da doutrina nas paróquias e igrejas, os eclesiásticos seculares deveriam se diferenciar dos demais por meio de suas posturas e compromissos. A partir dos escritos que visavam regular a vida cotidiana dos clérigos castelhanos, o objetivo deste estudo é observar de que maneira as autoridades eclesiásticas procuraram forjar uma imagem exemplar desses homens de Igreja. PALAVRAS-CHAVES: Castela; Moral; Clero secular; Tratados; Séculos XIV-XV. CRUZ, Rodolfo Nogueira da. Of the example to be built: conduct and posture of secular clerics in Castile from the fourteenth and fifteenth centuries. 2018. 182 pages. Master’s Thesis (History and Social Culture) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, 2018. ABSTRACT During the fourteenth and fifteenth centuries, the kingdom of Castile witnessed a considerable increase in the writings devoted to the correction and teaching of the men of the Church, especially concearning to the right way to behave and practice their functions. In the synodal books and records of the kingdom's councils, as well as in treatises for confessors, books of apologists, and in other works produced or spread by ecclesiastical dignitaries of that time, secular clerics were often presented as poorly educated and poorly acquainted with doctrine. It was not without the risk of being penalized, as these writings indicate, that these men lacked their duty to teach, judge, and manage the ecclesiastical goods, or they sinned by their deviant actions and dishonest appearance. They were thus advised to heed the rules proper to their state and to demonstrate erudition and decorum. It was in the fourteenth and fifteenth centuries, therefore, that the bishops, archbishops and other members of the clergy reinforced in the kingdom the idea that this state had the vocation to serve as an example to other believer. In the face of lay people in confession, masses, banquets, and often at the moment of the transmission of doctrine in parishes and churches, secular ecclesiastics should differentiate themselves from others by means of their postures and commitments. Considering the writings intended to regulate the daily life of the Castilian clerics, the purpose of this study is to observe how the ecclesiastical authorities sought to realize an exemplary image of these men of the Church. Keywords: Castile; Moral; Secular clergy; Treaties; 14th-15th centuries. SUMÁRIO A presentação........................................................................................................................................ 9 Parte 1 - Os ofícios dos clérigos: ensino, justiça e adm inistração.........................................15 1- M estres das letras e das coisas da f é ................................................................................... 18 Mestres a serem preparados.......................................................................................................22 Discípulos a serem instruídos.................................................................................................... 31 2- Juízes das a lm as ........................................................................................................................43 As virtudes da justiça e de ser ju s to .........................................................................................45 Julgar os erros e curar a consciência........................................................................................52 3- M inistros de deus e zeladores das ig rejas.......................................................................... 59 Formas de sustento do clero.......................................................................................................61 Entre o reino e a diocese........................................................................................................... 72 Parte 2 - Por um a postura ideal.................................................................................................... 78 1- Das atitudes dignas e indignas............................................................................................... 81 Dos deleites a evitar ................................................................................................................... 83 Da castidade e das boas companhias.........................................................................................96 Do cotidiano e dos compromissos sacerdotais...................................................................... 106 2- Da aparência honesta e v ir tu o sa .........................................................................................115 Das tonsuras e barbas................................................................................................................118 Dos trajes clericais....................................................................................................................126 Do comer e beber com temperança.........................................................................................136 Considerações fina is ....................................................................................................................... 150 Documentos e estudos.....................................................................................................................155 Documentos principais.................................................................................................................155 Documentos auxiliares..................................................................................................................157 E studos.......................................................................................................................................... 159 Dicionários..................................................................................................................................... 168 A pêndice............................................................................................................................................169 1- As diversas funções exercidas............................................................................................... 170 2- Notas biográficas dos eclesiásticos mencionados no estudo.............................................. 174 9 APRESENTAÇÃO Segundo diz o apostolo S. Paulo, escrevendo a seu discípulo Timóteo: “o sacerdote, que é chamado pela sorte do Senhor, há de ser idôneo e instruído nas letras, porque, segundo os santos direitos, a ignorância é mãe de todos os erros, e maiormente em todos os sacerdotes é muito perigosa, porque por seu exemplo e doutrina hão de ensinar os outros como devem viver na casa de Deus e para que não se cumpra neles o que nosso Redentor disse aos fariseus: “cegos são, e guias de cegos”.** 1 O bispo de Ávila D. Alonso de Fonseca (1422-1505), conhecido por seus serviços prestados à corte e por seus costumes tidos como mundanos, buscou em seu sínodo de 1481 esclarecer aos eclesiásticos e autoridades temporais as características ideais dos homens de Igreja. São as qualidades da idoneidade e do saber que D. Alonso proclama, logo de saída no seu livro sinodal2, como indispensáveis aos clérigos. A tais qualidades, outras são mais adiante propaladas no mesmo livro como necessárias a esses, a saber, aquelas que eram perceptíveis não somente “na consciência interior”, mas também demonstradas no exterior. Fonseca escreveu que os sacerdotes deveriam transparecer, portanto, a “sua honestidade e humildade” para que os povos fossem ensinados a “exemplo e doutrina” deles. Desse modo, de acordo com o bispo, conseguiam fazer jus ao ensinamento do apóstolo S. Paulo de serem “boas fragrâncias de Deus para a vida dos cristãos que querem bem viver” .3 Os clérigos e pessoas eclesiásticas presentes nesse sínodo se preocuparam em debater o saber, a autoridade, as ações e a aparência que eles próprios traziam no cotidiano. Fosse por meio do conhecimento de suas funções e da consciência de suas responsabilidades, fosse pela aparência e ações dignas e honestas, os eclesiásticos seculares do reino de Castela dos séculos * Neste trabalho, buscamos traduzir e modernizar, de próprio punho, os ofícios sacerdotais e as localidades onde os clérigos atuaram. Também fizemos a tradução das citações a partir de edições críticas e dicionários, empreendendo adaptações quando necessário, mas com o cuidado de destacar entre colchetes as alterações. Ressaltamos que os trechos originais das citações seguem em nota. Quanto aos títulos das obras, mantivemos aqueles usados nas edições adotadas. 1 D. Alonso de Fonseca se refere ao momento bíblico em que os fariseus vindos de Jerusalém questionam Jesus a respeito do comportamento de seus discípulos (Mt 15, 15-20). “Segun que dize el apostol sant Pablo escriviendo a su discípulo Timotheo, el sacerdote, que es llamado en la suerte dei Senor, ha de ser idoneo y sufficiente de letras, porque, segun los sanctos derechos, la ignorancia es madre de todos los errores, y mayormente en todos los sacerdotes es muy peligrosa porque por su exemplo y doctrina han de ensenar los otros como deven conversar en la casa de Dios, y por que no se cumpla en ellos lo que nuestro Redemptor dixo a los phariseos ‘ciegos son y guias de los ciegos’” FONSECA, Alonso de. Libro de las contituciones synodales. In: Sy NODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6. p.75 2 O livro sinodal é um gênero documental escrito antes do sínodo, assinado pelo bispo, cujas prescrições são promulgadas no sínodo. 3 Este trecho em que D. Alonso de Fonseca cita a fala de S. Paulo refere-se ao momento em que o santo propõe espalhar as fragrâncias de Cristo por todas as partes em que passar (2 Cor. 2,14). “La vida y honestidad de los clerigos y personas ecclesiasticas no solamente consiste en la conciencia interior, mas tambien en lo que de fuera se demuestra, por exemplo y doctrina que dellos han de recebir y reciben los pueblos de su honestidad y humildad, segun que el apóstol sant Pablo dize que son buen olor de Dios para vida de los christianos que quieren bien vivir" FONSECA, Alonso de. Op. cit., p.87 10 XIV e XV - tal como em outros reinos da Cristandade - deveriam ser ensinados, corrigidos e punidos quando se desviassem do papel que, então, lhes era atribuído e se atribuíam: o de ser exemplo aos fieis. Ainda em seu livro sinodal, na parte destinada às instituições clericais, D. Alonso admoestou esses homens a terem ciência da língua latina para que pudessem ler e cantar durante os ofícios sagrados, bem como conhecer as normas sobre o que lhes era devido e as funções a assumirem. Na sequência, ordenou a todos os sacerdotes das dioceses que cuidassem de suas roupas, de seus cabelos, de sua alimentação e de sua conduta geral para que não colocassem em risco a honestidade de sua função ou perdessem a autoridade. Para que fossem “exemplo[s] de boa vida e fama”4, também Clemente Sánchez de Vercial, arcediago de Valderas, escreveu seu tratado de confissão, o Sacramental,5 voltado para os clérigos que possuíam baixa erudição e conhecimento. Sánchez, que teve sua obra em circulação alguns anos antes do livro sinodal de Fonseca, mostrara as condições para que os homens professassem os votos sagrados e recebessem o sacramento da ordem:6 “serem castos em seus costumes e palavras”, “honestos em seus hábitos” e “temperados em comer e beber” . Para mais, apontava como exigências a todos aqueles que buscavam o sacerdócio: saber ensinar a doutrina, “corrigir os vícios e os pecados com disciplina” e “fazer residência em sua igreja ou em seu benefício”.7 Os clérigos deveriam, em suma, cuidar de sua compostura e de seus atos, de seu ofício e sua autoridade, de seu conhecimento e sua erudição. As regras sobre a vida desses homens não podiam se restringir, portanto, à busca da própria virtude, mas principalmente deveriam servir para inspirar os fieis sob sua alçada. Por meio de tratados, crônicas, constituições e outros tipos de escritos com teor moralizantes, os canonistas e tratadistas empenharam-se, assim, em estabelcer um padrão, nos séculos XIV e XV, de condutas e saberes exemplares. 4 “[...] que de exemplo de boa vida e fama” SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de Espana, 1475, p. 189v 5 Ibid. 6 Clemente Sánchez esclarece o que é o sacramento da ordem: “Segundo diz S. Tomás, na ordem sacerdotal se recebe o caráter quando o bispo lhe dá o cálice e a pátena com a hóstia e com o vinho, com certas palavras que então lhe diz, para ali lhe poder consagrar o que é o ato principal nesta ordem segundo é dito. O diácono recebe caráter quando lhe dão o libro dos Evangelhos, e o subdiácono recebe caráter quando lhe dão o cálice vazio. O acolito, quando lhe dão o círio e as galhetas. O exorcista, quando recebe o livro dos exorcismos. O leitor, quando lhe dão o livro das profecias; o hostiário, quando lhe dão as chaves” Ibid., p. 188v 7 “O que ha de reçeber este ssacramento da ordem deue auer estas condições: Premeiramente que sseja casto en costumes e em palauras. A ssegunda que sseja honesto em seu habito. A terçeira que sseja temperado em comer e em beber. A quarta que seja letrado aymda que nom por exçelençia. A qujnta que seja modesto e manso. A ssexta que rreçeba bem os ospedes. A sseptima que sayba emsinar a palaura de D eus. A octaua que sayba correger os viços e os pecados por diçiplina. A nona que de exemplo de boa vida e fama. A deçima [que] faça rresidençia en ssua ygreeja ou em sseu benefiçio. A vndeçima deue ser contente do benefi çio sse for curado. A .xij. que sayba bem gouernar ssua casa e ssua familia. Estas som as coussas que / deue auer e fazer o que sse ordena.” Ibid., p. 189v 11 Tal número de recomendações e insistências dos prelados para que os clérigos agissem de tais maneiras seguia pari passu as reclamações dos desvios e más condutas protagonizadas pelos eclesiásticos. Ao sumo pontífice, já em 1215, durante o IV concílio lateranense, os sacerdotes denunciavam a falta de honestidade e discrição dos homens de Igreja. Encontrados em meio aos jogos, tavernas, praças, banquetes, vestindo-se como leigos e sem cuidado algum com suas tonsuras,8 colocavam, desse modo, em risco não somente a saúde de suas almas como também de toda a comunidade. Foram tais denúncias que levaram o papa Inocêncio III (1161­ 1216) a outorgar regras que mais tarde serviriam como base para o estabelecimento, nos reinos peninsulares, principalmente em Castela, de prescrições voltadas à correção dos eclesiásticos. Assim, no século posterior ao encontro em Latrão, durante os sínodos e concílios das dioceses e arcebispados castelhanos, os prelados e outras dignidades eclesiásticas levantaram debates acerca da participação dos clérigos em atividades voltadas aos deleites carnais, tais como jogos, festas e outros, que podiam pôr a perder sua imagem exemplar.9 O século XIV, pois, será visivelmente marcado pelo aumento das recomendações quanto à conduta dos tonsurados como homens a serem imitados e não apenas admirados. Nessa esteira, o cuidado com a imagem clerical no reino de Castela é consolidado quando passaram a ser produzidas obras escritas em língua vulgar voltadas ao clérigo desprovido de saber e doutrina. 10 Também a realização do concílio de Valladolid, em 1322,11 e a presença de cardeais franceses nos arcebispados e dioceses12 trouxeram novos debates a respeito dos sacramentos e restrições mais específicas para as condutas sacerdotais.13 Não menos marcante foi o estreitamento das relações entre a coroa de Castela e o papa de Avignon que, mais que auxiliar na difusão de leis e ordenamentos para os eclesiásticos, colocou em evidência o papel temporal das igrejas e capelas. O aumento dos debates acerca da imagem dos clérigos e os esforços dos prelados em corrigir suas condutas, prolongaram-se, ainda, para além do século XV, quando surgiram críticas mais intensas aos clérigos e à própria Igreja. 8 PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. In: Lusitânia Sacra, 1978, p. 45 9 Ibid., p. 45-46 10 Alguns históricos dos escritos em vernáculo encontram-se em: MARTINS, Mário. O penitencial de Martim Pérez, em medievo-português. Lusitania Sacra, 1957; PITA, Isabel Beceiro. Libros, lectores y bibliotecas en la Espana medieval. Murcia: Nausícaa, 2007; REDONDO, Fernando Gómez. Historia de la prosa medieval castellana: Los orígenes del humanismo. El marco cultural de Enrique II Iy Juan II. Madrid: Cátedra, 2002, vol. 3 11 Para um maior esclarecimento acerca desse concílio, ver: ZUNZUNEGUI, José. Para la historia del Concilio de Valladolid de 1322. Scriptorium victoriense, v. 1, n. 2, p. 345-349, 1954 12 É digna de nota a presença do cardeal D. Guilherme Pérez de Godín (1260-1336), que presidiu, em Valladolid, o concílio em 1322. 13 SÁNCHEZ-HERRERO, José. Alfabetización y catequesis en Espana y en América durante el siglo XVI. 1990 12 Ainda que em muitas ordenações e tratados os prelados se dirigissem às “pessoas eclesiásticas, seculares ou regulares”,14 é aos primeiros, aos seculares, que os governantes de dioceses e outros letrados se voltam mais especificamente. Nesse estado secular, onde havia prelados e clérigos de ordens menores, sacerdotes das catedrais e paróquias, estudantes e mestres, homens de corte e universitários, era mantida uma certa unidade pela forma como deveriam viver e pelos benefícios que recebiam.15 Durante o trabalho, interessará mapear as divisões e distribuições desses bens para o sustento desses homens. Por hora, cabe observar que essas rendas dependiam do vinculo ao cabido paroquial ou catedrático. Se os clérigos seculares atendessem aos requisitos canônicos para realizarem as profissões de fé, teriam a sua disposição certos privilégios e rendimentos. Dessa maneira, os seculares se distinguiam daqueles que devotavam suas vidas a ordens com regras próprias - ordens religiosas que cuidavam, grande parte delas, de sua autopreservação e manutenção.16 Com a intenção de interrogar de que maneira uma imagem exemplar é construída e moldada nos séculos XIV e XV em Castela, buscaremos examinar o vocabulário que era comum e familiar aos clérigos, evitando, assim, respostas prontas ou generalizações em detrimento da descrição, bem como o uso de conceitos que digam mais sobre outros períodos e outros jogos históricos.17 Os termos recorrentes na documentação, os conceitos de época e as articulações circunstanciais não serão, vale dizer, deixados de lado neste estudo, pois permitir- nos-ão perceber como aqueles homens procuraram se descrever e que caminhos de conduta definiram para si como ideais. Dito de outro modo, o trabalho buscará os recursos e palavras que serviram para propor esses homens como imitáveis ou como modelos a serem seguidos. Ademais, vale reiterar que a pesquisa - com exceção das obras de Afonso X, Partidas18 e Libro de los juegos19 - se funda sobre escritos de clérigos voltados a si próprios. São estes: os tratados de confissão, os livros e constituições sinodais, os livros de mester de clerecía20 e livros 14 “E es de saber que todos los privilégios e todas las libertades de religiones, de monesterios, de iglesias e de personas eclesiásticas seculares o regulares” PÉREZ, Martin. Libro de las Confesiones. Una radiografia de la sociedadMedievalEspanola. Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.265 15 NIETO SORIA, J. M. El clero secular. Medievalismo: Boletín de la Sociedad Espanola de Estudios Medievales, 2004, p.95-97 16 Iibd., p.97-99 17 Para evitar, como sugere Paul Veyne, “resumos prontos de trama”. VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasilia: Editora UNB, 1998, p. 97-113 18 LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio, Madrid: Real Academia de la Historia, 1807 19 ALFONSO, X. Libro de los juegos: acedrex, dados e tablas; Ordenamiento de las tafurerías. Fundación José Antonio de Castro, 2007 20 Fernando Gomes Redondo aponta que os “livros texto”, tipo de escrito que reúne os poemas, são utilizados como “glosas”, cujo sentido remete ao ensino gramatical. Redondo salienta que há três formas de denominar essas obras destinadas ao uso dos clérigos: “hino religioso”, composto por cânticos e músicas; poemas ou tratados rimados; e comentários prosísticos. É na segunda denominação que o autor considera que a “maestria” era ensinada 13 de exempla e de apólogos. Completam o quadro as legislações régias que nos legaram descrições acerca dos sacerdotes, bem como os tratados que tiveram não somente uma grande circulação entre os membros do clero em Castela, mas que desfrutaram de prestígio além- fronteiras. Entre estes, especial atenção merecerão aqueles que foram escritos em vernáculo para facilitar o acesso e a instrução do clero não versado no latim, tratados como: o confessional, de Martin Pérez, Libro de las confesiones21; o de Guido Monte Rotheiro, Manipulus Curatorum22; o de Alfonso de Madrigal, o Tostado, Confesional del Tostado23; o de Clemente Sánchez de Vercial, Sacramental24; e o de Fernando de Talavera, Tractado proveichoso que demuestra como en el vestir e calçar comumente se cometen muchos pecados y aun tã bie en el comer y en el beuer25. Entre os diversos livros e constituições sinodais, selecionamos aqueles que foram lidos e aquelas que foram promulgadas nas reuniões que aconteceram na arquidiocese de Toledo - por ser considerada desde o século XI como sede do primaz das Espanhas - 26 em suas dioceses, isto é, serão contemplados os escritos dos bispos e arcebispos das regiões de Cuenca, Ávila, Segóvia e Toledo.27 No que se refere aos livros de mester clericías e de apólogos, seu interesse está em descrever as condutas exemplares a serem seguidas por meio de histórias e versos rimados. Foram selecionados: de Clemente Sánchez, o Libro de los exemplo por A.B.C.;28 uma recopilação castelhana quatrocentista de um escritor anônimo inglês do século XIII, o Especulo 21 22 23 24 25 26 27 28 aos “clerici”. Também Juan García Única explica serem as obras, mester de clerecia, voltadas aos clérigos. REDONDO, Fernando Gómez. Historia de la prosa medieval castellana: Los orígenes del humanismo. El marco cultural de Enrique IIIy Juan II. Madrid: Cátedra, 2002, vol 1, p. 46; ÚNICA, Juan García. De juglaría y clerecía: el falso problema de lo culto y lo popular en la invención de los dos mesteres. Espéculo: Revista de Estudios Literarios, v. 42, p. 33, 2009 21 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Espanola. Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. 22 DE MONTE ROCHEN, Guido. Manipulus curatorum. Nuevamete impresso em romãce. Traduzido de latin em lengua castellana por fray Thomas Duran. 1523 23 MADRIGAL, Alonso de. Breve forma de confesión [1495] Confesional del tostado. Edição e notas CABANO VAZQUEZ, Ignácio; DIAZ FERNANDEZ, Xosé Ma. Santiago de Compostela: Artes Gráficas LITONOR, 1996. 24 Ibid. 25 TALAVERA, Hernando de. Tractado proveichoso que demuestra como en el vestir e calçar comumente se cometen muchos pecados y aun tã bie en el comer y en el beuer. In: TALAVERA, Hernando de. Breue y muy prouechosa doctrina delo que deue saber todo christiano con otros tractados muy prouechosos: conpuestos por el Arçobispo de Granada, 1496 26 Ainda que se debata se o título pertence ao prelado de Toledo ou Braga, o arcebispado castelhano é assim reconhecido pelo papa Urbano II. Ver: MATTOSO, José. Os arquivos oficiais e a construção social do passado. Actas do encontro: “A construção social do passado”, 27,28 de nov. 87. Fac. C.S.&H, Universidade Nova de Lisboa, 1992. p.25 27 Para uma maior compreensão da organização das províncias eclesiásticas e seu território, ver: LOP OTIN, Maria José. Organización eclesiástica en Tierra de Segovia. Los sexmos dependientes del arzobispado de Toledo hacia 1500, in: La Comunidad de la Ciudady Tierra de Segovia: diez siglos de existencia. Segovia, Real Academia de Historia y Arte de San Quirce, 2013, 28 SANCHEZ, Clemente. Libro de los exemplos por A.B.C. Andrea Baldissera (ed.). Pisa: Edizioni ETS, 2005 14 de los legos; de Juan Ruiz, o Libro de buen amor,29 compilado no reino entre os séculos XIV e XV; de Gil Gonzáles Dávila e Juan de Timoneda, respectivamente Teátro eclesiástico30 e La oveja perdida31 - textos que, ainda que posteriores, trazem diversas referências aos prelados que os antecederam. Servir-nos-ão também de apoio Las partidas de Afonso X e artigos dos concílios ecumênicos, que de uma ou outra forma ajudam a perceber certas moedas correntes da época e algumas sutis mudanças. Tendo em vista os escritos e obras aqui referidos, o trabalho será conduzido por duas questões principais: em quais ofícios o clérigo era indispensável e se apresentava como autoridade? Quais eram as ações e feitios que recomendavam esses homens como exemplares? Levando em conta que ensinar, julgar e administrar resumiam o que lhes era devido, cabe-nos observar, na primeira parte do trabalho, as especificidades dessas atribuições aos clérigos no período específico desta pesquisa, ou seja, examinar quais foram seus ofícios, como os desempenharam, como se desviaram do que era recomendado, como procuraram se corrigir e como, por fim, buscaram garantir sua autoridade. Cabe, igualmente, notar as normas que serviram para reverter as más qualidades que naquele tempo os caracterizavam, como a incultura, o despreparo e a ignorância. Na segunda parte, por sua vez, a ênfase recairá sobre as ações ou condutas gerais e sobre a aparência prescritas para esses clérigos para que viessem a ser tomados como exemplos. Justamente por estarem expostos aos mais diversos pecados, normas precisas a respeito de suas condutas tiveram de ser a eles destinadas para que não pusessem em risco o seu ofício e tivessem maculada a sua imagem. No rol dessas normas, entravam tanto as restrições aos deleites, aos descomedimentos e às exibições em lugares públicos, quanto os meios para alimentar as práticas virtuosas. Conduzido por essas perguntas mais específicas, o trabalho visa entender, em última instância, de que modo os tratadistas e membros do episcopado empenharam-se em narrar o cotidiano ideal dos eclesiásticos castelhanos dos séculos XIV e XV para que este viesse a ser inspirador para os cristãos em geral. Avancemos, pois, sobre o universo dessas prescrições que, ainda que não tenham sido inteiramente seguidas, como noticiam as diversas denúncias apresentadas em concílios e escritos, sem dúvida, trazem à cena o que então podia ser defendido como bom, mesmo que não plenamente realizado. 29 30 31 29 RUIZ, Juan. El libro de buen amor. Alicante: Biblioteca virtual Miguel de Cervantes. 2000 30 GONZÁLEZ DÁVILA, Gil. Teatro eclesiastico de las iglesias metropolitanas y catedrales de los Reynos de las dos Castillas: vidas de sus Arzobisposy Obispos, y cosas memorables de sus sedes... Madrid: La Imprenta de Francisco Martinez, 1645, 2vol. 31 DE TIMONEDA, Juan. La oveja perdida: auto sacramental. 1921 15 Parte 1 - OS OFÍCIOS DOS CLÉRIGOS: ENSINO, JUSTIÇA E ADMINISTRAÇÃO Clemente Sánchez (1370 - 1426), bacharel em letras e arcediago de Valderas, em Leão, traz à tinta, entre os anos de 1421 e 1423, a obra Sacramental., na qual alerta que, [...] por nossos pecados, no tempo de agora, muitos sacerdotes que possuem cura de almas não somente são ignorantes para instruir e ensinar a fé e [a] crença e as outras coisas que pertencem à nossa salvação, mas também não sabem o que todo cristão deve saber, nem são instruídos nem ensinados na fé cristã segundo deviam. E o que é mais perigoso e danoso: alguns não entendem as escrituras que cada dia hão de ler e tratar [...].32 Em seu escrito, o arcediago, preocupado em instruir os sacerdotes sobre o conhecimento necessário para agir junto à comunidade cristã, busca deixar claro os dogmas, as responsabilidades e a forma correta dos ritos sagrados para que aqueles homens cumprissem bem seus deveres. E não foi ele o único eclesiástico a apontar a necessidade de instrução aos clérigos, ao contrário, ao longo dos séculos XIV e XV, o reino castelhano assiste a um aumento significativo de obras escritas em vernáculo, voltadas à correção e ensino desse estado.33 De diferentes maneiras, sacristãos, vigários e prelados responsáveis por atender confissões se tornavam alvo dessas prescrições que mestres de direito e letras, canonistas, teólogos, bispos e arcebispos continuamente lhes endereçavam. Esses clérigos de ordens maiores ou menores,34 pondo-se à frente de homens e mulheres que assistiam à missa, ouviam as pregações, enterravam os mortos, ou frequentavam outras atividades diárias nas igrejas, deveriam ocupar o lugar de autoridade que zela pelo bem espiritual e ensina por meio de seu próprio exemplo: ensinar as letras aos meninos que iam às igrejas; administrar os bens das paroquias e catedrais; assumir inúmeras atividades junto aos seculares, dentre elas, ouvir a confissão dos mais íntimos delitos e das coisas que anuviavam a consciência dos pecadores. Destes clérigos, esperavam-se recomendações e conselhos sobre as maneiras de afastar os pecados, agir dentro dos 32 “E por qnto por nuestros pecados effl tiepo de agora muchos sacerdotes q han curas deaias no solamete son ynorãtes pa instuyr e ensenar la fee e creecia e alas otras cosas que ptenescen anfa salvación mas avn no saben lo q todo buen xpiano deue saber nin son instruidos ni ensenados enla fee xpiana segu devian. E lo que es mas pelygrofo e danoso alguos no saben nin entiede las scriapturas que cada dia ande leer e tratar [...]” SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de Espana, 1475. p. 9r-9v 33 MACHADO, José Barbosa. Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa. Revista de Humanidades, Braga, v. 8, n. 1-2, p. 241-250, 2004. p.1-2 34 A hierarquia eclesiástica era dividida entre: os que recebiam a primeira tonsura, as ordens menores e as ordens maiores. A diferença entre ambas, para além da jurisdição, era a função dentro das igrejas e paróquias ou catedrais. Faziam parte das ordens menores, os clérigos que não tinham votos sagrados ou “cura de almas”, podendo ser: hostiários, leitores, exorcistas e acólitos. Aqueles que faziam parte das ordens maiores professavam votos sagrados maiores e passavam a ser responsáveis pelas missas, por dirigir os sacramentos, por atender as confissões e, ainda, pela cúria de uma igreja. Esses poderiam ser: subdiácono, diáconos e sacerdotes (de forma geral todos os prelados) e outros com os mesmos votos. Ver: GOMES, Saul António. Clérigos regulares nas ordenações sacras da sé de Coimbra no século XV. Lusitânia sacra, p. 183-225, 2005.; FERRERES, P. Juan B. Instituciones Canonicas. Barcelona: E. Subirana, 1917, p.87-89; SANCHEZ, Clemente. Op. cit., p.185r 16 ordenamentos cristãos e se portar com determinada dignidade. Responsáveis por aplicar penas e sanções a todos que se desviavam das condutas honestas - membros do clero ou leigos-, os clérigos deveriam demonstrar o exemplo por meio de seu conhecimento e conduta. A intenção de orientar sobre os dogmas para se viver de forma justa é amparada na ideia, então difundida, de que todos os escritos, inspirados no poder divino, deveriam ensinar a agir, corrigir e formar para a justiça.35 Nos séculos XIV e XV, os tratados de confissão, livros e constituições sinodais, livros de apólogos e outras obras com ensinamentos morais assumiam o objetivo de fazer do conhecimento o caminho para que os cristãos seguissem as regras e aprendessem a agir conforme a doutrina da Igreja. Desta forma, os teólogos castelhanos se empenharam, nesses séculos, em instruir os clérigos: a correta leitura dos documentos e do evangelho; as coisas pertinentes à prática sacramental, à fé e à justiça; e as maneiras de zelar pelos bens da Igreja e pelos súditos do reino. Ainda que outros ofícios clericais fossem responsáveis por guiar e moldar as condutas dos fiéis, quando se busca observar a aplicação da lei e a execução da justiça sobre os pecadores, são os confessores que se destacam, dado o seu contato mais direto com os paroquianos, com a possibilidade de observar de perto suas condutas e interferir nelas. O confessor, portanto, durante o rito sacramental, era tido como um juiz espiritual, que tinha a função de absolver os erros humanos cometidos contra as leis naturais e Deus. Seu contato com os fiéis, que desde os primeiros concílios ecumênicos é debatido e modificado - de forma especial o IV de Latrão em 1215 - ,36 coloca esse sacerdote ao menos uma vez por ano à frente dos paroquianos penitentes; razão pela qual não podia furtar-se a se apresentar como modelo de virtude. Os confessores, os primeiros a serem corrigidos e ensinados por esses escritos, eram vistos como pouco cultos e ignorantes nas doutrinas da Igreja e, por esse motivo, eram apontados como maus guias para os confessos. Por falta de conhecimento e erudição, o próprio clérigo se desviava de suas funções e exercia de forma minguada seu ofício sagrado.37 Era preciso, pois, que, antes de atenderem as confissões, aprendessem o que era e como ser justo e a demonstrar autoridade diante daquele que viria a absolver. Considerando suas responsabilidades eclesiásticas, ora com a Igreja, ora com a coroa, os clérigos deveriam estar cientes das suas funções e do que ensinar ao leigo, a saber: orações, artigos de fé e boas obras. 35 AQUINO, Santo Tomas de. Suma de teologia. Madrid: BAC, 2001, t.1. p.87 36 GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. Historia del concilio IV lateranense de 1215. Salamanca: Universidade Pontifícia de Salamanca, 2005 37 PÉREZ, Martín Libro de las Confesiones. Una radiografia de la sociedad Medieval Espanola. Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 4 17 Tudo o que se acreditava ser cobrado por Deus por meio do confessor. Era principalmente, da oposição entre conhecimento e ignorância que surgiam os justos e os injustos. Os cristãos que não possuíam conhecimento acerca dos artigos de fé, de como orar e glorificar a Deus e às leis divinas, estavam mais suscetíveis aos pecados e, consequentemente, a uma vida injusta. Cobrada e corrigida durante o sacramento da penitência, por meio da própria condenação do pecador e da absolvição concedida pelo confessor, a virtude da justiça era colocada em destaque, pois por meio dela os homens dos séculos XIV e XV julgavam ser possível compreender a correta maneira de levar a vida. Tida como um saber necessário a todos, a justiça era apontada por Clemente Sánchez como “a maior e a mais poderosa de todas as virtudes”, de onde as demais seriam retiradas.38 Os escritos que dela tratam buscam, de diversas maneiras, definir como e quem receberia de Deus a autoridade de cobrá-la. Entre os foros e autoridades responsáveis por julgar os delitos, são os sacerdotes, na jurisdição interna, que desenvolvem ferramentas para efetivar melhor a cobrança. Ter acesso à intimidade do fiel e a seus pensamentos pecaminosos fazia do sacramento da penitência uma forma de instruir os castelhanos sobre a maneira de opor uma vida de injustiças e de pecados a uma vida virtuosa e justa. Pautados nas reflexões sobre esta virtude, os prelados buscam, nos seus escritos, ensinar e julgar os confessores, projetando ensinamentos aos leigos e formas de julgá-los. Conciliando a pedagogia cristã e o sacramento da penitência, os ensinamentos ganharam forma sobretudo nos tratados confessionais e nos livros sinodais - alguns deles escritos em língua vernacular - e buscaram atingir os eclesiásticos que atuavam nas paróquias e bispados e eram considerados ignorantes e pouco letrados. A partir do que esses canonistas nos legaram, cabe aqui questionar, como adiantando na apresentação deste trabalho, que competências dos clérigos favoreciam que se firmassem como exemplo. Dito de outra forma, é fundamental investigar o que esses homens, nos séculos XIV e XV, disseram sobre a administração de seus bens e propriedades, sobre o sagrado ofício de julgar pecados e guiar as consciências e sobre o dever de aprender e ensinar a doutrina cristã. 38 “Justiça he mayor e mais poderosa de todalas virtudes”. SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de Espana, 1475. p. 110 18 1- MESTRES DAS LETRAS E DAS COISAS DA FÉ O nosso salvador Jesus Cristo, que veio redimir a humanidade, deu ordem e regra de como vivêssemos e soubéssemos nos salvar; e estabeleceu dois estados entre os que em sua fé haviam de se salvar. Convém saber: um de clérigos que orassem e ensinasse a sua fé e a sua verdade. E o de leigos que vivessem, trabalhassem e mantivessem o mundo segundo é escrito: In labore tui vescerispane tuo. [...] E outrossim, que ouvissem e fossem informados na fé e crença por aqueles que são do estado clerical pelo qual, especialmente os sacerdotes e prelados, possuem a cura de almas.39 Clemente Sánchez, redigida entre 1421 e 1423, assim distingue dois estados com funções bem delimitadas. Para além, daqueles responsáveis por espalhar a verdade da fé, havia os designados a trabalhar no mundo: aprendendo orações; arrependendo-se dos pecados; praticando atos de virtude; alimentando-se e vestindo-se de forma regrada; informando-se, por fim, sobre os dez mandamentos, os pecados capitais e veniais e os sete sacramentos. Em suma, os homens e mulheres do reino de Castela deviam seguir inúmeras diretrizes para serem bons súditos e bons cristãos. Os tratados para confessores, os livros sinodais e as constituições recomendavam, pois, que o ensino dos fiéis deveria ser provido pelos sacerdotes presentes nas igrejas paroquiais e capitulares. Quanto às matérias a serem aprendidas, essas giravam em torno de normas práticas para que estas pessoas, mesmo as que não sabiam ler, memorizassem as regras para uma vida justa e virtuosa.40 Assim, o primeiro momento em que o clérigo se estabelecia como exemplo para a comunidade cristã do reino era quando assumia a tarefa de ensinar a doutrina aos paroquianos, homens e mulheres mais velhos ou jovens moços e moças. O conhecimento e aprendizado das regras e da doutrina, para os homens dessa época, passavam por um exercício de recordar as lições nos momentos propícios. Afirmando esse objetivo, para além de Sánchez, outros canonistas ressaltam a importância do caráter mnemônico dos rituais sagrados, para que todo cristão compartilhasse dos princípios de uma vida justa e de um conhecimento da doutrina.41 Pouco tempo depois do Sacramental, Alonso 39 "El nustro saluador Ihuxpo que vino rredemir el humanallnaie dyo orden e rregla como viuiesemos e nos sopieslemos saluar Establelcio dos estados entre los que em su fee le avian de saluar. Conuiene saber yno de cligos q orasen e ensenasen la su fee e la su beredad [...] E esta do delos legos que viuiesen e trabaiasen e mãtbuiesen el mudo segu es escripto: In laborevult9 tui vesceris pane tuo. [...] E otrosi pa que oyesen e fuessen enformados enla fee e creecia de aqllos que son del estado clerical por los qual los cligos especialmete los sacerdotes e plados que han cura de aías" SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de Espana, 1475. p. 9r 40 TEODRO, Leandro Alves. A função moral da memória na prática da confissão. Dimensões vol. 28, p.207. 41 Em um estudo que se tornou referência para a compreensão do papel social da confissão, Michel Foucault a aborda como um exame mnemônico de onde se tiravam as balizas de uma vida justa. Com o movimento do monasticismo, a confissão acaba por buscar as verdades individuais e se preocupar em não só imprimir na memória dos confessos as diretrizes justas, mas buscar no seu interior as verdades individuais; além de uma direção espiritual. FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p.241 19 de Madrigal, o Tostado (1400-1455), aponta, no seu tratado O Confesional del Tostado, que o objetivo da pregação e ensino deveria ser imprimir com clareza na memória do fiel os deveres, as regras de conduta, os erros e desvios em que poderiam cair e, principalmente, a maneira correta de se portar durante os ritos. Tomando como importante o momento de punição e aprendizado, o Tostado reforça a primazia da memória ao recomendar que o penitente, ao se confessar, deveria "um dia ou dois [...] considerar em si sobre seus pecados",42 e assim arrepender-se e sentir dor. A memória, além de agir causando a culpa e o arrependimento - contrição - , durante o rito sacramental, assumia um caráter corretivo em outros momentos de aprendizado, em especial naqueles que não tinham acesso à leitura.43 A memória, pelo que tinham ensinado os antigos e sintetizado Marco Túlio Cícero (106­ 46 a.C.), era fundamental para a aprendizagem das virtudes. Quando Carlos Magno (768-814) procurou restaurar no reino franco a educação antiga, recorreu a Alcuíno de York (735-804), filósofo, canônico e professor nortumbriano, o qual, retomando Cícero em um trecho de seu tratado, Sobre a Retórica e as Virtudes, expôs a memória como uma "sala do tesouro" onde todas as coisas e palavras pensadas eram guardadas. Melhor dizendo, por ela, os homens aprenderiam quais as más condutas e como se afastar delas.44 Esse papel atribuído à memória com base nas obras de Marco Túlio Cícero é recordado e reiterado, no século XV, quando em Veneza se publica pela primeira vez o Ad Herennium e o De inventione, conhecidos como a nova e a velha retórica. Nestas versões quatrocentistas, é relacionado o ensino da retórica com as virtudes cristãs45 e as virtudes são apresentadas como as "coisas" ou "invenções" do orador, as quais deveriam ser guardadas na sala dos tesouros - na memória - para que se aprendesse a agir. Entre as invenções e as coisas preciosas a se guardar, não só em Castela, mas no ocidente cristão de um modo geral, encontram-se os ensinamentos relacionados ao que é pecado e ao que é virtude, aos artigos de fé e, entre outros elementos, aos meios para se chegar ao paraíso e se afastar das tentações. Como ferramenta de aprendizagem dessas coisas, as pinturas em 42 "alende desto enla confessiõ es de cõsiderar q pa alguno deuotamete e cõ grãde fruto se pueda cõfessar deue yn dia o dos ante q se cõfiesse cõsiderar em si sobre sus peccados" MADRIGAL, Alonso de. Confesional del tostado. Barcelona: Biblioteca de Cataluna, 1498. p.6 43 YATES, Frances. A arte da memória. Campinas: Editoria da Unicamp, 2009. p.76-77 44 Ibid. 45 Há um debate entre diferentes autores a respeito da autoria do A d Herennium, entretanto, é comumente atribuída a Marco Tulio Cícero. A publicação veneziana da obra, no século XV, incorpora diferentes pensamentos, possivelmente feitos pelos compiladores da época; informações estas trazidas nas notas do documento. A abertura e introdução seguem a doutrina pré-aristotélica; a parte sobre as virtudes, como de forma cronológica, segue o padrão de Teophrastus, discípulo, herdeiro e sucessor de Aristóteles. Seguindo a parte da libertação (delivery), observa-se uma tendência pós-Teophrastus; da mesma forma que, ao falar de linguagem, solecismo e barbarismo, voltam-se ao estoicismo. A definição propriamente de retórica é atribuída a Hermagoras, assim como a formação de sistemas a Epicuro. Vê-se que o pensamento sofista se encontra na base da escrita do documento do século XV. Ver: AD HERENNIUM, Rhetorica. (Trad. Harry Caplan). Loeb Classical Library, 1954. p. xvi 20 catedrais, as esculturas, as pregações, as orações, os exemplos de santos e a própria confissão eram tomadas como as transmissoras das "coisas" que o homem deveria guardar na memória a fim de aprender.46 Assim como essas ferramentas, também algumas obras escritas cumpriram seu papel nesse processo de ensino das virtudes através da memória. Ainda que, nesse momento, obras clássicas, como a de Cícero, fossem minoria se comparadas às de cunho religioso, alguns tratados morais e outros escritos com ensinamentos tiveram alguma divulgação. No final do século XV, quando a imprensa ainda dava seus primeiros passos, não deixou de haver uma significativa circulação de textos eclesiásticos, da Bíblia, dos textos de São Tomás de Aquino, de escritos de Jean Gerson, entre outros textos sobre a fé e os sacramentos.47 Desta maneira, apesar do apreço pela educação clássica, esta somente era tida como legítima quando vinculada ao saber religioso e ao ensino pastoral cristão. Com a preocupação em designar um cargo dentro das paróquias para ensinar adultos e crianças a ler e escrever para se instruírem nas regras sagradas e serem tanto bons cristãos como bons súditos, desde o III concílio de Latrão (1179), quando foi colocado ao poder pontifício questões a respeito do ensino aos leigos, a Igreja buscou manter homens aptos a ensinar a doutrina para todos aqueles que procurassem escolas paroquiais ou capitulares. No cânone 18, por exemplo, foi posta a recomendação de que em cada igreja se passasse a manter um mestre para ensinar gratuitamente aos clérigos e aos alunos pobres, com a exigência de que não se cobrassem taxas para que esses mestres obtivessem suas licenças.48 Portanto, havia uma movimentação em Roma, após a separação papal - que se manteve de 1376 a 1417 - , a favor de uma maior propagação do saber cristão pelas mãos de mestres e dentro dos muros de uma igreja. Entre as diversas reuniões da cúria eclesiástica, o sínodo presidido por Alvar González de Capillas (?-?), na época vigário de D. Alonso de Burgos (1415-1489),49 ocorrido na vila de 46 Amélia Yates busca pensar nos afrescos e pinturas em vitrais dentro de catedrais e igrejas, entretanto, os instrumentos de fixação da memória, dado o contato com clérigos e outros que liam, eram também escritos. YATES, Frances. A arte da memória. Campinas: Editoria da Unicamp p.79 47 MACHADO, José Barbosa. Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa. Revista de Humanidades, v. 8, n. 1-2, p. 241-250, 2004. p.1-2; HORCH, Rosemarie Erika, Luzes e Fogueiras: dos Albores da Imprensa ao Obscurantismo da Inquisição no Sacramental de Clemente Sánchez, tese de doutoramento, Universidade de São Paulo, 2 vols, 1985; ANSELMO, Artur. Estudos de história do livro. Lisboa: Guimarães editores, 1997. 48 COD 220, 17-28 apud ALBERGIO, Giuseppe (org.). Historia de los concílios Ecumênicos. Salamanca: Sígueme, 1993, p. 170 49 Para além de algumas ordenações esporádicas em sínodos antecessores ao de Cuenca, nada mais se sabe sobre Alvar Gonzales de Capillas. CAPILl A s , Alvar Gonzales de. SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v. 10. p.357 21 Pareja da diocese de Cuenca em novembro de 1482, traz entre os ordenamentos aos sacristãos a obrigação de ensinarem os meninos a ler, escrever e cantar para que ajudassem nas celebrações e seguissem uma vida justa. Nesses ordenamentos, vem proposto que "[...] os ditos sacristãos, em todos os dias, exceto os dias de domingo e festas principais [...], escrevam e ensinem a ler, a ajudar na missa e a escrever e cantar a todos os meninos e moços que lhes forem recomendados",50 mais especificamente que "os ensinem a ler e a escrever na doutrina e coisas contidas na tábua moral".51 Ainda em 1480, na arquidiocese de Toledo, D. Alfonso de Carrillo de Acuna (1412-1482), arcebispo da região, realiza, com a finalidade de promulgar constituições acerca da arrecadação no território, o encontro sinodal da região.52 Reafirmando a obrigação dos sacristãos, Acuna demonstra que a ignorância dos mestres e professores no ensino dos meninos e adultos deixava-os sem aprender as coisas necessárias aos cristãos.53 Com o intuito de sanar este déficit, prescreve ele que, "em cada uma das igrejas paroquiais do nosso arcebispado, onde houver povo, o cura tenha consigo outro clérigo ou sacristão [...] que saiba, possa e queira mostrar [como] ler e escrever e cantar a qualquer pessoa, em especial aos filhos de seus paroquianos, e os instruam e ensinem todos bons costumes e os afastem de quaisquer vícios e os castiguem".54 Ao passo que as ordenanças ao ensino eram feitas pela cúria do reino, os documentos em vernáculo, que facilitavam o acesso à leitura tanto aos clérigos como aos fiéis, passam a conter ensinamentos para ambos os estados. Assim, a partir do século XIV, nota-se, juntamente com o aumento do ensino de retórica e outras artes, a preocupação de bispos, arcebispos e canonistas castelhanos em ensinar melhor os alvos das suas prédicas. Mantê-los distantes das injustiças era o caminho para fazê-los alcançar o correto conhecimento sobre o credo cristão e as práticas virtuosas. Nos séculos XIV e XV, os clérigos deveriam fazer-se presentes nos locais de ensino e fazerem-se exemplos de saber para todos os fiéis. São, portanto, encontradas em 50 "E que os dichos sacristanes em todos los dias, excepto los dias de los domingos e fiestas prinçipales de guardar, escrivan e ensenen a leer e ayudar na misa e a escrevir e cantar a todos los ninos e moços que lies fueren encomendados" BURGOS, Alonso de. Livro Sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v. 10. p.369 51 "E primeiramente los ensenen a leer e a escrevir en la doctrina e cosas contenidas em ça tabla moral.". Ibid. 52 ACUNA, Alfonso Carrillo de. Contituiciones e Libro Sinodal. In: SYNODICON Hispanum. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v. 10. p.628-632 53 SYNODICON Hispanum. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v. 10. p.636 54 "[...] estatuimos que em cada uma de las iglesias perrochiales de nuestro arçobispado donde hoviere pueblo, el cura tenga consigo outro clerigo o ssacristan, persona de saber e honesta, que sepa e pude e quiera mostrar leer e escrivir e cantar a qualquier personas, en especial a los fijos de sus perrochianos, e los instruyan e ensenen todas buenas costumbres e los aparten de qualesquier vicios e los castiguen." ACUNA, Alfonso Carrillo de. Op. cit., p.636 22 Toledo, Segóvia, Ávila, Cuenca, Sevilha, Salamanca e outras sedes episcopais obras e mestres que tinham como objetivo introduzir os homens de Igreja e quem as frequentava no ensino das artes.55 Ou seja, o poder eclesiástico castelhano passa a utilizar dos saberes que circulavam em outros territórios cristãos - como os exercícios de memorização das regras e matérias sagradas, e o ensino da gramática, arte e retórica - para corrigir o grave desvio observado no reino: a ignorância dos leigos e a erudição minguada dos clérigos.56 Mestres a serem preparados No âmbito das catedrais e paróquias, das escolas capitulares e monásticas, a Igreja buscou, durante os séculos XII e XIII, regular e incentivar o ensino da doutrina a homens e mulheres eclesiásticos. Após o conjunto de reformas papais que balizaram diversos aspectos da vida eclesiástica - comumente atribuídas ao papa Gregório VII (1073-1085) - , 57 os prelados do reino de Castela passaram a exigir que as províncias católicas mantivessem em seu cabido clérigos instruídos e aptos a ensinar.58 A fim de atender as ordenações do pontificado, as dioceses e províncias castelhanas-leonesas, no decorrer dos séculos XII e XIII, passaram a eleger membros do cabido capitular para o oficio de mestre-escola (magister scholarum)59 55 RUCQUOI, Adeline. La formation culturelle du clergé en Castille à la fin du Moyen Âge. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieurpublic, v. 22, n. 1, p. 249-262, 1991. p.253- 254. 56 Leandro Teodoro propõe um mapeamento dessas ferramentas de introjeção de valores cristãos em Portugal, entre os séculos XIV e XV. No reino de Castela, e outros próximos, é possível observar uma função da confissão semelhante, por dividirem problemas similares - como a baixa erudição do confessor, o aumento dos desvios de conduta dos clérigos e as relações que se tinha entre poder eclesiástico e real. TEODORO, Leandro Alves. A função moral da memória na prática da confissão. Dimensões vol. 28. p.208 57 Na esteira de Luis García-Guijarro Ramos, muitos estudos se voltaram para pensar as reformas da Igreja, entre os séculos XI e XIII, como um conjunto de medidas adotadas por diferentes papas desse período. Entre os grandes nomes e reformadores encontra-se Gregório VII, que em diversos estudos dá nome a esse conjunto de reformas.” GARCÍA-GUIJARRO RAMOS, Luis. Papado, cruzadas y órdenes militares, siglos XI-XIII. Madrid: Cátedra, 1995; DA SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão; LIMA, Marcelo Pereira. A reforma papal, a continência e o celibato eclesiástico: considerações sobre as práticas legislativas do pontificado de Inocêncio III (1198­ 1216). História: Questões & Debates, v. 37, n. 2, 2002; RUST, Leandro Duarte; DA SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão. A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito. História da historiografia, n. 3, p. 135-152, 2009. 58 O magiste scolarum é adicionado em Toledo em 1117, em Salamanca em 1174, em Leon em 1181, em Oviedo em 1184, em Segóvia em 1190, em Palencia em 1213. O cabiscol (mesma função de um chantre ou quem rege um coro) pode ser encontrado em Burgos desde 1161 e em Valladolid em 1171. Nos séculos XII e XIII, as bibliotecas dos canônicos Dominicus Paian, canônico de Toledo (1194); Fernando Alfonsi (1267) e Fernando Bretón (1304), ambos de Oviedo, passam a conter exemplares de obra que tratavam do ensino das artes. Ver: RUCQUOI, Adeline. Op. cit., p.253 59 Afonso X, em sua obra Las Partidas, que configura uma obra legislativa que será retomada por diversos outros reis de Castela a fim de se estabelecerem as normas do território, define o ofício do mestre-escola como aquele que atua como: “mestre e provedor das escolas, e pertence a seu ofício dar aulas nas igrejas, ensinar aos moços a ler e cantar, e devem ser ensinados nos livros a ler nas igrejas; e outrossim ao que ler no coral quando errar; e outrossim a seu ofício pertence estar à frente quando fiscalizarem os escolares nas cidades dos estudos, se são tão letrados que merecem ser outorgados por mestre de gramática, ou de lógica, ou de algum dos outros saberes; e aos que entenderem que mereçam, pode-lhes outorgar que sejam assim como mestres” LAS Siete Partidas del Rey 23 Responsáveis pela administração das escolas catedrais ou paróquias, os mestres-escola, assim como os frades de ordens religiosas em momentos anteriores, deveriam ministrar aos clérigos as artes liberais (trivium e quadrivium) e a teologia moral, bem como capacitar os sacerdotes para assumirem os ofícios pastorais e sacramentais.60 Para além das fronteiras do reino de Castela, cardeais, arcebispos, bispos e autoridades temporais também observaram que havia uma falha na ciência dos clérigos. Convocadas as reuniões ecumênicas de 1149 e 1215, respectivamente pelos papas Alexandre III (1159-1181) e por Inocêncio III (1198-1216), os prelados presentes puderam debater sobre a formação clerical e os desvios comuns no pastoreio de fiéis. Em ambas as reuniões, do III e IV concílio de Latrão, foram expostos ao pontífice tanto os problemas no ensino e na propagação da doutrina a todos os cristãos, quanto os abusos e as falhas daqueles que faziam parte da cúria, e ainda, os casos em que os clérigos se desviavam da lei canônica.61 A fim de consolidar uma legislação escrita destinada aos prelados e regulares, ambos os concílios visaram apontar e corrigir a rudeza clerical e delimitar as regras de ensino da doutrina, tendo sido o IV lateranense mais rigoroso nas repreensões a todos do clero que não sabiam ler, escrever, aplicar os sacramentos e realizar outras atividades sacerdotais.62 Retomados ulteriormente em outras reuniões, os concílios de Latrão deixaram firmado que a má formação dos clérigos afetava o compromisso pastoral que esse havia professado com a Igreja, Deus e os fies, fazendo da ignorância um dos grandes erros e pecados em que poderia incorrer um eclesiástico.63 Apesar do esforço das províncias e dioceses castelhanas em atender as ordens dos papas “reformistas” e das reuniões eclesiásticas, alocando junto às comunidades eclesiásticas mestres de saber, no final do século XIII os letrados do reino ainda deixavam transparecer insatisfação com a conduta e a erudição dos homens de Igreja.64 Ou seja, se durante o Duzentos houve em Castela e nos reinos próximos um aumento de locais de estudo para aqueles que almejavam a Don Alfonso el Sabio, Madrid: Real Academia de la Historia, 1807, v. 1. p.255. Lembramos também que tal observação é feita por Javier Fernandez Conde e Antonio Oliver na obra dirigida por Ricardo Garcia-Villoslada. FERNANDEZ CONDE, Javier; OLIVER, Antonio. Cultura y pensamento religioso em la baja Edad Media. In: GARCÍA VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia en Espana. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,v.2,1979.p.175-253 60 Ibid. p. 180-181 61 COD 220, 17-28 apud ALBERGIO, Giuseppe (org.). Historia de los concílios Ecumênicos. Salamanca: Sígueme, 1993, p. 170 62 PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. In: Lusitânia Sacra, 1978 p. 37 63 RÀBANOS, José María Soto. Visión y Tratamiento del Pecado en los Manuales de Confesión de la Baja Edad Media Hispana. In: Hispania Sacra, LVIII. Madrid: Instituto de Historia, CSI, 2006, p.414-415 64 No século posterior, o III concílio de Latrão, convocado pelo papa Alexandre III e realizado em 1179, também já indicara o problema do baixo conhecimento dos clérigos e incitara os reinos a aumentarem suas escolas capitulares. PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. In: Lusitânia Sacra, 1978 p. 37 24 vida eclesiástica, foi somente no primeiro quarto do Trezentos que as críticas mais severas sobre a educação desses homens começaram a tomar corpo. É, nessa altura, que os prelados, mestres em direito e teólogos desse reino trouxeram à luz com mais frequência ensinamentos sobre a doutrina cristã e as balizas para que os eclesiásticos fossem uma via de exemplo para todos os cristãos das dioceses e paróquias. Fosse pela negligência dos prelados em atender as demandas papais ou pela pouca cultura que os homens do clero dispunham,65 os letrados e prelados do reino buscaram instruir e corrigir essa falha. No ano de 1316, provavelmente em Salamanca, Martín Pérez (?-?) - comumente considerado, apesar das poucas informações, um clérigo secular e professor de direito - 66 dava por finalizado seu tratado voltado aos confessores, Libro de las confesiones, no qual instruía em língua vulgar os sacerdotes e parte dos fiéis letrados. No prólogo de seu escrito, Pérez afirma ter o objetivo de atingir “os clérigos minguados de ciência”67 que não possuíam conhecimento de teologia ou latim para compreender as obras de doutrina que eram comuns nas igrejas e escolas capitulares. Rogando ao rude leitor que não desperdiçasse essa “pouca esmola tirada das letras em língua comum”, Pérez demonstra preocupação com a formação dos homens que assumiam os ofícios sagrados sem conhecê-los. Assim, após demonstrar o baixo nível de instrução de alguns eclesiásticos, Pérez diferenciou aqueles “farto[s] de ciência” dos clérigos que esperavam as migalhas do saber e eram “famintos dela”, alertando que estes últimos, por terem saído mal instruídos das escolas que frequentaram não “colher[am] as espigas das escrituras” e não puderam fazer delas “grãos do trigo limpo, sem as palhas e sem as arestas da disputatio”. 68 A começar por essa primeira obra escrita em vernáculo para os clérigos pouco instruídos, outros escritos trazem críticas e ordenamentos a fim de corrigir as condutas dos 65 PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. In: Lusitânia Sacra, 1978, p.38 66 Os editores do tratado de confissão de Martín Pérez - Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez - mapeiam algumas características deste autor. Por não deixar por escrito seu cargo ou oficio, Martín Pérez poderia ter sido um clérigo secular, de universidade ou autoditada que buscou contribuir com a formação clerical, porém, as referências ao mártir de Cantuária, Thomas Becket (1118-1170), indicam de qualquer forma a ligação de Pérez com alguma igreja salamantina que tinha como referência esse mártir. Também as citações ao “direito novo”, ordenações promulgadas por Clemente V em 1312, e o pedido ao confessor que relembrasse ao penitente a quanto tempo Jesus encarnou, fazendo a menção ao ano de “1316”, ajudaram aos editores afirmar o período de publicação da obra. PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Espanola. Edição e notas de GARCÍA Y GARCÍA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.IX-XIII 67 “Comiençase el pobre Libro de las confesiones, dicho asi porque es fecho e cunplido para los clérigos menguados de sçiençia” Ibid. p. 3 68 “Por ende, ruego a ti, leedor, que si fallares en ti sçiençia e letradura, que non muerdas nin despreçies esta poca limosna, sacada de las letras, en lengua comunal, non para ti, farto de sçiençia, mas para los fanbrientos delia, por que aquellos que non salieron al restrojo de laescuela a coger las espigas de la escriptura, que puedan, si al que non, aver en sus casas los granos dei trigo linpio, sin las pajas e sin las aristas de la disputaçion.” Ibid., p. 3 -4 25 eclesiásticos castelhanos. O concílio de Valladolid (1322), presidido por Guilherme Pérez Godín (1260-1336), cardeal representante do papado e bispo de Sabina, para além de regular os ofícios sacramentais no reino e delimitar diversas regras para a vida clerical, denunciava que os sacerdotes não conheciam as orações nem a doutrina basilar que todo cristão deveria saber e falhavam mais ainda em transmitir esse saber aos fiéis.69 Para diminuir os efeitos de tamanha ignorância, os prelados presentes em Valladolid, em 1322, estabeleceram que os párocos, vigários e os diversos membros do cabido eclesiástico mantivessem em exposição nas igrejas paroquiais documentos que os clérigos lessem e se informassem das normas e que permitissem a instrução dos paroquianos a respeito dos artigos de fé, dos sacramentos da Igreja, dos vícios a serem evitados e das virtudes que deveriam buscar.70 A recomendação de manter à altura dos olhos os principais saberes que todo cristão deveria dispor acabou sendo retomado durante os principais concílios e reuniões castelhanos do século XIV - em que se destacam os concílios de Toledo (1324 e 1342) e de Palência (1388).71 Na obra Sacramental, redigida em 1423, voltada para todos do clero - em especial para os confessores - , Clemente Sánchez adverte seu leitor de que os ensinamento registrados nas mais de quatrocentas páginas de seu tratado estavam voltadas aos sacerdotes que, em razão de permanecerem no pecado da ignorância, mostravam-se de grande rudeza e não sabiam ensinar na fé, na crença e em nenhuma outra matéria de salvação do cristão. Mais que isso, os eclesiásticos não sabiam ler ou entender as matérias que iriam tratar,72 por isso alerta sobre o mau preparo daqueles responsáveis por guiar os fiéis ao conhecimento do que era devido a respeito de seu credo. Da mesma maneira, no seu livro apólogos, o Libro de los exemplos por A.B.C., compilado no início do século XV, o arcediago de Valderas diz ao conêgo de Sigüenza, Joán Alfonso de la Barbolla - a quem trata como "muito amado filho" - ,73 que a obra em língua vulgar facilitaria o ensino e a pregação dos clérigos, tão mal preparados e ignorantes.74 Ideia reafirmada por Alfonso de Madrigal, ao aditar, no seu tratado, que "muitos, por ignorância, não 69 RUCQUOI, Adeline. El Cardenal legado Gillaume Peyre de Godin. Revista espanola de derecho canónico, v. 47, n. 129, , 1990., p. 495 70 TEJADA, Juan. Colección de cánones de la iglesia espanola. Madrid: Imp. de Jose Maria Alonso 1850; ANTONIO GONZALEZ, Francisco. Constitucionesy concilios de la Iglesia de Toledo. 1701 e 1800, p.85r-121v 71 VIZUZETE MENDOZA, J. Carlos. El Concilio de Palencia de 1388. In: Actas del I congreso de Historia de Palencia. Palencia: Disputacion Provincial de Palencia, T.II, 1987. 72 SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Biblioteca Nacional de Espana: Sevilha, 1475. p.9 f.1-2 73 " Muy amado fijo, Jóan Alfonso de la Barbolla, canónigo de Çiguença [...]". SANCHEZ, Clemente. Libro de los exemplos por A.B.C. Andrea Baldissera (ed.). Pisa: Edizioni ETS, 2005. p.57 74 Ibid. http://bdh.bne.es/bnesearch/biblioteca/Concilio%20de%20Valladolid%20(1322);jsessionid=770E0654ACC06AFF629143EC9C9384E6 http://bdh.bne.es/bnesearch/biblioteca/Concilio%20de%20Valladolid%20(1322);jsessionid=770E0654ACC06AFF629143EC9C9384E6 26 sabendo confessar, erram neste sacramento", por isso, traça, por escrito, avisos e recomendações sobre a forma de aplicar a confissão.75 A falha no ensino da doutrina era observada, pelos prelados mais letrados, teólogos ou mestres de saber, nos homens que ingressavam na vida clerical e que, desde as primeiras escolas paroquiais ou nos aprimoramentos do ensino catedralício, eram responsáveis pela educação e julgamento dos fiéis. Dessa maneira, o letramento dos clérigos castelhanos e o bom aprendizado da doutrina são descritos como ferramentas fundamentais para que os desvios de conduta desses homens fossem corrigidos. Com o intuito, portanto, de regrar sobre a educação dos homens, as dignidades eclesiásticas se reuniram por diversas vezes no reino. A arquidiocese de Toledo, que compreendia as províncias de Cuenca, Segóvia e, em alguns momentos, Ávila - considerado o centro administrativo e religioso de toda as Espanhas, graças à concessão do papa Bonifácio II (530-532), reafirmada pelo papa Urbano II (1088-1099) - ,76 foi palco para a elaboração das constituições e dos livros sinodais desses prelados. Um dos principais assuntos tratados nessas reuniões era como nem leigos nem clérigos sabiam ou entendiam o que era a doutrina da Igreja. Cabia, portanto, aos homens ordenados ou seculares, de igrejas menores ou de grandes e reconhecidos monastérios e conventos, definir o que era doutrina e instruir todos os homens e mulheres do reino.77 Ao se dirigir ao clérigo simples, que poderia ser aquele de ordens menores ou os iletrados, as dignidades de Segóvia e Ávila buscaram definir o que era doutrina e quais eram suas matérias. D. Pedro de Cuéllar (1324-1350), bispo de Segóvia, retomando em 1325 as prescrições promulgadas nos concílios de Valladolid (1322) e de Toledo (1323), afirma escrever e colocar no caderno sinodal “algumas coisas em romance”, bem como descrições a respeito dos artigos, dos mandamentos e dos sacramentos, todas essas matérias sagradas que compunham a doutrina da Igreja. Com o intuito de delimitar mais o conteúdo do aprendizado e explicar a esses homens que não “entendiam o que diziam nem sabiam o que era”, D. Pedro propõe explicar o que é mandamento aos membros das paróquias.78 O bispo de Segóvia, 75 “E porq muchos por ignorãcia no se sabiendo cõfessar yerran eneste sacramento" MADRIGAL, Alonso de. Confesional del tostado. Barcelona: Biblioteca de Cataluna, 1498. p. AII 76 LOP OTIN, Maria José. Organización eclesiástica en Tierra de Segovia. Los sexmos dependientes del arzobispado de Toledo hacia 1500, in: La Comunidad de la Ciudady Tierra de Segovia: diez siglos de existencia. Segovia, Real Academia de Historia y Arte de San Quirce, 2013, 51-52 77 Idem. Las catedrales y los cabildos catedralicios de la Corona de Castilla durante la Edad Media. Um balance historiográfico. In: En la Espana Medieval, 26 (2003), p. 373 78 “Onde, porque vemos grand sinplicidat en la mayor parte de los clerigos de nuestro obispado que non entienden, asi commo deven, los articulos de la fe, nin los sacramentos, nin los mandamientos, ante, trayendolo por los labros cada dia, non entienden que dizen nin saben que es, e, segund el Sabio, leer e non entender, es despreciar ', por ende fue nuestra voluntad de poner en este quademo algunas cosas de romance[...]”CUÉLLAR, Pedro. Libro 27 retomando as reflexões de S. Agostinho, afirma que mandamento é a regra que, se não for obedecida, leva ao pecado.79 Assim, o decálogo (dez mandamentos) e outras regras faziam parte de um conjunto de sinais e coisas, sem os quais não era possível compreender a verdade divina, devendo a doutrina reduzir-se ao ensino desses saberes que almejavam a correta interpretação do mundo.80 Em 1384, também tomando como base S. Agostinho, D. Diego de los Roeles (?- 1394), em Bonilla na diocese de Ávila, reafirmou o que disse D. Pedro de Cuéllar, acrescentando que doutrina é a suma de toda a disciplina cristã e se manifestaria “na fé e nos costumes”. Para alcançá-la e conquistar a “saúde perdurável”, os homens deveriam ser “informado[s] dos artigos e dos costumes”. De toda forma, D. Diego entendia que a fé era conservada pela “crença dos artigos e dos sacramentos da santa Igreja”, e os costumes são mantidos ao “guardar-se os mandamentos, aperfeiçoar-se nas virtudes e afastar-se dos pecados”. Essa doutrina básica deveria ser aprendida por todos cristãos, clérigos ou leigos.81 Composta de fé e costumes, a doutrina era o conjunto de regras que ligavam as condutas humanas às virtudes divinas. Ainda que D. Pedro e D. Diego deixassem claro para os presentes nas reuniões o que eram essas matérias, grande parte do clero, que viviam em paróquias afastadas ou rurais, não recebia essas informações proveitosas para seus ofícios. Portanto, expandir esses saberes foi algo legado aos homens do século XV. Aproximadamente 150 anos após D. Pedro, o bispo da mesma região, D. Juan Árias Dávila (1461-1497), exigiu com mais rigor que essas lições estivessem à disposição de todos os que frequentavam as igrejas ou tinham ali ofícios. O bispo expressa, sem especificar nominalmente, que seus precursores quiseram e desejaram que os fiéis fossem instruídos e informados, pelos reitores ou capelães, nos “artigos da [...] santa fé e nos dez mandamentos e outras coisas a eles pertencentes” .82 Dessa maneira, na Segóvia de 1472, na igreja catedral de Santa Maria (Sannora Santa Maria) em Aguilafuente, D. Árias Dávila, com a finalidade de fazer valer as obrigações dos membros da Sinodal. In: SYNODICON Hispanum. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6. p.262 79 Ibid. p.265 80 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002, p.41-45 81 “Segund dize sant Agostin, la suma de toda la disciplina christiana esta en fe et en costunbres, et por ende conviene al que quiere ganar la salud perdurable, que sea enformado de la fe et de las costunbres. La fe se contiene en la crencia de los articulos et de los sacramentos de santa Eglesia. Las costunbres, en guardar los mandamientos et en ganar las virtudes et en arredrarse de los pecados”. ROELES, Diego de los. Livro Sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6, p.13 82 “[...] el capellan mayor e cura de la dicha nuestra iglesia e los otros curas e rectores de las otras iglesias perrochiales del dicho nuestro obispado e sus capellanes e lugares tementes declarasen a sus pueblos los artículos de la dicha nuestra santa fe e los diez mandamientos, e otras cosas a ello pertenesçientes”. ÁRIAS DÁVILA, Juan. Livro sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6, p.437 28 cúria, promulgava o sínodo que visava regular o ensino nas igrejas da diocese. O bispo aponta a “negligência dos ditos curas, reitores e capelães” no exercício de suas funções pastorais, bem como adverte que, por “ignorância das ditas constituições [...], não se tem feito nem cumprido” o que manda a Igreja e seus doutores. 83 Por mais que as matérias de doutrina fossem comuns a todos os cristãos, era dos leitores, cantores, porteiros - ordens menores dentro da hierarquia clerical - , subdiáconos, diáconos, vigários, reitores e curas, que os prelados esperavam e exigiam esses conhecimentos. As recomendações à educação, que por vezes se tornavam ordens e leis, acentuavam a necessidade de dedicação às letras com mais afinco por parte dos clérigos regulares, fosse nos estudos em universidades ou nas escolas catedralícias já presentes no reino.84 Com o propósito de que aprendessem os fundamentos da fé, os santos sacramentos, as regras de conduta virtuosa, as artes liberais e a ler e a escrever,85 os prelados incluíam nessas recomendações convites aos mestres de letras - com garantia de pagamentos - para ensinarem nas vilas, bispados e nas universidades.86 A expectativa do alto clero era de que seus prelados e sacerdotes fossem melhor instruídos e conhecedores não somente das letras e do latim, mas da teologia e das normas que circundam os ritos dos quais eram responsáveis; daí, de uma forma geral, teram sido comuns as críticas aos clérigos dos séculos XIV e XV quanto à sua educação e conduta. 83 “Lo qual, por negligencia de los dichos curas e rectores e capellanes [...] o por ygnorançia de las dichas constituiçiones [...]”. Ibid. p.437-438 84 É digno de nota o intento dos reis castelhanos, leoneses e aragoneses em firmar a educação e o estudo em seus territórios. Afonso X (1252-1284) destaca, em Las partidas, que o estudo é um “ajuntamento de mestres e de escolares que é feito em algum lugar com vontade e com entendimento de aprender os saberes” ou “estudo particular, que quer tanto dizer como e quando algum mestre instrui em alguma vila separadamente para poucos escolares, e como este pode mandar fazer prelado ou conselho de algum lugar”. Também no tratado legislativo são definidas quais as matérias do saber, sendo elas: “as artes, assim como a gramática, a lógica, a retórica, a aritmética, a geometria, a música e a astronomia”. Retomado por seus sucessores e monarcas de reinos vizinhos, o escrito de Afonso X ajudou não só nas relações entre coroa e papado, mas também no fomento laico dos saberes universitários. Ver: FERNANDEZ CONDE, Javier; OLIVER, Antonio. Cultura y pensamento religioso em la baja Edad Media. In: GARCÍA VILLOSLADA, Ricardo et al. Historia de la Iglesia en Espana. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1979, v.2. p. 184-218; LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio, Madrid: Real Academia de la Historia, 1807, v. 2. p.340 85 O concílio lateranense de 1179 havia imposto àquele que se interessasse pela vida sacerdotal e que participasse de escolas catedráticas ou paróquias para melhor conhecer as artes e o ofício clerical. PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. Lusitânia Sacra, 1978. p. 37-40 86 Adeline Rucquoi recorre aos arquivos de diversas vilas para apontar o pagamento a mestres de gramática por alguns clérigos menores e bispos. Na vila de Burgos, em 1403, contrata-se um lecteur de Leges. Em Sevilha, nos primeiros anos do século XV, há notícia um mestre de gramática, na catedral, para se ensinar os habitantes. Do mesmo modo, há notícias em Segóvia em 1424; no bispado de Palência no mesmo período, diversos bacharéis ficavam por um ano; e em Sevilha, dessa vez em 1498, tem-se a presença de um doutor de italiano. Assim também Salamanca e Leon. Ver: RUCQUOI, Adeline. La formation culturelle du clergé en Castille à la fin du Moyen Âge. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public, v. 22, n. 1, p. 249-262, 1991. p.253-254 29 Entre as principais atividades clericais, a que mais demandava conhecimento e erudição era o atendimento das confissões. Este oficio sacramental, porque demandava do leigo que soubesse minimamente as regras para a virtude, mais exigia do sacerdote profundo conhecimento da doutrina, pois a correção e parte do ensino viria desse momento. Recomendava-se ao prelado, por exemplo, que, logo no começo da confissão, se empenhasse em conhecer o universo do pecador para garantir o conforto e a confidência que o rito exigia, encorajando o confesso a fazer uma completa e honesta revisão dos seus atos e pensamentos e a falar abertamente sobre seu interior, confessando todos os defeitos. Cabia-lhe relembrar ao penitente que Deus já conhecia os pecados e por isso necessitava do perdão por um juiz por meio da sua fala verdadeira.87 Esperava-se que o confessor fizesse recordar os pecados passados daquele que ali se prostrava e, se fosse a primeira vez frente a este pecador, questionar sobre as confissões anteriores, as penitências feitas ou deixadas de fazer e os pecados que da última vez foram ocultados ou contados.88 Era desse modo que podia conhecer todo o histórico de delitos do seu novo confesso e conduzi-lo para o perdão e a retidão. Mesmo com a insistência nos diversos escritos eclesiásticos quanto ao aprimoramento dos clérigos, a ignorância não deixava de marcar sua presença. Dentre as tentativas para medir o grau de erudição desses homens e evitar que os clérigos minguados constrangessem os fiéis nos momentos dos ritos, os prelados e tratadistas acabaram por recomendar aos confessos que se afastassem dos sacerdotes que aparentassem desconhecimento ou ignorância. Tal preocupação com a má influência dos confessores ineptos, visível nos séculos XIV e XV, mostra-se com mais força ainda, nos séculos XVI e XVII, quando a prática da leitura se torna mais corrente e surgem várias ordenações para vetar a atuação de homens da igreja que não soubessem a doutrina e outras regras básicas. Entre as diversas instruções ao penitente para evitar o clérigo incapaz, estava que observasse se este entendia a sua língua, se mostrava falta de atenção, se caia no sono durante o rito, se formulava questões irrelevantes ou se o cura de almas era jovem demais. Caso fossem constatadas tais falhas, deveria repetir a confissão uma outra vez e procurar outro clérigo mais instruído.89 Qualquer dúvida quanto ao conhecimento ou à postura pouco exemplar do 87 TENTLER, Thomas N. Sin and Confession on the Eve o f the reformation. New Jersey: Princeton, 1977. p. 85 88 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografia de la sociedad Medieval Espanola. Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.13 89 Thomas Tentler entende que o rito sacramental da penitência faz parte de um sistema de controle. Ou seja, liga a disciplina exigida dos clérigos, que estavam em constante contato com o público de fiéis, com um sistema de culpa e responsabilidade que não se resolveria somente com as ordens das autoridades clericais, mas com a instrução de uma consciência individual. Para interrogar esse sistema de disciplina, questiona "O quanto ignorante um prelado poderia ser e manter válida a administração desse sacramento? Ou sob que circunstâncias deve ser 30 confessor justificava, portanto, a recusa do clérigo por parte do penitente, pois só assim todo o sacramento da penitência, incluindo a absolvição do fiel, não estaria ameaçado.90 Ou seja, não somente os cânones punham os sacerdotes como modelo, mas a própria comunidade esperava desse clérigo uma conduta e conhecimento dos quais pudesse tirar exemplo para alcançar a salvação. Como os prelados e letrados do reino confiaram também aos leigos a espreita da conduta do sacerdote, veicularam instruções também àqueles. Assim, a esses leigos era ensinado um pouco de retórica e outras artes a fim de aprimorarem o conhecimento das virtudes, das regras, e terem instrumentos para avaliar seus eventuais guias.91 Em 1480, D. Afonso Carrillo de Acuna (1446-1482), arcebispo de Toledo, primaz das Espanhas e chanceler maior de Castela, proclamou o sínodo da região para encaminhar aos clérigos as maneiras de se portarem. 92 Na mesma altura, exaltava não somente a educação dos clérigos, mas principalmente a difusão da doutrina a todos os estados nas paróquias e catedrais.93 D. Carrillo expressa que a doutrina, aquela da qual deriva toda a interpretação do mundo e acerca da qual a ignorância é um grande perigo,94 “é [tão] natural que o começo de cada coisa é dela uma importantíssima parte, e [se dessa] alguém desfalece, nenhum bem pode ser edificado”. E acrescenta que “a santa fé católica é cimento e fundamento principal da nossa salvação, sem a qual nenhum pode ser salvo”.95 Foi principalmente com este arcebispo que o ensino de fiéis ganhou o âmbito das catedrais e admitido que a incompetência de um sacerdote é tão explícita e debilitante que ninguém precisa se desculpar por procurar outro lugar para o perdão dos pecados?" Ver: TENTLER, Thomas N. Sin and Confession on the Eve o f the reformation. New Jersey: Princeton, 1977. p.125-26 90 Ibid. p.125 91 GUIJARRO GONZÁLEZ, Susana. Maestros, escuelas y libros. El universo cultural de las catedrales en la Castilla medieval. Universidad Carlos III de Madrid. Instituto Antonio de Nebrija de Estudios sobre la Universidad, 2004, p.51-54 92 “Don Alfonso Carrillo, por la divina miseracion arçobisp de Toledo, primado de las Espanas, chanceller mayor de Castilla [...]” CARRILLO, Don Alfonso. Livro sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v.10, p.631 93 RUCQUOI, Adeline. El Cardenal legado Gillaume Peyre de Godin. Revista espanola de derecho canónico, v. 47, n. 129, , 1990.; PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. In: Lusitânia Sacra, 1978. 94 “Porque todo el bien de nuestra religión christiana consiste en el fundamento de nuestra santa fe, sin la qual ninguna cosa firme ni placedera a Dios se puede hacer, e es la fe precipuo fundamento in Christo, nuestro Senor e Redentor, acerca de la qual tanto es mas peligrosa la ignorancia, quanto la fe es necesaria para nuestra salvación. Por ende, considerando que los antiguos padres en la ley de escriptura e de gracia con la fe vencieron el mundo e alcançaron la gloria eterna”. CARRILLO, Don Alfonso. Op. cit., p.632-633 95“Dotrina es natural que el prinçipio de cada una cosa es la potísima parte della, e donde aquel desfallece, ningunt bien puede ser hedificado. E porque la nuestra santa fe católica es çimiento e fundamento pinçipal de nuestra salvaçion, sin la qual ninguno puede ser salvo, por santas e meritorias obras que en este mundo faga, es cosa muy coveniente que en esta parte potísima fagamos nuestro comienço.”. ÁRIAS DÁVILA, Juan. Livro sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6, p.437 31 paróquias e foi manifesto por meio das tábuas morais contendo os fundamentos da fé, dos costumes e dos mandamentos,96 como será examinado mais detidamente a seguir. Discípulos a serem instruídos Ainda que denúncias ao pouco conhecimento da doutrina e recomendações à instrução tenham sido feitas entre os séculos XIII e XIV, é durante o século XV que medidas mais concretas foram tomadas para que a doutrina fosse melhor difundida no reino. Em terras castelhanas do Quatrocentos, era ainda comum que o letramento e a erudição, mesmo com as universidades já consolidadas, se dessem sobretudo por meio de contratos com mestres e tutores ou, ainda mais comumente, nas paróquias e catedrais. No caso dos contratos com os mestres, estes visavam garantir aos jovens ou mancebos aprender a ler, escrever e algum ofício e, em contrapartida, ofereciam ao mestre a possibilidade de ensinar a mais alunos.97 Por tais contratos, que acabavam sendo usuais, o aluno deveria ir, uma ou mais vezes ao dia, até a casa ou propriedade de algum letrado - em muitos casos escrivães ou clérigos - para tomar as lições. Nos anos finais do século XV, os documentos trazem notícias de alunos morando nas casas de seus mestres mediante um contrato que lhe garantia alimentação, vestimentas, abrigo, cama e aulas de leitura e escrita. Como compensação, o aluno deveria servir e trabalhar na casa do mestre, clérigo ou outra pessoa que lhe oferecesse tal serviço.98 Mas eram as paróquias e catedrais os lugares onde mais frequentemente se tomavam lições de escrita e leitura e se aprendiam regras de conduta.99 Na diocese de Segóvia, quando a região se encontrava, em 1472, sob tutela do bispo D. Juan Árias Dávila, observam-se incentivos para que os fiéis frequentassem esses locais e fossem instruídos de forma correta. Prescreveu que, entre o “primeiro domingo da Septuagésima” 100 e a “dominica in Passione,101 96 CARRILLO, Don Alfonso. Livro sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v. 10, p.635 97 Nos estudos de José Sanchez Herrero, há a ideia de que esses mestres possuíam locais próprios para ensinar a esses homens que desejavam aprender. Ver: SÁNCHEZ HERRERO, José; PÉREZ GONZÁLEZ, Silvia María. Aprender a leer ya escribir: Libros y libreros en la Sevilla del último cuarto del siglo XV in: Edad Media: revista de historia, ISSN 1138-9621, N° 1, 1998, p.49-50 98 Ibid. p.50 99 Jacques Verger acentua que tanto a Igreja como alguns nobres e monarcas incentivaram a propagação de lugares para estudos, fosse privados ou coletivos. Apesar de compartilharmos da ideia da emergência de locais de saber a partir do século XII, não unificaremos todos esses espaços dentro do conceito de “escola”, como faz Verger, no intuito de focarmos somente a educação dentro das igrejas paroquiais ou catedrais, que por sua vez eram diferentes das universidades, das casas de tutores, dos tutores particulares, entre outros. Ver: VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p.69 100 O sétimo domingo que antecede a quaresma. 101 No calendario liturgico, essa data marca a o domingo e ramos, em que Jesus entraria em Jerusalém. 32 [...] depois do ofertório na missa”102 - como ocorria em outras dioceses - que o cura, o capelão e os reitores do bispado “declarem e explanem por si ou por outro, em cada ano, a seus povos [...], em romance, alta e inteligível voz, os ditos artigos de nossa santa fé e os dez mandamentos, os sete sacramentos e as sete obras de misericórdia” .103 Alguns anos depois, em 1481, o bispo de Ávila D. Alonso de Fonseca,104 ao promulgar o sínodo, defende a obrigatoriedade da presença de tábuas nas paróquias para ensinar os fiéis algo sobre doutrina, bem como para auxiliar aos clérigos a conduzir os ritos do modo correto. Na cidade de Ávila, da mesma forma que Arias Dávila, é recomendado a todos os párocos e vigários que “pusessem nas igrejas tábuas contendo os sete artigos de fé, os dez mandamentos, [os]sete sacramentos, [as]obras de misericórdia, etc.” .105 Muitas vezes, entretanto, de pouco valiam essas tábuas aos fiéis leigos que frequentavam as igrejas, pois não sabiam ler e educar-se por conta própria. Por isso, outros prelados propuseram que os paroquianos deveriam escutá-los da boca dos clérigos que ministravam a missa e exerciam os ofícios nas igrejas - tal como D. Árias Dávila sugerira. D. Alonso de Burgos (1415-1499), por exemplo, durante seu governo da diocese de Cuenca e quando teve aos seus cuidados a reunião na cidade de Pareja em 1484, deliberou o aumento das vezes em que seriam lidas as tábuas aos fiéis, estatuindo que, nas igrejas da diocese de Cuenca, se cantasse “a cada noite a Salve Rainha e, depois de cantada e antes que se [tivesse] a Ave Maria, o sacristão da igreja, em alta e inteligível voz, distinta e pausadamente [lesse] todas as coisas contidas na tábua moral [...]” .106 102 “que desde el primero domingo de la Septuagesima fasta la dominica in Passione exclusive, en cada domingo dellos, después del ofertorio a la misa”. ÁRIAS DÁVILA, Juan. Livro sinodal. in: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6, p. 437-438 103 “declaren e explanen, por si o por otro, en cada un anno, a sus pueblos e feligreses e perrochianos, em romançe e a alta e yntelegible boz, los dichos artículos de la dicha nuestra santa fe e los diez mandamientos e los siete sacramentos e las siete obras de misericordia.”. Ibid. 437-438 104 Foi bispo de Ávila em 1469, de Cuenca em 1485 e veio a ser de Burgo de Osma em 1493. Os editores que compilaram os sínodos e constituições sinodais alertam para que não se confunda este Alfonso de Fonseca com outro prelado homônimo, mas que ocupou os arcebispados de Salamanca e Toledo. FONSECA, Alfonso de. Libro de las constituciones synodales del obispado de Avila, que agora há mandado imprimir, com algunas declaraciones, el illustrissimo y reverendissio senor don Diego de Alva, obispo de Avila y presidente de la Corte y Chancilleria de Granada, del consejo de su Magestad. En Salamanca, por andreas de Portonaris, impresor de la Magestad Real in: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, v. 6, p.39 105 “Que se pongan tablas em las yglesias, que contengan los siete artículos de la fe y los diez mandamientos y siete sacramentos y obras de misericordia, etc. Y quien y quando y como y en que lugar los declaren a los pueblos.” Ibid. p.57 106 “Primeramente, estableçemos e ordenamos que en cada una de las yglesias de nuestro obispado se cante cada noche la Salve Regina, i, después de cantada y antes que se tanga el Ave Maria, el sacristan de la yglesia, en alta boz e intelegible, distinta e pausadamente lea todas las cosas contenidas en la tabla moral [...]”. BURGOS, Alonso de. Livro sinodal. In: SYNODICON HISPANUM. Edição e notas de GARCIA Y GARCIA, António; ROSA PEREIRA, Isaías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2011, v.10, p.363 33 Esta última forma de tomar lições, diferentemente dos contratos, abrangia uma educação a todo cristão independentemente da idade. Porém, ainda que os contratos com os mestres de saber e o ensino pela leitura das tábuas tenham tomado mais fôlego na segunda metade do século XV, em anos anteriores os prelados demonstraram a preocupação em preparar os fiéis desde cedo. Também no reino vizinho de Castela, nos últimos anos do século XIII, o franciscano e arcebispo de Braga, D. Telo (1279-1291),107 buscou afirmar a necessidade de escolas paroquiais para a formação dos jovens fiéis das igrejas de Portugal e para a instrução daqueles que desejavam professar os votos ou se iniciar em alguma ordem. O frei, ao tratar da maneira de ensinar, observa que as mais tenras idades eram mais propícia para que se pudesse aprender a doutrina e as artes, visto que, depois dos trinta anos, já não se poderia tirar muito proveito dessas instruções.108 Nas dioceses e arcebispados castelhanos, alguns séculos depois, não são comuns debates sobre um tempo determinado para dar início à formação religiosa, regular ou secular, entretanto, perceb