V O Z E S D O IM P É R IO PA U L A D A S ILV A R A M O S VOZES DO IMPÉRIO ESTADOS UNIDOS E ARGENTINA NO DEBATE POLÍTICO DA IMPRENSA BRASILEIRA (1875-1889) PAULA DA SILVA RAMOS vozes_do_imperio-capa.indd 1 21/01/2014 18:16:53 VOZES DO IMPÉRIO Vozes_do_imperio.indd 1 21/01/2014 19:20:26 Conselho Editorial Acadêmico Responsável pela publicação desta obra Profa Dra Lúcia Helena Oliveira Silva (Coordenadora) Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior (Vice-Coordenador) Prof. Dr. José Luís Bendicho Beired Prof. Dr. Milton Carlos Costa Vozes_do_imperio.indd 2 21/01/2014 19:20:26 PAULA DA SILVA RAMOS VOZES DO IMPÉRIO ESTADOS UNIDOS E ARGENTINA NO DEBATE POLÍTICO DA IMPRENSA BRASILEIRA (1875-1889) Vozes_do_imperio.indd 3 21/01/2014 19:20:26 © 2013 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ R145v Ramos, Paula da Silva Vozes do Império [recurso eletrônico] : Estados Unidos e Argentina no debate político da imprensa brasileira (1875-1889) / Paula da Silva Ramos. – 1. ed. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2013. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-439-4 (recurso eletrônico) 1. Jornalismo – Brasil – História. 2. Imprensa e política – Brasil – História. 3. Jornais brasileiros – História. 4. Brasil – História – Império, 1822-1889. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 13-06425 CDD: 079.81 CDU: 070(81) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Vozes_do_imperio.indd 4 21/01/2014 19:20:26 SUMÁRIO Introdução 7 1. Brasil: política e imprensa 15 2. Estados Unidos: admiração, interesse e repúdio 49 3. Argentina: convergências e rivalidades 95 Considerações finais 147 Referências bibliográficas 151 Vozes_do_imperio.indd 5 21/01/2014 19:20:26 Vozes_do_imperio.indd 6 21/01/2014 19:20:26 INTRODUÇÃO Este trabalho pretende analisar as interpretações construídas por parte da imprensa brasileira sobre os Estados Unidos e a Argen­ tina nos últimos anos de vigência do regime monárquico. As rela­ ções do Brasil com a América Latina e/ou os Estados Unidos já foram debatidas por vários autores, tanto no âmbito da política ex­ terior quanto das imagens produzidas por intelectuais e políticos brasileiros acerca dos países do continente.1 De acordo com a histo­ riografia, durante o Império, esse relacionamento foi marcado pelo distanciamento e por construções negativas utilizadas para legitimar o Estado nacional e seus interesses na região platina. Discursos polí­ ticos e a produção intelectual do período exaltavam a singulari­ dade e a superioridade da monarquia brasileira, identificada com a “civilização” europeia, em contraposição às “anárquicas” repúblicas hispano­americanas. Segundo Maria Lígia Prado, “a repetição con­ tinuada dos mesmos argumentos contribuiu para a constituição de um imaginário – que acabou por forjar uma memória coletiva – 1. Entre eles podemos citar Maria Lígia Prado, Kátia Gerab Baggio, Luis Cláudio Villafañe Santos, Amado Luis Cervo, Clodoaldo Bueno, Luis Felipe de Seixas Corrêa, Francisca Nogueira Azevedo e Manoel Luiz Salgado Gui­ marães. A seleção desses autores justificou­se pelo fato de eles terem tocado – ao menos tangencialmente, como no caso de Baggio e Bueno – nas relações entre o Brasil e os demais países americanos durante o período imperial. Vozes_do_imperio.indd 7 21/01/2014 19:20:27 8 PAULA DA SILVA RAMOS sobre a outra América, dissociando­a, separando­a do Brasil” (Prado, 2001, p.129). A queda do regime monárquico e a instauração da república no território brasileiro acarretaram um breve deslocamento das atenções do país para o continente americano. Segundo Clodoaldo Bueno, em relação à política exterior, o governo viveu uma verda­ deira “festa” republicana. No momento imediatamente após o ad­ vento do novo regime buscou­se desfazer o rótulo que o Brasil tinha de “diferente” na América, por ter mantido instituições mo­ nárquicas e mais ligadas ao concerto europeu do que com o conti­ nente em que se situava (Bueno, 1995, p.23). Naquela conjuntura, observou­se o alinhamento do país à política pan­americanista liderada pelos Estados Unidos e a tentativa de resolução das pen­ dências lindeiras, que se arrastavam por várias décadas com a Ar­ gentina.2 Todavia, passada a euforia republicana, o país voltou ao pragmatismo do período anterior, e dentre os países americanos, manteve laços mais estreitos apenas com os Estados Unidos, que se cons tituíam paulatinamente como o principal parceiro econômico do Brasil. Quanto à produção intelectual, como bem mostraram Maria Lígia Prado e Kátia Gerab Baggio, mesmo com o advento do novo regime, as interpretações negativas prevaleceram nos escritos bra­ sileiros sobre a América Hispânica. Baggio, em sua tese de dou­ torado, constatou que nas obras analisadas a ênfase foi dada às imagens de anarquia, caos social, desordem, instabilidade, caudi­ lhismo e fragmentação (Baggio, 1999, p.207). Segundo Prado, a 2. O clima de cordialidade que se manifestou no momento imediatamente após a Proclamação da República, tanto no Brasil quanto na Argentina, levou à pro­ posta de uma solução amigável sobre o território de Palmas, ou Missões, em litígio entre os dois países. O Tratado de Montevidéu, celebrado em nome da “unidade institucional da América” e assinado em 25 de janeiro de 1890 por Quintino Bocaiuva e Estanislao Zeballos, dividiu o território em questão ao meio entre os pretendentes. No entanto, após sofrer grande pressão da opinião pública nacional, o próprio Bocaiuva desaconselhou o referendo do tratado, considerado o primeiro grande erro da República (Bueno, 2000, p.246). Vozes_do_imperio.indd 8 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 9 república, devedora dos ideais positivistas, era entendida como uma etapa necessária ao progresso, mas isso não significava des­ truir o que a monarquia havia legado à nação, a começar pela “ma­ nutenção da unidade e grandeza do território”, o que remetia à comparação com a fragmentação e “desordem” das repúblicas his­ pano­americanas (Prado, 2001, p.139; 2010, p.31­40). A periodi­ zação proposta nesta pesquisa refere­se a momentos decisivos do regime monárquico brasileiro, afligido pela grave crise política, econômica e social que causou sua queda em 1889. Os resultados negativos da Guerra do Paraguai e o crescimento da campanha re­ publicana ocasionavam, entre outros, questionamentos sobre a po­ lítica brasileira destinada ao continente americano, notadamente à região platina. E o momento internacional levava à ampliação da rede de relações do país, abrindo caminho à aproximação com os Estados Unidos, destacando­se a viagem do imperador àquele país no ano de 1876, em comemoração ao centenário de sua indepen­ dência, e a participação brasileira na I Conferência Pan­Americana, em 1889, também sob os auspícios norte­americanos. Entre os anos de 1875 e 1889, uma elite política, econômica e cultural associada à campanha republicana, com o objetivo de im­ pulsionar a adesão a essa forma de governo, divulgou suas pro­ postas e ideias por meio da imprensa. Uma de nossas hipóteses consiste em que os interesses específicos desse grupo, representado pelo jornal republicano A Província de São Paulo, contribuíram para uma interpretação distinta daquela apresentada pelo discurso dominante em relação aos países do continente, tendendo a enfa­ tizar os aspectos positivos encontrados naqueles países, teorica­ mente devedores do regime político que almejavam para o Brasil. Com o objetivo de compreender em que medida as propostas do grupo paulista, e de outros republicanos que partilhavam de suas ideias, foram recebidas no país, optamos por estudar mais um órgão de imprensa, o Jornal do Commercio, periódico monárquico­ ­conservador, situado na capital imperial e que contava com grande prestígio e circulação. Assim, poderemos analisar como grupos po­ líticos distintos se posicionaram em relação aos Estados Unidos e à Vozes_do_imperio.indd 9 21/01/2014 19:20:27 10 PAULA DA SILVA RAMOS Argentina, e quais foram as suas propostas quanto ao lugar ocu­ pado pelo Brasil na América. A segunda hipótese deste trabalho é que as interpretações dos diários supracitados não permaneceram estanques, e que sua participação no debate político das últimas dé­ cadas do século XIX contribuiu para a formação de um espaço da opinião pública no Brasil3 no qual se destacaram as diferentes perspectivas a respeito da forma ideal de governo para o Brasil e a vinculação desse questionamento às experiências dos Estados Unidos e da Argentina. A opção por pesquisar esses dois países foi motivada pelas pró­ prias fontes, uma vez que, do conjunto de países americanos, esses se destacaram sobremaneira nos periódicos analisados. Os Estados Unidos se configuravam como um importante mercado consu­ midor para o principal produto brasileiro, o café, e o crescimento acelerado daquele país despertava a admiração de vários setores da sociedade brasileira; a Argentina, por sua vez, era acompanhada de perto devido à relevância dos seus acontecimentos para o governo e a economia brasileira, e pelas constantes tensões motivadas por questões fronteiriças pendentes entre os dois países; o crescimento econômico da república vizinha também foi enfatizado na im­ prensa no período. O uso dos jornais como fonte histórica foi por muito tempo questionado por sua “falta de objetividade” – mas objetividade é um atributo que, de fato, nenhum vestígio do passado pode os­ tentar – e pelo uso instrumental e ingênuo que tomava os perió­ dicos como meros receptáculos de informação a serem selecionadas, extraídas e utilizadas a bel­prazer do pesquisador (Luca, 2005, p.126). O estatuto da imprensa sofreu um deslocamento funda­ mental em meados dos anos 1970, na medida em que o próprio jornal tornou­se objeto da pesquisa histórica. Do ponto de vista metodológico, as dissertações de Maria Helena Capelato e Maria 3. Entre outros elementos que compõem a história da opinião pública, Jean­Jac­ ques Becker discute a realidade plural desse conceito, ao qual se integram “tendências da opinião pública” (Becker, 1996, p.189­91). Vozes_do_imperio.indd 10 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 11 Lígia Prado, posteriormente fundidas no livro O bravo matutino, foram pioneiras. Ressaltando a novidade da abordagem escolhida, as autoras afirmaram que Os estudos históricos no Brasil têm dado pouca importância à im­ prensa como objeto de investigação, utilizando­se dela apenas como fonte confirmadora de análises apoiadas em outros tipos de documentação. A presente pesquisa ensaia uma nova direção ao instituir o jornal O Estado de S. Paulo como fonte única de inves­ tigação e análise crítica. A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica­se por entender­se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social; nega­se, pois, aquelas perspectivas que a tomam como mero “veículo de informações”, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político­ ­social na qual se insere. (Capelato & Prado, 1980, p.XIX) Esta pesquisa se insere nessa perspectiva, pois utiliza os perió­ dicos A Província de São Paulo e Jornal do Commercio como fontes e objetos de análise crítica. Por esse motivo, grande atenção foi con­ ferida aos elementos que permearam os discursos dos referidos diários sobre o tema, tais como seus representantes, grupos de inte­ resse, filiação ideológica e público­alvo, de modo a obter o maior número possível de referências que possibilitassem a compreensão das propostas expressas pelos jornais em relação aos Estados Unidos e à Argentina. Essa proposta articula­se em torno do estudo da construção da identidade nacional, dos embates ideológicos e do processo polí­ ti co em curso no Brasil e na América no final do século XIX. Com base em tais aspectos, procuramos descrever os elementos identi­ tários presentes no discurso da imprensa, acompanhar como cada periódico se posicionou diante dos acontecimentos políticos, eco­ nômicos, sociais e culturais dos países enfocados, em que medida suas interpretações se relacionavam com os eventos nacionais e quais aspectos foram privilegiados por cada órgão de imprensa, Vozes_do_imperio.indd 11 21/01/2014 19:20:27 12 PAULA DA SILVA RAMOS carac terísticas que denotam suas inclinações políticas e interesses específicos. Nosso propósito é, em suma, recuperar as imagens e represen­ tações dos países americanos construídas politicamente por parte da imprensa brasileira nos anos finais de vigência do regime mo­ nárquico. Para Pierre Rosanvallon (1991, p.16­7), o campo “do po­ lítico”, mais amplo do que se convencionou chamar de campo “da política”, é o lugar em que “se articulam o social e sua represen­ tação, a matriz simbólica onde a experiência coletiva se enraíza e se reflete ao mesmo tempo”. Assim, o autor propõe uma “história conceitual do político” cujo objetivo “é a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, o sistema de repre­ sentações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação e encaram seu futuro”. Ro­ sanvallon parte da ideia de que essas representações não são uma globalização exterior à consciência dos atores, mas que elas re­ sultam do trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma. Pensar essas representações requer, portanto, localizar os lugares sociais em que elas foram formuladas e identificar os grupos que as criaram, a fim de melhor compreender tais construções. Nosso trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, buscamos demonstrar a atuação dos periódicos como agentes de in­ tervenção na vida social. Para tanto, descrevemos as circunstâncias de suas fundações, inclinações político­ideológicas de seus repre­ sentantes e da própria publicação e seu público­alvo. Também os situamos no contexto da imprensa brasileira do período e do ce­ nário político interno e externo do país, pois estes se entrelaçaram às considerações de cada órgão de imprensa sobre os Estados Unidos e a Argentina. Outro elemento importante desse capítulo é a análise da identidade nacional brasileira que, como demonstrou Prado (2001), marcou a história das relações entre o Brasil e os de­ mais países americanos, incidindo sobre as instituições, a política e a população em geral. Vozes_do_imperio.indd 12 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 13 Nos capítulos subsequentes analisamos o discurso de ambos os diários em relação aos Estados Unidos e à Argentina, e como essas ponderações implicavam um exame particular da situação política nacional. Optamos por dividir o segundo capítulo entre as consi­ derações circunstanciais dos jornais sobre os acontecimentos polí­ ticos e econômicos da república norte­americana, compreendidos entre 1875 e 1889, e uma análise temática, tomando como refe­ rência os assuntos mais debatidos e opinados por parte dos órgãos de imprensa pesquisados. No tocante ao jornal paulista, esses te­ mas constituíram­se nas comparações entre o Brasil e os Estados Unidos, o progresso econômico liberal e a defesa da livre iniciativa, a instrução pública, a afluência de imigrantes, o federalismo, a exal tação das “características biológicas” da população norte­ame­ ricana e a relação dos Estados Unidos com os países ao sul do conti­ nente, na qual se inseriu a busca por mercados e a Conferência de Washington. O Jornal do Commercio, por sua vez, abrangeu con­ cepções mais gerais a respeito da política, economia e sociedade norte­americana, com especial atenção para a iniciativa pan­ameri­ canista, proposta na década de 1880. No terceiro, o foco é a Argentina. Da mesma forma que no ca­ pítulo anterior, optamos por fazer uma abordagem temático­cro­ nológica. Os assuntos mais discutidos pelo jornal A Província de São Paulo sobre esse país se assemelharam muito aos descritos em relação aos Estados Unidos, abrangendo comparações entre Brasil e Argentina, o liberalismo econômico da república, a imigração, o federalismo e a instrução pública, elementos que se prendiam ao projeto político almejado pelos dirigentes do periódico paulista para a nação. As constantes tensões envolvendo Brasil e Argentina também mereceram destaque. Nessas ocasiões podemos observar o embate entre as interpretações positivas – que o periódico buscava divulgar – e as imagens negativas enraizadas na “memória cole­ tiva” (Prado, 2001, p.129) brasileira – apoiadas nas concepções de desordem, fragmentação, caudilhismo e barbárie que estariam pre­ sentes nas repúblicas hispano­americanas. No tocante ao Jornal do Commercio, ainda que as representações negativas sobre a república Vozes_do_imperio.indd 13 21/01/2014 19:20:27 14 PAULA DA SILVA RAMOS vizinha se fizessem mais presentes, podemos notar uma polifonia não observada no periódico paulista, e a inflexão do discurso do jornal diante do acelerado crescimento econômico e da maior esta­ bilidade política vivenciada pela Argentina na década de 1880. Vozes_do_imperio.indd 14 21/01/2014 19:20:27 1 BRASIL: POLÍTICA E IMPRENSA Durante o século XIX, prosperou no Brasil a crença de um fu­ turo grandioso reservado ao país no continente. A manutenção da unidade, a relativa estabilidade política e as instituições monár­ quicas eram exaltadas como símbolos da verdadeira civilização. Essa concepção, que se constituiu em um importante elemento iden titário da nacionalidade brasileira durante o período imperial, influenciou a trajetória da política exterior do Brasil dirigida às na­ ções do continente e as representações elaboradas no país sobre as repúblicas hispano­americanas. Todavia, as décadas de 1870­1880 abriram espaço para as crí­ ticas em relação ao regime monárquico e ao papel desempenhado pelo Brasil na América, manifestadas tanto no campo político­par­ tidário quanto na imprensa. Neste capítulo, analisamos como as mudanças políticas internas e externas incidiram sobre os perió­ dicos A Província de São Paulo e Jornal do Commercio. Buscamos, fundamentalmente, discutir a participação desses órgãos no debate político brasileiro do final do século XIX, as posições político­ideo­ lógicas dos dirigentes e dos próprios diários, bem como as suas pro­ postas para o país. Vozes_do_imperio.indd 15 21/01/2014 19:20:27 16 PAULA DA SILVA RAMOS Formação e consolidação do Estado e da identidade nacional Para a compreensão das relações do Brasil com os demais países americanos durante o século XIX, faz­se necessário marcar as diferenças entre os seus regimes políticos. Como bem apresentou Luis Cláudio Villafañe Santos (Santos, 2004, p.32ss.), a relativa ir­ relevância das diferenças entre os regimes puramente republicanos e monarquias parlamentares nos dias de hoje, não devem servir como parâmetro para aferir a importância dessa discussão no sé­ culo XIX. A partir do iluminismo, foi contestada a ideia do poder dos soberanos em decorrência de um direito divino. Seu poder de­ veria emanar, a partir de então, da vontade coletiva de seus súditos. Com o surgimento dos nacionalismos, esse processo aprofundou­ ­se, e o sentimento de lealdade à nação passou a substituir os laços de suserania típicos do Antigo Regime (idem, p.35). O ponto cul­ minante desse processo se deu com a Revolução Francesa, quando foi definitivamente contestada a legitimidade dinástica. Os desdo­ bramentos do processo revolucionário de 1789, juntamente com os ideais da Revolução Americana, ocorrida pouco antes, tiveram reflexos irrefutáveis no tocante à legitimação política, e foram sen­ tidos nos processos de emancipação das colônias espanholas e po­ rtuguesa na América. Nesse mesmo sentido, outro evento, também decorrente desse processo, se refletiu no Novo Mundo: a formação da Santa Aliança, que marcou uma onda de conservadorismo e desejo de restaura ção na Europa diante das ondas liberais e nacionalistas. A Santa Alian­ ça, formada por grandes potências europeias, conferiu­se o direito de intervenção em territórios soberanos sempre que a ordem, en­ tendida como ordem monárquica, fosse ameaçada por movimentos revolucionários. Embora os pressupostos da Santa Aliança nunca tenham sido postos em prática, seu estabelecimento teve impli­ cações nos movimentos de independência latino­americanos, que passaram a temer uma intervenção europeia no continente, uma Vozes_do_imperio.indd 16 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 17 vez que, com exceção do Brasil, os novos países construíram seus Estados, desde o início, por meio da ideia de nacionalidade e so­ berania popular. Os ecos desses eventos foram significativos para marcar a separação ideológica envolvida nos regimes republicanos e monárquicos no decorrer do século XIX. O processo de emancipação brasileiro foi sui generis. A transfe­ rência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro foi, em parte, res­ ponsável por uma independência realizada sob os auspícios do príncipe português radicado na colônia, posteriormente convertida em império. Essa diferença, entre outros fatores, acabou por “di­ vidir” o continente entre os descendentes da monarquia portu­ guesa, inscritos no contexto do processo de restauração em curso na Europa, e o restante dos países americanos, imbuídos de fervores republicanos e liberais que os inspiravam em direção oposta à do Brasil (Corrêa, 2000, p.37). Durante o Império, a situação brasileira contrastava com as das ex­colônias hispânicas, que se fragmentaram após as lutas pela in­ dependência e foram perpassadas por fortes conflitos entre poderes locais e centralistas. Após o período das regências, iniciou­se no Brasil uma nova fase política, marcada pela centralização e pela aliança entre o governo, os grupos conservadores e os chamados “barões do café”, que forneceram as bases de sustentação do regi me monárquico brasileiro e garantiram um período de estabi lidade à nação. O processo de configuração das repúblicas hispano­ameri­ canas foi lento, complexo e pontuado por conflitos internos, e as elites brasileiras interpretaram essa dificuldade como expressão da anarquia, desordem, fragmentação e barbárie que supunham ca­ racterizar o regime republicano, e proclamavam o império como expressão da ordem, da unidade, e como símbolo da civilização eu­ ropeia na América. Em contrapartida, os vizinhos republicanos criticaram durante todo o século XIX o regime imperial e escravo­ crata, afirmando que as instituições brasileiras eram retrógradas e retratando o Brasil como representante do “Antigo Regime” e da contrarrevolução (Capelato, 2000, p.289). Vozes_do_imperio.indd 17 21/01/2014 19:20:27 18 PAULA DA SILVA RAMOS Na busca pela legitimação e consequente consolidação do Es­ tado nacional brasileiro, a afirmação da singularidade e “supre­ macia” da monarquia no continente foi adotada nos discursos de políticos, dos jornais e na produção intelectual empreendida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, base de toda a escrita da história do Brasil no século XIX. Devemos atentar para o sen­ tido político conferido à História naquela conjuntura, pois, con­ forme afirmou Manoel Luís Salgado Guimarães, o que estava em jogo, para além do passado, era a produção de um sentido para o futuro da comunidade nacional, que lesse no passado certo destino possível e garantisse a coesão social para o presente (Guimarães, 2002, p.7). Fundado em 1838, o IHGB possuía uma preocupação própria da primeira metade do século XIX: articular cientificidade à ques­ tão nacional, com o objetivo de formular a gênese da nação (Guima­ rães, 1988, p.5­27). A formulação do Brasil enquanto representante da ideia de civilização no Novo Mundo se constituiu por meio da definição do “outro”, tanto interna quanto externamente.1 No pla­ no externo, essa delimitação enfatizou a diferença entre a mo­ narquia e as repúblicas da América do Sul, “onde campeavam a de sordem, a desunião e a fragmentação, todas alimentadas pelas ideias republicanas” (Prado, 2001, p.132). Outro dado essencial para a compreensão da historiografia constituída no seio do IHGB foi a estreita vinculação do Instituto com a monarquia, explicitada na ajuda financeira – uma vez que as verbas do Estado Imperial perfaziam cerca de 75% do orçamento da instituição; no perfil de 1. O texto Como se deve escrever a história do Brasil, do botânico e viajante alemão Francisco Philipp von Martius, vencedor do concurso realizado pelo IHGB em 1840 para a elaboração de um plano para a escrita da história do país, de­ finiu as linhas mestras de um projeto historiográfico brasileiro. Nele ressal­ tava­se a identidade nacional, baseada na mescla de raças – porém com o predomínio do elemento branco e português sobre o indígena e o negro –, e na defesa do Brasil unido, monárquico e cristão, em contraposição à agitação das repúblicas hispano­americanas. Vozes_do_imperio.indd 18 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 19 seus membros,2 e na presença assídua e participante do próprio mo­ narca no Instituto. A construção do Estado brasileiro sob o signo da monarquia e o desenrolar de seu processo de afirmação foram, em parte, respon­ sáveis por um afastamento do Brasil em relação aos demais países americanos. Tal distanciamento foi enfatizado no âmbito do dis­ curso político e, consequentemente, do imaginário nacional, com a formação de uma concepção que salientava a singularidade do país, em detrimento das “republiquetas” do continente. A estabilidade desfrutada pelo Brasil durante o predominância saquarema3 respaldou ainda mais o confronto negativo em relação às repúblicas da América hispânica. Contudo, é importante sa­ lientar os aspectos heterogêneos que compuseram o cenário polí­ tico brasileiro durante todo o Império, a fim de desconstruir a impressão de uma unidade perfeita da elite brasileira, aspecto que não correspondia à realidade econômica e social do país.4 José Mu­ rilo de Carvalho destacou os conflitos regionais e de gerações que permearam o ambiente político nacional mesmo após o regresso conservador e a consolidação do sistema centralizado, sustentando a tese de que tais diferenças foram niveladas por um processo de educação segundo a tradição jurídica de Coimbra, seguida de trei­ namento e carreira no aparelho de Estado. Tais condições, segundo Carvalho, tiveram fortes implicações na atuação parlamentar bra­ 2. Em sua pesquisa sobre o IHGB, Guimarães assegura que parte significativa dos membros do Instituto pertencia a uma geração nascida ainda em Portugal, vinda para o Brasil na esteira das transformações produzidas na Europa em virtude da invasão napoleônica à península Ibérica. Tal experiência marcaria a socialização dessa geração, criada nos princípios de recusa do ideário e práticas da Revolução Francesa e de fidelidade à dinastia dos Bragança, perspectivas que influenciaram decisivamente a história brasileira encaminhada pelo IHGB (Guimarães, 1988, p.10). 3. Sobre a política saquarema, ver Mattos, 1994. 4. Vários autores apontaram para a multiplicidade de projetos, caminhos e possi­ bilidades existentes para a construção da ordem política brasileira e criticaram a ênfase no viés riocentrista e na “tradição saquarema”. Ver Ferreira, 1999; Mello, 2004. Vozes_do_imperio.indd 19 21/01/2014 19:20:27 20 PAULA DA SILVA RAMOS sileira e, consequentemente, evitaram que forças centrífugas le­ vassem o país ao mesmo destino da América espanhola (Carvalho, 2010, p.133). Questões pragmáticas também contribuíram para colocar o país “de costas para a América” (Prado, 2001, p.128), tais como as pendências lindeiras com os países vizinhos, discordâncias quanto à navegação de rios internacionais, a escravidão e o pequeno fluxo comercial do Brasil com os países hispano­americanos no período (Santos, 2004). O Império também não se via ameaçado pelas potências europeias, o que o afastava das iniciativas americanis tas, fomentadas, até a década de 1880, basicamente no sentido da for­ ma ção de uma unidade americana contra possíveis agressões es­ tran geiras. Todavia, mudanças no cenário político interno e externo do Brasil, a partir da década de 1870, ocasionaram o questionamento por parte de alguns grupos políticos sobre esse distanciamento ado­ tado pelo Brasil no continente americano.5 Política externa e processo político no Segundo Reinado Para a compreensão das peculiaridades dos anos pós­1870, consideramos imprescindível a exposição dos elementos constitu­ tivos do período anterior no tocante à política interna e externa do Brasil, dando ênfase às relações do país com a Argentina e os Es­ tados Unidos. Após 1844, o Brasil inaugurou uma nova fase de sua política externa. Os anos que se seguiram até 1876 foram marcados pelo 5. Desde o Manifesto Republicano de 1870 constatou­se a intenção, por parte dos adeptos da implantação do regime republicano no Brasil, de alterar a ma­ neira pela qual vinham sendo conduzidos os negócios exteriores do país. Em relação aos países do continente americano, suas propostas se resumiram na célebre frase: “Somos da América e queremos ser americanos” (Bueno, 2000). Vozes_do_imperio.indd 20 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 21 fim do sistema de tratados, adquiridos em meio à busca pelo reco­ nhecimento da independência, e pelo robustecimento da vontade nacional, resultando, segundo Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno,6 em uma política externa enérgica em seus meios, e inde­ pendente em seus fins. Um dos principais elementos dessa fase centrava­se na questão de limites, e na convicção de que a manu­ tenção da paz com os vizinhos passava por essa definição. Naquela conjuntura, a política externa pautou­se pela preser­ vação das fronteiras, na defesa intransigente do legado territorial e no uti possidetis. Para implementar tal posição, o Brasil optava pela negociação bilateral, recusando o arbitramento em nome da sobe­ rania nacional, política que se mostrou bem­sucedida na maioria dos casos. O mito da grandeza nacional ditou a política de limites brasileira, e norteou as relações do país com os vizinhos ameri­ canos, somando­se a isso a determinação de resistir a pressões ex­ ternas no terreno econômico e político e a busca por hegemonia no rio da Prata. Nessa perspectiva, inserem­se, respectivamente, a firme defesa da Amazônia diante do expansionismo norte­ameri­ cano na década de 1850 e a política intervencionista no sul do con­ tinente no mesmo período. A política exterior brasileira durante o Império baseava­se, se­ gundo Cervo, na concepção “fraco­forte”, corrente que reconhecia as desigualdades de condições que ditavam o meio e a ação interna­ cional dos países. As negociações diplomáticas com potências eco­ nômicas eram encaminhadas com o objetivo de descartar o risco de uma guerra, mas, quanto à região do rio da Prata, a situação se in­ vertia, pois, naquela localidade, o Brasil se considerava uma po­ tência superior, concepção que pesou no exame das relações com os vizinhos do sul (Cervo, 1981, p.15­6). O apelo ao sentimento na­ 6. Sobre a política externa brasileira durante período monárquico, ver Cervo & Bueno, 2002; Cervo, 1981. É importante destacar que há poucas obras sobre o tema, dessa forma, as considerações apresentadas ao longo do capítulo sobre a política exterior do Império baseiam­se fundamentalmente nas obras supra­ citadas. Vozes_do_imperio.indd 21 21/01/2014 19:20:27 22 PAULA DA SILVA RAMOS cional, exacerbado pelas humilhações impostas pelas grandes po­ tências, tinha no Prata a sua válvula de escape, na medida em que se podia lavar ali a honra e a dignidade nacional. Portanto, a guerra somente estaria autorizada contra os “fracos”, estando vetada em relação a Inglaterra, França e Estados Unidos, mas permitida para com a Argentina, Paraguai e Uruguai (idem, p.16, 92). Com base nessa concepção, compreendemos a intervenção nacional na região platina em meados do século XIX. Quanto à po­ lítica intervencionista, duas correntes dividiram espaço no parla­ mento, ambas conectadas a uma “ideia­força” da política exterior brasileira para aquela região, a saber, o confronto entre civilização e barbárie, justificada pelas diferenças entre os regimes políticos e em consonância com a construção identitária do país. Tais cor­ rentes foram a doutrina de segurança, baseada no equilíbrio de poder e no temor em relação ao possível anexionismo argentino, e a do intervencionismo humanitário (Cervo, 1981, p.59­60). A presença brasileira efetiva no rio da Prata entre os anos de 1844 e 1876, abrangendo a intervenção no Uruguai, a luta contra Juan Manuel de Rosas, na Argentina, e a Guerra do Paraguai, es­ tabeleceram profundas mudanças no cenário interno e externo do país. No plano externo marcou a ascensão, apogeu e declínio de uma política brasileira de potência periférica regional, com um mo­ derado caráter imperialista (Cervo & Bueno, 2002, p.132). Do ponto de vista econômico, os efeitos da presença brasileira no Prata foram muito negativos, por ter desviado para esse fim um enorme volume de capital, em detrimento da modernização interna do país, e elevou a dívida pública, devido ao não ressarcimento dos emprés­ timos e dívidas de guerra. No parlamento brasileiro, a política platina, principalmente durante a Guerra do Paraguai, foi objeto de controvérsias, o que contribuiu para o desgaste do sistema par­ tidário, já em franco processo de reformulação. Desde meados da década de 1850 praticou­se uma política de conciliação entre os partidos Liberal e Conservador no Brasil, pois, após longo período de supremacia saquarema, temia­se pela legi­ Vozes_do_imperio.indd 22 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 23 timidade do governo e, consequentemente, do próprio regime. Se­ gundo Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês de Paraná, idealizador de tal política, o sistema imperial deveria se sustentar na alternância do poder entre setores hegemônicos, mas confli­ tantes da elite. A conciliação teve como consequência a composição de um ministério mais heterogêneo e a dissensão dos conservadores tradicionais, sustentáculos da política saquarema (Carvalho & Neves, 2009, p.21­2). Em 1866, em meio a intensa instabilidade ministerial, ocasio­ nada pelas divergências entre os setores políticos – aos quais se acrescentou, na década de 1860, a Liga Progressista, formada por liberais moderados e conservadores dissidentes –, Zacarias de Góes, na ocasião chefe da Liga, assumiu o gabinete do governo. As tensões ocasionadas pela Guerra do Paraguai marcaram todo o pe­ ríodo correspondente ao Ministério Zacarias e precipitou sua queda. Pouco mais de um mês após a sua instalação, as tropas aliadas sofreram grande derrota. Para enfrentar a crise na frente de batalha, Zacarias foi forçado a aceitar a nomeação do general Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, para o comando das tropas brasileiras. A presença do general conservador ocasionou a saída do ministro da Guerra, Ângelo Ferraz, e uma forte oposição liberal. No desenrolar da crise, Zacarias pediu demissão do minis­ tério em julho de 1868. O imperador decidiu manter Caxias no co­ mando e chamou ao governo os correligionários do general, os velhos conservadores, comandados por Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, um dos pilares da Trindade Saquarema. De acordo com a prática parlamentarista consolidada no país, a escolha do novo presidente do Conselho de Ministros deveria re­ cair sobre um componente da maioria parlamentar, isto é, um pro­ gressista, uma vez que os conservadores não contavam, naquela ocasião, com mais de dez deputados. A nomeação de um dos seus líderes provocou enorme reação, acarretando a dissolução da Câ­ mara. A partir de então, os descontentamentos políticos se intensi­ ficaram. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, naquela data Vozes_do_imperio.indd 23 21/01/2014 19:20:27 24 PAULA DA SILVA RAMOS começa a crescer a onda que vai derrubar a instituição monár­ quica. Ela viveria ainda alguns anos, às vezes até com o antigo brilho. Os homens mais lúcidos, no entanto, sabiam que o im­ pério estava condenado. Em 1868 começa o seu declínio até chegar à queda em 1889. Ele já revelara seu potencial, o que tinha de po­ sitivo e negativo. Agora ia viver quase vegetativamente, pois eram sabidos seus limites. A data de 1868 encerra o período de es­ plendor e abre o das crises que levarão à sua ruína. (Holanda, 2005, p.132) A queda do gabinete Zacarias, a implantação de outro que não gozava da maioria da Câmara e, consequentemente, a dissolução desta, evidenciaram aos opositores do regime a contradição do “su­ posto” parlamentarismo brasileiro e recrudesceu a crítica ao poder pessoal do monarca, aumentando a insatisfação política no império. De fato, entre meados de 1868 a 1889, com exceção de uma, todas as legislaturas foram interrompidas por medidas extraordinárias (Holanda, 2005a, p.80, 82). No mesmo ano da queda do gabinete Zacarias, fundou­se no Rio de Janeiro, e em outros pontos do país, o Clube Radical. Os radicais iniciaram intensa propaganda política por meio de confe­ rências públicas e pela imprensa. O Clube Radical, no entanto, durou pouco mais de dois anos, pois, em dezembro de 1870, após um período de discussões, seus membros decidiram fundar o Clube Republicano do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, os clubes ra di­ cais de São Paulo e Minas Gerais, e posteriormente os de outros pontos do país, passaram a intitular­se republicanos, acompa­ nhando de perto os acontecimentos da capital imperial. A importância do movimento em São Paulo era explicável, em parte, pela ebulição antimonárquica suscitada entre estudantes da academia de Direito, que alcançou larga repercussão, sobretudo na imprensa. O exemplo provindo da corte, com célebres conferên­ cias radicais, frutificou também na província paulista, onde as pa­ lavras de Luís Gama, Quirino dos Santos, Freitas Coutinho, entre outros, foram ouvidas e aplaudidas por numerosa plateia, repre­ sentada em grande parte por estudantes do curso jurídico. Em Vozes_do_imperio.indd 24 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 25 1869, Antônio Francisco de Paula Sousa, filho e neto de estadistas do Império, e mais tarde colaborador do jornal A Província de São Paulo, publicou um folheto intitulado A República Federativa do Brasil, no qual se lia na epígrafe que a monarquia “é planta exótica na América”. Nesse escrito sustentava que as reformas pedidas pela opinião pública não seriam duradoras ou vantajosas se não trouxessem no bojo a extinção do regime. O Clube Radical Pau­ listano sustentava também que a república era consequência ne­ cessária para que as ideias liberais e radicais encontrassem sua expressão madura (Holanda, 2005a, p.306­7). As tensões político­ministeriais, somadas às dificuldades eco­ nômicas derivadas do conflito platino e a imposição de reformas sociais, tiveram grande impacto no campo do debate político, ca­ racterizando esse período, segundo Carvalho, como a fase mais rica do Império no que se refere à produção de textos políticos, fossem conservadores, reformistas ou radicais (Carvalho & Neves, 2009, p.31). Manifestava­se entre os políticos brasileiros, seguindo a inter­ pretação de Carvalho & Neves (2009, p.29­30), a descaracterização do sistema de treinamento da elite política, que passava a ser com­ posta em grande medida por profissionais liberais e não mais por funcionários públicos, o que lhes possibilitava maior liberdade para criticar e exercer oposição ao Estado. Outro dado relevante, segundo o autor, seria a participação de personagens de diferentes gerações no jogo político; os mais novos, não tendo passado pelo drama da Regência, não entendiam a preocupação dos antigos com a unidade do país, o que contribuía para os desentendimentos. Terminada a guerra, o Brasil voltou­se à solução dos problemas internos, tais como a crise política, as dificuldades financeiras, a propaganda republicana e a questão servil, que provocava intensos debates e minava as bases de sustentação do regime. A política ex­ terna, como não poderia deixar de ser, recebeu os influxos de tal conjuntura, uma vez que a política interna dos Estados deve ser en­ tendida como uma das principais chaves de explicação do jogo in­ ternacional (Duroselle, 2000, p.56­7). Vozes_do_imperio.indd 25 21/01/2014 19:20:27 26 PAULA DA SILVA RAMOS Do término da guerra até a queda da monarquia, em 1889, duas tendências, interagindo uma sobre a outra, caracterizaram a política externa brasileira: introspecção e dilatação (Cervo, 1981, p.116). A descompressão externa convinha diante da grave crise política, e como condição para conduzir as relações com a Argen­ tina, com a qual o Brasil ainda possuía pendências lindeiras, sem o risco de uma nova guerra, que teria consequências ainda mais de­ sastrosas para o país. Assim, ao final do Império delineou­se entre os estadistas brasileiros uma tendência no sentido de desradicalizar a política brasileira de limites, passando­se a aceitar até mesmo o arbitramento, tradicionalmente rejeitado em nome da soberania das decisões externas, e, principalmente, foram abandonados os métodos de intervenção no Prata. As relações com a Argentina evoluíram em meio a pressões contraditórias. A situação econômica e a importância política da região eram responsáveis pela atuação dos estadistas dos dois lados da fronteira no sentido de conjurar os perigos de guerra. No entanto, as rivalidades tradicionais se traduziam em constantes tensões entre as duas nações. Os motivos para esse quadro relacio­ navam­se ao litígio fronteiriço, ao armamentismo dos dois países, à concorrência para receber imigrantes e às antigas concepções geo­ políticas. Sobre este último ponto podemos destacar a avaliação do governo brasileiro sobre a possibilidade do restabelecimento das fronteiras do antigo Vice­Reinado do Prata, que constituiria um grande Estado rival; bem como os temores argentinos sobre a ex­ pansão territorial do Brasil (Cervo, 1981). A segunda tendência da política externa brasileira no período caminhava em direção oposta, uma vez que o retraimento não era aconselhado no momento em que as relações internacionais se ampliavam, com o apogeu da expansão colonial europeia, com crescimento da concorrência internacional resultante de um novo estágio do desenvolvimento industrial e com novas potências, tais como Alemanha, Japão e Estados Unidos, encaminhando­se para desempenhar um papel mais ativo no cenário mundial. Tal con­ juntura, segundo Cervo, demandava dos Estados decisões cir­ cunstanciais que viabilizariam as possibilidades de emancipação Vozes_do_imperio.indd 26 21/01/2014 19:20:27 VOZES DO IMPÉRIO 27 ou de dominação. Nesse sentido, compreende­se a diplomacia de prestígio de d. Pedro II e a adesão do país ao pan­americanismo (idem, 1981). D. Pedro II investiu em uma política de prestígio pessoal, com a finalidade de resguardar o interesse brasileiro no exterior. Essa iniciativa voltou­se tanto para a Europa, por meio do contato com membros das famílias reais europeias e com instituições científicas, quanto para a América, mais especificamente os Estados Unidos, com a viagem do imperador àquele país para participar da Expo­ sição de Filadélfia, em comemoração ao centenário da indepen­ dência norte­americana no ano de 1876, e mediante a participação do Brasil na Conferência de Washington em 1889. As relações com os Estados Unidos foram administradas de forma cautelosa. Nas primeiras décadas do Império havia descon­ fianças mútuas entre os dois países, pois se acreditava no Brasil que os norte­americanos eram agentes do republicanismo e da revo­ lução na América; estes, por sua vez, consideravam a instauração da monarquia no Brasil como uma ponte aos interesses europeus no continente. Apesar dessa divergência, vários pontos de interesse comum colaboraram no sentido de aproximar as duas nações ame­ ricanas (Holanda, 1971, p.176). Desde 1840, o governo brasileiro considerava as boas relações com aquele país de grande utilidade, a fim de obter vantagens comerciais. Por esse motivo, alinhou as re­ lações para um tipo especial de pragmática cordialidade que zelava pela dignidade e autonomia da diplomacia imperial, como demons­ trado pelo repúdio às pretensões norte­americanas em relação à Amazônia na década de 1850, e pela recusa da proposta estaduni­ dense da formação de um Zollverein em 1887. A pujança da nação norte­americana, acentuada no último quarto do século XIX, e a sua reorientação política em relação ao continente, que passou a privilegiar questões de caráter comercial, tornaram a presença dos Estados Unidos mais constante no Brasil. Além do aumento progressivo das exportações nacionais dirigidas àquele país, o desenvolvimento industrial, tecnológico e econômico estadunidense não podiam ser ignorados: Vozes_do_imperio.indd 27 21/01/2014 19:20:28 28 PAULA DA SILVA RAMOS Havia brasileiros de destaque, influindo nos destinos do país, in­ formados do exemplo norte­americano, e, quando não fosse por simpatia ou identificação com a nação do Norte, pelo menos sa­ biam do que se passava por lá. Basta correr os olhos nos debates registrados nos Anais do Parlamento brasileiro, para perceber­se que os homens que liam Dickens ou Tocqueville, poderiam criticar os Estados Unidos, mas não poderiam ignorá­lo. Quando se cuidou de federalismo, de republicanismo, de imigração e colonização, de reformas do meio circulante e de pro­ blemas comerciais no Brasil, o exemplo norte­americano, quando não as próprias sugestões americanas, foram assuntos trazidos à baila senão para a imitação pelo menos para efeito de comparação. (Holanda, 1971, p.182) A imprensa participou ativamente do debate político das úl­ timas décadas do século XIX, constituindo­se, assim, em um im­ portante meio para acompanharmos as propostas e representações das elites brasileiras sobre as mudanças em curso. A conjuntura de reordenação interna abriu espaço para questionamentos quanto ao papel desempenhado pelo Brasil no exterior, principalmente no to­ cante às relações interamericanas. De acordo com as proposições de Rosanvallon (1981), buscaremos analisar as representações que grupos políticos distintos, ligados aos periódicos A Província de São Paulo e Jornal do Commercio, realizaram sobre os Estados Unidos e a Argentina, bem como suas críticas e propostas quanto à inserção brasileira no continente americano nos últimos anos de vi­ gência do regime monárquico. Vozes do Império: a participação da imprensa no debate político Durante o Segundo Reinado, podemos distinguir duas fases da imprensa brasileira. Segundo Nelson Werneck Sodré (Sodré, 1999), a primeira fase, compreendida entre 1841 e meados de 1860, foi Vozes_do_imperio.indd 28 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 29 pautada pela predominância do discurso conservador e áulico, a despeito das costumeiras vozes dissonantes que marcaram o pe­ ríodo da Regência. A segunda, de 1868 em diante, caracterizou­se pela polifonia e pelo “novo ímpeto combativo” (Bello, 1969, p.53) do qual se revestiu a imprensa. Devemos matizar a abrangência da “conciliação” entre Estado e imprensa na primeira metade do reinado de d. Pedro II, proposta por Sodré, pois, ainda que a liberdade de expressão proporcionada pelo monarca e a prosperidade econômica do país, derivada da pro­ dução cafeeira, tenham se refletido positivamente nessa conci­ liação, jornais de confronto, frutos da imprensa político­partidária e panfletos ousados, que sob o anonimato denunciavam as mazelas do Império, nunca deixaram de existir, ilustrando assim “o latente vespeiro que subjazia no aparente ‘remanso do Império’” (Martins, 2007, p.49). A crise político­ministerial de 1868, acompanhada dos agravos econômicos e sociais, foram o estopim para que os debates políticos se acirrassem, tanto no parlamento quanto na imprensa. As dissen­ sões partidárias, na maioria das vezes, eram acompanhadas da fun­ dação de novas publicações para a divulgação de suas ideias. No auge da mobilização dos liberais radicais, entre 1870 e 1872, sur­ giram dezenas de pequenos jornais. Formou­se também uma im­ prensa independente em relação aos partidos imperiais, tanto na corte quanto nos redutos contestadores, notadamente em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Os paulistas criaram A Província de São Paulo e os gaúchos fundaram em Porto Alegre A Federação. Se­ gundo Angela Alonso, embora provinciais, esses jornais ganharam expressão nacional e participaram decisivamente em eventos cru­ ciais para a queda do regime.7 Essa ativa participação política por meio da imprensa se in­ seriu em um contexto mais amplo do movimento político­intelec­ tual sur gido no Brasil nos anos 1870. De acordo com Alonso, os 7. Alonso, 2002, p.278. A autora se apoia para fazer essas afirmações em Ferreira de Araújo, 1889. Vozes_do_imperio.indd 29 21/01/2014 19:20:28 30 PAULA DA SILVA RAMOS membros dessa geração, marginalizados pelas principais insti­ tuições imperiais, como cátedras de faculdade, o parlamento e os partidos im periais – embora os republicanos Prudente de Moraese Campos Sales tivessem adentrado ao parlamento na condição de deputados –, buscaram formas alternativas, não institucionaliza das de associação política e de manifestações públicas, tais como pas­ seatas, comícios, banquetes e associações. Exprimiram­se tam bém por meios de livros e artigos de jornal. Ainda que atuassem em um espaço público incipiente, por estarem circunscritos a uma dimi­ nuta população alfabetizada e restrita aos centros urbanos, os mem­ bros do movimento de 1870 fizeram da imprensa o seu palanque. O Jornal do Commercio era um dois poucos jornais não partidários existentes no Brasil; ele “era antes informativo que de opinião, mas tendia ao compromisso com as instituições, adotando um tom mo­ deradamente conservador, em sintonia com o espírito do Império” (Alonso, 2002, p.211). Ao mesmo tempo em que se elevava o tom político da im­ prensa, transformações técnicas e a capitalização das empresas jor­ nalísticas mudaram a forma de se fazer notícia. São de grande valia as considerações de Maria Helena Capelato acerca de tais mu­ danças e de seu impacto na compreensão da função da imprensa (Capelato, 1986). Partindo da interpretação de Jürgen Habermas, a autora fez um exame original da história da imprensa no Brasil. Segundo Habermas (1984), o periodismo europeu definiu sua segunda fase no século XVIII, ao tomar como característica a vei­ culação de ideias na luta contra o Antigo Regime. Essa fase se di­ ferenciava da primeira, denominada por ele de informativa, na medida em que o interesse pela luta política passou a orientar a atuação dos donos de jornais para a esfera pública, em detrimento da circulação de notícias inscritas primordialmente na esfera pri­ vada. Assim, a imprensa política teve início quando certos escri­ tores começaram a utilizar os jornais para tornar pública sua opinião. Nessa fase, os proprietários decidiam sobre o conteúdo, pagavam do próprio bolso os colaboradores e assumiam sozinhos os riscos econômicos. Como o lucro era relegado a segundo plano, Vozes_do_imperio.indd 30 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 31 geralmente essas empresas eram deficitárias, pois os donos de jor­ nais estavam interessados em discutir, argumentar e questionar o governo. De acordo com Capelato, a imprensa brasileira assumiu papel semelhante na primeira metade do século XIX, orientando sua atuação para a crítica política, a conquista da liberdade de opinião, defesa da publicidade e atribuindo um papel secundário ao lucro. Na segunda metade do século XIX ocorreram modificações na imprensa brasileira. A principal delas foi o fato de os jornais se or­ ganizarem como empresas comerciais, visando ao lucro. O perio­ dismo europeu havia passado por essa transformação no início do século XIX, momento que Habermas identificou como a terceira fase da imprensa europeia, denominada por ele de comercial. Com a consolidação das demandas da fase anterior, tais como o estabele­ cimento do Estado constitucional burguês e a legalização da esfera pública, o teor político e crítico da imprensa se esvaiu e, assim, foi possível ao setor jornalístico abrir­se às possibilidades do lucro como qualquer outra empresa. Na interpretação de Habermas, ao se tornarem empresas, os jornais cederam o lugar da crítica política aos interesses comerciais, restringindo, a partir de então, a sua ação novamente à esfera pri­ vada. No entanto, Capelato sustenta que, apesar do caráter comer­ cial – evidenciado desde a constituição da empresa em forma de comandita até a busca por aprimoramento técnico com objetivo de angariar maior número de leitores –, os periódicos mantiveram intensa atuação política desde a sua criação, destacando­se como agentes de intervenção na vida política nacional (Capelato, 1986). Concordamos com Capelato quanto à compatibilidade entre o caráter comercial da imprensa e sua atuação política, pois, ainda que A Província de São Paulo e o Jornal do Commercio estivessem cons­ tituídos como empresas, esse aspecto não obstava sua participação ativa como agentes político­ideológicos no cenário político brasi­ leiro dos anos finais do Império. Outro dado a ser observado é que, embora as grandes empresas jornalísticas, constituídas a partir das últimas décadas do século XIX, pretendessem a objetividade e a im­ Vozes_do_imperio.indd 31 21/01/2014 19:20:28 32 PAULA DA SILVA RAMOS parcialidade informativa em suas publicações, devemos considerar as notícias reproduzidas por esses órgãos como pertencentes a um contexto mais amplo. Tanto a seleção dos fatos a serem di vulgados quanto os artigos de opinião denotavam as atitudes próprias de cada veículo de comunicação, e nesse sentido devem ser analisadas. Segundo Pierre Albert (“Comment étudier un journal?” apud Zickman, 1981), no estudo da imprensa três aspectos devem ser le­ vados em conta pelo pesquisador: “atrás”, “dentro” e “em frente” do jornal. O “atrás” do jornal é tudo aquilo que contribui à sua rea­ lização e intervém no seu controle – sociedade proprietária, em­ presa editora e corpo de redatores e jornalistas. Por “dentro” do jornal entendem­se as características formais da publicação, o es­ tilo de apresentação dos artigos e notícias, o quadro redacional (dis­ tribuição dos artigos pelas várias colunas e seções do jornal), a publicidade, a parte redacional (colunas e seções mais importantes) e as principais tendências da publicação. Por fim, o “em frente” diz respeito à audiência da publicação, ou ainda seu leitor­alvo. Cabe observar ainda o processo de obtenção das notícias inter­ nacionais, que, juntamente com os editoriais e cartas de correspon­ dentes, constituíram nosso objeto de estudo mais específico. Na esteira das transformações do último quartel do século XIX, alguns elementos contribuíram para a maior dinamização em relação à obten ção e divulgação das notícias estrangeiras no país: o cabo subma rino, a introdução do telégrafo e o aumento da malha ferro­ viária. O fim do século XIX acompanhou o “espetáculo da superação das distâncias”, o mundo tornou­se mais compactado, o que im­ primiu um novo ritmo à sociedade. Antes disso, as notícias in ter­ nacionais eram obtidas por meio de jornais, revistas e livros trazidos por navios; para o interior havia três possibilidades: portadores soli­ tários, as tropas ou o correio, quando havia (Camargo, 2011). No ano de 1874, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, pu­ blicou os primeiros telegramas, distribuídos pela agência telegrá­ fica francesa Havas no Brasil e, no ano de 1886, A Província de São Paulo também passou a utilizar o serviço. O telégrafo tornou as no­ tícias parte do cotidiano, com relatos curtos que se construíam dia Vozes_do_imperio.indd 32 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 33 após dia. Com esse serviço, a divulgação dos acontecimentos polí­ ticos e econômicos dos países analisados se tornou constante, porém, durante todo o período abrangido por esta pesquisa, as notas telegráficas dividiram espaço, nos jornais analisados, com as resenhas de notícias de folhas internacionais que eram trazidas por navios, e principalmente com as cartas dos correspondentes, ainda que com certa defasagem de tempo, mas preservando as mi­ núcias dos acontecimentos filtrados pelo jornalista e carregadas de suas impressões políticas. Com base em tais balizas teórico­metodológicas apresenta­ remos adiante as principais características dos diários estudados, buscando demonstrar os aspectos que contribuíram para as repre­ sentações destes sobre os Estados Unidos e a Argentina e do pró­ prio lugar do Brasil na América. A Província de São Paulo A fundação do periódico A Província de São Paulo esteve inti­ mamente ligada às insatisfações de grupos políticos e econômicos paulistas que se organizaram politicamente em torno do Partido Republicano da província para se oporem ao Império. A partir da segunda metade do século XIX, assistiu­se à as­ censão do setor cafeeiro do Oeste paulista, que introduziu em suas fazendas métodos de produção mais modernos, substituiu gradati­ vamente o trabalho escravo pelo livre e aumentou sua produ tivi­ dade. Tais avanços contrastavam com as feições das zonas produ­ toras mais antigas, base do governo monárquico, que, atingidas pela decadência, apegavam­se a formas tradicionais de produção e ao trabalho escravo. O grupo paulista vivia uma situação contraditória, pois a trans­ ferência do eixo econômico não implicou sua emergência política e no declínio do poder dos setores tradicionais, os antigos “barões do café”. Embora tivesse se convertido na área mais dinâmica do país, sua representação política era pequena. Outro dado que explicava o Vozes_do_imperio.indd 33 21/01/2014 19:20:28 34 PAULA DA SILVA RAMOS descontentamento era o fato de a província receber apenas um oi­ tavo da renda paga por ela em impostos ao Império, devido à cen­ tralização monárquica. O protesto contra o centralismo político e a reivindicação do gerenciamento de sua própria economia foram elementos de aglutinação deste grupo em torno do Partido Repu­ blicano Paulista (PRP) (Schwarcz, 1987, p.72­4). Os republicanos de São Paulo possuíam preocupações distintas em relação aos do Rio de Janeiro. Enquanto os republicanos da pro­ víncia fluminense refletiam os anseios de intelectuais e profissionais liberais urbanos, os paulistas representavam as aspirações do setor cafeeiro. A principal preocupação dos paulistas era com a auto­ nomia da província, pois a centralização imperial drenava os seus recursos para a corte e para outras regiões (Carvalho, 2010, p.209). A primeira convenção do PRP foi realizada em Itu no ano de 1873, e desde então se manifestou a intenção de montar um órgão de im­ prensa constituído e financiado exclusivamente por repu blicanos. O grupo tentou comprar o Correio Paulistano, mas, diante da re cusa dos proprietários, partiu­se para criação de um órgão jor­ nalístico próprio. Foi então que Américo Brasiliense de Almei da Campos e Manuel Ferraz de Campos Sales, ambos signatários do manifesto republicano paulista, reuniram um grande número de acionistas e fizeram tomar corpo a ideia de criação de um órgão de imprensa financiado pelos republicanos. A organização do jor­ nal se fez nos moldes de uma empresa e contou também com a atuação destacada de ex­alunos da tradicional faculdade de Direito de São Paulo, entre eles, Francisco Rangel Pestana. Advogado e jor­ nalista, Pestana participou intensamente dos debates políticos do período, ajudou a fundar o Clube Radical em 1868, participou da redação dos jornais radicais Opinião Liberal e Correio Nacional, foi um dos oradores das conferências radicais de 1869, aderiu ao Partido Republicano em 1870, e posteriormente ao PRP. O grupo republicano paulista vinculado ao diário A Província de São Paulo era composto principalmente por proprietários rurais ligados à economia do café. Contudo, estes se distinguiam dos ve­ lhos saquaremas pela preocupação em utilizar as descobertas cien­ Vozes_do_imperio.indd 34 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 35 tíficas recentes como modo de auferir maior produtividade. As relações de parentesco estruturavam o grupo. Além dos laços de sangue, que uniam os irmãos Alberto Sales e Campos Sales, Jorge Miranda e Francisco Glicério, e pai e filho João e Jorge Tibiriçá, havia uma estratégia endogâmica de casamento entre paulistas – Rangel Pestana casou­se com a irmã de José Quirino dos Santos, por exemplo. Havia também as figuras destoantes de dois tipó­ grafos, José Maria Lisboa, português de origem, e Francisco Gli­ cério, preceptor dos Sales. Ambos juntaram­se ao grupo por sua profissão, no momento de fundação do periódico. Outro cola­ borador destacado do jornal foi Argemiro Galvão, republicano gaúcho com ativa participação na direção e redação de jornais de contestação, entre eles, A República, juntamente com Alberto Sales; e A Luta, um dos mais longevos dentre os pequenos jornais (Alonso, 2002, p.147­51). O primeiro número, publicado em 4 de janeiro de 1875, sob a direção de José Maria Lisboa e a redação coordenada por Rangel Pestana e pelo também republicano Américo de Campos, decla­ rava o jornal independente, “não sendo órgão de nenhum partido nem estando em seus intuitos advogar os interesses de qualquer deles”. No entanto, a adesão do grupo dirigente aos ideais republi­ canos era determinante na seleção das notícias e temas abordados pelo periódico, que se tornou uma importante voz dos opositores ao regime dinástico brasileiro.8 Em 1880, o diário reafirmou que não se constituía em órgão oficial de nenhum partido, mas declarou que “em política A Província de São Paulo tem um pensamento bem definido: é republicana”.9 No ano de 1884, A Província tornou­se propriedade de Alberto Sales e, no ano seguinte passou às mãos de Rangel Pestana. Em 8. A Província de São Paulo. A Província de São Paulo, 4/1/1875. Para Juarez Bahia, essa aparente contradição pode ser vista como uma “estratégia para tornar mais eficiente a propaganda republicana, questionar a imparcialidade, observar a prudência e a moderação”. Ver Bahia, 1990, p.76. 9. A Província de São Paulo. A Província de São Paulo, 24/1/1880. Vozes_do_imperio.indd 35 21/01/2014 19:20:28 36 PAULA DA SILVA RAMOS 1885, Júlio de Mesquita assumiu a gerência da empresa, mas logo depois se fixou na redação. Por ocasião da retirada de Sales do em­ preendimento, Rangel Pestana comprovou a estreita vinculação do jornal com o PRP e a atuação do órgão como agente de inter­ venção política e ideológica na sociedade brasileira, ao declarar que sentia profundamente a falta de sua valiosa cooperação, que, no tocante ao doutrina­ mento do partido, é insuprimível. Assumo só a responsabilidade da direção do jornal e faço mais em obediência aos grandes interesses do Partido Republicano que ao impulso da minha própria vontade. A Província de São Paulo não sofrerá com isso a menor alteração quanto a seu programa.10 As principais propostas do jornal estavam em consonância com as do Partido Republicano: descentralização, ensino secular e obrigatório, fim da vitaliciedade do Senado, eleições diretas, liber­ dade de culto, instituição do casamento civil e a introdução do tra­ balho livre, que deveria ser realizada por cada província de acordo com seus interesses específicos e tendo por base a indenização (Schwarcz, 1987, p.78). Além do republicanismo, outras questões referentes à filiação ideológica do diário são relevantes para o entendimento das suas formulações sobre os acontecimentos ocorridos no contexto ame­ ricano. O modelo político defendido pelo periódico e considerado “ideal” para o país norteava­se pelos princípios liberais. Como os liberais clássicos, defendia o princípio dos direitos naturais do homem, acreditando, como os iluministas, que a lei da natureza, ou da razão, era capaz de indicar o caminho certo para a conduta humana, estabelecer os padrões sobre o que se podia realizar e os limi tes para a sua ação. De conformidade com esse princípio, o papel do Estado se resumia a promover a liberdade, a igualdade, 10. Pestana, Francisco Rangel. A Província de São Paulo. A Província de São Paulo, 12/12/1885, grifo nosso. Vozes_do_imperio.indd 36 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 37 o gozo da propriedade e outros direitos individuais. Um bom go­ verno, para os dirigentes do jornal, deveria objetivar a manutenção de uma sociedade em que a capacidade e a energia de cada indi­ víduo fossem a chave para sua riqueza. Assim, a defesa da livre iniciativa, um dos sustentáculos da doutrina liberal, configurou­ ­se como um dos conceitos­chave d’A Província. A partir de tais pressupostos, é possível compreender, em parte, as representa­ ções do periódico em relação à Argentina e aos Estados Unidos, que foram utilizados como exemplos comprobatórios dos bene­ fícios das teorias defendidas pelo grupo dirigente. Outro traço característico de suas formulações foi a luta contra o centralismo. Assim, o modelo federal, nos moldes da organização dos Estados Unidos, foi apresentado como solução para os males brasileiros. Por meio do conceito de opinião pública, concebida como fun­ damento das instituições liberais, o periódico justificava as suas posições, e na qualidade de órgão de imprensa atribuiu­se a con­ dição de intérprete dessa opinião, como podemos observar no frag­ mento a seguir: Todas as vezes que emitimos opinião sobre qualquer fato de ordem social, procuramos dar corpo ao nosso pensamento com o direito de quem aceitou os ônus de cidadão brasileiro. Se lem­ bramos alguma medida fazemo­los procurando concretizar aspi­ rações mais gerais da sociedade.11 Não é possível fazer aqui um balanço exato do alcance das for­ mulações do periódico, porém, diante do crescimento ano a ano da publicação, podemos inferir que os ideais divulgados tiveram nú­ mero crescente de adeptos, uma vez que, em 1880, A Província já se destacava como o jornal de maior tiragem de São Paulo. No ano de 1888, o diário produzia 4 mil exemplares, ao passo que o tradicional Correio Paulistano, em 1890, contava com apenas 1.800 exemplares diários (Love, 1982, p.130). Ainda que representassem uma redu­ 11. A Província de São Paulo. A Província de São Paulo, 19/11/1879. Vozes_do_imperio.indd 37 21/01/2014 19:20:28 38 PAULA DA SILVA RAMOS zida elite política, econômica e cultural, não se pode negar que esse grupo constituía uma tendência da opinião pública. De acordo com Jean­Jacques Becker, essas tendências possuem diferentes pesos, “um peso que se mede em ‘quantidade’ e em ‘qualidade’”, pois pouco importa politicamente que exista uma maioria hostil, “se essa hostilidade não chegar ao fanatismo. Inversamente, ‘minorias atuantes’ podem influir mais no acontecimento que maiorias silen­ ciosas” (Becker, 1996, p.191). Embora as concepções dos dirigentes do jornal se norteassem basicamente pelos princípios da clássica teoria liberal do século XVIII, debates próprios do século XIX, tais como o evolucionismo de Spencer e o positivismo de Comte, também se fizeram presentes em seus posicionamentos e foram utilizados a fim de reforçar a adoção do regime republicano e incentivar a imigração europeia no Brasil. Segundo os dirigentes do periódico, a adoção da república seria um passo imprescindível à evolução da nacionalidade brasi­ leira, voltada pela ordem natural das coisas a ser cada dia mais ame- ricana e democrática.12 Devemos ressaltar a leitura própria que esse grupo fazia de tais teorias, utilizando­as na medida em que se ade­ quavam a seus interesses. Era comum a publicação de repúdios feitos a artigos de outros periódicos, que por vezes baseavam­se nos mesmos teóricos, chegando, porém, a conclusões completamente díspares. De acordo com Alonso, as teorias estrangeiras compuseram um repertório para a ação política dos membros da geração de 1870, no qual não importava a consistência teórica entre os elementos sele cionados, pois seu arranjo era histórico e prático. Segundo a auto ra, esse repertório funcionou como uma “caixa de ferramen­ tas” à qual os agentes recorriam seletivamente, conforme suas ne­ cessidades de compreender certas situações e definir linhas de ação. O reper tório político­intelectual europeu auxiliou o movimento da geração de 1870 a exprimir de maneira sistemática e organizada suas críticas aos modos de pensar e agir da elite imperial (Alonso, 12. S. Paulo, 30 de março. A Província de São Paulo, 31/3/1881, grifo do jornal. Vozes_do_imperio.indd 38 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 39 2002, p.39­40). Referindo­se ao jornal A Luta, a autora afirmou que esse diário adotou uma “linha científica de ataque ao Império e de defesa do republicanismo”, e seus artigos seguiam um padrão: apresentavam um assunto do debate político do dia, vasculhavam nas obras de Comte, Spencer, Renan, Darwin, Haeckel e Le Bon – para mencionar apenas alguns – os princípios científicos mais gerais aplicáveis ao problema, concluindo­os com uma solução “oportuna” (idem, p.147). Estratégia semelhante foi adotada pelo periódico A Província de São Paulo. Os elementos descritos antes são importantes à compreensão das representações do periódico paulista sobre Estados Unidos e Argentina, bem como sobre o lugar ocupado pelo Brasil na Amé­ rica, o que demonstra que as formulações construídas em torno dos países analisados estavam inseridas em um quadro mais amplo, ou seja, estavam ligadas ao projeto político que os dirigentes do perió­ dico formularam para o Brasil. Ressaltamos, assim, o papel da im­ prensa enquanto instrumento de intervenção na vida social e a recusa por entendê­la como mera reprodutora de informações. Nossa análise não se restringiu a uma única seção do jornal, pois, ainda que as notícias estrangeiras se encontrassem basica­ mente na seção “Exterior”, composta por resenhas de matérias re­ tiradas de diários brasileiros e internacionais, muitas impressões sobre a Argentina e os Estados Unidos foram encontradas em ar­ tigos referentes a temas nacionais com a finalidade de exemplificar a questão debatida. Assim, os editoriais, e seções como “Instrução Pública”, “Questões Sociais”, entre outras, também se constituí ram em objeto de análise desta pesquisa. Jornal do Commercio A imprensa periódica surgiu tardiamente no Brasil em compa­ ração à Europa ou mesmo às outras partes das Américas, iniciando­ ­se sistematicamente somente a partir de 1808 com a chegada da corte portuguesa e a instalação da tipografia da Impressão Régia. Vozes_do_imperio.indd 39 21/01/2014 19:20:28 40 PAULA DA SILVA RAMOS Nesse mesmo ano começaram a circular os pioneiros Correio Brazi- liense, produzido em Londres por Hipólito da Costa, e a Gazeta do Rio de Janeiro, redigida inicialmente por frei Tibúrcio da Rocha e utilizando­se da recém­instalada Impressão Régia. Sob a vigilância e a censura prévia promovida pelas autoridades, várias publicações se desenvolveram na corte, em sua maioria de maneira efêmera. Anos depois, em 1o de outubro de 1827, contrariando o ca­ ráter temporário da maioria dos diários do período, começou a circular o Jornal do Commercio, um dos mais antigos órgãos de im­ prensa da América Latina ainda em atividade. Fundado pelo francês Pierre René François Plancher de La Noé, o jornal res­ tringiu­se a princípio aos assuntos comerciais e econômicos e em seu primeiro número declarava ser exclusivamente dedicado aos “senhores negociantes”. No entanto, em 16 de julho de 1828, o tí­ tulo do jornal passou a refletir suas incursões pelo território do po­ lítico, adotando por um curto período o nome Jornal do Commercio, Folha Comercial e Política. Ainda com predominância da parte econômica, Plancher envolveu o periódico nas questões políticas do fim do Primeiro Reinado, posicionando­se contra o imperador. Ao lado da Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, participou ativamente do movimento que levaria Pedro I a abdicar (Leal & Sandroni, 2001). No ano de 1832, Plancher decidiu voltar para a França, e por esse motivo vendeu a empresa a Junius Villeneuve – a qual perma­ neceria sob o controle da família Villeneuve até 1890. O novo pro­ prietário promoveu grandes incrementos no periódico. Em 7 de maio de 1836, o jornal passou a ser impresso em um prelo mecânico importado da França, o primeiro instalado na América Latina. Se, até então, a impressão consumia dez horas de trabalho em dois prelos de ferro manuais, com o novo instrumento, levava apenas duas horas. O novo recurso tecnológico proporcionou um aumento significativo na sua circulação, de 400 exemplares quando fora criado em 1827, para mais de 4 mil em meados de 1840 (Borges, 2005, p.83). Vozes_do_imperio.indd 40 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 41 Em 1844, Villeneuve retirou­se para a França, deixando o jornal aos cuidados de Francisco Antônio Picot, seu sócio desde 1837 e mais tarde seu genro. Sob a direção de Picot, o jornal ad­ quiriu considerável influência sobre a opinião pública. O grupo proprietário continuou investindo no aprimoramento técnico da empresa por meio da aquisição de impressoras rotativas e poste­ riormente uma linotipo, instrumentos que fizeram sua tiragem atingir a cifra de 15 mil exemplares diários em 1871, número bas­ tante expressivo para a época. Outra novidade foi a introdução das notas telegráficas distribuídas pela agência de notícias Havas, como já destacamos anteriormente. Na esteira do prestígio alcançado pelo periódico, podemos citar a participação de ilustres colaboradores, tais como José Maria da Silva Paranhos, o futuro visconde do Rio Branco, Joaquim Ma­ nuel de Macedo, José Joaquim Vieira Souto, Justiniano José da Rocha, Gonçalves Dias, Joaquim Nabuco, entre outros. As inova­ ções técnicas, o alcance no número de leitores e a notoriedade de seus colaboradores fizeram do Jornal do Commercio um dos órgãos de imprensa mais importantes da corte imperial ao final do século XIX, com grande circulação e respeitabilidade.13 Quanto à sua in­ clinação política, o Jornal do Commercio se constituiu como órgão apartidário, porém, segundo Sodré, sua estreita ligação com o poder monárquico e o caráter conservador o aproximava do que poderia se chamar de jornalismo oficial (Sodré, 1999, p.189). Devemos ma­ tizar essa afirmação de Sodré, pois, ainda que possuísse clara ten­ dência monarquista, o jornal não se furtou a criticar, ainda que em um tom moderado, alguns aspectos da política imperial, tais como a permanência da escravidão e a apatia do governo no tocante ao estímulo à imigração europeia. Por ocasião do aniversário de dez 13. Em 1889, o Jornal do Commercio era considerado pelo jornalista francês Max Leclerc, correspondente no Rio de Janeiro de um jornal parisiense, um dos dois grandes jornais da capital do país, sendo o outro A Gazeta de Notícias (Leal & Sandroni, 2001, p.2.877). Vozes_do_imperio.indd 41 21/01/2014 19:20:28 42 PAULA DA SILVA RAMOS anos da Lei do Ventre Livre, o diário manifestou seu júbilo por essa ação que iniciou o fim da escravidão no Brasil, tido com um sistema incompatível com o desenvolvimento moral, econômico e da civili­ zação no geral: Completa hoje o seu primeiro decênio a lei que estancou a última fonte da escravidão no Brasil, iniciando a grande obra que, pru­ dentemente, mas energicamente destinada, fará desaparecer, sem perturbação incompatível ao desenvolvimento da riqueza na­ cional, os vestígios de uma instituição bloqueada no seu derra­ deiro reduto pelas exigências da moral universal, pela nítida compreensão dos verdadeiros princípios econômicos, por todos os interesses, enfim, de um estado de civilização, digno de um povo a quem coube em partilha uma das mais extensas e opulentas re­ giões do mundo.14 Em outra passagem, o correspondente do Jornal em Nova York adotou um tom mais veemente. Após detalhar o estudo de um eco­ nomista norte­americano acerca da diferença de produtividade entre o sistema de trabalho livre e o escravista, no qual o último foi apresentado como expressão da barbárie, o correspondente con­ cluiu sua carta com uma crítica à atuação dos estadistas brasileiros: O que ele diz acerca da diferença do trabalho livre e do trabalho escravo deveria ser bem pensado pelos estadistas do Brasil, se as questões meramente de “política” não os preocupassem tanto. In­ felizmente, o governo quase nada tem feito para a promoção da emancipação e todos os amigos do Brasil devem folgar que o Jornal do Commercio, com tanta imparcialidade que é seu caráter distin­ tivo, chamasse ultimamente a contas as autoridades do país pelo abuso do fundo de emancipação.15 14. Jornal do Commercio. 28 de setembro. Jornal do Commercio, 28/9/1881. 15. Exterior – Correspondência do Jornal do Commercio – Nova York. Jornal do Commercio, 4/10/1880. Vozes_do_imperio.indd 42 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 43 O diário dividia suas atenções entre os temas nacionais e inter­ nacionais. Sobre os assuntos internos, um elemento importante em sua composição era a prática de publicar, por vezes na íntegra, os atos do Executivo e os debates parlamentares por meios das seções: “Parte Oficial”, “Assembleia Geral”, “Câmara dos Senhores De­ putados” e “Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro”. O teor opinativo do jornal era relativamente pequeno. As opiniões mais contundentes eram encontradas nos “Retrospectos Políticos”, publicados ao início de cada ano, e em editoriais de datas repre­ sentativas para o Império, tais como o 7 de Setembro e o 25 de Março, “aniversário da lei fundamental da nossa organização política”,16 quando o jornal demonstrava claramente sua tendência monarquista. Os embates entre a tradicional concepção do Estado nacional e as impreteríveis reformas sociais, políticas e econômicas foram a tônica dos anos finais da monarquia brasileira e, devido à empatia do Jornal do Commmercio com o regime, este conflito se refletiu também em suas páginas. O diário teceu em diversos momentos elogios às instituições e manifestou o desejo de continuidade monár quica: registremos um fato que encheu de júbilo a família imperial, e foi acolhido com a maior satisfação pelo país inteiro: o nascimento do príncipe do Grão­Pará [...] representante de um princípio, a ga­ rantia de conservação das sábias instituições a cuja sombra tem o Brasil realizado progressos, senão rápidos, ao menos constantes e estáveis.17 Contudo, tal como demonstrado em relação à escravidão, temas como a reforma eleitoral, a separação entre Estado e Igreja, os direitos civis, a instrução pública, a demasiada tutela estatal na 16. Jornal do Commercio. 25 de março. Jornal do Commercio, 25/3/1878. 17. Retrospecto do ano político de 1875 – Brasil. Jornal do Commercio, 11/1/1876. Vozes_do_imperio.indd 43 21/01/2014 19:20:28 44 PAULA DA SILVA RAMOS economia e a onipotência do Executivo foram discutidos pelo pe­ riódico, com críticas, ainda que sutis, aos estadistas brasileiros: Há de ser livre o Estado que cuidar em elevar o seu nível intelec­ tual e moral, instruindo e educando os indivíduos e promovendo geral progresso. É impossível firmar­se a liberdade política entre um povo composto de ignorantes, desmoralizados, indigentes e inconscientes de seus direitos, será matéria predisposta para todos os despotismos. Temos já caminhado bastante, poderemos cami­ nhar mais aceleradamente se os nossos estadistas cuidarem mais e eficazmente em promover o progresso real da nação, as questões sociais, econômicas e administrativas devem ser a arena dos espí­ ritos criadores.18 Tais questionamentos culminaram na reflexão sobre a ade­ quação do regime político brasileiro na imprensa nacional. Se, para os contestadores, o republicanismo seria a forma mais adequada de o país alcançar o progresso, o Jornal do Commercio afirmava que, em teoria de governo, o Brasil possuía o que havia de melhor. To­ davia, em ambas as análises, as representações acerca das repú­ blicas do continente, notadamente Estados Unidos e Argentina, tiveram importância crucial, conforme veremos adiante. Em relação às notícias internacionais, a quantidade de infor­ mação também era elevada, sobretudo pela frequência das notas telegráficas. Mesmo contando com esse serviço, as resenhas de jor­ nais estrangeiros mereciam lugar de destaque, ocupando parte das seções “Jornal do Commercio” e “Gazetilha”, também com pouco teor opinativo por parte dos dirigentes do diário brasileiro. Esse lugar­comum era quebrado nos “Retrospectos Políticos” interna­ cionais, e na seção “Exterior”, constituída pelas cartas de corres­ pondentes particulares do jornal residentes nos países de interesse. A Europa contava com maior espaço na seção: Inglaterra, França, Portugal, Itália, Espanha, Alemanha, Áustria e Rússia eram alguns 18. Jornal do Commercio. 25 de março. Jornal do Commercio, 25/3/1878. Vozes_do_imperio.indd 44 21/01/2014 19:20:28 VOZES DO IMPÉRIO 45 dos países apresentados regularmente aos leitores. Sobre tais países, o periódico publicava também, quinzenalmente, o “Suplemento de Notícias da Europa”. No continente americano, apenas os Estados Unidos, a Argen­ tina e o Uruguai contavam com o serviço dos correspondentes, o que demonstrava a relevância de tais países no conjunto das nações americanas para os dirigentes do diário fluminense. A aparente im­ parcialidade demonstrada nas demais seções, devido ao diminuto teor opinativo do periódico, desaparecia nos relatos desses corres­ pondentes. Infelizmente não foi possível mapear quem eram esses funcionários residentes devido à inexistência de arquivos sobre eles, mas por meio da leitura atenta de suas cartas foi possível inter­ pretar suas inclinações políticas e, de certa forma, a repercussão de suas opiniões na capital imperial. Por esse motivo, a seção “Exte­ rior” se constituiu em um dos principais tópicos de análise desta pesquisa, sem, no entanto, excluirmos o teor das demais. Notamos uma pluralidade nas opiniões manifestas na corres­ pondência de Buenos Aires. No ano de 1876, a mudança ocorreu de forma explícita por meio da substituição do colaborador do jornal na Argentina. Em alguns períodos, observamos também o acúmulo de funções dos correspondentes no rio da Prata, na medida em que as notícias argentinas eram por vezes enviadas pelo colaborador em Montevidéu, ocorrendo também o inverso. Outro dado importante foi a repercussão dessa seção do Jornal do Commercio na imprensa e no Senado19 do Brasil e na Argentina. A correspondência de Nova York esteve sob a responsabilidade de José Carlos Rodrigues du­ rante toda a década de 1870. Posteriormente, em 1882, Rodrigues passou a correspondente em Londres.20 19. Na correspondência do rio da Prata datada de 15 de agosto de 1875, o corres­ pondente declarou que respeitava a opinião dos “senadores que se manifes­ taram em completo desacordo com as apreciações” que ele havia feito, demonstrando, assim, a circulação e importância dessa publicação no meio político brasileiro no último quartel do século XIX. 20. Não houve como no caso argentino o noticiamento da mudança de correspon­ dentes em Nova York. Ressaltamos mais uma vez a inexistência de arquivos Vozes_do_imperio.indd 45 21/01/2014 19:20:29 46 PAULA DA SILVA RAMOS A empresa jornalística se demonstrou um empreendimento lu­ crativo, porém, com a proclamação da República, Francisco Picot e Julio Constâncio Villeneuve – filho de Junius, que durante o Im­ pério seguiu carreira de diplomata e era monarquista, fiel ao impe­ rador Pedro II – resolveram vender o Jornal do Commercio ao até então correspondente em Londres, José Carlos Rodrigues. Sob a direção de Rodrigues, o jornal inaugurou uma nova era de sua exis­ tência, passando até mesmo a apoiar a República. Antes da análise das notícias referentes à Argentina e aos Es­ tados Unidos, enfatizamos a circulação de ideias que se manifes­ tava em território brasileiro no referido período, em grande parte devedora das novas tecnologias que encurtaram distâncias ao final do século XIX. As opiniões de ambos os jornais não permane­ ceram circunscritas às suas respectivas províncias, pois matérias pu blicadas em A Província de São Paulo foram rebatidas e/ou utiliza das como base de argumentação em textos do Jornal do Com- mercio, ocorrendo também o inverso. As apreciações do correspon­ dente do Jornal do Commercio no rio da Prata também serviram de base a muitos artigos de opinião d’A Província, demonstrando assim a existência de um debate e até mesmo uma disputa por lei­ tores e adeptos de cada uma das interpretações. Esse dado revela a atuação dos jornais como instrumentos de intervenção política vi­ sando à mobilização da opinião pública nacional, entendida como um “fervilhamento de opiniões particulares” (Jacques Ozouf apud Becker, 1996, p.190). Com a liberdade que a imprensa desfrutou durante o Segundo Reinado, foi possível que vários elementos da opinião pública se refletissem nos jornais.21 Em conformidade com a análise de Bec­ sobre os colaboradores do Jornal do Commercio no período analisado. José Carlos Rodrigues foi o único mencionado nas obras de referência, devido a sua importância para a história do periódico a partir de 1890. 21. Em sua análise sobre a história da opinião pública, Becker dedicou especial atenção à imprensa, e afirmou que esta, desde que livre de qualquer censura, é um produtor considerável de informações diversas, que esclarecem os com­ Vozes_do_imperio.indd 46 21/01/2014 19:20:29 VOZES DO IMPÉRIO 47 ker, buscamos analisar como se configurou esse espaço de opinião no Brasil em relação às instituições políticas nacionais e aos países americanos, que englobou traços da identidade nacional, inseri­ dos na longa duração, e as mudanças do cenário político interno e externo brasileiro das décadas de 1870­1880, em uma “complexa alquimia entre o estado das mentalidades e o contexto” (Becker, 1996, p.190). portamentos e, consequentemente, contribuem para o estudo da opinião pú­ blica (Becker, 1996, p.195­7). Vozes_do_imperio.indd 47 21/01/2014 19:20:29 Vozes_do_imperio.indd 48 21/01/2014 19:20:29 2 ESTADOS UNIDOS: ADMIRAÇÃO, INTERESSE E REPÚDIO Poucos anos após o término da Guerra de Secessão, os Estados Unidos já se destacavam como uma das maiores potências indus­ triais do mundo, suscitando admiração e desconfiança em todo o continente americano. A grande expansão econômica, as tentativas de ampliação de seus mercados consumidores, a intervenção nos territórios ao sul do rio Grande e a composição “racial” de sua po­ pulação foram temas que ganharam cada vez mais espaço entre os intelectuais latino­americanos ao final do século XIX. No Brasil, agitado pela crise do regime monárquico e pela campanha republi­ cana, posições distintas sobre aquele país foram divulgadas, ainda que apresentassem como aspecto comum o reconhecimento do seu “admirável progresso”. Este capítulo tem por objetivo a análise das representações construídas pelos periódicos A Província de São Paulo e Jornal do Commercio sobre os Estados Unidos, destacando como estas re­ presentações se prendiam ao corpo de ideias que compunham o repertório político­ideológico desses órgãos. Nossa hipótese é que, ao noticiar os acontecimentos da república norte­americana, os diários buscaram selecionar fatos e elementos da história daquele país, em detrimento de outros, para a composição de exemplos e justificativas de seus posicionamentos em relação à política brasi­ Vozes_do_imperio.indd 49 21/01/2014 19:20:29 50 PAULA DA SILVA RAMOS leira. No tocante a A Província, ainda que motivado pelo prag­ matismo, acreditamos que suas formulações colaboraram para a divulgação da vertente pan­americanista no país, em contrapo­ sição ao europeísmo monárquico. O Jornal, por sua vez, destacou, além do elevado crescimento econômico, as contradições exis­ tentes na república estadunidense, explicitando seu repúdio às ins­ tituições republicanas. Atenção especial foi dada também às iniciativas para a ampliação de mercados consumidores nos países latino­ame ricanos. Optamos por dividir este capítulo em duas partes. Na primei­ ra, vamos nos ocupar dos acontecimentos norte­americanos bali­ zados entre 1875 e 1889, a fim de apreciar quais foram os assuntos noticiados ou ignorados pelos jornais. Em seguida, analisaremos as questões mais debatidas pelos periódicos sobre os Estados Uni­ dos e a relação destas questões com as propostas dos grupos diri­ gentes para os rumos da política nacional. Seleção dos fatos e construção da imagem norte-americana Durante o período abarcado por esta pesquisa, os Estados Uni­ dos passavam por uma fase de reestruturação após a Guerra Civil e a consolidação interna do país sob a hegemonia do Norte capita­ lista. Politicamente, a guerra marcou o renascimento da União e o estabelecimento de um Estado mais centralizado no Executivo. Tal situação garantiu condições para que o país passasse a um novo es­ tágio de desenvolvimento, constituindo­se, ao final do século XIX, em uma das maiores potências industriais do mundo. A reconstrução pós­guerra não se deu facilmente. As disputas partidárias e o elevado índice de corrupção, principalmente na ad­ ministração do republicano Ulysses S. Grant, entre os anos de 1869 e 1877, foram algumas das dificuldades enfrentadas. As eleições de 1876 ocorreram ainda sob fortes tensões quanto à reconciliação entre o Norte e o Sul do país. O processo eleitoral daquele ano foi Vozes_do_imperio.indd 50 21/01/2014 19:20:29 VOZES DO IMPÉRIO 51 travado entre Rutherford B. Hayes, governador republicano de Ohio, e o democrata Samuel J. Tilden, governador de Nova York. Quando os resultados foram divulgados, Tilden havia ganhado no voto popular e parecia ter chances de obter uma vitória estreita no colégio eleitoral. Em 22 de dezembro de 1876, A Província de São Paulo publi­ cou fragmentos de um artigo argentino sobre a possível vitória do candidato democrata, após a administração envolta por escândalos de corrupção do republicano Grant. O artigo salientava a forma como a população norte­americana havia se manifestado nas urnas, mostrando por meio de um processo democrático a sua insatisfação com o governo anterior. Segundo A Província, esta era “antes de tudo, a afirmação da vitalidade e sensatez prática de um povo, que nos tempos modernos está patenteando ao mundo a pujança e ener­ gia de uma sociedade livre e democrática”.1 O artigo continuou em tom elogioso para com a população estadunidense, em contrapo­ sição à atitude dos povos ao sul do continente, entre os quais incluiu o Brasil, que preferiam a revolta, por vezes armada, e a fraude para manifestar sua insatisfação. O resultado foi contestado pelos republicanos e por esse mo­ tivo a definição do novo presidente ficou em suspenso por meses. O Congresso nomeou uma comissão eleitoral composta por 15 membros para determinar a quem seriam atribuídos os votos nos estados com contagem duvidosa. A comissão, dividida entre os partidos, deu parecer favorável a Hayes, com diferença de apenas um voto, mas essa decisão ainda deveria ser ratificada pelo Con­ gresso e pela Câmara, na qual havia forte oposição democrata. A disputa chegou ao fim por meio de um acordo, o “Compromisso de 1877”, que assegurou a eleição de Hayes em troca da evacuação das últimas tropas federais do Sul. As tensões entre o Norte e o Sul do país não mereceram des­ taque no periódico paulista. No ano de 1877, A Província, apenas 1. A vitória dos princípios. A Província de São Paulo, 22/12/1876. Vozes_do_imperio.indd 51 21/01/2014 19:20:29 52 PAULA DA SILVA RAMOS informou a apuração dos votos da “Grande União Americana” e a retirada gradual das tropas federais dos estados do Sul do país, que, de acordo com o jornal, estariam inteiramente pacificados e recon­ ciliados. Sem emitir opiniões contundentes sobre a forma como se deu a eleição, o diário ocupou­se em apresentar o novo chefe da nação norte­americana e seus ministros, e, ao longo de seu governo, emitiu pareceres favoráveis às suas ações e personalidade, decla­ rando que “não é lícito duvidar da honestidade e patriotismo de suas intenções (do presidente Hayes) e do sisudo gabinete que o auxilia”.2 O artigo publicado quando do anúncio da possível vitória de Tilden não pode ser interpretado como uma preferência parti­ dária do jornal, pois evidenciou mais um caráter de comparação entre as atitudes das diferentes populações do continente ameri­ cano do que uma tomada de posição diante do acontecimento polí­ tico em si. Os processos eleitorais norte­americanos se constituíram em um dos temas mais caros ao Jornal do Commercio, que realizou aná­ lises minuciosas do cenário político, da escolha dos candidatos e das inclinações políticas e pessoais dos mesmos, sem se abster de criticar ambos os partidos. De acordo com o diário, os Estados Unidos deviam muito ao Partido Republicano pela sua atuação na Guerra de Secessão e na abolição da escravidão, porém este havia se corrompido sobremaneira; o Partido Democrata, por sua vez, não possuía política fixa e ainda estava sob a sombra de suas confabu­ lações com os rebeldes do Sul contra a existência da União. A “cor­ ruptíssima administração Grant” e as eleições de 1876 ecoaram negativamente no diário a cada nova sucessão presidencial, e foi caracterizada como um escândalo, uma fraude, uma vez que não havia dúvidas de que Tilden havia sido eleito. Seguiram­se ao governo Hayes as administrações republicanas de James Garfield, de março a setembro de 1881, interrompida pelo assassinato do presidente; de Chester A. Arthur, de setembro 2. Exterior – O presidente Hayes. A Província de São Paulo, 1o/4/1879. Vozes_do_imperio.indd 52 21/01/2014 19:20:29 VOZES DO IMPÉRIO 53 de 1881 a março de 1885; do democrata Grover Cleveland, de 1885 a 1889, e, por fim, novamente um republicano, Benjamin Har­ rison, de 1889 a 1893. Os processos eleitorais foram acompanhados com bastante atenção pelos periódicos analisados, desde as conven­ ções partidárias até a apuração. Séries de matérias também foram publicadas com a finalidade de explicar o sistema eleitoral e des­ crever as personalidades que haviam ocupado o cargo de presidente da República. Particular interesse foi demonstrado pelo diário A Província durante as eleições legislativas no Brasil e a discussão sobre a reforma eleitoral no ano de 1881. As apreciações do jornal paulista em relação aos políticos norte­americanos, independentemente de suas filiações partidárias, centravam­se na publicação de suas trajetórias, que, sem exceção, explicitavam o “caráter irrepreensível” dos mesmos. Até mesmo Grant, cuja administração foi marcada por escândalos administra­ tivos, foi qualificado como o “homem a quem a nação americana deve seu restabelecimento”.3 O Jornal do Commercio mostrou­se mais crítico em relação às personalidades políticas norte­ameri­ canas. Entre outras considerações, o diário afirmou que Grant des­ conhecia as regras de cortesia e civilização política4 e que Hayes havia sido infeliz na execução de seu plano presidencial: “um grande homem poderia tê­lo feito, mas Hayes é apenas um bom homem, um excelente cristão de puros costumes, mas não tem força de vontade, carece daquele magnetismo que faria este povo esquecer os muitos erros do estólido Grant”.5 Os anos após a Guerra Civil foram de extraordinário cresci­ mento econômico. Entre 1870 e 1900, a população dos Estados Unidos dobrou, passando de cerca de 35 milhões para mais de 70 milhões de habitantes, acompanhada de intensa urbanização. O 3. Exterior – Estados Unidos. A Província de São Paulo, 18/11/1879. 4. Exterior – Correspondência do Jornal do Commercio – Nova York. Jornal do Commercio, 2/2/1877. 5. Exterior – Correspondência do Jornal do Commercio – Nova York. Jornal do Commercio, 4/5/1878. Vozes_do_imperio.indd 53 21/01/2014 19:20:29 54 PAULA DA SILVA RAMOS Produto Nacional Bruto (PNB) triplicou, surgiram as grandes em­ presas, iniciou­se a era da industrialização e das inovações tecnoló­ gicas. A mecanização da agricultura gerou aumentos exponenciais de produção e a expansão das áreas de cultivo. As três últimas déca das do século XIX assistiram também a uma verdadeira re­ volução nos transportes, de modo que a malha ferroviária norte­ ­americana atingiu a cifra de 380 mil quilômetros, integrando todo o país (Schoultz, 2000, p.106). A economia estadunidense foi, sem dúvida, o tema de maior destaque no periódico paulista, pois “nada podia demonstrar me­ lhor a pasmosa prosperidade dos Estados Unidos que o resultado da tesouraria geral”.6 Cifras sobre a exportação, receitas, produção agrícola e investimentos nos mais diversos setores foram constan­ temente publicados pelo jornal, que se utilizava desses dados para criticar o governo brasileiro. Segundo A Província, o imobilismo monárquico seria o responsável pelo fato de o Brasil estar aquém de sua capacidade produtiva. Embora ambos os jornais utilizados nesta pesquisa apresen­ tassem como ponto comum o reconhecimento do “extraordinário progresso” econômico norte­americano, o Jornal do Commercio, di­ ferentemente do periódico paulista, noticiou também as contra­ dições daquele país. Ainda que o crescimento fosse bastante sig nificativo, recessões e problemas sociais foram constantes nas últimas décadas do século XIX. Os anos de boom econômico pós­ ­guerra foram pontuadas por recessões entre 1873 a 1878, 1882 a 1885 e 1893 a 1897 (Schoultz, 2000, p.107); por conflitos sociais decorrentes da abolição da escravidão nos Estados do Sul e pelas péssimas condições de vida dos trabalhadores rurais e urbanos em todo o país. A formação de verdadeiros impérios nas mãos de interesses privados, como a Standard Oil – organizada em 1870 por John Rockefeller e que veio a monopolizar a distribuição de petróleo nas 6. Revista estrangeira – Estados Unidos. A Província de São Paulo, 4/12/1881. Vozes_do_imperio.indd 54 21/01/2014 19:20:29 VOZES DO IMPÉRIO 55 últimas décadas do século XIX –, não poderia deixar de afetar ar­ rendatários e trabalhadores de usinas. Pesava sobre essa situação a adesão do governo norte­americano ao não intervencionismo, ao laissez-faire, e, segundo Claude Fohlen, ao darwinismo social, pelo qual se acreditava que “fora pela seleção natural que a espécie hu­ mana atingira seu presente estado de desenvolvimento, fazendo­se então necessário deixar agir os fatores naturais”, o que permitiria “aos