MANOEL MESSIAS ALVES DE OLIVEIRA “RIO DE JANEIRO QUE EU SEMPRE HEI DE AMAR”: memória e visibilidade nas narrativas lítero-musicais e biográficas de Ruy Castro ASSIS 2023 MANOEL MESSIAS ALVES DE OLIVEIRA “RIO DE JANEIRO QUE EU SEMPRE HEI DE AMAR”: memória e visibilidade nas narrativas lítero-musicais e biográficas de Ruy Castro Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva. Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. ASSIS 2023 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 Oliveira, Manoel Messias Alves de O48r "Rio de Janeiro que eu sempre hei de amar": memória e visibilidade nas narrativas lítero-musicais e biográficas de Ruy Castro / Manoel Messias Alves de Oliveira. — Assis, 2023 188 f. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva 1. Memória. 2. Música popular brasileira. 3. Biografia. 4. Castro, Ruy, 1948-. I. Título. CDD 927 Ao meu querido pai, Adelson César (in memoriam), que me presenteou com um lindo violão, e ao meu orientador, Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva, o qual se sensibilizou com a minha vivência. AGRADECIMENTOS Concluo esta Dissertação ciente da sinfonia e polifonia de vozes que, de alguma forma, contribuíram para a concretização desta pesquisa. Tenho certeza de que a rede de apoio e de amizade a quem eu deveria registrar o apreço e a gratidão poderia ser muito mais extensa e detalhada do que a que segue, mas acredito que, na maneira como escrevo, de algum modo, ela incorpora a todos. Assim, meu muito obrigado: - Ao Professor Dr. Wilton Carlos Lima da Silva, meu orientador, pela dedicação e solicitude, pela relação construída, ao longo desses anos, que me fizeram refletir sobre o ofício do historiador e compreender o que é o processo de pesquisa e a Universidade, assim como pela sensibilidade com que tratou as dificuldades pessoais que enfrentei, durante esses anos de atividades; - Aos Professores Doutores Ricardo Santhiago e Tânia da Costa Garcia, pela leitura atenta e por suas generosas sugestões à pesquisa, durante e após o Exame de Qualificação; - À Professora Doutora Lúcia Helena Oliveira Silva, por suas generosas sugestões e apontamentos enquanto integrante titular da Comissão Examinadora da Defesa de Dissertação, junto aos Professores Doutores Ricardo Santhiago e Wilton Carlos Lima da Silva; - Aos professores do Departamento de História da Unesp, Câmpus de Assis e Franca, pela contribuição à minha formação e ao desenvolvimento da pesquisa, e aos demais funcionários, os quais nos orientam e colaboram para o devido funcionamento da Universidade; - Ao MEMENTO (Grupo de Pesquisa do Espaço Biográfico e História da Historiografia), por nossas reuniões, debates e comunicações, que certamente contribuíram para a minha formação; - À Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, que, desde o meu ingresso na graduação, me ofereceu condições para a minha formação profissional, inclusive através da Permanência Estudantil; - À minha mãe, Maria Gorete Alves de Oliveira, aos meus irmãos, César Alves de Oliveira e Wellington Alves de Oliveira, e aos demais integrantes da família Alves, Oliveira, Gonçalves e Gomes, pelo apoio e carinho familiar de sempre; - Ao meu pai, Adelson César de Oliveira, o qual, além do apoio e carinho, certamente foi uma das pessoas que mais me impulsionou e incentivou para a Carreira Acadêmica e para o estudo do Violão Clássico e Popular; - À minha companheira, Maria Carolina Gonçalves Luiz, pela paciência, compreensão, incentivo e apoio; - Aos meus amigos e colegas de Assis, Cândido Mota e São Paulo, por acreditarem que esta pesquisa seria possível e terem me apoiado para concretizá-la. Por fim, devo destacar a importância da Universidade Pública e do financiamento de pesquisas, no Brasil e no exterior, cabendo a mim o agradecimento pelos recursos para o desenvolvimento deste estudo. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. . OLIVEIRA, Manoel Messias Alves de. “Rio de Janeiro que eu sempre hei de amar”: memória e visibilidade nas narrativas lítero-musicais e biográficas de Ruy Castro. 2023. 188 f. Dissertação (Mestrado em História). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2023. RESUMO Esta pesquisa tem o objetivo de analisar aspectos da obra biográfica e dos livros de época de Ruy Castro. Para isso, propusemos um estudo a partir das narrativas Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova (1990), Carmen: uma biografia (2005) e A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção (2015), editadas pela Companhia das Letras, por comporem os gêneros musicais bossa nova, samba e samba-canção, respectivamente, a fim de analisá-los enquanto produções de memória da música popular brasileira, entre 1930 e 1960. O trabalho de Ruy Castro teve um grande impacto na cultura brasileira, produzindo ou não visibilidade sobre diversos gêneros musicais e personagens que ocuparam a Zona Sul do Rio de Janeiro. O estudo da sua obra é uma oportunidade de discutir a escrita da história, a consolidação do gênero biográfico e como o autor monumentaliza, através da sua interpretação dos espaços, uma história da música popular ou como a sua própria obra foi monumentalizada, o que justifica se analisar o contexto de produção narrativa de seus livros. Assim, interessa saber como a memória é construída ao longo do tempo e dentro dos diversos grupos, seja por meio da notoriedade, seja do esquecimento. Palavras-Chave: Biografia. Memória. Música Popular Brasileira. Ruy Castro. OLIVEIRA, Manoel Messias Alves de. "Rio de Janeiro that I shall always love": memory and visibility in the literary-musical and biographical narratives of Ruy Castro. 2023. 188 f. Dissertation (Masters in History). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2023. ABSTRACT This research aims to analyze aspects of Ruy Castro's biographical work and historical books. For this, we propose a study from the narratives Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova (1990), Carmen: uma biografia (2005) and A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção (2015), edited by Companhia das Letras, for composing the musical genres bossa nova, samba and samba-canção, respectively, in order to analyze them as memory productions of Brazilian popular music between 1930 and 1960. The work of Ruy Castro had a great impact on Brazilian culture, producing or not visibility on several musical genres and characters that occupied the South Zone of Rio de Janeiro. The study of his work is an opportunity to discuss the writing of history, the consolidation of the biographical genre and how the author monumentalizes, through his interpretation of spaces, a history of popular music or how his own work was monumentalized, which justifies us to analyze the context of narrative production of his books. Thus, we are interested in knowing how memory is built over time and within the various groups, whether through notoriety or forgetfulness. Keywords: Biography. Memory. Brazilian Popular Music. Ruy Castro. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 A ESCRITA BIOGRÁFICA EM HISTORIADORES E JORNALISTAS: LIMITES, TENSÕES, POSSIBILIDADES E NOVAS PERSPECTIVAS 18 1.1 Biografia e história: tensões e renovações do gênero biográfico 18 1.1.1 O gênero biográfico na interface entre a literatura e a história 26 1.2 Verdade ou consequência: a definição de um gênero e as estratégias para driblar a censura 36 1.3 A produção biográfica em jornalistas e historiadores: teoria e método 46 1.3.1 Após o “R” de Ruy Castro, vem o “S” de Sérgio Cabral 63 2 IDENTIDADE E PERTENCIMENTO: A CRIAÇÃO BIOGRÁFICA E MEMORIALÍSTICA DE RUY CASTRO 68 2.1 Ruy Castro: Memorialista Zona Sul? 68 2.2 Entre o morro e o asfalto: uma história e as histórias do Rio de Janeiro 81 2.2.1 Memórias de Papel: a monumentalização na música popular brasileira 98 2.3 O vaivém da vivência e da lembrança: a quem pertence a história da Zona Sul? 113 3 VISIBILIDADE E CRIAÇÃO DE LUGAR: ESPAÇO E NOTORIEDADE EM RUY CASTRO 120 3.1 Não é um garoto, mas é de Copacabana: os espaços e personagens de um entusiasta 120 3.2 A monumentalização da obra de Ruy Castro 143 3.2.1 Visibilidade e Silenciamento: a trajetória de Johnny Alf e Alaíde Costa em Ruy Castro 153 3.2.2 Epitexto Público: um processo de canonização do escritor 164 CONSIDERAÇÕES FINAIS 170 FONTES 177 REFERÊNCIAS 177 10 INTRODUÇÃO Ivan Jablonka, em seu livro Quando o historiador é pai e filho (2020), procurou reconstituir a vida dos avós paternos, os quais testemunharam e foram vítimas das grandes catástrofes do século XX. Mas, ao se debruçar nessa empreitada, almejando relatar a trajetória de seus avós, na verdade, entrega um trabalho que faz parte da nossa história, ou seja, da história da humanidade, quer sejamos judeus, quer descendentes de comunistas ou até mesmo comunistas nós mesmos. Além disso, o livro ocupa um papel central em seu projeto de história, enquanto literatura do real, no qual a forma híbrida ensejaria a oportunidade de escrever algo verdadeiro sobre o passado e o presente, de tal modo a impulsionar a dimensão emotiva e cativante do texto, prerrogativas que entram em diálogo com a criação literária. O trabalho de Jablonka discute algumas questões centrais que permeiam a reflexão sobre o ofício do historiador, como a possibilidade de conciliar distanciamento acadêmico e envolvimento afetivo, rigor científico e criatividade narrativa, de sorte a indicar os desafios historiográficos que estão inseparavelmente ligados às questões de método e de escrita, como a relação de dependência que a investigação histórica possui, diante do modo de operar com a nossa filiação, emoção e parentesco. A partir desse quadro comparativo, Jablonka nos faz refletir sobre a ideia de a própria pesquisa representar um lugar afetivo que possui diversas marcas, tanto para o pesquisador e sua família quanto para o público acadêmico e a comunidade externa à universidade. Afinal, o processo de pesquisa também faz parte da nossa trajetória e, principalmente, da maneira pela qual o pesquisador se relaciona com o seu objeto, tornando a pesquisa uma consequência desse contato mútuo em que a vida e a obra se comunicam, de maneira que a última exige da primeira para ser feita. É nessa mescla entre a vida e aquilo que se cria, o que se faz da vida e, portanto, o que somos, que pretendemos reafirmar os nossos espaços, estabelecer as nossas relações, dizer quem são os referenciais lógicos e formais de nossa formação e apresentar o método de pesquisa e escrita de nossos trabalhos. Com isso, cria-se um espaço simbólico diante das estruturas sociais que integramos, a fim de 11 reafirmar o ethos1 dos grupos aos quais nos vinculamos e que acabam direcionando a nossa própria pesquisa. Por conseguinte, o ofício do historiador envolve igualmente um “eu” da emoção que está atrelado a uma sensibilidade por uma determinada área de pesquisa, a um certo espaço, e pode, ainda, envolver uma busca por respostas sobre questões com as quais o pesquisador lida, na sua relação de parentesco. Dessa forma, além de tentar afirmar um ethos que aponta a área de pesquisa, os conceitos e quem são os referenciais desse trabalho, é preciso mencionar um “eu” da emoção que indica uma direção, amadurecimento e uma transformação, por meio do contato com o nosso objeto de estudo. Para tratar desse “eu”, permito a minha inserção na narrativa, mas ciente de que esse “eu” da emoção reflete e também é refletido por um “eu” do método. Parte do direcionamento desta pesquisa é fruto das minhas reflexões iniciais sobre a trajetória e os espaços frequentados pelos meus familiares, na década de 1990, quando migraram de uma cidade chamada Arara, no interior da Paraíba, para tentarem alojamento na capital paulista, em busca de emprego. Chegaram a São Paulo majoritariamente sensíveis ao coco de roda e ao xaxado, ouvintes do forró, xote e baião e apaixonados pelo pernambucano Luiz Gonzaga. A vivência com essas manifestações culturais foi muito significativa para o meu processo formativo e, em uma relação entre pai e filho, tais expressões acenderam um interesse por instrumentos de corda, principalmente o violão. Todavia, se, por um lado, eu me envolvia com as canções de protesto, meu pai se deliciava no brega. A primeira, uma memória canônica da música popular brasileira que recebeu, inclusive, o reconhecimento como música de protesto, enquanto a segunda, marcada igualmente pela censura política e social aos seus artistas, durante a ditadura militar, mas que se reduziu a algo “brega” ou “cafona”. 2 1 O ethos mencionado nesta pesquisa se refere a um comportamento verbal e não verbal acerca daqueles que estão vinculados a um processo de interação social, nos quais estão inseridas as maneiras de se apresentar, no relato, cuja manifestação discursiva tem a finalidade de construir uma imagem de si, a ser levada ao leitor, com vistas a adquirir credibilidade para a inscrição daquilo que se desenha no jogo narrativo e que pode, ou não, ser aceito pelo público. 2 É importante realçar a semântica das palavras “brega” ou “cafona”, tendo em vista que o gênero ficou por muito tempo no limbo da história da música popular e somente agora, com as novas pesquisas, dentre as quais se encontra o trabalho de Paulo César de Araújo, entrou em processo de revitalização. Nesse sentido, brega é um termo pejorativo aplicável àquilo ou a quem não tem finura, ao passo que cafona remete a algo de mau gosto, de qualidade inferior. Logo, brega ou cafona são termos depreciativos, porém, que ganharam status de gênero musical, com seu romantismo e sua simplicidade de rimas e palavras. 12 Nesse sentido, seria adequado pensarmos em uma monumentalização ou institucionalização da memória da música popular brasileira? Quais são os gêneros e personagens que comportariam essa memória e quais são aqueles que ficaram na sombra, no limbo da história? Logo, quais os meios pelo qual a memória do morro e a memória do asfalto foram difundidas ou, então, como historiadores e jornalistas se colocaram no plano biográfico ou com as narrativas de época, acerca da história da música popular, no Brasil? Os processos formativos na graduação e na pós-graduação me proporcionaram refletir sobre os espaços que ocupamos e criar sensibilidades diante da memória e da vivência dos migrantes em busca de melhor qualidade de vida, nos mais diversos lugares do Estado de São Paulo. Desse modo, eu me deparei com memórias que receberam notoriedade, enquanto outras foram silenciadas e ficaram marginalizadas na sociedade: o morro e o asfalto, a periferia e o centro, o brega e as canções de protesto e tantos outros gêneros musicais, como o bolero, o samba- canção e o “samba-joia”3, os quais foram sistematicamente esquecidos pela historiografia da música popular brasileira. Apesar de essas trajetórias da população nordestina, na capital paulista, não serem o objeto desta investigação, a disputa de memórias é um dos principais debates sustentados neste trabalho, que pode, inclusive, resultar, em algum momento, em uma pesquisa sobre a polifonia das ruas da capital paulista. Assim, o leitor não deve esperar, neste texto, a inserção direta do “eu” da emoção, tampouco uma discussão mais ampla sobre a vivência da população migrante e nordestina, a partir da trajetória de meus familiares. Essa breve explanação sobre a minha aproximação ao meio acadêmico e às relações de parentesco pretendem apenas justificar aspirações iniciais de um aprendiz e o contexto pessoal e sensível de escrita, situando os caminhos iniciais deste trabalho. Em uma reunião de orientação com o Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva, que tinha ciência do meu apreço pela história da música popular brasileira, ele me apresentou os trabalhos do jornalista, biógrafo e escritor Ruy Castro, dentre os quais 3 Trata-se de um estilo de samba romântico cuja sonoridade difere de seu precursor, perpetuado na história como tradicional. O gênero fez muito sucesso nos anos 1970 e teve também muitos críticos e detratores, alguns dos quais o intitularam pejorativamente de samba-joia ou sambão. Contudo, contrariamente, o gênero ganhou espaço nas novas gerações. Dentre os integrantes desse estilo de samba romântico se encontram Benito di Paula, Luiz Ayrão, Gilson de Souza, Wando, Agepê e Martinho da Vila. 13 estavam crônicas, biografias e livros de época. Em uma tentativa de alinharmos o campo de pesquisa, selecionamos como fontes as narrativas lítero-musicais e biográficas4 Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (2016) [1990], Carmen: uma biografia (2005) e A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção (2015), editados pela Companhia das Letras, por comporem os gêneros bossa nova, samba e samba-canção, respectivamente, correspondendo os dois primeiros a uma memória canônica da música popular, situada entre as décadas de 1930 e 1960, enquanto o último se volta a uma possibilidade de revisão em Castro, tendo em vista que o samba-canção ficou no limbo da história ou foi cunhado em função de uma memória social do gênero, impulsionado por seus espaços e narrativas românticas. Inicialmente, pensamos que a seleção dos gêneros musicais a serem narrados por Castro pudesse ter alguma relação com a linha evolutiva da música popular brasileira5, o que colaborou para a seleção dos livros. Contudo, engavetamos essa discussão, por ter trazido muitos ruídos ao trabalho e por se afastar de uma análise aos personagens e espaços representados na narrativa. De forma parecida, ao trabalharmos com o conceito de Identidade Nacional em Ruy Castro, nós nos debruçamos apenas em tentar responder como o livro de Castro produz visibilidades ou afirma memórias canônicas ou até mesmo como a sua própria obra pode ter-se tornado referência de música popular brasileira. Por isso, os livros foram analisados enquanto produções de memórias, sem deixar de levar em conta o contexto de produção da narrativa. Assim, procuramos apresentar as experiências observadas pelo biógrafo e o seu significado de cultura 4 Apesar de Castro ter um livro intitulado Rio Bossa Nova: um roteiro lítero-musical, o conceito utilizado nesta pesquisa, acrescido da palavra “biográfica”, não se refere ao livro, mas a uma dimensão literária que as narrativas possuem, ao retratar o circuito do samba, do samba-canção e da bossa nova. Quanto a isso, podemos citar os diversos recursos expressivos, como o uso de figuras de linguagem, vocabulário, termos e expressões de época e o seu elevado potencial descritivo, o qual procura inserir o leitor nas narrativas, buscando uma produção objetivada. Assim, compreendemos que Castro produz memórias, principalmente da Zona Sul do Rio de Janeiro, de tal sorte a se assemelhar a um memorialista ou cronista; para isso, cria não somente uma biografia da Carmen Miranda, mas também produz, ou não, visibilidade sobre diversos personagens que integram, ou deixam de integrar, os seus livros de época selecionados para esta investigação. Logo, esses livros de época também possuem uma dimensão biográfica expressa pela própria história que Castro interpreta, relativamente aos gêneros musicais e seus personagens. 5 O conceito, cunhado por Caetano Veloso, em 1966, está presente na tese de Silvano Fernandes Baía (2011) e remete aos gêneros samba-bossa-MPB e, posteriormente, tropicália, os quais foram canonizados pela historiografia e por memorialistas, jornalistas, cancionistas e outros escritores como autênticos e tradicionais daquilo que se estabeleceu como música popular brasileira. 14 brasileira, tendo em vista que Castro procura reafirmar uma memória carioca, mais especificamente, por meio de uma perspectiva da Zona Sul do Rio de Janeiro. Através dessa particularidade, podemos verificar os registros das atividades sonoro-musicais, incluindo seus compositores e intérpretes, os espaços de execução das canções com suas histórias, seus bairros e ruas, seus personagens e aqueles que comentavam sobre o período, tais como os cronistas, radialistas, jornalistas, memorialistas e primeiros historiadores da música popular brasileira, as instituições e os estabelecimentos majoritariamente ligados à elite Zona Sul da cidade, a vida boêmia, as informações históricas e os causos presentes nas narrativas. Logo, essas obras possibilitam ao leitor adentrar os contextos, os espaços vivenciados pelos personagens e seus comportamentos, além de ainda visualizar os fatos marcantes das trajetórias de vida retratadas ao longo das narrativas e que foram essenciais, junto aos fenômenos culturais, para a consolidação de uma inscrição na memória coletiva. Desse modo, o trabalho de Castro está compromissado com aqueles que pertencem ao espaço criado nos livros e, por meio da obra, são enaltecidos e revivem suas memórias e até mesmo as utilizam como forma de possibilitar a legitimidade das histórias. Castro, enquanto memorialista, utiliza a sua experiência para recriar o Rio de Janeiro (por isso, o trabalho dos memorialistas pode resultar em textos de cunho autobiográfico), ao mesmo tempo que produz entrevistas e faz consulta a arquivos. Na maioria das vezes, a depender da data de publicação da obra, suas referências não estão explícitas no corpo do texto, mesclando aquilo que é de sua autoria com o que fora retirado de jornais, revistas, livros ou até mesmo obtido por meio da oralidade. Entretanto, o que nos interessa é saber como a memória é construída, ao longo do tempo e no interior dos diversos grupos, quer através da notoriedade, quer pelo esquecimento, remetendo-nos aos silêncios da história, aos esquecimentos, aos espaços em branco. A pesquisa reflete sobre a maneira de se pensar as fontes, tendo em vista que a historiografia recente tem se debruçado sobre a história dos vencidos, as vivências de pessoas comuns e como essas pessoas estão representadas dentro da esfera social. Assim, o trabalho compactua com os alicerces desse novo anseio dos historiadores, pois, ao nos inclinarmos criticamente sobre o cânone ou sobre as memórias oficiais, compreendemos como eles são perpetuados na história, de tal modo a torná-los autênticos, significativos e assimilativos de uma ideia de identidade 15 nacional. É com base nessas colocações que se situa a originalidade deste trabalho, uma vez que a história ainda não se debruçou nos livros de Castro, enquanto produções de memórias de um segmento populacional que teve a sua história escrita e sobreposta a outras manifestações culturais, ou cujos espaços e personagens foram canonizados. Para isso, foi preciso dar importância às discussões que caminham junto ao espaço biográfico, ou seja, à coleção de acontecimentos, momentos, atitudes, à maneira de se apresentar e se nomear no relato e, ainda, ao vaivém da vivência ou da lembrança que são, de fato, ponderações e preocupações significativas acerca dos trabalhos dos historiadores para com as biografias e narrativas de época. Nessa perspectiva, para que a viabilização do estudo fosse possível, foi preciso nos inclinarmos nas discussões sobre música popular brasileira, biografias e memórias, memorialismo, história e biografias e jornalismo e biografias, de tal forma que pudessem dialogar com as fontes selecionadas. Entretanto, como o nosso objeto de pesquisa é o Ruy Castro e as nossas fontes são os seus livros lítero-musicais e biográficos, a Carmen Miranda e a música popular brasileira não são os objetos desta investigação, ou seja, não pretendemos analisar a obra biográfica de Carmen Miranda ou discutir a historiografia da música popular brasileira e a crítica musical. No decorrer do trabalho, teceremos comentários que esbarram nesses temas, mas com a finalidade de apresentar possibilidades, levantar questões de pesquisa e estabelecer reflexões sobre a metodologia de trabalho do jornalista. Como resultado, pensamos a Dissertação em três capítulos: 1. A escrita biográfica em historiadores e jornalistas: limites, tensões, possibilidades e novas perspectivas; 2. Identidade e Pertencimento: a criação biográfica e memorialística de Ruy Castro; 3. Visibilidade e Criação de Lugar: espaço e notoriedade em Ruy Castro. O primeiro capítulo retoma o processo de consolidação do gênero biográfico, discutindo suas aproximações e afastamentos para com a história e a história para com a literatura, fundamentando a constante tensão existente entre esses gêneros. Em meio a essa discussão, procuramos apontar quais são as dificuldades que os biógrafos enfrentam, na publicação de seus trabalhos, assim como o que pode ser feito para livrá-los de possíveis processos judiciais. Esse capítulo também trata da produção biográfica em jornalistas e historiadores, a fim de refletir acerca da existência de um ethos de jornalista, 16 pesquisador e escritor, e como isso se evidencia, no peritexto6 dos livros, quando autor e editora buscam comprovar a legitimidade e a veracidade da narrativa. Por isso, além de tratar das temáticas caras a esses profissionais, também foi essencial enfocar os aspectos qualitativos, a estrutura de apuração das informações e como elas se apresentam ao leitor, bem como quais são os referenciais que compõem os trabalhos de Ruy Castro e Sérgio Cabral. No segundo capítulo, objetivamos tratar da dimensão memorialística do biógrafo em comparação com o memorialismo vivencial de Sérgio Cabral e quais são os espaços e personagens que percorrem os seus trabalhos. Esses jornalistas possuem percepções distintas sobre pertencimento e identidade carioca, o que nos possibilita refletir de qual memória seus livros se aproximam e sobre a maneira com que estabelecem relações. Para isso, abordaremos o conceito de disputas de memórias da música popular, mas cientes de que nem todas as memórias são documentadas, o que gera, consequentemente, notoriedade ou esquecimento, mesmo no âmbito daquelas que foram marginalizadas. Assim, esse conceito nos permite pensar sobre a monumentalização da música popular e como os trabalhos de Castro dialogam ou não com o processo de canonização dos gêneros musicais e seus personagens, tornando fundamental a reflexão sobre os conceitos de memórias vivas e memórias de papel, e sobre o quanto a vivência, a lembrança e o pertencimento podem colaborar para a afirmação de uma narrativa sobre a música popular brasileira. O terceiro capítulo contempla as discussões sobre visibilidade e criação de lugar. Castro produziu ambientação, em suas narrativas, de tal modo a descrever minuciosamente os espaços frequentados por uma elite Zona Sul do Rio de Janeiro, selecionando os lugares, inserindo os personagens e expondo diversos causos. Logo, parte significativa desses lugares e personagens expressam a materialização da memória Zona Sul da cidade e possibilitam discutirmos o que é ser carioca, de acordo com as narrativas do biógrafo. Considerando o impacto contundente da obra de Castro na imprensa, os diversos convites que o autor continua recebendo para falar de música popular, nos 6 Como define Gérard Genette (2009, p. 12), trata-se daquilo que está “em torno do texto, no espaço do mesmo volume, como o título ou o prefácio, e, às vezes, inserido nos interstícios do texto, como os títulos de capítulo ou certas notas”. 17 mais diversos suportes e até mesmo a sua inserção e posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), nos autoriza a afirmar que o seu trabalho deixou uma notória influência sobre a cultura brasileira. Por isso, além de ser necessário discutir a própria monumentalização da obra de Castro, também é preciso refletir sobre como o autor produz ou não visibilidade sobre cantores e compositores negros que não tiveram o mesmo reconhecimento que outros, ao longo do tempo, como Alaíde Costa e Johnny Alf. 18 1 A ESCRITA BIOGRÁFICA EM HISTORIADORES E JORNALISTAS: LIMITES, TENSÕES, POSSIBILIDADES E NOVAS PERSPECTIVAS 1.1 Biografia e história: tensões e renovações do gênero biográfico A presença do gênero biográfico, no Brasil, mobilizou uma parte significativa de intelectuais que se dedicavam à crítica literária, através de periódicos, no Rio de Janeiro e em outras capitais por onde circulava o impresso. Com isso, nos anos finais da década de 1920 e no transcorrer dos anos 1930 e 1940, foi identificada uma epidemia biográfica7 juntamente a uma renovação da biografia, na qual, a partir da observação dos desdobramentos aos quais o gênero estava sendo submetido, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, se lutava pela emergência de uma biografia moderna,8 no Brasil. Desse modo, entre as décadas de 1930 e 1960, a produção biográfica brasileira passou a ter um significativo valor editorial marcado por um período áureo. Com isso, o gênero adentrou em um movimento de renovação, “[...] percebido como arte, de escrita romanceada e pesquisa memorialística”, o qual foi integrado por historiadores e jornalistas, em um momento quando mercado livreiro estivera bem constituído, “[...] com novas editoras, ampliação da tecnologia gráfica, bem como uma expansão da comunicação e o acesso à informação fora do país, com muitas biografias sendo traduzidas”. Dentre os interesses das editoras9, estariam as Ciências Sociais, a 7 Conforme a definição que consta em Tristão de Athayde, essa “epidemia biográfica” correspondia a “[...] ’uma face de nossa moderna sedução pela verdade’, pela busca da ‘realidade’ e de informações esclarecedoras, mas sem os excessos da irrealidade. Valoriza a onda alta da biografia como um fenômeno universal” (Andrade, 2013, p. 97). 8 Para se inteirar mais sobre a discussão que envolve a biografia moderna e como ela está associada ao relativismo ético, à psicanálise e às transformações da epistemologia histórica, consultar Madelénat, Daniel. La biographie. Paris: PUF, 1984. Nessa obra, é possível verificar os três paradigmas que circulam na maneira pela qual a biografia foi compreendida, no decorrer do tempo: a biografia clássica, a biografia romântica e a biografia moderna. 9 Gonçalves (2009, p. 98) explicita como estava o mercado editorial das biografias, nesse momento. Através de um trabalho de Sérgio Miceli, intitulado Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), Gonçalves aponta as implicações desse período e mostra como, entre as seis maiores editoras nacionais (Cia. Editora Nacional/Civilização Brasileira, Editora Globo, Editora José Olympio, Editora Irmãos Pongetti, Editora Francisco Alves e Editora Melhoramentos), em finais dos anos 30 e início dos 40, a história e as biografias estiveram muito próximas de entrarem na lista dos cinco gêneros mais publicados (7% e 5,5%, respectivamente), frente ao destaque que recebiam as obras de ficção e os didáticos (23% e 22%, respectivamente). Ademais, ao se relacionar a distribuição da produção de livros conforme o gênero e o conjunto das publicações nacionais, história e biografias tiveram 5,6% e 5,5%, respectivamente, o que equivalia à sexta e sétima posição. 19 História e a Biografia, de tal forma a serem observadas, recorridas, “[...] na busca de formação por um novo público leitor”10 (Vieira, 2015, p. 4). Esse momento teria assistido a um efervescente debate em torno do gênero biográfico, quando estiveram presentes historiadores, literatos, romancistas e, claramente, os críticos, que muitas vezes poderiam alavancar e dignificar o livro com expressões simbólicas da cultura letrada nacional, dentre os quais podemos citar Alceu Amoroso Lima, Humberto de Campos, Álvaro Lins, Agripino Grieco, Mário de Andrade, Lúcia Miguel Pereira e Augusto Meyer. Tais profissionais foram responsáveis por diversos registros em páginas de revistas e jornais11, destacando suas impressões de leitura sobre textos de natureza diversa, como romances, poesias, ensaios históricos e sociológicos, biografias, entre outros (Gonçalves, 2009, p. 104-105). As críticas de Álvaro Lins às biografias romanceadas expressaram muito bem como se desqualificavam os pressupostos, a forma e o conteúdo narrado pelo romancista. Para ele, as biografias deveriam estar associadas à história, em seus compromissos com a busca da verdade, da exatidão e da justiça, contrariamente às biografias romanceadas, as quais, para o crítico literário, eram resultado de uma fusão antinatural entre biografia e romance, o que se configurava, conforme apontou sua descrição, como literatura industrial. Luís Viana difere de Álvaro Lins, por sua vez, por compreender que a principal lição dos referenciais da biografia moderna, tais como Strachey, Ludwig e Maurois, estava em perceber que a biografia moderna continuava vinculada às limitações impostas pela investigação histórica, “[...] tendo apenas ousado no uso de elementos da narrativa do romance – ‘a graça, a leveza, a maneira de apresentar o assunto’”. Ainda, para Viana, apesar de terem buscado novos elementos na criação de suas narrativas, esses referenciais não quiseram “[...] afastar 10 Nos anos 1980, esse movimento constante de escrita resultou em uma sucessão de trabalhos que foram bem aceitos pelo público, obtendo notoriedade, sobretudo em âmbito editorial, para que possibilitassem a constituição de um mercado atrativo aos jornalistas – e também aos historiadores – , a fim de que vissem no gênero uma forma de explorar outras possibilidades da reportagem e do campo acadêmico, na área de História. 11 Dentre os jornais, podemos citar aqueles que se publicavam no Rio de Janeiro, tais como Correio da Manhã, O Jornal, A Manhã, o Jornal do Brasil, o Diário de Notícias; em São Paulo, contávamos com A Folha da Manhã, O Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo, Correio Paulistano; em Pernambuco, Jornal do Commercio; em Curitiba, O Dia. Em relação aos suplementos literários e revistas, as publicações desses críticos tinham destaque, em São Paulo, com Clima, Planalto, Revista Brasileira de Poesia; no Rio de Janeiro, havia Dom Casmurro, Leitura, Orfeu, Revista do Brasil (3ª fase); no Rio Grande do Sul, A Província de São Pedro e Dom Quixote; em Curitiba, Joaquim; em Fortaleza, tínhamos o Clã; em Belo Horizonte, Edifício; em Recife, Presença, e, em Belém do Pará, José (Gonçalves, 2009, p. 105- 106). 20 a biografia da história, mantendo submissões à verdade e à exatidão” (Gonçalves, 2009, p. 191). Esse debate entre Álvaro Lins e Luís Viana mostra a tensão presente na biografia, a qual se encontra entre um regime de verdade e de liberdade criativa, ou seja, dentro do hibridismo pelo qual o gênero é constituído e que tanto o coloca em disputas epistemológicas e teórico-metodológicas (Loriga, 2011). A biografia, portanto, nesse cenário, difere da história, por ser um gênero descritivo que se desenvolve na busca de possibilitar um discurso de verdade concomitantemente à abertura para a imaginação, através da valorização das dimensões públicas e privadas. A história, por sua vez, se debruça nas coisas públicas e almeja a verdade, no discurso de sua narrativa. Desse modo, podemos dizer que esse debate e crítica que estavam surgindo, nos registros públicos da época, resultaram das contribuições de jornalistas-biógrafos, tais como Eloy Pontes, sobre Raul Pompéia (1935), Euclides da Cunha (1938), Machado de Assis (1939), Olavo Bilac (1944) e Balzac (1944), e Lúcia Miguel Pereira, sobre Machado de Assis (1936). Já em relação aos historiadores-biógrafos, podemos apontar Luís Viana Filho, sobre Rui Barbosa (1941), Joaquim Nabuco (1952), Rio Branco (1959), José de Alencar (1979), Machado de Assis (1965) e Eça de Queiroz (1983), além de sua obra A verdade na biografia (1945), que é um importante trabalho para se pensar a problemática do biografar. Seus capítulos “História e biografia”, “A biografia antiga e moderna”, “A verdade e a biografia” e “Os biógrafos e a biografia” revelam a problemática e os direcionamentos tomados pelo historiador sobre os anos 1930 e 1940 e as questões que atravessaram o gênero, como o debate em torno da biografia moderna (Oliveira; Silva, 2020; Vieira, 2015). Como consequência desse encontro de uma elite letrada do país, a biografia passou a ser vista dentro de uma relação de fronteiras e interseções com a história. Márcia Gonçalves explicita isso muito bem, ao citar um texto, publicado em 1971, que correspondia às conferências proferidas por Arnaldo Momigliano, na Universidade de Harvard, em 1968. Na ocasião, o autor concluía que poucos duvidavam de que a biografia fosse um tipo de história e que isso levava consigo um certo paradoxo, ao se comparar às controvérsias que incitavam o debate sobre competências e campos do fazer biográfico e do fazer historiográfico, nas décadas iniciais do século XX (Gonçalves, 2009, p. 154). 21 Com isso, é possível enxergar o gênero dentro de um redimensionamento no seu modo de apurar, coletar informações e confeccionar uma narrativa sobre o personagem biografado e sua época, em vista da emergência de uma sensibilidade moderna que estava sendo colocada, naquele momento. Dentre os autores que obtiveram “[...] reconhecimento internacional como renovadores e atualizadores de um gênero que, segundo alguns, havia sido engolfado pelos panegíricos oficiais de memórias nacionalistas”, Gonçalves cita André Maurois (1885-1967), na França, Emil Ludwig (1881-1948), na Alemanha, e Lytton Strachey (1880-1932), na Inglaterra. Tais escritores foram responsáveis por biografias nas quais “[...] homens e mulheres desciam de seus panteões de notáveis para personificar a grandeza e a miséria de suas condições humanas”, tornando-se referências, às suas maneiras, de uma escrita biográfica moderna que estava sendo vigorada e impulsionada, na tentativa de se figurar como o romance da vida de homens reais (Gonçalves, 2009, p. 155). Maurois, ao consolidar seu conjunto de reflexões, na obra Aspectos da biografia, obteve um papel relevante para caracterizar a escrita biográfica como um romance verossímil e cativante acerca da vida do biografado, discutindo a biografia moderna, a biografia como arte, a biografia tida como ciência, a biografia como um meio de expressão, a autobiografia e as relações entre a biografia e o romance. Por ter-se tornado uma referência importante na produção biográfica moderna, seu trabalho também foi fundamental para uma reformulação do gênero e para a fundamentação da crítica literária, no Brasil. Dessa forma, o momento representado foi marcado por um intenso debate sobre a biografia romanceada e o caráter híbrido que permeia o gênero e suas implicações, nas discussões sobre a biografia, em outros países, no qual Maurois estaria comprometido com a verdade. Por isso, para ele, um dos aspectos marcantes das biografias modernas era justamente uma procura pela verdade em que se dava junto de um senso de percepção da complexidade e mobilidade dos seres humanos e até mesmo de um senso de unidade da natureza humana (Gonçalves, 2009; Oliveira; Silva, 2020). Conforme Maurois, o biógrafo poderia ser comparado ao retratista, ao realizar suas escolhas sem pôr em xeque a qualidade do que há de essencial a ser representado na tela, o que coloca o gênero entre o desejo de verdade, o qual, aliás, depende de um procedimento científico, e sua dimensão estética, valorizando o caráter artístico da narrativa. Isso também foi expresso em 1965, quando o historiador Paul Murray Kendall comparou a biografia com a obra de arte, afirmando que o 22 biógrafo, enquanto romancista ou pintor, estaria imerso no seu trabalho de tal forma a modelar seu material para criar efeitos12 (Dosse, 2015, p. 56-57). Essa percepção sobre a renovação da biografia mostra o quanto o biógrafo moderno teria de estar em constante diálogo com essas transformações, devendo entender o biografado como uma verdade a ser construída através de um método de investigação estabelecido com base “[...] no abandono de quaisquer ideias preconcebidas e no levantamento e na análise de toda documentação disponível” (Gonçalves, 2009, p. 158). É nesse cenário de constatação do crescimento na publicação de biografias, da possibilidade de renovação do gênero e da teorização sobre a emergência de uma biografia moderna que se inserem, por exemplo, as obras de Octávio Tarquínio de Sousa (1889-1959).13 Apesar de repudiar uma escrita cujo ficcional se sobreponha ao histórico, Tarquínio de Sousa acreditava que a narrativa da história se destinava aos grandes personagens, configurando uma abordagem biográfica cuja pesquisa documental recebesse destaque e fosse colocada como parte fundamental da narrativa, de tal sorte que o seu desdobramento fosse sobreposto à narrativa romanceada. Desse modo, o caráter subjetivo de seu texto estaria presente apenas na interpretação das personalidades, ensejando, conforme aponta o crítico literário, descobrir o indivíduo assim como ele foi, na sua realidade (Oliveira; Silva, 2020, p. 45). Logo, [...] romancear, nesses termos, significaria afastar-se da criatura humana na dimensão de sua realidade mais imediata. Romancear seria ficcionalizar o protagonista de uma história de vida, fosse por um discurso marcado pela predominância de louvores a suas qualidades, fosse por conta da detração absoluta do sujeito biografado (Gonçalves, 2009, p. 66-67). 12 Dosse (2015, p. 56), ao visualizar essas metáforas, retoma Maurois, para explicitar que esse seria o tal artifício da narrativa em produção, retomada diversas vezes pelo autor. Afinal, como a arte envolve um desenvolvimento daquilo que se constrói, a narrativa segue uma ordem cronológica, na tentativa de conservar a atenção do leitor na expectativa de um futuro que se desvelará gradativamente, contando os segredos que envolvem a vida do biografado e convidando o leitor a partilhar os medos, as incertezas e os sofrimentos que o compõem. 13 Além de ter sido crítico literário, advogado e professor de Direito, Tarquínio de Sousa foi também um importante estudioso da história, escrevendo, inclusive, uma obra em coautoria com Sérgio Buarque de Holanda, intitulada História do Brasil 1500-1822 (1944). Além disso, integrou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e coordenou a coleção Documentos Brasileiros, editada por José Olympio. Dentre suas obras biográficas, podemos citar História dos Fundadores do Império do Brasil (1957), portadora de dez volumes, com as biografias de Antônio Feijó, Evaristo da Veiga, José Bonifácio, Bernardo Pereira de Vasconcelos e D. Pedro I (Oliveira; Silva, 2020, p. 45). 23 De maneira parecida a Tarquínio de Sousa, Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981) também definiu as características que iriam adentrar em sua escrita biográfica.14 As produções de Magalhães Júnior são caracterizadas por uma extensa pesquisa documental, cujo resultado é o constante equilíbrio entre história e ficção. Nesse caso, o literário não se encontra mais sobreposto ao histórico, mas em consonância com ele, de tal maneira que a narrativa se assemelhe a uma obra de arte. Com isso, a partir das fontes, seria possível garantir a confiabilidade da narrativa e, ao mesmo tempo, legitimar o trabalho do biógrafo, no qual o autor passaria a valorizar a fidelidade histórica, permitindo-nos caracterizá-lo através do padrão defendido por Tarquínio de Sousa, “[...] no que se refere ao esforço das interpretações acerca dos sujeitos individuais e de suas atuações na dimensão histórica” (Oliveira; Silva, 2009, p. 47). Magalhães Júnior acreditava em uma aliança entre biógrafos e historiadores, com a qual história e biografia se completassem. “Mas observa, como biógrafo, que à sua época, os historiadores não desciam à vida individual para decifrar retratos de vida e assim compreender o espírito de um tempo, suas ideias, concepções” (Andrade, 2013, p. 296). Nesse sentido, a narrativa biográfica que permeia a produção do jornalista esbarra com os referenciais historiográficos, tal qual ocorre em Tarquínio de Sousa, o que possibilita colocarmos a discussão a respeito da aproximação entre a história e a biografia e também sobre a aproximação dos historiadores com a abordagem biográfica, apesar de ser um campo majoritariamente ocupado por jornalistas, tendo em vista, por exemplo, que Vilas-Boas (2002, 2008) relaciona a prática da escrita biográfica com aquela desempenhada pelo próprio jornalismo. Notoriamente, a extensa obra de Magalhães Júnior foi um marco para o biografismo brasileiro e para a aproximação dos jornalistas com o trabalho biográfico, 14 Magalhães Júnior foi jornalista e teatrólogo, ocupando a cadeira 34 da ABL. É autor de diversos livros de natureza biográfica, entre 1950 e 1970, a respeito de personagens da política e da literatura nacional, dentre os quais podemos citar Artur Azevedo e sua época (1953); Ideias e imagens de Machado de Assis (1956); Machado de Assis, funcionário público (1958); Machado de Assis desconhecido (1955); Ao redor de Machado de Assis (1958); Três panfletos do Segundo Reinado (1956); O fabuloso Patrocínio Filho (1957); Deodoro, a espada contra o Império (1957); Poesia e vida de Cruz e Sousa (1961); Poesia e vida de Álvares de Azevedo (1962); Poesia e vida de Casimiro de Abreu (1965); Rui: o homem e o mito (1964); A vida turbulenta de José do Patrocínio (1969); Martins Pena e sua época (1971); José de Alencar e sua época (1971); Olavo Bilac e sua época (1974); Poesia e vida de Augusto dos Anjos (1977) e A vida vertiginosa de João do Rio (1978). 24 marcando toda uma geração que adentraria no mercado editorial ocupado pelo gênero. Isto é, esse trabalho envolvendo as discussões sobre a modernidade, seus pressupostos, forma e conteúdo narrado, além das discussões que colocavam as biografias em diálogo com a história e sua reflexão sobre a verdade ou veracidade nos relatos.15 Ruy Castro16, natural de Caratinga, Minas Gerais, iniciou sua atividade profissional em 1967, no Correio da Manhã, produzindo uma reportagem em homenagem a Noel Rosa, nos 30 anos da morte do compositor, assinada como jornalista cultural, quando ainda possuía 19 anos. Posteriormente, trabalhou como redator, repórter especial ou editor para várias publicações, como Manchete, Seleções, Jornal do Brasil, IstoÉ, Playboy, Folha de S. Paulo e Veja, tendo colaborado com diversas revistas do Rio de Janeiro e São Paulo, nas quais escrevia sobre música brasileira e americana. Em 1978, atuou como redator do programa Brasil pandeiro, da Rede Globo, tendo sido também coordenador do lançamento da obra completa não teatral de Nelson Rodrigues, para a Companhia das Letras; recebeu, em 1998, o título 15 Dentre os jornalistas (alguns não apenas jornalistas) que produziram biografias marcadas por essas tensões e implicações da época e que possuem uma parte significativa de sua produção bibliográfica inserida no enfoque biográfico, podemos citar Alberto Dines (1932-2018), João Máximo (1935-atual), Sérgio Cabral (1937-atual), Fernando Morais (1946-atual), Lira Neto (1963-atual), Mário Magalhães (1964-atual), Paulo César de Araújo (1962-atual), Josélia Aguiar (1978-atual) e Ruy Castro (1948- atual). 16 Dentre os livros publicados por Castro, podemos citar: Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (1990); O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues (1992 e 2022); Saudade do século 20 (1994); Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha (1995); Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema (1999); A onda que se ergueu no mar: novos mergulhos na Bossa Nova (2001); O vermelho e o negro: uma pequena grande história do Flamengo (2001); Carnaval no fogo: Crônica de uma cidade excitante demais (2003); Amestrando orgasmos (2004); Meu querido canalha (2004), junto com Aldir Blanc, Marcelo Madureira, Bráulio Pedroso e Geraldo Carneiro; Carmen: uma biografia (2005); Rio Bossa Nova – Um roteiro lítero-musical (2006) que, conforme consta no Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira, em verbete de Castro (2002-2020), foi celebrado na casa Estrela da Lapa, no Rio de Janeiro, com show do grupo Os Cariocas e entrevista concedida pelo autor ao radialista Fernando Mansur; Tempestades de ritmos – Jazz e música popular no século XX (2007); Morrer de prazer – Crônicas da vida por um fio (2013); Letra e Música (2013a, 2013b) com dois volumes: A canção eterna (vol. 1) e A palavra mágica (vol. 2); A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção (2015),Trêfego e Peralta: 50 textos deliciosamente incorretos (2017), Metrópole à Beira-Mar (2019), As vozes da Metrópole (2021), Os perigos do imperador (2022) e A vida por escrito: ciência e arte da biografia (2022). O jornalista também editou três antologias de frases mordazes: O melhor do mau humor (1989); O amor de mau humor (1991) e O poder de mau humor (1993) que, posteriormente, foram publicadas em Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas (2002); escreveu dois romances para o público jovem: Bilac vê estrelas (2000), e O pai que era mãe (2001); traduziu e fez adaptações nos clássicos Frankenstein, de Mary Shelley, e Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll; produziu, em 2007, a série Ruy Castro apresenta, oferecendo o melhor de Carmen para a gravadora EMI, onde também entregou uma das coletâneas de bossa nova em CD, intitulada Chega de Saudades (1992), visto que a outra coletânea, intitulada A onda que se ergueu no mar, foi produzida para a Universal. Ruy Castro também produziu, para esta última, o CD Bossa Nova – The sound of Ipanema (2006), e escreveu o ensaio A Bossa Nova – Brigas, nunca mais (2008). 25 de Carioca da Gema da Confraria do Garoto e tornou-se, em 2004, cidadão benemérito do Rio de Janeiro, ao receber, na Câmara Municipal da cidade, o Conjunto de Medalhas Pedro Ernesto. Em 2022, foi eleito para a ABL, ocupando a cadeira número 13 da instituição. Castro, por sua vez, se insere no contexto dos resultados que foram obtidos com as discussões travadas, no decorrer dos anos 1930 e 1960, a respeito do gênero biográfico. Em sua narrativa, o jornalista procura estabelecer o aspecto literário de suas produções biográficas e narrativas de época, embasado em uma vasta pesquisa documental, inclusive, agregando ao seu trabalho diversas temáticas, questões e problemáticas, de tal modo a se aproximar ou se afastar, em maior ou menor grau, de outros campos, tais como o da História. Portanto, o que se procura constatar com a discussão apresentada até aqui é a existência de uma complexidade e constante tensão e incerteza entre o gênero biográfico e o trabalho realizado pelos historiadores. Conforme aponta Loriga (2011, p. 225), [...] o projeto que visa personalizar a história, conduzido através do século XIX, é dominado por uma tensão ética, ligada à herança kantiana, que tendia a sublinhar a capacidade de autonomia e a responsabilidade individual. A distinção entre ética e moral decorre dela: o trabalho do historiador não é moral, no sentido de que não propõe exemplos a seguir, mas é ético, pois faz aparecerem as questões inseparáveis da escolha, do erro, do fracasso. Além de fazer parte da história, a biografia oferece também um ponto de vista sobre a história, uma discordância, uma descontinuidade. Importa, por conseguinte, afastar toda lógica de submissão ou de dominação (da história sobre a biografia ou reciprocamente) e conservar a tensão, a ambiguidade, considerar o indivíduo, a um só tempo, como um caso particular e uma totalidade. Se pensarmos que as discussões do século XXI expõem os problemas atuais de uma sociedade, estaríamos refletindo sobre o quanto esse eixo de discussão compõe implicações do presente. Dessa maneira, essa problemática que envolve o gênero biográfico e a história constitui um dos capítulos da obra O Pequeno X: da biografia à História (2011), de Loriga, e o livro O Desafio Biográfico: escrever uma vida (2015), de Dosse, assim como também se encontra nos artigos “A biografia como problema” (1998) e “A biografia como problema historiográfico” (2010), de Loriga e Jacques Revel, respectivamente. Portanto, podemos sustentar que continua sendo necessário afirmar os desafios e problemas que envolvem a legitimidade do gênero biográfico, e que isso indica que tanto a história quanto a biografia estiveram mais em 26 posições antagônicas do que em uma relação que mostrasse o quanto elas convergem17 (Avelar; Schmidt, 2018, p. 10). 1.1.1 O gênero biográfico na interface entre a literatura e a história Loriga deu a um dos capítulos de sua obra O pequeno X: da Biografia à História (2011)18 o título de “O limiar biográfico”. Se procurarmos refletir sobre as razões pelas quais a autora procurou utilizar uma expressão diferente daquelas que remetesse o biográfico à literatura ou à história, poderíamos pensar que sua denominação procura romper quaisquer possibilidades de diluir as fronteiras, que são incertas, entre a história e a literatura, opondo-se a uma simples definição do biográfico como gênero, para uma, e metodologia, para a outra. Entretanto, essa denominação que afasta de uma possibilidade de título o uso da expressão “gênero”, para se remeter ao biográfico, remonta a uma problemática fundamental a ser feita, quando o assunto é a produção de biografias ou o que é História: é preciso historicizar tanto a questão do gênero quanto o ofício do historiador, nos diversos momentos nos quais foram cunhados. Afinal, a história e a biografia passam por mudanças em suas denominações, estilos, técnicas e, por isso, retratá-las no século XIX, XX ou XXI não pode ter os mesmos significados e conotações. No século XIX, as biografias tiveram um importante papel na construção da ideia de nação, sendo o gênero peça fundamental para a consolidação de “[...] um patrimônio de símbolos feito de ancestrais fundadores, monumentos, lugares de memória, tradições populares, etc.” (Del Priore, 2009, p. 8). No âmbito da história, por sua vez, os historiadores do século XIX, em meio às críticas que recebiam da filosofia, 17 Na perspectiva dos historiadores, Teresa Malatian (2008, p. 16) descreveu da seguinte forma a relação entre a História e a Biografia: “A biografia nunca esteve ausente das reflexões historiográficas ou das práticas profissionais dos historiadores, mas muitas vezes se fez acompanhar de um mal-estar explícito ou implícito”. 18 Nas palavras da autora, em uma entrevista concedida no dia 7 de outubro de 2011, em Copacabana, a qual foi publicada, em 2012, na Revista História da Historiografia, “[...] o título é um pouco enigmático. ‘O pequeno X’ indica a contribuição individual para o desenvolvimento histórico, desenvolvimento não no sentido de uma melhora, mas de uma realização histórica. A expressão é do grande historiador alemão Johann Gustav Droysen que, em 1863, escreve que se chamarmos de ‘A’ o gênio individual, a saber, tudo o que um homem é, possui e faz, então, esse ‘A’ é formado por ‘A + X’, em que ‘A’ contém tudo aquilo que lhe vem – circunstâncias externas do seu país, do seu povo, da sua época etc. – e em que ‘X’ representa a sua contribuição pessoal, a obra do seu livre arbítrio. [...] Ora, embora infinitamente pequeno, o ‘X’ é fundamental, porque é o responsável por dar à história seu movimento”. 27 da literatura e das ciências sociais, foram responsáveis pelo êxito de uma ideia de cientificidade do conhecimento histórico, possibilitando que a história fosse reconhecida institucionalmente enquanto disciplina. Como resultado, a literatura foi diluída da produção científica e foram elaborados novos métodos de crítica das fontes, novas maneiras de interpretar os fatos, novas teorias da causalidade e de leis universais que procuravam explicar o devir humano, no qual “[...] a historiografia fez- se tributária das diversas filosofias da história (metanarrativas) que floresceram na modernidade ocidental” (Benatte, 2014, p. 79). É possível visualizarmos esse embate entre literatura e história, quando nos debruçamos nas discussões que estavam sendo levantadas no período, dentre as quais podemos citar a precisão do que estava sendo retratado e os limites no uso da arte. Quanto a isso, soma-se a questão sobre como o historiador deve lidar com a exatidão e a verdade. Droysen afirmava que não era possível se contentar com a primeira, devendo-se aplicar à apreensão dos pensamentos e do imaginário do passado, o que comprova que existiam limites evidentes, ao se mencionar a analogia com a arte. Burckhardt apontava que a diferença entre imaginação e invenção estava no fato de o historiador não poder modelar a matéria da maneira como gosta ou se sente melhor, pois sua imaginação deveria permanecer centrada na documentação e se submeter à exigência da prova. Dessa mesma forma, Meyer se colocava favorável a uma autolimitação voluntária, em que “[...] o historiador não tem o direito de criar livremente, como o poeta, porque sua imaginação deve permanecer ligada aos fatos” (Loriga, 2011, p. 227). Nesse sentido, em relação à finalidade do relato, a história se distinguia da literatura: [...] contrariamente à literatura (na verdade, Burckhard, assim como Ranke e outros, pensa sobretudo no romance histórico), a história não segue (ou antes, não deveria seguir) uma lógica da sedução: ela não domestica o passado, não o torna propositadamente familiar; bem pelo contrário, busca lançar luz sobre sua alteridade. Sob certos aspectos, estamos em presença de uma espécie de definição avant la lettre da história como processo de estranhamento (Loriga, 2011, p. 227, grifos da autora). Assim, a história apareceu nesse momento como um veículo privilegiado de ordem científica que diz respeito ao seu estatuto como tipo de conhecimento e como disciplina, afinal, a criação e o desenvolvimento da Ciência da História foram possibilitados “[...] através da hegemonia de diversos paradigmas para os quais a 28 história da historiografia estabeleceu as denominações do historicismo, positivismo, marxismo, ‘dos Annales’ e, inclusive, o narrativismo ou o pós-modernismo” (Aróstegui, 2006, p. 99). É nesse contexto que Taine, Renan, Fustel, Gabriel Monod fundaram novamente a história como ciência e no qual Victor Duruy criou, em 1866, a Escola Prática de Altos Estudos. Entretanto, devemos reconhecer que, se a história possui notório prestígio intelectual da ciência, permanece apenas o que a nação conhece do seu passado e não aquilo que a sociedade sabe sobre si própria, desencadeando em uma história que, enquanto disciplina, visava a impulsionar os ideais patrióticos de sua nação, como o fez, por exemplo, a França, na tentativa de “[...] formar um cidadão compenetrado dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma” (Furet, 1986, p. 130). Essa aproximação da história com os ideais patrióticos foi resultado de uma ampla divulgação da biografia, na qual o gênero penetrou através da demonstração da pesquisa empírica e documental, do colecionismo de provas e da busca de motivos explícitos e fins determinados, tendo em vista que o século XIX se deparou com diversas críticas “[...] ao biografismo, aos ‘particularismos’ da individualidade e do contexto cultural e ideológico que enfatiza o utilitarismo, o positivismo e o cientificismo, de forma que o indivíduo é mais resultante do que agente, e o coletivo o primum móbile” (Silva, 2013, p. 18). Essa exaltação das glórias nacionais, em uma tentativa de embelezar o acontecimento, marcou fortemente o período como época de ouro e detentor de uma geração de historiadores renomados, na qual se encontravam o próprio Taine, Fustel de Coulanges e Michelet, mas que, posteriormente, no século XX, seria ressignificada por uma história preocupada com a narrativa dos vencidos, das pessoas comuns. Assim, com a história “vista de baixo”, o gênero biográfico passaria a se oferecer como 29 instrumento adequado de investigação histórica, tendo em vista que Bourdieu (2002)19 foi responsável por convidar os historiadores a visualizarem a biografia através de um novo ângulo, diferente daquele dos grandes homens, da história heroica e literária, descrita por Le Goff como tradicional, superficial, anedótica, cronológica e ainda como sacrificada a uma psicologia ultrapassada e incapaz (Del Priore, 2009, p. 8-9). Enquanto isso, conforme descrito anteriormente, a renovação do gênero biográfico, no Brasil, estava inserida em um período de significativo valor editorial, marcado pela percepção da biografia como arte e com forte apelo a uma escrita romanceada. Entre o final da década de 1920 e a de 1950, tanto literatos quanto historiadores “[...] compreenderam a revisão da biografia como mais um aspecto necessário entre as estratégias de atualizar análises sobre a realidade nacional” (Gonçalves, 2009, p. 26). Nesse sentido, isso significava também repensar as fronteiras entre a história e a literatura, já que, nesse período, existia uma tensão no gênero biográfico a respeito da aproximação entre os dois campos, enquanto uma possibilidade de renovação da própria história nacional (Schmidt, 2012, p. 201). Com o levantamento dessa reflexão, podemos compreender que [...] a produção bibliográfica do biografismo brasileiro tradicionalmente se vincula a uma humanização da história e à criação de uma pedagogia moral e cívica com um volume relativamente tímido – quando comparado com outros biografismos nacionais – de obras com base em metodologias e enfoques semelhantes na produção historiográfica, no romance histórico, nas memórias pessoais, na literatura escolar e nas biografias no sentido estreito do termo (Silva, 2013, p. 17). Ao longo do século XX, diversas questões metodológicas foram apresentadas ao novo paradigma do biografismo, dentre as quais e possível citar 19 É preciso mencionar que a narração cronológica não corresponde a uma única possibilidade de escrita de vida. Loriga (Souza; Lopes, 2012, p. 31-32) identifica essa defasagem na obra de Bourdieu, afirmando que o sociólogo não considerou a existência de diversas formas de escrita biográfica, mas de apenas uma única forma. “Por exemplo, inúmeras biografias privilegiaram uma narração cronológica seguindo as escansões biológicas da existência: o nascimento, a formação, a carreira, a maturidade, o declínio e a morte. Mas isso não implica que a biografia deva, necessariamente, apoiar-se em uma trama cronológica. Basta pensar em Plutarco, que enfatiza mais o caráter e as qualidades morais da personagem do que a sua vida. No início do século XX, o grande biógrafo Lytton Strachey preferiu uma narração sintomática, apoiando-se, essencialmente, nos momentos-chave (as conversões, os traumas, as crises econômicas, as separações afetivas). Não existe nenhuma regra formal nesse domínio, nem mesmo no que diz respeito às características individuais. Inúmeros biógrafos exaltam-nas, mas alguns as minoram em proveito das semelhanças, na esperança de representar um tipo médio, ordinário (no domínio da biografia literária, tal é o caso de Giuseppe Pontiggia que corrige as individualidades, colocando-as até mesmo em séries)”. 30 [...] o reconhecimento da dificuldade em conciliar “verdade científica” e “imaginação criativa”, das implicações da aproximação e da afinidade entre biógrafo e biografado, da escolha entre a associação direta entre vida e obra ou da defesa da independência entre tais instâncias, dos limites entre vida vivida e vida documentada, entre outras (Oliveira; Silva, 2020, p. 40). Nesse aspecto, a teoria da história tem procurado refletir sobre a relação entre o biografismo e a área da história e da literatura, de sorte que tanto uma quanto a outra têm se debruçado nas técnicas que as definem, na tentativa de aperfeiçoar seus relatos biográficos. Em relação à história, Levi (1996, p. 168-169) destaca que a biografia constitui [...] o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem à historiografia. Muito já se debateu sobre esse tema, que concerne, sobretudo, às técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questões e esquemas psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição. Tratando sobre as aproximações e diferenças envolvendo a produção biográfica por historiadores e jornalistas, Schmidt (1997) verificou o afastamento da história em relação à literatura como uma consequência da busca pela afirmação da sua cientificidade, procurando negar a narratividade enquanto modo adequado de exposição da escrita histórica. No entanto, a volta da história-narrativa nos últimos anos, para Stone (apud Schmidt, 1997, p. 6), [...] se diferencia da história estrutural por ser mais descritiva do que analítica e por direcionar seu enfoque ao homem e não às circunstâncias. Haveria ainda, segundo ele, uma maior preocupação, por parte dos historiadores narrativos, com os aspectos retóricos na apresentação de seus textos. [Desse modo], a narrativa aqui designa a organização de materiais numa ordem de sequência cronológica e a concentração do conteúdo numa única estória coerente, embora possuindo subtramas. Perceptivelmente, a volta da história-narrativa possibilitou que essa aproximação com a literatura estivesse presente nas novas biografias produzidas por historiadores. Conforme já foi apontado por Levi, “[...] a biografia constitui, com efeito, 31 a passagem privilegiada pela qual os questionamentos e as técnicas próprias à literatura se colocam para a historiografia”. Da mesma forma, para Jacques Le Goff, “[...] a biografia histórica deve se fazer, ao menos em um certo grau, relato, narração de uma vida, ela se articula em torno de certos acontecimentos individuais e coletivos – uma biografia não événementielle não tem sentido” (Schmidt, 1997, p. 7). As biografias revelam tanto quanto ocultam. O hibridismo do gênero é peça fundamental para transmitir ao leitor uma consciência de que o texto está estribado no verídico e, assim, sob o uso de referenciais teóricos, documentos, conceitos, metodologias de análise ou escrita de diversas áreas, tais como a história, a literatura e a psicologia, o biógrafo procura fundamentar a autenticidade do seu trabalho. Dessa maneira, o jornalista, por exemplo, se debruça nos trabalhos historiográficos, em seus métodos de análise e escrita, na tentativa de legitimar a sua obra, situá-la como representativa da vida do biografado e de sua época. Essa tentativa de validação é fruto de uma constante busca pela verdade na narrativa, fazendo com que, inclusive, o autor procure definir seu ethos de erudição, no qual se encaixam o historiador, o jornalista ou o escritor, com o objetivo de adquirir credibilidade em seus trabalhos, conforme demonstraremos mais à frente, ao tratar de teoria e método em historiadores e jornalistas. Todavia, é necessário afirmar que essa busca pelo ethos não está atrelada à existência de uma classificação entre as áreas por importância ou aproximação com a veracidade, o que seria uma constatação errônea, todavia, consiste em firmar vínculos com as variadas áreas de tal modo que o leitor perceba os diversos meios pelo qual o autor transita. Afinal, segundo adverte Dosse (2015), a biografia é um gênero híbrido situado entre a vontade de reproduzir um vivido real passado e o polo imaginativo do biógrafo, o qual deve reconstruir uma cena, a partir de sua intuição e talento criador. Essa percepção aponta que o gênero biográfico depende tanto da dimensão histórica quanto da dimensão ficcional, o que situa o recurso da ficção como um efeito inevitável, visto que não é possível restituir a riqueza e a complexidade que compõe uma vida real. Desse modo, “[...] não apenas o biógrafo deve apelar para a imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e dos lapsos temporais que procura preencher como a própria vida é um entretecido constante de memória e olvido” (Dosse, 2015, p. 55). É certo que a assimilação entre a escrita biográfica de jornalistas e historiadores é resultado de uma aproximação entre a literatura e as biografias 32 históricas. Esse caráter híbrido da biografia exigiu que o escritor promovesse um trabalho levando em conta as fontes consultadas, de tal modo a serem proporcionadas, na confecção do texto, interpretação e imaginação, pois, conforme apontaria Dines, “[...] a fidelidade aos fatos não é inimiga da criatividade”. Essa percepção do biográfico deixou explícito que o autor, seja ele historiador, seja jornalista, não é um mero colecionador de informações, daqueles que as mantêm sob a sua guarda como um artigo de luxo. O caráter biográfico da narrativa implica a interpretação e a criatividade sobre aquilo que foi apurado, devendo o biógrafo, segundo pontua Woolf, reconstruir existências e narrar vidas (Schmidt, 1997, p. 7). Silva (2013, p. 21-23) também discutiu, através das considerações de Mario Llosa, sobre os limites da verdade e a respeito do direito à imaginação literária. Ao enfatizar as modificações que podem ter os fatos, quando traduzidos em linguagens, ou seja, forem contados, passamos a perceber que essa relação de convergências e divergências entre literatura e história “[...] é extremamente recorrente em relação ao biografismo, no reconhecimento dos limites da linguagem e das particularidades da cognição e das sensibilidades, entre tantos outros determinantes na relação do vivido e do narrado”20. Entretanto, o autor precisa acreditar mais naquilo que imagina, cria e interpreta a respeito da época e dos personagens que compõem a sua narrativa. O biógrafo necessita repor o real sobre o biografado e o momento histórico retratado, mas é imperioso saber que esse real pertence ao autor e, por isso, os personagens não são sinônimos de uma existência, mas de construções que dizem mais sobre a maneira 20 Com isso, podemos argumentar que a literatura “[...] não documenta o real nem constitui representação semelhante aos discursos científico, filosófico, político, jurídico ou outros”. Como lembra Llosa, “[...] condenados a uma existência que nunca está à altura de seus sonhos, os seres humanos tiveram que inventar um subterfúgio para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros sem deixar de ser o que já são, deslocar-se no espaço e no tempo sem sair do lugar, nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração”. Desse modo, o texto literário é sinônimo de ficção — ou fingimento —, “[...] destinado a entreter ludicamente o leitor, transportando-o para universos imaginários” (Ferreira, 2009, p. 66-67). 33 como o autor concebeu uma trajetória de vida do que sobre uma vivência real, em todos os seus aspectos, tendo em vista que não é possível esgotar uma existência.21 Albuquerque Júnior (2020, p. 22) expressa esse debate da reposição do real, quando procura estabelecer uma ligação entre “carne e letra”, apresentando questões e apontando os espaçamentos entre elas, principalmente ao contrastar a escrita biográfica de uma trajetória que habitou fora do texto. Para o historiador, a escrita de uma biografia histórica oscila entre a ênfase na letra ou na carne, o que desencadeia em inúmeras questões, dentre as quais a inquietação de como seria possível operar a difícil separação entre elas, já que as carnes só nos chegam ditas pelas letras. Isso mostra que “[...] o texto biográfico faz de conta que as letras podem copiar as carnes, podem se colocar em posição de analogia em relação ao ser vivo e humano que descreve”, o que, de alguma forma, possibilitaria ao leitor conhecer um pouco do biografado e do espaço vivenciado por ele, além do reconhecimento da respectiva existência. De forma parecida, quando citamos um texto, os desejos que habitam no autor voltam a se efetivar através de novas perspectivas, formulações e inquietações. “Escrever uma biografia é trazer, para o interior do texto, uma vida que habitou o seu exterior, naquilo que ela teve de mais significativo, do que costuma estar excluída, justamente, a sua condição de ser carnal” (Albuquerque Júnior, 2020, p. 13). E como poderíamos moldar um ser de ficção, uma vez que, [...] para que algo seja, não é necessário que efetivamente exista, em um plano não-ficcional? Quando imaginamos a personagem, pressupomos características compatíveis com o nosso modo de conceber os seres. É um reconhecimento que tem como referência aquilo que está posto no nosso entorno. Pensar o ser significa pensar em algo que possua certa unidade, constância e determinada possibilidade de atuação (Santos; Oliveira, 2001, p. 27). 21 É necessário frisar que, para Silva (2017, p. 42), “[...] a biografia enquanto relato é o resultado de memórias coletivas, individuais e sociais, com afirmações e negações, constantemente negociadas e processadas, com vínculos com mitos, saberes, fazeres e tradições que se corporificam a partir de relações particulares com o tempo e o espaço, que não são simplesmente atos de resgate, mas de reconstrução do passado a partir de referenciais atuais”. Logo, subentende-se que a narrativa biográfica é historicamente produzida, mudando o seu enredo a partir da tríade social, coletiva e individual. Mudam-se a identidade, os valores, as referências, indicando que “[...] os vários aspectos de uma vida não são suscetíveis a uma narração linear, não se esgotam numa única representação, na ideia de uma identidade. Ao construírem biografias, os historiadores devem estar atentos aos perigos de formatar seus personagens e de induzir o leitor à expectativa ingênua de estar sendo apresentado a uma vida marcada por regularidades, repetições e permanências” (Avelar, 2010, p. 162). A desconstrução disso deve situar o historiador como alguém que rompe com restrições sobre as possibilidades e encontra as bifurcações, entroncamentos, cruzamentos de caminhos que podemos chamar de fronteiras e possibilidades (Albuquerque Júnior, 2007) 34 Todavia, pensar o caráter ficcional de uma personagem significa sair do campo das semelhanças e adentrarmos no campo das diferenças, pois a concepção usual de ser da personagem é deformada, problematizada, tornando-a resultado de um processo no qual se imagina um ser que transita nas fronteiras do não ser e que determina a verossimilhança de um texto. Esse jogo de ideias aponta para o caráter representativo de uma existência, mostrando o quanto o personagem do texto biográfico está interligado às aspirações do autor (Santos; Oliveira, 2001). O resultado da relação entre carne e letra estará expresso por meio de uma dimensão criativa do autor, na qual, através dessa junção, este será capaz de atribuir novos sentidos ao ser de ficção. Afinal, quando se expõe uma história de vida no presente da narração ou da escrita, até que ponto essa apresentação constitui a vivência dessa pessoa, no passado? Essa construção do passado que se realiza no presente aponta para uma relação dialética entre vivenciar, lembrar e narrar, e, portanto, além de indicar a distância que existe entre vida vivenciada e vida narrada, demonstra também o quanto o autor precisa dar fundamentação ao seu trabalho e acreditar naquela trajetória que ele está concebendo, pois é a ele que ela pertence (Rosenthal, 2014). Barthes (apud Albuquerque Júnior, 2020, p. 14-15), ao escrever o livro Roland Barthes por Roland Barthes, procurava dizer como e por que os desejos de suas carnes eram inseparáveis de seu desejo de escritura, o que, de certa forma, aproxima esse desejo à sua vida e à sua obra, mostrando que ambas estão interligadas e, ainda, que é possível materializar esse desejo de escritura na busca interminável de escrever. Nesse sentido, Barthes, “[...] quanto mais escrevia, mesmo em seu texto biográfico, mais para longe de si mesmo se encontrava”, fazendo com que, no caso da autobiografia, o escrito biográfico fosse mais uma camada de texto e, por conseguinte, uma narrativa que o levaria para mais longe desse improvável encontro com o sujeito da própria escritura. Isso evidencia que a pergunta diante de uma biografia deve se preocupar com o modo pelo qual o autor escreveu o texto daquela maneira e não de outra, ou seja, o historiador, “[...] antes de ir em busca do sujeito que ele esconde, das verdades sobre o autor que ele revela, deveria olhar para a própria forma em que ele está vazado, olhar para a pele do texto e se interrogar sobre os desejos que ele deixa passar” (Albuquerque Júnior, 2020, p. 15). 35 Esse procedimento pode revelar que o texto biográfico compõe aquilo que já habita nele, formado, portanto, por um corpo textual que deixou suas marcas de escrita, fundamentação técnica, argumentação lógica e/ou encadeamento de ações executadas ou a executar pelas personagens, a fim de criar sentido ou emoção no espectador e, ainda, seguindo uma padronização e estilo. Por sua vez, o narrador é “[...] um ser de papel que, como articulador da narração, determina o ponto de vista”, deixando claro que “[...] a narrativa constrói-se através de uma série de convenções que se revelam a partir do ponto de vista escolhido” (Santos; Oliveira, 2001, p. 4). O corpo do texto é “[...] o espaço onde as carnes em coalescência com as letras formam corpos, dão formas a dados corpos” (Albuquerque Júnior, 2020, p. 15), o que contribui para a afirmação de que todas as biografias, quer se queira, quer não, são versões, possibilidades sobre uma determinada vida e, nesse sentido, mostrando o quanto o biógrafo se assemelha ao retratista. Por isso, é adequado nos referirmos, por exemplo, a uma biografia da Carmen Miranda ou de Nelson Rodrigues e, até mesmo, do Garrincha de Ruy Castro, tendo em vista que o autor foi responsável por produzir uma das diversas possibilidades de biografias que poderiam ser feitas a respeito desses personagens. Assim, a biografia não depende apenas da arte, porém, também precisa estar fundamentada no verídico, nas fontes escritas, nos testemunhos orais. Dosse (2015, p. 59) retoma Maurois, para apontar que, ao se referir à preocupação do gênero biográfico com a verdade sobre a personagem biografada, o ensaísta, que tanto insistia na parte artística, “[...] evoca a dimensão científica e insta os biógrafos a ‘preferir os documentos originais, as cartas, os periódicos’”. Dessa maneira, o trabalho biográfico envolve uma relação entre arte e veracidade do relato, na qual o biógrafo deve cruzar, tal como o cientista, as suas fontes de informação, de tal modo que sejam confrontadas com o objetivo de se aproximar da verdade. Mas, como adverte Dosse (2015, p. 59), o biógrafo pode então tirar o melhor proveito dessa documentação íntima, pois se encontra o mais perto possível do autêntico, a ponto de alimentar, às vezes, a ilusão de poder restituir inteiramente uma vida. Essa busca pela veracidade no relato, além de estar interligada com o ethos de erudição construído pelo autor, remete igualmente ao contrato tácito que Lejeune (1994) evidencia, em sua obra, ao se referir à autobiografia. Conforme estamos caminhando com esta discussão, fica ainda mais perceptível o quanto o leitor espera encontrar, nas biografias, os fatos autênticos, 36 tendo em vista que, ao se publicar e anunciar uma biografia como tal, ao invés de romance, o autor está prometendo ao seu leitor os fatos verídicos, pois a ele o autor deve, acima de tudo, a verdade. Por isso, “[...] o biógrafo tem uma deficiência com relação ao romancista na medida em que não pode evocar a vida interior de sua personagem. Faltam-lhe as fontes que lhe permitiram penetrá-la, ao passo que o romancista sempre dá largas à fantasia” (Dosse, 2015, p. 59). Entretanto, quando o pacto entre autor e leitor é rompido, essa credibilidade deixa de existir. Apesar de Lejeune constituir uma importante reflexão sobre o contrato tácito na escrita de si, é possível nos referirmos a esse pacto também quando nos debruçamos sobre a criação de biografias e livros de época, na medida em que o leitor espera poder encontrar a verdade sobre os personagens narrados e como eles se relacionavam com o período retratado. Esse pacto narrativo entre o biógrafo e o seu leitor deve ser estabelecido no paratexto da obra, quando o autor informa se a sua narrativa está comprometida com a objetividade ou se aquilo que é oferecido possui teor satírico, estando, portanto, compromissado com a ficção. Porém, juridicamente, autor e editor são as duas pessoas responsáveis pelo texto e pelo paratexto e podem delegar parte de sua responsabilidade a um terceiro, o qual porventura tenha escrito o prefácio da obra. Essas menções sobre as intenções do autor (ou de algum outro que esteja vinculado à obra) são fundamentais para que o princípio moral da leitura continue sendo instaurado e, ainda, são essenciais para que o autor não se depare com processos judiciais ocasionados pelos resultados de sua pesquisa. Assim, as técnicas e metodologias aplicadas à produção biográfica do século XXI podem estar embasadas em uma maneira de escapar da censura e de o autor ter a sua obra retirada de circulação, porque diversos jornalistas-biógrafos e historiadores-biógrafos já se viram diante da pena do acusador e tiveram de prestar contas de seus trabalhos à justiça. 1.2 Verdade ou consequência: a definição de um gênero e as estratégias para driblar a censura Lejeune (1994, p. 149), abordando a problemática que envolve as concepções de autobiografia, novela e nome próprio, realizou uma pergunta sobre a função desempenhada pelos nomes próprios, em particular o nome do autor, na percepção, 37 por parte do leitor, do gênero ao qual pertence um texto e na escolha da maneira de lê-lo. Como o leitor leria um texto, pergunta Lejeune, se o personagem tivesse o mesmo nome do autor? Para ele, essas questões possuem a mesma forma de examinar o problema das diferenças existentes entre autobiografia e novela, tendo em vista que esta última serve, na maioria das vezes, para designar livros de ficção. Tratando sobre El caso Lanzmann, em que Jacques Lanzmann publicou, em setembro de 1976, pela editora Laffont, Le Têtard, novela22, Lejeune (1994, p. 151- 154) evidencia uma contradição entre o subtítulo de novela e a identidade do nome entre autor, narrador e personagem e o prefácio, que incita o leitor a ler o texto como uma autobiografia. Esses questionamentos feitos por Lejeune surgem pelas implicações levantadas pela edição do livro, no qual o professor questiona se o autor pode ser responsável pelo título da obra. Conforme ressalta Lejeune, Jacques Lanzsmann entregou a seu editor um texto intitulado L´enfant rouge, sem subtítulo. Mas o editor não se convenceu do título e propôs Le Têtard e acrescentou o subtítulo de novela, não recebendo críticas do autor, o que desencadeou diversas discussões na imprensa, a respeito do caso. Apesar de associar a sua vida a uma novela, Lanzsmann defendia a narrativa como real, o que, consequentemente, poderia resultar em processos judiciais pelo fato de a narrativa não ter agradado a sua mãe, considerando que ela se sentiu difamada com a publicação do livro. Isso também pode estar expresso em trabalhos que possuem uma dimensão biográfica, no qual o título da obra, de maneira equivalente ao caso Lanzsmann, poderá indicar as pretensões do autor. Em Todos os homens são mentirosos (2011), de Alberto Manguel, contamos com o protagonismo de Alejandro Bevilacqua, autor de um único livro e que cometeu suicídio, no exílio em Madri. A história de Bevilacqua chama a atenção de um jornalista francês que tem a ideia de escrever sobre o autor, utilizando como fonte os seguintes depoimentos: do vizinho do morto que, aliás, possui o mesmo nome do autor da obra, Alberto Manguel, nos deixando reflexivos a respeito de como ler o livro, devido a essa particularidade da narrativa; de Andrea, amante do escritor, no momento de sua morte; de Chancho, companheiro dele, 22 Trata-se de um relato cheio de imaginação e emoção, que contém a descrição das primeiras experiências sexuais de Lanzmann com uma vaca. Para isso, são descritos causos da infância e os desejos sexuais que o circulavam. Lejeune (1994, p. 154) mostra as compreensões acerca do livro, frente ao seu caráter ambíguo, no qual o subtítulo Novela corresponde à aparente extravagância de algumas passagens e à imaginação complacente do autor, fazendo Alain Pettré e Pierre Sipriot perguntarem a Lanzmann, em uma entrevista no rádio, do que tratava o livro, afinal, estes o entenderam como uma mistura de confidências e fantasias. 38 enquanto estivera encarcerado na Argentina; e de Tito Gorostiza, um amigo que também vivenciou o exílio em Madri. Esses personagens colaboram para uma delimitação do perfil do protagonista. Porém, a apresentação do livro indica que todos eles estão envolvidos por equívocos e mentiras, garantindo ao autor licença para identificá-los. Dessa forma, o título da obra nos revela uma criação literária, uma exploração dos conceitos de memória e ficção, além da reflexão sobre se “homem” diz respeito a todos os seres humanos ou apenas às pessoas do sexo masculino. Assim, os aspectos paratextuais da obra deixam explícito que se trata de um romance cuja carne e letra se entrelaçam, na tentativa de formar um corpo do texto que não carece de um além texto, afinal, os personagens já habitam nele. Todavia, em Roberto Carlos em Detalhes (2006), de Paulo César de Araújo, o título e a orelha do livro nos mostram que o autor pretendia “[...] empreender o trabalho de levantar – em detalhes – toda a trajetória artística, a vida e a intimidade de Roberto Carlos”, sendo que “[...] este livro persegue – e dá conta – do desafio de contar tudo sobre Roberto Carlos”. Trata-se, portanto, de um trabalho com outra preocupação, com outro objetivo, o qual, ao menos conforme a apresentação da obra, acredita possibilitar ao leitor detalhes sobre a vida do cantor.23 Assim, os aspectos paratextuais do livro não evidenciam a criação do personagem Roberto Carlos pertencente a Araújo, todavia, que o livro consegue narrar toda a vida do cantor, o que, consequentemente, poderia colocar a narrativa frente a uma ação judicial, sem que os direitos artísticos do autor pudessem ser acionados. Christine Duhon, por sua vez, adotou uma postura de “bioficção”, em seu trabalho Une année amoureuse de Virginia Woolf, roman (1990), objetivando uma metabiografia sob a forma de um romance. Nesse trabalho, ela reflete sobre o próprio momento de escrita de Orlando e a paixão de Virginia Woolf por Vita Sackville-West, de tal modo a transitar entre os elementos da vida e da obra da escritora: 23 Isso não significa que, na obra de Araújo, se pretenda desconsiderar a existência do ínfimo e do ficcional, da tentativa de abolir a criação literária. Conforme aponta Bartz (2016, p. 119), a ficcionalização do texto possibilita que os “[...] leitores encantados com esse narrar despendam fascinados momentos de leitura mesmo sabendo de antemão o desfecho da história. Isso porque tendemos a ficcionalizar a vida por parecer mais agradável e confortável. [...]. A biografia atrelada à literatura, a essa forma de descrição verossímil, biografemática, aproxima e encanta o leitor. O texto biográfico, assim, faz com que o personagem biografado (na tentativa do narrador em captar o real) seja explicável em um maior grau de originalidade que a própria vida, ofertando ao leitor uma sensação de poder transformando esse personagem em algo mais manejável e palpável” (Bartz, 2016, p. 119). 39 O fato de retraçar os contornos da vida de Virginia Woolf a partir de sua obra oferece um certo distanciamento com relação aos possíveis deslizes psicologizantes. Com efeito, o biógrafo não mais se deixa levar pela dedução de uma suposta intencionalidade, mas parte do “mundo do texto”, da obra em si como base tangível de uma expressão singular. O texto se interpõe como mediador naquilo que vai assumir a forma de uma reconfiguração biográfica. O relato que daí extrai Christine Duhon é um relato confiável e verossímil quando o confrontamos com aquilo que sabemos já ter sido atestado. A tensão dialética entre as dimensões factual e ficcional – que ela consegue manter ao respeitar a identidade de ambos os polos – remete à natureza visceralmente híbrida do gênero biográfico (Dosse, 2015, p. 66). Em Roberto Carlos: Outra Vez (2021), de Paulo César de Araújo, também é possível notar essa transição entre os elementos da vida e obra do biografado, de tal maneira que o historiador focaliza os episódios da vida de Roberto Carlos, com base em cerca de 240 canções do cantor. Tal como Christine Duhon analisou o momento de escrita de Orlando, Araújo se preocupou em contar como nasceram e foram gravados certos hits, como Jesus Cristo, Sua estupidez, Quero que vá tudo pro inferno, É preciso saber viver, As curvas da estrada de Santos e Como é grande o meu amor por você. A quarta capa do livro aborda essa metodologia de criação biográfica utilizada pelo escritor, na qual se procura apresentar onde nasceu exatamente uma das produções de Roberto Carlos, enquanto o cantor estava na estrada sentido Guarujá-SP. É preciso notar que a busca do ínfimo se nutre de ficção e de fragmentos tangíveis, criando um senso de verdade, um “efeito do vivido” a partir do imaginário do biógrafo e, portanto, permitindo ao leitor uma espécie de criação literária. Mas, se a biografia é o testemunho legitimador do real em uma nomenclatura ficcional, ela testemunha a verdade de quem escreve e não de quem é o objeto da escrita, gerando indecisões e incertezas no leitor sobre como ler a obra. Tendo em vista que, muitas vezes, não é possível comprovar se o título ou o subtítulo das obras estão sendo usados em sentido próprio ou figurado, essa aparente contradição pode gerar indecisões e incertezas no leitor e, frequentemente, confundi- lo, no momento de fazer uma apreciação sobre o trabalho lido. Essas diferentes compreensões que podem surgir da leitura de dois tipos de públicos são o da vida privada real, na qual a personagem citada é conhecida, tornando a narrativa uma forma de recuperar a dignidade da pessoa desacreditada pelo livro, e o do público literário, no qual não se tem conhecimento direto da pessoa em questão, fazendo com que o comunicado sobre o gênero do livro induza os leitores a uma maior atenção sobre as passagens que aludem à personagem (Lejeune, 1994, p. 165). 40 Por conseguinte, o fato de se tratar de uma obra literária ou uma novela livrará o escritor de uma ação judicial, já que a jurisprudência é dada sobre obras de ficção ou literárias, porque permite ao acusado solicitar os “direitos artísticos”. Entretanto, no caso de narrativas de época, memoriais, (auto)biografias e testemunhos, conhecidos como textos referenciais que utilizam os nomes reais de pessoas reais, dificilmente é possível eludir a responsabilidade, em nome da criação literária. Todavia, existe uma fórmula, uma transparência, a qual possibilita ao autor criar e garantir o caráter ficcional do texto, tal como escreveu Patrick Modiano, no início do livro Boulevards de ceinture: “Los personajes y las situaciones que parecen en este libro no tienen ninguna relación la realidade” (Gallimard apud Lejeune, 1994, p. 165). De forma parecida, Eakin (2019, p. 32-34) citou algumas dessas fórmulas, estratégias para se garantir o caráter ficcional do texto, como no caso das memórias de James Frey acerca das controvérsias em torno do livro acusado de fabricar “detalhes de sua pretensa carreira no crime”. A editora havia publicado, no Times, como reação, a manchete “Quando um livro de memórias e os fatos colidem”, presumindo que qualquer coisa cabe em um livro de memórias. Alvo de críticas, o autor teve de se explicar e reconheceu que havia inventado alguns detalhes, mas defendeu a verdade basilar de sua história. O tema foi expresso em diversas publicações editoriais, dentre as quais um editorial sobre Frey, publicado pelo Times, intitulado “O nome disso é ficção”, e outro sobre a verdade autobiográfica, com o título “Minha história real, mais ou menos, e talvez nem um pouco”. Podemos citar também o ataque da autora Mary Karr, ao escrever Sua suposta vida e a construção de uma capa do Times sobre o show de Oprah Winfrey, cujo título era “Ao vivo no Oprah, um memorialista é chutado do Clube do Livro”. Como desfecho de tantas críticas, “Frey e sua editora aparentemente concordaram em indenizar leitores que entraram com ações judiciais sustentando que haviam sido vítimas de fraude quando compraram A Million Little Pieces” (Eakin, 2019, p. 37). Esses exemplos, na história, são infindáveis e podem acontecer sobre as mais diversas situações, dentre as quais quando o autor procura, de certa forma, “dizer a verdade”, entretanto, por meio de um relato falso que não vivenciou. Este é o caso de Rigoberta Menchú, a qual foi questionada sobre os ditos e não ditos, em sua autobiografia, sendo considerada culpada por apresentar os testemunhos de outras pessoas como se fossem dela. Igualmente, Marco Bettle relatou o dissabor sofrido por ele e por outros, nos campos de concentração nazista, reproduzindo as lembranças 41 coletivas ocultadas pelo trauma ou pela conivência; contudo, na verdade e conforme o historiador Benito Bermejo, boa parte do que Marco narrara era falso, não informando ao ouvinte essa particularidade, no seu relato (Bauer; Nicolazzi, 2016, p. 814). Esses casos mencionados exemplificam o rompimento do contrato tácito entre os autores e seus leitores, nos quais estes últimos podem ser os fiscais das reivindicações de verdade das memórias – como acontece na obra de James Frey, na qual o autor e os editores do livro trapacearam o sistema de gêneros. Assim, “[...] os leitores esperam que os autobiógrafos mostrem algum tipo básico de respeito pela verdade de suas vidas – quebre-se essa confiança, sofra-se as consequências” (Eakin, 2019, p. 35). Portanto, é preciso advertir o leitor sobre o caráter e o teor do que é oferecido pela narrativa, como fez o escritor satírico Luciano de Samósata, por meio de uma inusitada “prestação de contas”, escrevendo que “[...] não apenas a estranheza do assunto e o agradável da invenção os distrairão, assim como minha maneira de relatar mentiras diversas de modo plausível e verossímil” (Samósata apud Bauer; Nicolazzi, 2016, p. 809). Dessa forma, podemos compreender que uma palavra, no título da obra, ou uma omissão sobre o teor da narrativa, no paratexto do livro podem mudar a maneira de o leitor e a imprensa enxergarem o trabalho do autor e o repudiarem, caso percebam estranhezas em seu relato. Esse contrato previamente estabelecido entre autor e leitor é uma transparência entre o conteúdo que o livro apresenta e o modo de situar o leitor a respeito de como a obra deverá ser lida. Dois dos livros de Castro que utilizamos para esta pesquisa compõem os subtítulos com A história e as histórias do Samba-Canção e A história e as histórias da Bossa Nova – aliás, em sua quarta capa, Chega de Saudade é identificado como “[...] uma narrativa que se lê como um romance” –, o que abre caminho para uma dupla reflexão a respeito de qual ou quais histórias seriam essas que o autor pretende abordar. Assim, a impressão que temos é a de que o autor contará uma história que acredite ser verídica e outras histórias que a cruzam, como ramificações, causos envolvendo os gêneros musicais, ou que “as histórias” seriam novas interpretações sobre o processo formativo dos circuitos musicais, tanto do samba-canção quanto da bossa nova. Por isso, se o autor se comprometer a escrever uma narrativa lítero- 42 musical, ele indicará ao leitor o gênero textual de seu livro e em qual estante de uma livraria ele poderia ser colocado. Conforme pudemos verificar, uma simples expressão pode ensejar que o autor drible a censura ao seu livro e não tenha de prestar contas de seu conteúdo à justiça. Entretanto, quando o autor prefere afirmar que seu trabalho é verídico e que procura se basear no real, sua obra passa a ficar exposta a questionamentos e processos judiciais viabilizados por quem sinta que teve a sua privacidade violada ou que a honra, tanto sua quanto de sua família, foi depre