RAMON SPIRONELLO DO NASCIMENTO O PAPEL DAS FANTASMAGORIAS DO BAIRRO DE SANTA FELCIDADE NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE DE CURITIBA – PR. RIO CLARO – SP 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS CÂMPUS DE RIO CLARO RAMON SPIRONELLO DO NASCIMENTO Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy Rio Claro – SP 2023 O PAPEL DAS FANTASMAGORIAS DO BAIRRO DE SANTA FELICIDADE NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE DE CURITIBA - PR Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. N244p Nascimento, Ramon Spironello do O papel das fantasmagorias do bairro de Santa Felicidade no processo de valorização do espaço na metrópole de Curitiba - PR / Ramon Spironello do Nascimento. -- Rio Claro, 2023 140 p. : il., fotos, mapas Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientador: Paulo Roberto Teixeira de Godoy 1. Geografia. 2. Geografia Urbana. 3. Metrópole. 4. Fantasmagoria. 5. Valorização do Espaço. I. Título. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro RAMON SPIRONELLO DO NASCIMENTO O PAPEL DAS FANTASMAGORIAS DO BAIRRO DE SANTA FELICIDADE NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE DE CURITIBA - PR Comissão Examinadora Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy (orientador) IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof. Dr. Sócrates Oliveira Menezes UESB/Vitória da Conquista (BA) Profa. Dra. Wilma Lucena Guedes DCH/UEMG/Carangola (MG) Conceito: Aprovado Rio Claro, 30 de novembro de 2022 DEDICATÓRIA Dedico esta dissertação de mestrado ao meu pai, Jorge Luiz do Nascimento, e a minha avó materna, Maria Montebello Spironello, que faleceram durante esta jornada da dissertação de mestrado. A falta que ambos me fazem é enorme, porém, seus exemplos de dedicação e de como driblar as adversidades da vida me fizeram ter forças para seguir e finalizar a presente pesquisa. AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, Jorge (falecido durante o mestrado) e Sônia, a minha avó materna, Maria (falecida durante o mestrado) e aos meus tios César, Kátia e Angélica, por estarem sempre a meu lado em todos os momentos e por me apoiarem tanto na vida pessoal como na vida acadêmica, assim como também agradeço outros familiares não citados. Quero também agradecer a todos os meus amigos e amigas, de dentro e de fora da universidade, com os quais criei laços ao longo destes anos, mesmo aqueles dos quais me afastei em decorrência dos desencontros desta vida. Agradeço especialmente, João (Dourado), Guilherme e Laura, que tornaram a vida acadêmica mais feliz e menos cansativa. Gostaria de agradecer também ao Programa Pós-Graduação em Geografia da UNESP. Assim como agradecer aos alunos, professores e funcionários do Núcleo de Educação Integrada da Fundação Romi de Santa Bárbara d’Oeste onde leciono as disciplinas de geografia e sociologia desde o início desta jornada do mestrado. Por fim, também quero agradecer ao meu orientador de mestrado, Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy, que trouxe importantes contribuições para que este trabalho pudesse ser desenvolvido, além de sua paciência e compreensão com as adversidades encontradas durante o percurso. Agradeço também ao Prof. Dr. Prof. Dr. Sócrates Oliveira Menezes, ao Prof. Dr. Rildo Borges Duarte e à Profa. Dra. Wilma Lucena Guedes, que aceitaram compor a Comissão Examinadora da qualificação e posteriormente da dissertação, trazendo vários apontamentos fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa e para minha formação enquanto geógrafo crítico. O presente trabalho foi realizado sem apoio financeiro por parte das instituições de fomento a pesquisa em virtude do cenário político nacional caótico em que a mesma foi desenvolvida, em um claro ataque a ciência e a educação brasileira. EPÍGRAFE “A Santa Felicidade dos herdeiros das capitanias É ver o povo sem informação, sem identidade... (...) O olho grande sedento por sangue e almas, Materializam-se na arquitetura da cidade. (...) Na capital “ecológica”, A população ainda se assusta... (...) Tentar criar uma identidade branca para Curitiba. Não registrar na memória coletiva Os primeiros séculos da nossa história antiga. Não se conformar em ter a capital Gestada por povos LUSOAFROTUPINIQUINS... (...) No bairro Pinheirinho, Zona Sul da cidade que se diz... E sonha em ser europeia. Construiu uma praça para cada país: Bosque Portugal, Praça da Espanha... Construiu até a Praça do Japão E o Bosque do Papa, o Bosque Alemão. O festival das etnias brancas paranaenses Ignora o povo da pele vermelha E a presença preta iluminada... (...) Imposição de memória branca... Caucasiana”. Adegmar J. Silva “Zelador Cultural Candiero” – A Sombria Aura Curitibana. Editora Humaita. Curiba, 2016. RESUMO A pesquisa visa analisar o papel das fantasmagorias do bairro de Santa Felicidade para a promoção do processo de valorização do espaço na metrópole de Curitiba – PR, tendo enfoque na esfera de circulação do capital, sem perder de vista as limitações empíricas dentro do recorte espacial proposto. Para isso, busca-se compreender tal problemática a partir da teoria marxista da valorização do espaço, entendendo como esse processo (re)produz as formas socioespaciais, tendo nas fantasmagorias sua expressão maximizada. A análise das fantasmagorias se torna essencial enquanto alegoria pautada na materialidade e fetiche da mercadoria enquanto seu substrato imaterial, subjetivo. Através desta perspectiva tem-se a transformação do bairro em palco para o espetáculo para a (re)produção do capital. Palavras-chave: Fantasmagoria. Valorização do Espaço. Metrópole. Santa Felicidade. ABSTRACT The research aims to analyze the role of the phantasmagorias of the Santa Felicidade neighborhood for the promotion of the process of valorization of space in the metropolis of Curitiba - PR, focusing on the sphere of capital circulation, without losing sight of the empirical limitations within the proposed spatial cut. For this, we seek to understand this issue from the Marxist theory of space valuation, understanding how this process (re)produces socio-spatial forms, having its maximized expression in phantasmagorias. The analysis of phantasmagorias becomes essential as an allegory based on the materiality and fetish of the merchandise as its immaterial, subjective substrate. Through this perspective, there is the transformation of the neighborhood into a stage for the spectacle for the (re)production of capital. Keywords: Phantasmagoria. Valorization of Space. Metropolis. Santa Felicidade. ÍNDICE DE FIGURAS Figura 01: Localização da Área de Estudo ................................................................. 12 Figura 02: Passagens parisienses ................................................................................ 47 Figura 03: Mapa de localização do bairro de Santa Felicidade na metrópole de Curitiba (PR) ............................................................................................................... 52 Figura 04: Origem dos imigrantes de Santa Felicidade: províncias de Veneza, Pádua, Rovigo, Verona, Vicenza, Treviso e Belluzo – Região do Veneto – Itália................. 56 Figura 05: Navio e condições as quais os imigrantes eram submetidos durante a viagem da Itália ao Brasil ........................................................................................... 58 Figura 06: Igreja de São José e Santa Felicidade no centro geográfico do bairro ...... 61 Figura 07: Igreja de São José e Santa Felicidade no ponto mais elevado do bairro ... 61 Figura 08: Igreja de Santa Felicidade na sua primeira forma, aproximadamente em 1903............................................................................................................................. 62 Figura 09: Igreja de São José e Santa Felicidade – Curitiba (PR)/ Dueville, na província de Vicenza ................................................................................................... 64 Figura 10: Cemitério de Santa Felicidade em Curitiba (PR) / Cemitério de Castelfranco Vêneto, na província de Trevizo ............................................................ 64 Figura 11: Festa da Uva – fevereiro de 2020 .............................................................. 66 Figura 12: Ristorante Siciliano: fachada com destaque para as colunas simulando um templo romano e fonte com a data da construção ....................................................... 72 Figura 13: Reveillón 2020 no Ristorante Siciliano: fachada e salão principal ........... 73 Figura 14: Restaurante Castello Trevizzo: Fachada e salões internos: Leão de São Marcos eTrevizzo........................................................................................................ 74 Figura 15: Restaurante Madalosso: capacidade, fachada, Salão Roma (pintura no teto e vitrais) ...................................................................................................................... 75 Figura 16: Restaurante Dom Antonio: fachada, hall de entrada, salão Quadro e salão Romano ....................................................................................................................... 76 Figura 17: Famiglia Fadanelli e Mezza Notte: interior da “cantina”, fachada, interior do salão de eventos e pista de dança ........................................................................... 77 Figura 18: restaurante Toscana Show ......................................................................... 78 Figura 19: Casa dos Arcos .......................................................................................... 79 Figura 20: Restaurante Iguaçu .................................................................................... 80 Figura 21: Casa das Pinturas – ACISF; Casa Culpi – CRAS, Casa dos Gerânios ...... 81 Figura 22: Avenida Manoel Ribas, ligando o centro comercial de Santa Felicidade ao centro de Curitiba ........................................................................................................ 83 Figura 23: Cascatinha (década de 1950 e atualmente) ................................................ 86 Figura 24: Cardápios e alimentação: Ristorante Siciliano e Madalosso ..................... 88 Figura 25: Vinhos Durigan: elementos externos (iluminação no final do ano, fachada, fonte com estátuas da família reproduzindo o processo de produção artesanal e roda de água) ....................................................................................................................... 92 Figura 26: Vinícola Durigan: interior do estabelecimento comercial: arquitetura, mercadorias e música .................................................................................................. 93 Figura 27: Vinhos Santa Felicidade: fachada da loja, interior da loja com produtos, fábrica de vinhos e produtos, respectivamente ........................................................... 95 Figura 28: Vinhos Dall’Armi: fachada da loja, produtos e processos de produção industrial, respectivamente ......................................................................................... 96 Figura 29: Adega Caliari: produtos, venda na Festa da Uva e processo artesanal de produção, respectivamente .......................................................................................... 97 Figura 30: Estabelecimentos de móveis e vime: Artesanal Mais, Attraktiva, Móveis Campo Largo e Kairós ................................................................................................ 98 Figura 31: Artesanato do Vime na loja Móveis Campo Largo ................................... 99 Figura 32: Evolução da Composição dos Municípios da Região Metropolitana de Curitiba (1973 – 2012) .............................................................................................. 105 Figura 33: Níveis de Integração à dinâmica de metropolização da RMC................. 106 Figura 34: – Proposta de esquema viário do Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba (1965) ........................................................................................................................ 107 Figura 35: Setores Estruturais em Curitiba ............................................................... 108 Figura 36: Parques Temáticos: o Jardim Botânico, a Ópera de Arame e o Parque Tanguá ................................................................................................................................... 117 Figura 37: Memorial Alemão e Ucraniano ............................................................... 117 Figura 38: Rua das Flores no final do ano de 2019 .................................................. 123 Figura 39: Distribuição Espacial dos Atrações Turísticas e Trajeto da Linha Turismo em Curitiba – PR ....................................................................................................... 125 Figura 40: Planta Geral de Valores de 2002 (A), 2017 (B), evolução dos preços (C) dos lotes pelo preço do m2 em Reais (R$) de 2002 e Zonas Residenciais de Curitiba (D) ................................................................................................................................... 128 LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E ACRÔNIMOS ACISF: Associação Comercial e Industrial de Santa Felicidade; D: Dinheiro; IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; IPPUC: Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba; M: Mercadoria; PR: Paraná; RS: Rio Grande do Sul; TER: Tribunal Eleitoral Regional PPU: Plano Preliminar de Urbanismo RMC: Região Metropolitana de Curitiba SUMÁRIO: 1 - INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 12 2. - FETICHE E FANTASMAGORIA NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE CAPITALISTA: CONCEPÇÕES TEÓRICAS ................................................................. 14 2.1 - Fetiche e Fantasmagoria ..................................................................................................... 15 2.1.1 - O conceito de Fetiche da Mercadoria na obra de Marx ................................................... 15 2.1.2 – O conceito de Fantasmagoria na obra de Benjamin ....................................................... 25 2.2. - Valorização do Espaço na Metrópole Capitalista ............................................................... 31 2.3 - Metrópole e Fantasmagoria ................................................................................................ 42 3 - SANTA FELICIDADE: O BAIRRO FANTASMAGÓRICO DE CURITIBA ....................................... 51 3.1 - O processo histórico de formação socioespacial do bairro de Santa Felicidade: premissas capitalistas e a religião como fetiche .......................................................................................... 53 3.1.1 – Premissas capitalistas para formação de Santa Felicidade: trabalho assalariado, mobilidade da força de trabalho e propriedade privada da terra .............................................. 54 3.1.2 – A religião como fetiche em Santa Felicidade................................................................... 60 3.2 – As fantasmagorias de Santa Felicidade: restaurantes, vinícolas e vime ............................ 68 3.2.1 – Os restaurantes ............................................................................................................... 70 3.2.2 – As Vinícolas ...................................................................................................................... 90 3.2.3 – O vime ............................................................................................................................. 98 4 - O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE DE CURITIBA E NO BAIRRO DE SANTA FELICIDADE .............................................................................................................. 102 4.1 As políticas urbanísticas de Curitiba: reprodução do espaço urbano para o processo de valorização do capital ................................................................................................................ 103 4.2. A reprodução do capital por meio do turismo e as imagens fantasmagóricas de Curitiba. ................................................................................................................................................... 119 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 130 6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................... 132 12 1 - INTRODUÇÃO Santa Felicidade é um bairro localizado na região noroeste da metrópole de Curitiba-PR. Conhecida por ser um dos principais destinos turísticos da cidade e do estado do Paraná, seus moradores encontram na história de sua formação socioespacial uma afirmação enquanto bairro diferenciado culturalmente, o que promove o discurso do destino turístico, atraindo 100 mil pessoas por mês, antes a pandemia de COVID-19, (CALDART E BAHL, 2009). Figura 01: Localização da Área de Estudo. Fonte: BELEM; NUCCI. (2020). Essa diferenciação está pautada principalmente na considerada identidade italiana do bairro. História essa que é produto de uma migração resultado mobilidade da força de trabalho, (GAUDEMAR, 1977). O governo brasileiro em sua esfera federal e o governo provincial do Paraná visavam a inserção de mão-de-obra branca, camponesa na região sul do país que posteriormente viria a se tornar assalariada. Nesse contexto brasileiro no final do século XIX, enquanto o Veneto, região de onde veio essa massa de trabalhadores, enfrentava a escassez de terras e alimentos, consequências da revolução 13 industrial, se tornou um discurso propício para ambos os governos. (CAIO PRADO JR., 1976). Conforme constata Balhana (1958), as relações sociais de produção no recorte espacial analisado foram sofrendo mutações conforme as necessidades do capital em se reproduzir, principalmente por meio da esfera de circulação, após a intensificação do fluxo de capitais e mercadorias através da viabilização de vias de circulação, ligando a então ex-colônia, agora bairro, a recém-formada metrópole curitibana. Nesse cenário, os produtos de Santa Felicidade ganham destaque: a comida, o vinho e o artesanato em vime. Tais produtos, ao serem cooptados pelo capital, se transformam em mercadorias, alterando as suas formas sociais de produção e a materialidade concreta encontrada no bairro. (MARANHÃO, 2014). A partir dessa problemática identificada no recorte espacial em estudo, a teoria elaborada por Karl Marx em sua obra “O Capital” se torna necessária para compreender a materialidade encontrada no bairro de Santa Felicidade. Partindo da ideia de estrutura e superestrutura, Marx (2013) afirma que, sob a égide do modo de produção capitalista, as relações econômicas é que condicionam as relações sociais, sendo essas relações sociais de produção. Entende-se pelo conceito de estrutura na obra marxiana as forças produtivas e as relações sociais de produção. Já a superestrutura são todos os mecanismos que mantém a infraestrutura: religião, política, cultura. Nesse mesmo sentido, a mercadoria guarda em seu processo produtivo o cerne para a análise e compreensão infraestrutura, pois é a partir dela que conseguimos decifrar as relações sociais de produção existentes em seu processo de realização, uma vez que toda mercadoria é um produto social do trabalho, dispêndio de forças. No entanto, a compreensão dessa análise é complexa e se torna difícil de ser decifrada, uma vez que o capital, lança mão de seus artifícios, transformando tudo o que é socialmente produzido parecer natural. Tem-se aí o processo de fetichização das relações sociais de produção e de seus próprios produtos: a mercadoria. A alienação, torna-se um êxito ao não ser conseguida desvendar as entranhas do capitalismo. (MARX, 2013). A presente análise, ao se propor identificar as formas espaciais fantasmagóricas presentes no bairro de Santa Felicidade, buscará compreender através do processo 14 histórico, a suas gêneses, desvendando os mecanismos do capital. Para tal proposta, o alargamento do escopo do conceito de fetiche da mercadoria, a fantasmagoria, elaborada por Walter Benjamin, presente em sua obra “Passagens”, torna-se condição sine qua non. O conceito de fantasmagoria possui duas dimensões: a dimensão material concreta presente nas formas espaciais, e a dimensão subjetiva, baseada nos efeitos psicológicos que essas formas adquirem no imaginário coletivo do consumidor, morada dos sonhos. (BENJAMIN, 2009). O papel das fantasmagorias no seio do processo de valorização do espaço é o que se buscará, enquanto contribuição teórica para a geografia, ao longo desta pesquisa, tendo como recorte espacial de análise o bairro de Santa Felicidade, dotado de especificidades, dentro do espaço urbano da metrópole de Curitiba. 2. - FETICHE E FANTASMAGORIA NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO NA METRÓPOLE CAPITALISTA: CONCEPÇÕES TEÓRICAS. Nesse primeiro momento são apresentadas as principais concepções teóricas que fundamentam a pesquisa e sua perspectiva analítica. Em um primeiro momento, na seção 2.1, são discorridas as fundamentações e análises sobre conceitos de fetiche (subseção 2.1.1) e fantasmagoria (subseção 2.1.2), apresentando as suas interconexões, escopos e aprofundamentos teóricos que servem como base para a interpretação da sociedade atual sob a égide do modo de produção capitalista. Em um segundo momento, na seção 2.2., é identificado e analisado o processo de valorização do espaço pelo capital, tendo como recorte espacial a metrópole, lócus do sistema vigente e ápice desse processo. Por fim, na terceira e última parte das concepções teóricas, o conceito de fantasmagoria é apresentado como chave para a compreensão desse processo de espacialização e materialização do capital na metrópole. 15 2.1 - Fetiche e Fantasmagoria A seguir serão apresentadas as concepções teóricas e conceitos basais para a compreensão econômica e sociológica imposta pelo modo de produção materializado na condição espacial para a qual se tem como objetivo essa análise. Nesse sentido, é necessário entendermos o conceito de “fetiche da mercadoria”, presente na obra “O capital”, de Karl Marx, em sua forma mais ampla, pelas quais são obscurecidas todas as relações capitalistas de produção. Em um segundo momento se faz necessário o alargamento desse conceito e, ao mesmo tempo, um novo olhar a partir deste. Elaborado na obra “Passagens” de Walter Benjamin, o conceito de “fantasmagoria” vai ao encontro a análise proposta. A “fantasmagoria” não tem como finalidade esgotar o conceito de “fetiche da mercadoria”, mas tem como intuito de promover um olhar detalhado para os agentes que contribuem para a promoção do fetichismo. Não se trata apenas de identificar os agentes produtores de tal processo, mas de analisar os impactos por eles produzidos tanto na esfera material e espacial, quanto na subjetividade das relações sociais. Para tanto, torna-se necessário uma análise mais profunda de cada um desses conceitos e suas interconexões estabelecidas e apresentadas nas subseções 2.1.1 e 2.1.2. 2.1.1 - O conceito de Fetiche da Mercadoria na obra de Marx O conceito de fetiche da mercadoria aparece em várias das obras de Marx e vai ganhando cada vez mais importância ao longo de seus escritos, até se tornar uma condição essencial em sua obra “O Capital”. Essa subseção pretende discorrer sobre as concepções teóricas desse conceito e suas implicações para a interpretação da realidade até seu desdobramento e alargamento feito posteriormente por Benjamin em “Passagens”. A primeira vez que se tem registros do uso do termo “fetichismo”, segundo Silva (2013), foi em 1756, pelo escritor francês Charles de Brosses. Posteriormente, em 1760, ele publicou em sua obra intitulada “Do Culto dos Deuses Fetiches ou Paralelo da Antiga Religião do Egito com a Religião Atual da Negritia”, uma sistematização a 16 respeito desse termo. Influenciado pelo darwinismo social e positivismo, Brosses identificou em sociedades africanas, através de relatos de navegadores europeus, o culto por objetos inanimados ao qual ele denominou de “fetichismo”. Dessa forma, Brosses (1988) se baseou na derivação da palavra “fetisso” da língua portuguesa antiga, que corresponde a palavra feitiço na língua portuguesa atual. Fleck (2012), vê o conceito de “fetichismo” como ocupando um lugar central na obra de Karl Marx em “O Capital” (2013). Para ele, a compreensão desse termo é de fundamental importância para a interpretação crítica de Marx ao modo de produção capitalista como organização social de produção. Segundo ele, o próprio conceito de fetichismo sofre metamorfoses ao longo da obra de Marx e teve influência de diversos outros autores que utilizaram e cunharam esse termo até ele tomar a proporção central na obra máxima de Marx. Em um primeiro momento, o conceito de fetichismo, segundo o autor supracitado, aparece pela primeira vez em uma obra de Marx no jornal alemão “Rheinische Zeitung” em 1842, do qual ele era o editor. Ao escrever sobre a colonização dos europeus na América, Marx utiliza pela primeira vez o termo “fetichismo” a partir da perspectiva indígena, que via na busca incessante e sem sentido dos europeus pelo ouro, o próprio fetiche dos europeus. Isso devia-se a não compreensão do que era considerado um objeto de valor para os europeus e que para os indígenas pouco fazia sentido, uma vez que não compartilhavam dos mesmos valores e concepções1. Posteriormente, a palavra “fetichismo” aparece também em “Manuscritos Parisienses” de 1844, no entanto apenas como adjetivo ou sinônimo de católico, utilizado pelo autor várias vezes nessa perspectiva semântica. O conceito de fetichismo, conforme Fleck (2012), aparece de forma mais efetiva somente em “Grundrisse”2 de 1858, como forma de confusão da consciência, como abordado na seguinte na passagem: “(...) um fetichismo que atribui as coisas relações sociais como determinações que lhe são imanentes e, assim, os mistifica” (MARX, 1 Para uma melhor análise sobre fetiche e colonização sobre a perspectiva de Marx e Engels vide: Remy Herrera. A colonização vista por Marx e Engels: evoluções (e limites) de uma reflexão comum: Um ensaio sobre um aspecto particular da investigação e do pensamento de Marx e Engels. Centro de Economia da Sorbonne. In: Instituto Luiz Carlos Prestes, 4 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.odiario.info/b2img/AcolonizaovistaporMarx.pdf 2 “Gundrisse” foi considerado por muito tempo um esboço para a obra que viria posteriormente em “O Capital”. No entanto, após análises descobriu-se que se trata de uma forma de valor e de alguns apontamentos que não tinham sido contemplados em “O Capital”. http://www.odiario.info/b2img/AcolonizaovistaporMarx.pdf 17 p.575), dando indícios da construção mental do conceito durante as obras de Marx. Já em “Para a Crítica da Economia Política” o fetichismo se destaca como “propriedade objetiva do modo de produção capitalista”. É em sua obra máxima, O capital (2013), que o conceito de “fetichismo da mercadoria”, ganha esse adjetivo e aparece no final do primeiro capítulo “A Mercadoria”, na seção “O Fetichismo da Mercadoria: seu segredo”. Esse capítulo faz parte do primeiro livro “O Processo de Produção do Capital”, atingindo o ápice analítico e conceitual do fetichismo, imprescindível para o funcionamento do capital. Silva (2013) demonstra todo o movimento do pensamento de Karl Marx nesse primeiro capítulo do livro I, pois o autor faz toda uma explicação pormenorizada sobre mercadoria para depois abordar sua condição sine qua non no modo de produção capitalista: o fetiche da mercadoria. Vale lembrar que “O Capital” é considerada para muitos autores a mais profunda análise crítica do modo de produção capitalista realizada até hoje. Conforme Quiozini (2015) a mercadoria já existia em formas pretéritas de produção, mas é somente no modo de produção capitalista que ela assume a forma dominante, genérica, da produção em geral. Marx (2013) inicia o capítulo 1 – “A Mercadoria” explicitando que a mercadoria nada mais é que produto do trabalho humano, dispêndio de forças: A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel], isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção. (...). Toda coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser considerada sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma dessas coisas é um conjunto de muitas propriedades e pode, por isso, ser útil sob diversos aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, as múltiplas formas de uso das coisas é um ato histórico. Assim como também é um ato histórico encontrar as medidas sociais para a quantidade das coisas úteis. A diversidade das medidas das mercadorias resulta, em parte, da natureza diversa dos objetos a serem medidos e, em parte, da convenção. (MARX, 2013, p.97). Na última seção do capítulo 1 – “O Caráter fetichista da mercadoria e seu segredo, Marx retoma esse apontamento: Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de 18 sutilezas metafísicas e melindres teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano”. (MARX, 2013, p.121). Além de ser produto da força de trabalho, a mercadoria carece de uma certa quantidade de tempo para ser produzida, conforme Flerck (2012). Desta forma, de acordo com Marx (2013), é a duração do dispêndio da força de trabalho, tempo médio, não absoluto, para a produção, que determina a magnitude do valor da mercadoria. Uma terceira característica inerente a mercadoria apontada por Flerck (2012), baseada em Marx, é a relação entre trabalho individual privado e trabalho social global. Já que a mercadoria é produto do trabalho humano, Marx (2013), afirma que ela é produto dos trabalhos individuais, privados, executados independentes uns dos outros. O conjunto desses trabalhos individuais é que constitui o trabalho social global. Essa relação entre produtos do trabalho não irá se materializar somente nas relações entre os produtos, mas também entre seus produtores. No entanto, o valor de troca, por si só, não é capaz de satisfazer as necessidades do valor de uso, necessidades fisiológicas dos seres humanos no modo de produção capitalista, uma vez que o trabalhador possui somente sua força de trabalho a ser vendida. Há a necessidade de troca de trabalhos individuais privados, diferentes entre si, para que as necessidades fisiológicas dos indivíduos sejam atendidas. Nesse sentido, o trabalho social global, por meio do valor de troca de produtos de trabalhos individuais privados, estabelece suas relações. Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2-13, p.123). Somente no interior de sua troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de sua objetividade de uso, sensivelmente distinta. Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor só se realiza na prática quando a troca já conquistou um alcance e uma importância suficientes para que se produzam coisas úteis destinadas à troca e, portanto, o caráter de 19 valor das coisas passou a ser considerado no próprio ato de sua produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis determinados, eles têm de satisfazer uma determinada necessidade social e, desse modo, conservar a si mesmos como elos do trabalho total, do sistema natural-espontâneo da divisão social do trabalho. Por outro lado, eles só satisfazem as múltiplas necessidades de seus próprios produtores na medida em que cada trabalho privado e útil particular é permutável por qualquer outro tipo útil de trabalho privado, portanto, na medida em que lhe é equivalente. A igualdade toto coelo [plena] dos diferentes trabalhos só pode consistir numa abstração de sua desigualdade real, na redução desses trabalhos ao seu caráter comum como dispêndio de força humana de trabalho, como trabalho humano abstrato. O cérebro dos produtores privados reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos privados apenas nas formas em que se manifestam no intercâmbio prático, na troca dos produtos: o caráter socialmente útil de seus trabalhos privados na forma de que o produto do trabalho tem de ser útil, e precisamente para outrem; o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes tipos na forma do caráter de valor comum a essas coisas materialmente distintas, os produtos do trabalho. (MARX, 2013, p.123). Nessa perceptiva de análise, Marx (2013) afirma que, no modo de produção capitalista, a mercadoria é que determina as relações sociais através da produção. O trabalho se torna uma produção e relação social. Para que as trocas sejam de fato efetivadas, é necessário um equivalente que as permitam serem concretizadas. Se cada trabalho individual privado possui o dispêndio da força de trabalho de forma singular e, uma quantidade de tempo especifica para produção de mercadorias, esse equivalente geral de troca nada mais será que uma abstração desigual. Assim, a troca promove a redução do trabalho humano privado, reduzindo a força de trabalho nela empregada para a produção e a quantidade de tempo nela gasta. (MARX, 2013). Portanto, a mercadoria assume um valor que nada mais é que um hieróglifo social, uma abstração produto da sociedade e das relações estabelecidas no bojo do sistema produtivo. (MARX, 2013, p.123, 124). O autor irá denominar de fantasmagoria o processo que faz aparecer o caráter social do trabalho como se fosse uma qualidade das coisas, das próprias mercadorias. Como se os produtos, ao tomarem formas, obtivessem qualidades naturais, sendo independentes de quem as produziu. Como se ganhassem vida própria, se deslocando de seus produtores, como fantasmas que se desprendem do corpo e pairam no ar e no imaginário coletivo. Nesse sentido, o caráter social do trabalho aparece como característica natural da mercadoria. 20 Já a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 2013, p.122). A quantidade de trocas de produtos de diferentes trabalhos individuais privados, à medida que passam a ter uma certa proporção e fixidez, parecem ser propriedades naturais das mercadorias, e não o que realmente são: produtos da sociabilidade do trabalho baseado nas relações de produção. Ao estabelecer essas grandezas e medidas de valor nas trocas e, ao mesmo tempo, esse valor ser mutável, as mercadorias parecem ganhar vontade própria, independente de quem as produziu. Assim, as mercadorias passam a dirigir os homens. Elas aparecem como imutáveis, com características aparentemente naturais aos homens, o que desconsidera todo o seu processo histórico de constituição, produto do trabalho humano e social. (MARX, 2013). Através da necessidade de efetivar as trocas, a forma dinheiro surge como equivalente geral das relações entre os trabalhos privados e o conjunto do trabalho social global. Nesse sentido, o dinheiro esconde o caráter social dos trabalhos privados e das suas relações sociais de produção. Desta forma, Marx (2013) descreve que o dinheiro é a encarnação geral do trabalho humano abstrato. Fleck (2012) afirma que o enigma do fetiche do dinheiro é o enigma do fetiche da mercadoria. Para Fleck (2012), a mercadoria passa a ter dupla existência: produto do trabalho humano como objetivo concreto, físico, consumível e palpável; e ao mesmo tempo, abstrato, à medida que corporifica um determinado tempo e dispêndio de força de trabalho incomensurável, se não somente pelas horas gastas na sua produção. Nesse sentido, o trabalho é imbricado na mercadoria quando se corporifica, transubstâncializando-se de forma mágica. Mágica porque não é mais possível compreender sua origem e entender seu processo de materialização no seio da sociedade. Aparece, para os indivíduos como se tivesse “surgido do nada”. O fetiche da mercadoria será efetivado, segundo Fleck (2012), a partir do momento da concretização de três premissas capitalistas: a mercadoria, o dinheiro e o capital. Juntos, promoverão a encarnação do valor. A mercadoria é produto do trabalho, que, por sua vez, é trocada por um equivalente geral, o dinheiro, a encarnação direta do próprio valor. Já o capital é tanto o dinheiro quanto a mercadoria, em um incessante 21 processo no qual a mercadoria se torna dinheiro e esse, se torna mercadoria. Permite-se assim a reprodução ampliada do capital. O valor, a partir dessas três categorias pré-existentes, toma forma: Valor é o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário despendido na confecção do objeto que o contém. Manifesta-se sempre no valor de troca deste objeto em questão, seja na mercadoria, dinheiro ou capital. Separa-se da dimensão do valor de uso na categoria dinheiro, e ganha qualidade mágica da automultiplicação na categoria do capital. Por portarem valor, estas três categorias têm exatamente as duas características do fetichismo: nela o trabalho humano abstrato está transubstanciado, e elas existem concomitantemente no mundo concreto e no mundo das mercadorias. (FLECK, 2012, p.150-151). A partir dessas análises sobre as categorias mercadoria, dinheiro e capital, nota- se que o fetichismo ocupa papel central na análise teórica de Marx. O fetichismo é um processo que se desenvolve às costas do trabalhador e toma forma sem que ele tenha a consciência disso. Processo fruto do próprio desenvolvimento do capital no bojo das relações capitalistas de produção que configura e dita normas das relações sociais com base na reificação. A reificação está imbricada na objetificação fetichista do trabalho abstrato despendido na produção de mercadorias. Processo pelo qual a mercadoria passa a dominar o seu criador. (FLECK, 2012, p.151). Nesse mesmo sentido de análise, Jappe (2014) conclui que o fetichismo faz parte da realidade básica do capitalismo. Para ele, o fetichismo é a consequência básica direta da existência da mercadoria, do valor, do trabalho abstrato e do dinheiro. Considera que a teoria do fetichismo é idêntica a teoria do valor, devido a essas próprias categorias fetichistas que dão origem ao valor. Kangussu (2015) afirma que o valor “é a cristalização da substância social comum a todas as mercadorias” (KANGUSSU, 2015, p.218). Segundo Fleck (2012), Marx busca no termo fetichismo uma analogia crítica do capitalismo ao compará-lo com crenças místicas e religiosas. Para ele, o conceito de fetichismo é reelaborado e baseado na crítica da religião, retomando um de seus primeiros textos: “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel” de 1844. Lá, Marx afirma que a crítica de religião é o pressuposto de toda a crítica. Para o autor, Marx sempre se utiliza de analogias e exemplos para demonstrar a comparação entre religião e o modo de produção capitalista, deixando explícita a comparação entre mercadoria e religião. 22 Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já mostrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias. (MARX, 2013, p. 122 – 123). Fica evidente as analogias críticas que Marx faz ao comparar o capitalismo à religião. Dutra (2015), vê que Marx traça um fio condutor em sua obra “O Capital” onde deixa claro, na última seção do primeiro capítulo do livro, as abstrações nas quais o homem moderno está submetido. É nesse sentido que as analogias entre capital e religião ganham destaque. Segundo Dutra (2015) os conceitos básicos para entender o modo de produção capitalista são: Estado, Capital e Trabalho, o que ele denomina de lógica trina do capital, fazendo também uma analogia a religião. Nesse mesmo sentido, Deus aparece na “religião capitalista” na figura do dinheiro e a igreja é transfigurada no banco, o templo do capital. A religião, segundo o mesmo autor, é puramente cultural, pois todas as coisas adquirem significado e a partir disso adquirem sociabilidade. Por sua vez, no capitalismo, o mesmo processo também é verdadeiro, o que comprova a comparação irônica feita por Marx. No modo de produção capitalista os seres humanos se relacionam através de vínculos monetários, possibilitando assim uma coisificação do ser humano e uma mercantilização da vida. No bojo desse sistema, o dinheiro adquire a forma de uma relação social recheada de significados baseados nas relações mercadológicas na qual a sociedade capitalista está estruturada. Aos olhos dos seres humanos o dinheiro parece possuir poderes mágicos, parece algo que tem vida própria. Uma das características do processo que leva ao fetichismo é o fato de que as pessoas só veem aquilo que está imediatamente presente e não conseguem analisar o fato à luz da totalidade social. O fetichismo é um fenômeno próprio do mundo da cotidianidade alienada. (DUTRA, 2015, p.08). Já para Goldmann (1991) tanto a religião, quanto a moral, a arte e a literatura não são realidades autônomas, independentes da economia, nem somente reflexos desta. Para ele, elas são manifestações da vida humana que são apoderadas pelo conjunto econômico capitalista, visando a reprodução do modo de produção. Assim, essas 23 manifestações são esvaziadas de sentido. Os bens, no modo de produção capitalista, se transformam em mercadorias, tendo no seu seio dois atributos essenciais para o funcionamento do capital: o valor de uso e o valor de troca. Valor de uso endereçado ao consumir. Já o valor de troca transforma a relação entre o trabalho necessário a produção de um bem e esse bem em qualidade objetiva da própria mercadoria. Para o autor, aí mora a parte central do processo de reificação. A reificação se torna um fenômeno social importante para entender a estrutura do capital, suas engrenagens e o seu cerne: o fetichismo da mercadoria: Isto é o fenômeno social fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a manifestação do trabalho social necessário empregado para produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens. (GOLDMANN, 1991, p.197). Nesse sentido, Goldmann (1991), afirma que o capitalismo tende a substituir a consciência dos produtores de mercadorias, o valor de uso pelo valor de troca. Desta forma, as relações sociais concretas passam a ser relações sociais abstratas pautadas nas relações sociais de produção, exclusivamente capitalistas. A separação do produto do produtor fortalece a autonomia da mercadoria em relação aos homens. A reificação, assim, rompe a unidade entre o objeto e o sujeito, produtor e produto, e o produtor não toma consciência dessa essa ruptura, ele apenas a constata como um fenômeno natural. Através dos mecanismos do capital, os processos econômicos aparecem na vida social como fenômenos autônomos, naturalizando as relações capitalistas. Jappe (2014) contribui para esse debate ao propor que as relações sociais, quando permeadas pelas relações capitalistas de produção, se tornam “fantasmagóricas”, no sentido de não fazer parte da natureza das coisas. É nesse sentido que a compreensão do conceito de alienação se torna essencial: “(...) a alienação se enraíza no duplo caráter do trabalho determinado pela mercadoria e, enquanto tal, ela é inerente a própria natureza desse trabalho” (JAPPE, 2014, p, 28). Desta forma, a objetivação é efetivamente a alienação, uma vez que o trabalho objetiva as relações sociais. Kangussu (2015), ao analisar a obra inacabada de Walter Benjamin – “Passagens”, identifica que o fetichismo da mercadoria é apresentado como “alienação de si”. Para Benjamin, tudo se transforma em mercadoria, começando pela alienação do indivíduo em relação ao trabalho e tendo como desdobramento a reificação do homem e do mundo. 24 Baseado em Manuscritos de 1844 de Marx, Kangussu (2015) traz os quatro aspectos da alienação: a alienação de seu objeto (força de trabalho); alienação de si próprio (submissão as regras de produção); a alienação de gênero (individualidade); e pôr fim a alienação dos homens entre si (coletivo). As necessidades humanas, no modo de produção capitalista, são postas pelo equivalente geral, o dinheiro. Para Marx (2013) essa é a única necessidade que a alienação produz. Se o dinheiro pode comprar mercadorias, dentre elas a própria força de trabalho, o homem se torna mercadoria. Nesse sentido, as necessidades humanas são manipuladas para o consumo de produtos, mercadorias enfeitiçadoras, onde o homem se torna alienado pela sua própria criação. É assim que o trabalho aparece como o que ele realmente é: relação social de produção; e desaparece na forma enfeitiçada da mercadoria. Entende-se que o feitiço da mercadoria é a maneira como ela oculta suas relações sociais de produção, não sendo possível as identificar nela em sua forma final. Segundo Kangussu (2015), esse processo é quando o trabalho se transforma em valor e a mercadoria ganha autonomia, vida própria. A origem da mercadoria torna-se então seu segredo, posto nas nebulosas relações sociais de produção. Kangussu (2015), afirma que a mercadoria aparece como fantasmagoria quando “vindo do nada”, portando vida própria, tendo em si um caráter fetichista, baseada na objetificação abstrata do trabalho proporcionada pela alienação: Quando a coisa é uma mercadoria – que esconde as relações de trabalho nela impressas, através das quais chegou a ser um objeto e depois uma mercadoria – ela aparece como algo inanimado portador de (ocultas) relações vivas: aparece como vindo do nada, como fantasmagoria. Seu caráter fetichista tem origem no ocultamento do caráter social do trabalho que a produz, o segredo que ela esconde é a realidade como objetificação da igualdade abstrata do trabalho alienado, que se desenvolve numa igualdade qualitativa de tempo. (KANGUSSU, 2015, p.220). Como complementação a ideia de Kangussu (2015), o fetichismo aparece como destituição da essência das coisas, no caso do trabalho em relação à mercadoria, ainda que jamais de forma absoluta. Assim, a mercadoria aparece como segunda natureza, criada pelos homens, mas que assume vida e vontades próprias como se fossem naturais. Nessa subjetividade alienada e reificada, a mercadoria é a base para a hegemonia e reprodução do capital, ao dominar os homens, seus próprios criadores, ela garante essa reprodução. A mercadoria, como coisa autônoma, apresenta-se no mercado sem passado, sem história, com uma significação social, o preço, que nada mais é que expressão 25 contingente do valor. Promete significações aos seus consumidores, enfeitiçados pela novidade, deixando de lado a sua verdadeira utilidade. (KANGUSSU, 2015). Devido a essas características, Castro (2012) afirma, assim como outros autores, que o fetichismo da mercadoria é localizado por Marx no coração do capitalismo. Ao ser atribuída valor, a mercadoria parece adotá-lo como característica natural, inerente a ela, como um “invólucro fantasmagórico” (CASTRO, 2012, p. 148). As relações sociais entre os homens que a produziram também assumem uma “forma fantasmagórica”, pois as relações sociais, sob a égide da mercadoria, aparecem como relações entre coisas. Com o desenvolvimento do capitalismo mais abstratos se tornam os fundamentos os mecanismos e as relações sociais de produção. As mercadorias ganham cada vez mais um ar de espetacularização, adquirem um “poder mágico” cada vez maior. As atenções passam a ser voltadas pelo caráter “espetacularizador” das mercadorias encobrindo suas próprias condições de produção. Esses desdobramentos do caráter espetacular das mercadorias nas relações sociais, apesar de terem uma grande potencialidade na obra de Marx, não são desenvolvidos por ele. Benjamin é quem irá debruçar sua análise a partir dessa perspectiva. (CASTRO, 2012). 2.1.2 – O conceito de Fantasmagoria na obra de Benjamin. Benjamin, instigado pela expressão “forma fantasmagórica” citada na obra de Marx para qualificar o fetichismo da mercadoria e, em suas várias menções à “fantasmagoria” para designar o fetiche, desenvolve esse conceito em sua obra inacabada “Passagens”. Kichner (2007) ao analisar a obra “Passagens” de Walter Benjamin, traz as influências que o autor teve para a construção do seu pensamento. Dentre elas destacam- se a de Adorno, Horkheimer e Marcuse em relação a crítica da cultura e razão capitalista quando este frequentou a escola de Frankfurt3. Lukács - com suas obras a respeito do pensamento marxista durante a década de 1920 - também influencia o pensamento de Benjamin. Se inspira nos poemas de Charles Baudelaire para ilustrar e, 3 A Escola de Frankfurt foi inicialmente criada em 1923. Dentre suas principais influências teve no marxismo seu alicerce. Aprofundaram a análise crítica de Marx como pressuposto para outros assuntos sociais, como por exemplo a indústria cultural. 26 ao mesmo tempo, fazer a crítica ao urbanismo de Haussmann em Paris e suas relações sociais estabelecidas na metrópole no final do século XIX. Teve também influências do barroco, o que irá aparecer em seus escritos. A obra “Passagens” é considerada inacabada devido a morte de Benjamin em 1940, quando o próprio detinha várias partes manuscritas, mas não estava estruturada em ordem sequencial. Na introdução feita por Tiedmann da obra Passagens e traduzida para o português por Willi Bolle, é apresentada a estrutura geral da obra, compilada e organizada por alguns estudiosos da vida e do pensamento de Benjamin. Já na introdução é explicitada as duas exposés publicadas pelo autor: a primeira em 1935 e a segunda em 1939. Em cartas trocadas entre Benjamin e Adorno, este último destaca o equívoco conceitual cometido por Benjamin em sua primeira exposé de 1935, ao analisar o conceito de fetichismo da mercadoria e fazer a relação com a fantasmagoria. Conforme trazido por Zamora (1999), essa controvérsia culminará na realização da segunda exposé de 1939, onde Benjamin reformula sua análise e o conceito de fantasmagoria a partir da anáilse do caráter fetichista da mercadoria. Segundo Zamora (1999), a controvérsia apontada por Adorno da exposé de 1935 é apontar que as imagens do desejo proporcionados pelas mercadorias correspondem a imagens criadas pela consciência coletiva. Nas palavras de Benjamin: A própria mercadoria é fantasmagoria, ilusão, enigma, nela o valor de troca ou a forma valor oculta o valor de uso, fantasmagoria é o processo de produção capitalista em geral que se apresenta aos homens que o realizaram como poder da natureza. (BENJAMIN, 2009, p.23). Para Tiedmann, baseado em Adorno, a noção de fantasmagoria utilizada por Benjamin em sua primeira exposé nada mais é do que outra palavra para designar se não o que Marx denominava de caráter fetichista da mercadoria. Adorno, em cartas para Benjamin, aponta essa questão. Outro ponto de atenção explicitado por Adorno como equívoco no pensamento de Benjamin em sua exposé de 1935 é sobre seu entendimento de imagem dialética, que são as imagens oníricas, do desejo, no consciente coletivo. Já a dialética na imobilidade é a utopia somada a imagem dialética que dá origem a imagem onírica. Na teoria de Walter Benjamin esse é um conceito fundamental para a compreensão do autor sobre a concepção histórica. Para ele a história se decompõe em imagens de forma não linear, sempre nas tensões entre o antigo e o novo. Essa imagem é dada pela mercadoria como fetiche. Após essa 27 controvérsia apontada por Adorno, Benjamin em sua segunda exposé de 1939, reformula seu entendimento sobre a dialética na imobilidade. Para ele, é o procedimento por meio do qual o materialismo histórico lida com seus objetos. Desta forma, a imagem permanece presa ao método próprio do materialismo histórico, que se apossa dessa imagem para ler o passado. Nesse sentido, Godoy (2019) irá diferenciar os conceitos de fetichismo e fantasmagoria a partir do olhar analítico que cada um está voltado: Se o conceito de fetichismo guarda estreita relação estética com o de mercadoria, tanto na esfera da produção como na esfera do consumo, a fantasmagoria remete, por sua vez, tanto aos agentes e sujeitos do processo de acumulação de capital, quanto às relações sociais que produzem imagens de si mesmo mediante uma obscura consciência que busca justificar a sua existência de reprodução. (GODOY, 2019, p.241). É a partir das análises feitas por Marx sobre mercadoria e dinheiro, alienação e reificação, que Walter Benjamin inicia seus estudos sobre alienação, fetichismo e as formas fantasmagóricas que as relações de troca assumem no desenvolvimento do capitalismo. Para ele o fetichismo está ligado a esfera da produção e da circulação. Já a fantasmagoria aparece como justificação das formas de reprodução. (GODOY, 2019). Da mesma forma, Castro (2012), ao comparar o conceito de fetichismo de Marx e de fantasmagoria de Benjamin, revela que esse último, ao se referir ao fetichismo, não tinha como interesse analítico a concepção de mercadoria de sua forma mais geral ou de seus processos de produção. Para Benjamin, a importância de sua análise era compreender seu estatuto no momento que a mercadoria é exibida para o público, para os consumidores. Desta forma, a fantasmagoria remete ao lado mais visível, exuberante e espetacular da mercadoria. Benjamin também debruça seu olhar aos impactos subjetivos dessa espetacularização para todas as esferas da existência humana. Nessa mesma perspectiva, Santos (2016), corrobora que o conceito de fantasmagoria remete ao lado mais exuberante, visível e espetacular da mercadoria, ocasionando um impacto subjetivo. Ou seja, a externalidade concreta da lógica- mercadoria da qual o espaço é sua abstração mais genérica. Criam-se imagens fantasmagóricas que tomam o lugar da realidade, assumindo o papel como se fossem imagens reais do mundo. Essa imagem fantasmagórica da realidade criada pelo homem adquire uma realidade própria, que passa a ser ilusória e independente do seu criador. Assim, essa imagem ilusória do mundo passa a ser autônoma, o seu criador passa a não 28 mais conhecê-la e a toma como imagem verdadeira do mundo independente de sua vontade. (SANTOS 2016). Dutra (2016), afirma que a fantasmagoria assume dois níveis: o primeiro e mais interno está imbricado em sua produção interna como fetiche, no campo da subjetividade; e o segundo mais externo, no campo do visível, da forma material, aparece como alegoria. Ferraz (2005), ao tratar sobre a alegoria na construção teórica do pensamento de Benjamin, a traz como uma perspectiva imprescindível no conceito de fantasmagoria. A alegoria, para Benjamin, funciona como uma leitura do mundo. Nesse mesmo sentido, para Freitas (2014), a mercadoria ao aparecer na sua forma concreta do visível, aparece como alegoria. A mercadoria na forma alegórica é capaz de preencher ilusoriamente o vazio fragmentado do sujeito moderno, pois ao mesmo tempo que é esvaziada de significado, pode significar qualquer coisa para o sujeito como consumidor. Pode aparecer ora como promessa, ora como desejo. Assim, a forma alegórica da mercadoria esconde o que realmente ela é: produto do trabalho humano, dispêndio de forças calcada nas relações sociais de produção. Nesse sentido, alegoricamente, a mercadoria esconde o sentido que se encontra por trás de sua produção, pois (...) não se revelará ao consumidor a sujeira das relações de exploração entre os homens, o lucro as custas do trabalho do outro e, principalmente, não se revelará, jamais, que a mercadoria é produção do trabalho humano, uma vez que seu caráter metafísico, teológico, fetichista e fantasioso, é o que mantém as roldanas do capitalismo em movimento. (FREITAS, 2014, p.24). Godoy (2019) traz a relação que Benjamin faz, ao se referir a fantasmagoria e seu caráter fetichista a relação entre o orgânico e o inorgânico, influência explícita da arte barroca, que é perceptível em seus escritos, ao analisar de que forma as coisas tomam o lugar das relações sociais. A relação entre o orgânico e o inorgânico está na mortificação do corpo. O vivo é a carcaça do tempo. A relação do inorgânico com o orgânico – das coisas que tomam o lugar das pessoas no mercado; do capital como trabalho morto nos meios de produção que suga o trabalho vivo do assalariado – é o domínio do mundo humano por uma segunda natureza que dele se destaca. E a relação do morto com o vivo, também aí presente, consiste nos direitos do cadáver, do que deve perecer para ser substituído pela novidade trazida pela moda; daí o sex appeal do inorgânico numa quase necrofilia. Daí, inclusive, mais um retorno da “alegoria barroca, que acunha numa cara – não, numa caveira o tempo natural como o da morte, e não o da transfiguração numa outra vida. (GODOY, 2019, p. 244). 29 A moda, tratada na obra por Benjamin, é um importante fio condutor a assegurar a reprodutibilidade do capital, trazendo a relação entre a morte a vida. Desta forma, ao analisar as passagens parisienses no final do século XIX, Benjamin identifica-as como transitórias, tendo sua vida dotada pelo tempo do capital. A moda ganha o tempo que o capital precisa para se construir, demolir-se e se reconstruir, numa eterna relação de morte e vida do capital, conforme escreve Zamora (1999): Precisamente por esto, em el espacio de los vejos passajes, el passado inmediato se condensa hasta en el índice de la decadência, y los objectos, las mercancias, los anúncios y las pernsonas hasta hace poco familiares y “actuales” adquieren extrañeza alucinatoria. Esos fragmentos de lo real aparecen como “natures mortes”, como escritura cifrada de um progresso imparable, que excluye personas y cosas del espacio de explotación y aprovechamiento, para dejarlas caer como cáscaras vacías. No los nuevos passajes de moda, sino los viejos passajes condenados al derribo, revelan como presencialidad de lo caduco4. (ZAMORA, 1999, p.133). Nota-se que os conceitos de progresso e modernidade se tornam essenciais para a compreensão do pensamento de Benjamin. Dutra (2015), ao analisar a obra de Benjamin considera que o conceito de modernidade utilizado está ligado a tudo que é transitório, efêmero, a representatividade do novo. Nesse sentido, o autor, ao classificar a modernidade, faz ao mesmo tempo uma crítica a ela, pois à medida que a modernidade promove a transformação também produz a sua própria destruição. Essa é a lógica da produção. O ser moderno é permeado por esses aspectos. Como contribuição a esse pensamento, Freitas (2014), traz no pensamento de Benjamin o mito do progresso, onde tudo aparece como novo, mas é um resgate, por meio da imagem, do velho. Esse mito esconde por trás das promessas capitalistas a exploração do homem e a sua sujeição a condição de mera mercadoria, enquanto a própria mercadoria ganha o status de autônoma e reguladora da vida humana. O homem torna-se escravo de sua própria criação. Essa repetição do velho em forma de novo, em forma de fantasmagoria, onde o mito do progresso e a ideia de modernidade contribuem para a sedimentação desse processo, segundo Benjamin, são produtos da própria cultura do capitalismo. Nessa 4 Tradução: Justamente por isso, no espaço dos velhos das passagens, o passado imediato é condensado mesmo no índice da decadência, e os objetos, as mercadorias, os anúncios e as pessoas até recentemente familiares e "reais" adquirem estranheza alucinatória. Esses fragmentos do real aparecem como "mortes da natureza", como escrita codificada de um progresso imparável, que exclui pessoas e coisas do espaço de exploração e exploração, para deixá-los cair como conchas vazias. Não os novos passes da moda, mas os passes antigos condenados à demolição, revelam como presença do obsoleto. 30 perspectiva analítica, a cultura aparece com expressão e reflexo da vida, produto das relações sociais de produção imbricadas pela reificação e alienação. (QUERIDO, 2013). Benjamin sustenta que a cultura da sociedade produtora de mercadorias, isto é, a imagem que ela mesmo produz de si mesma, corresponde ao conceito de fantasmagoria, já que, entre outras coisas, esta imagem oculta a lembrança da forma como as mercadorias surgiram. É neste sentido que as mercadorias, enquanto objeto de consumo, transformam- se em objetos mágicos que, mais do que apenas revelar uma reificação do produtor em relação ao objeto produzido, eleva-se como representação fetichizada da própria cultura hegemônica em suas variadas formas de expressão concreta. (QUERIDO, 2013). A partir da noção de fantasmagoria, Benjamin vê o “reencantamento cíclico do mundo” dado pela falácia do progresso e da modernidade. São considerados falácias, tanto a modernidade quanto o processo, pois são processos idealizados pelo capital, mas a qual jamais serão atingidos em sua plenitude. Processos estes dos quais sempre devem ser buscados e jamais alcançados contemplando a própria lógica do capital. Algo idealizado e utópico em uma busca incessante por meio progresso e modernidade ao sabor dos avanços intermináveis das forças produtivas. Para Castro (2012), com o desenvolvimento das formas capitalistas de reprodução, a mercadoria ganha cada vez mais de espetacularização com ênfase ao consumo. É esse o ponta pé analítico inicial para o desenvolvimento de ideia que vai culminar em obras dedicadas a estudar a sociedade do espetáculo, como por exemplo de Debord (1987). A partir do desenvolvimento do capitalismo, a dialética do dinheiro ganha importância, pois, ao mesmo tempo que ele aparece como um signo em si mesmo, equivalente geral, ele próprio é a metamorfose da mercadoria. A figura do capital transformado em dinheiro altera tanto a velocidade da reprodução do capital, mas também o processo de valorização do valor, sobretudo na metrópole capitalista, espaço privilegiado do capital. Esse assunto será desenvolvido melhor na seção 2.2 É no espaço geográfico da metrópole que esse processo de valorização do valor encontra sua expressão maximizada, onde as fantasmagorias ganham a maior dimensão já vista. Essa relação entre valorização do espaço, metrópole e fantasmagoria será desenvolvida na seção 2.3 31 2.2. - Valorização do Espaço na Metrópole Capitalista Marx (2013), na seção “Processo de Valorização” do quinto capítulo de seu primeiro livro em “O Capital”, salienta a importância da mercadoria no processo da geração do valor, processo esse inexorável para o funcionamento do modo de produção capitalista. Assim sendo, a mercadoria se torna conceito central nessa análise. Ela só existe como valor de uso para que, a partir de sua efetivação como tal, seja gerado o valor de troca. Essa é a objetivação final do capital. O valor de troca da mercadoria deve ser maior que os gastos para a sua produção, tendo na mais-valia uma condição sine qua non para a efetivação desse valor. Esse é o processo de formação do valor enfatizado por Marx. A mercadoria é produto do trabalho humano, ao mesmo passo que carrega consigo valor de troca, é valor de uso. Nesse sentido, o trabalho tem duplo caráter: concreto e abstrato. Concreto, pois gera características específicas na mercadoria, no qual não é comensurável. Abstrato, pois a mercadoria necessita de um tempo para ser produzida. Essa quantidade de tempo necessária para a produção é o cerne da formação do valor. O valor só toma forma quando a mercadoria, ao ser confrontada com outras de diversos valores de usos, se tonam equalizadas por um equivalente geral, o dinheiro, efetivando o seu valor de troca. (TOSHIO, 2017). Em suma, a magnitude valor de uma mercadoria é determinada pelo trabalho socialmente necessário para a sua produção, considerado enquanto trabalho abstrato, e o valor de uma mercadoria somente pode ser percebido como valor de troca, expresso em termos monetários no mercado. (TOSHIO, 2017, p.41). O que Marx irá chamar de valorização do valor é o dinheiro transformado em capital por meio da relação D – M – D (dinheiro – mercadoria – dinheiro). Isso acontece à medida que o detentor dos meios de produção, ao vender as mercadorias produzidas pelo trabalho abstrato, recebe seu equivalente, o dinheiro, como materialização do valor de troca. Esse valor pago é investido na sua produção por meio da compra de matérias primas para transformá-los em novos produtos. A mais-valia se torna mais-valia absoluta à medida que se amplia o tempo de trabalho e paga-se o mesmo valor aos trabalhadores. Se torna também mais-valia relativa ao passo que, pela inserção de novas tecnologias, consegue se produzir mais em uma mesma quantidade de tempo. (MARX, 2013). 32 Ao transformar o dinheiro em mercadorias, que servem de matérias para a criação de novos produtos ou como fatores do processo de trabalho, ao incorporar força viva de trabalho à sua objetividade morta, o capitalista transforma o valor – o trabalho passado, objetivado, morto – em capital, em valor que se autovaloriza, um monstro vivo que se põe a “trabalhar” como se seu corpo estivesse possuído de amor (MARX, 2013, p. 200). Neste sentido, Marx irá diferenciar a formação do valor e a valorização do valor: Ora, se compararmos o processo de formação de valor com o processo de valorização, veremos que este último não é mais do que um processo de formação de valor que se estende para além de certo ponto. Se tal processo não ultrapassa o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simplesmente um processo de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna processo de valorização. Se, além disso, compararmos o processo de formação de valor com o processo de trabalho, veremos que este último consiste no trabalho útil, que produz valores de uso. O movimento é, aqui, considerado qualitativamente, em sua especificidade, segundo sua finalidade e conteúdo. O mesmo processo de trabalho se apresenta, no processo de formação de valor, apenas sob seu aspecto quantitativo. Aqui, o que importa é apenas o tempo que o trabalho necessita para a sua operação, ou o período durante o qual a força de trabalho é despendida de modo útil. As mercadorias que tomam parte no processo também deixam de importar como fatores materiais, funcionalmente determinados, da força de trabalho que atua orientada para um fim. Elas importam tão somente como quantidades determinadas de trabalho objetivado. Se contido nos meios de produção ou adicionado pela força de trabalho, o trabalho só importa por sua medida temporal. Ele dura tantas horas, dias etc. (MARX, 2013, p. 200). Assim, ainda segundo Marx, a reprodução ampliada do capital ganha destaque ao longo desse processo. A reprodução do capital, objetivada na mais-valia, é a garantia do seu sucesso, pois só pode ser conquistada através da etapa da produção. Parte dessa mais-valia conquistada é investida na forma de novas tecnologias empregadas na produção, para assim gerar cada vez mais lucro. Tem-se assim o processo de acumulação. Nele, a mais-valia também aumenta transformando-se em mais-valia relativa. Os detentores dos meios de produção, os capitalistas, ao buscarem incrementos para o aumento de sua produção a partir dos lucros gerados pela exploração da mais- valia, diminuem a sua taxa de lucro, como relata Toshio (2017) ao analisar esse conceito em Marx (2013) e Shaikh (1988), evidenciando mais uma das contradições desse modo de produção. Segundo a Lei, a razão entre o capital constante e o capital variável (composição orgânica do capital) tende a crescer devido à competição entre os capitalistas, os quais reinvestem seus lucros em meios de produção cada vez mais eficientes em busca de lucro-extra. Os capitalistas que se opuserem a este processo ou não conseguirem 33 renovar sua tecnologia estarão fadados ao desaparecimento devido ao processo de competição. Isso implica, ceteris paribus, redução da taxa de lucro, pois quantidade crescente de capital é necessária para obter a mesma massa de lucro. (TOSHIO, 2017, p. 50). A mercadoria aparece aqui, conforme o movimento do pensamento presente na obra de Marx, como categoria inicial e central de análise, gênese do capital. A mercadoria cria valor a partir do momento que, através do trabalho e da mais-valia, atinge sua finalidade. Nesse sentido, o valor de uso da mercadoria é gerar valor de troca. A mercadoria, portanto, precisa da sociabilidade do trabalho para ser efetivada no âmbito das trocas. Em suma, podemos afirmar que o valor proveniente da relação social de trabalho que gera a mercadoria, é o que também gera o valor. O valor, desta forma, assume e é concebido como relação social baseado no trabalho abstrato. As relações sociais ganham não o sentido de relação entre pessoas, mas a relação entre coisas, no qual o valor se torna o nexo dessas relações sociais. (MARX, 2013). As relações socais se materializam no espaço. Nesse sentido, o espaço é produto das relações sociais. Partindo dessa premissa, Moraes (1987), é categórico ao afirmar que as relações sociais capitalistas de produção também produzem o espaço, num incessante processo de valorização do valor e valorização do espaço. Nesse sentido, o espaço é uma externalidade, produto e condição da produção em geral. No entanto, ele é além de mero receptáculo, de fixação de valor, mas como agente de sua própria valorização a partir de atributos específicos. (...) a sociedade relaciona-se com seu espaço material e todas as coisas que ela contém, através de um permanente processo de valorização. O homem, com seu trabalho, cria e transfere valores. Parte desses valores se agregam ao espaço e vão condicionando processos futuros. (MORAES e COSTA, 1987, p.119). Segundo Godoy (2019), é a expropriação do trabalhador do seu meio de produção que garante a terra como propriedade privada, uma vez que ela também é, no modo de produção capitalista, meio de produção a partir desse movimento de expropriação. Moraes e Costa (1987) afirmam que é por meio da universalização do direito à propriedade privada da terra que o capital se apropria do espaço e traz à tona seu duplo valor: como valor de uso e valor de troca. Valor de uso como substrato material a vida humana e acumulação de trabalho morto. Valor de troca ao fixar um valor ao solo. Tem- se, portanto a espacialização do valor do espaço e no espaço. Como contribuição a discussão através de uma outra abordagem, mas não conflitante, Lefebvre (2004) e Carlos (2008) afirmam que, sob a égide do modo de 34 produção capitalista e por meio da garantia a propriedade privada da terra, o espaço se torna mercadoria, uma vez que pode ser parcelado e comercializado, visando assim a reprodução do capital por meio da valorização do espaço. O espaço, metamorfoseado em mercadoria por meio da propriedade privada da terra, produz valor através da renda capitalista da terra, (SEABRA, 1988). O que é vendido não é a terra, mas sim a possibilidade de renda da terra. Nesse sentido, a terra aparece como capital fictício, capital futuro, como possibilidade. Seu preço deve ser mais alto que o seu valor, para assim gerar renda. Pode-se dizer então que o preço da terra deriva do seu monopólio, independentemente da taxa de lucro ou de juros. Outro movimento que explica a renda da terra é que, os capitalistas, ao se apropriarem da mais-valia em forma de lucro, investem na propriedade privada da terra para gerar renda. O espaço é condição geral de produção e, ao mesmo tempo, força produtiva, pois existe como matéria prima e torna- se produto. À luz desse processo, o preço da terra toma forma e é gerado como a expressão formal do valor de troca. Seu diferencial, o valor agregado, se dá através dos atributos particulares do lugar. Atributos esses baseados nas especificidades dos lugares a partir do processo histórico de constituição do lugar. (SEABRA, 1988). Aqui é exposto a problemática da divisão entre o capital fixo circulante e o capital constante e variável. O trabalho incorporado ao solo é o que garante a terra como capital fixo. O trabalho incorporado ao solo gera benfeitorias e pode assegurar propriedades vantajosas e únicas a essa porção da superfície terrestre, o que gera valor. Nesse sentido da análise, Marx argumenta em Gundrisses: O capital fixo [...] compromete a produção dos anos seguintes [e] também antecipa o trabalho futuro como valor equivalente. A antecipação dos frutos futuros do trabalho não é [...] nenhuma invenção do sistema de crédito. Ela tem sua raiz no modo específico de valorização, de rotação, de reprodução do capital fixo. (MARX, 1993, p. 611-612) Nesse mesmo sentido, os lugares expressam tanto em sua materialidade, quanto em seu conteúdo, um acúmulo de tempos, conforme Seabra (1988), Carlos (1987), Lefebvre (2004) e Godoy (2019). Esses acúmulos de tempos também serão um dos elementos constitutivos do valor do espaço, principalmente no que tange a esfera da circulação das mercadorias. É, portanto, no mundo da mercadoria, no mundo dos valores de uso e dos valores de troca que o lugar, ou os lugares, acabam sendo historicamente definidos. Os atributos próprios do lugar e do espaço se 35 convertem em elementos de sua própria determinação como valores de uso e valores de troca. O lugar e o espaço atingem nessa circunstância histórica, a condição de sujeito como espaço mercadoria. (SEABRA, 1988, p.100). Marx já salientava em Gundrisses (1993) a importância da esfera da circulação para reafirmar o espaço como externalidade empírica de forma a compreender o processo de valorização do espaço pelo capital. Ele [o espaço] não constitui um momento necessário da circulação, considerada como processo particular do valor, pois um produto pode ser comprado e mesmo consumido no seu local de produção. Todavia, esse momento espacial é importante, na medida em que a extensão do mercado, a possibilidade de troca do produto, está relacionada com ele. A redução dos custos dessa circulação real (no espaço) faz parte do desenvolvimento das forças produtivas pelo capital, diminuição dos custos de sua valorização [...] De qualquer modo, aqui aparece a determinação desse momento pelo grau geral de desenvolvimento das forças produtivas e pela produção fundada sobre o capital. Esse momento espacial [...] poderia ser mais precisamente considerado como transformação do produto em mercadoria. (MARX, 2011, p. 440- 441). Harvey (2005), ao debruçar sua análise da produção capitalista do espaço e processo de valorização do espaço, identifica na esfera de circulação das mercadorias e, portanto, do capital, o cerne desse processo. Para ele, a circulação possui dos aspectos: o movimento físico real de mercadorias desde o lugar de sua produção até ao lugar do seu consumo; e o custo real ou implícito, relacionado ao tempo consumido nessa circulação, em que as mediações sociais necessárias para que a mercadoria então produzida encontre o seu usuário final. (HARVEY, 2005, p.49). É necessário diferenciar a circulação do valor, baseado na metamorfose da mercadoria em dinheiro e vice-versa por meio de um processo lógico, da circulação das mercadorias nesse espaço empírico, como extensão, que é apenas uma pré-condição da realização do valor. Desta forma, a esfera da circulação compreende a esfera intermediaria entre a produção e o consumo e, se torna essencial para a geração de valor, tendo na circulação real do espaço o elemento constitutivo desse valor. As barreiras ou fluidez espaciais se tornam condições diretas para a produção desse valor, que está baseado nas propriedades espaciais dos lugares. A redução de custos em barreiras espaciais está totalmente ligada ao acúmulo de capital em determinados lugares por parte dos produtores de mercadorias. A necessidade de minimizar os custos da circulação e consequentemente o tempo de circulação, promove a aglomeração da produção em alguns determinados espaços privilegiados, sobretudo nos grandes centros urbanos. É o 36 que Harvey (2005) irá denominar de “grandes oficinas capitalistas”. (HARVEY, 2005, p.50-52). Para superar barreiras espaciais [...], criam-se estruturas espaciais, que, no fim, agem como barreiras contra a acumulação adicional. Essas estruturas espaciais se manifestam na forma fixa e imóvel de recursos de transporte [...] Assim, o capital passa a ser representado na forma de uma paisagem física, criada à sua própria imagem, criada como valor de uso, acentuando a acumulação progressiva do capital numa escala expansível. A paisagem geográfica, abrangida pelo capital fixo e imobilizado, é tanto uma glória coroada do desenvolvimento do capital passado, como uma prisão inibidora do processo adicional da acumulação, pois a própria construção dessa paisagem é antitética em relação à derrubada das barreiras espaciais e, no fim, até à a anulação do espaço pelo tempo. (HARVEY, 2005, p. 53). O capital, ao criar oportunidades de gerar valor e acumular capital, promove no espaço, ao mesmo tempo, a expansão geográfica e a concentração geográfica. Percebe- se que o espaço, nesse sentido, é metamorfoseado pelo capital na busca de atender a essas necessidades do vigente modo de produção. Através dessa análise da produção do espaço por meio da esfera da circulação, Harvey (2005) traz as contribuições da teoria marxista para a compreensão do espaço geográfico: A teoria marxista ensina como relacionar, teoricamente, a acumulação e a transformação das estruturas espaciais, e, no fim, é claro, fornece um tipo de compreensão teórica e material que permitirá entender os relacionamentos recíprocos entre geografia e história. (HARVEY, 2005, p. 55). Partindo do mesmo ponto analítico, Moraes e Costa (1987), afirmam que a geografia marxista permite a compreensão da relação entre a sociedade e o espaço, uma vez que são expressões de processos históricos. Nesse sentido, essa relação sociedade- espaço, sob a égide do capital, promove, ao mesmo tempo e, dialeticamente, uma ampliação através da esfera da circulação e concentração de trabalho e de capital em espaços privilegiados, tendo nas cidades e, sobretudo nas metrópoles, sua maior expressão: A concentração dos meios de produção e de força de trabalho, apontam, por sua vez, na direção de uma intensificação da relação sociedade- espaço. Ao lado da ampliação dos espaços incorporados ao processo produtivo e à circulação – cada vez mais em escala mundial – a realidade urbano-industrial impõe-se fortemente como o traço caracterizador do novo espaço social em construção. Síntese concreta dessa inexorável tendencia à concentração, as cidades capitalistas e, em particular o seu desenvolvimento metropolitano, reestabelecem, sob forma qualitativamente diferente, os espaços de produção e de vivência. (MORAES E COSTA, 1987, p.90). 37 Por ser produto de processos históricos e, ao mesmo tempo, reflexos das relações sociais estabelecidas no espaço, a cidade, como categoria espacial, é força produtiva em si mesma, conforme analisa Seabra (1988). Fruto da divisão social e hierárquica do trabalho, a cidade capitalista por excelência, espacializa essa separação e a materializa em seu conteúdo, através das relações sociais capitalistas estabelecidas sob a égide do modo de produção vigente: “(...) a cidade do capitalismo se constitui como força produtiva social porque nela se foi materializando e aprofundando uma esfera pública de trabalho (SEABRA, 1988, p.102). Materializa-se, assim, no espaço os mecanismos do capital: “a cidade como riqueza criada, valor de uso para o capital produtivo, integra como valor de troca os processos particulares de reprodução capitalista do capital em geral” (SEABRA, 1988, p.103). É na categoria espacial do lugar que esse processo é materializado e pode ser analisado na sua forma mais expressiva, pois segundo Calos (1987), no espaço tem-se a dimensão de vários lugares. Entende-se o espaço como algo genérico e os lugares como produção humana e material nesses espaços, atribuindo-lhe a eles especificidades. Tem- se aí a produção do espaço como lugar, como identificação e particularidade. O lugar exprime, portando, as particularidades e singularidades ao mesmo tempo em que revela as generalidades do modo de produção. É forma devido ao seu caráter físico, material e visual constitutivos, ao mesmo tempo que revela o conteúdo subjetivo das relações sociais impostas entre o particular e o geral. Nesse embate, Seabra (1988), revela que as especificidades dos lugares se tornam também elementos constitutivos do valor no espaço mercadoria. Nesse sentido, o lugar, mais uma vez, se torna a categoria espacial onde esse processo se torna mais latente e se materializa mais facilmente, evidenciando as relações sociais e sua espacialização. A cidade não é uma força produtiva em si mesma. É uma força produtiva que se define numa relação histórica como fruto da separação social do trabalho, numa formação social determinada. O urbano é o seu conteúdo. Nessas condições (...) é o lugar através do qual se define um modo de vida particular “a cotidianidade moderna” face subjetiva do industrialismo, processo através do qual se tem introduzido, incessantemente, inovação em todas as direções em todos os sentidos, é o lugar que se cria o homem novo. (SEABRA, 1988, p.97). Ainda conforme Godoy (2019), o lugar torna-se essencial para a compreensão desse processo, devido as formas singulares que a relação capital-trabalho assume no 38 espaço na esfera da produção, circulação, distribuição e do consumo. Seabra (1988) e Carlos (1987), reafirmam que o lugar se torna a categoria central de análise, pois é no lugar que são atribuídos os códigos, significados e definições estabelecidas no bojo das relações sociais. O desenvolvimento do capitalismo, segundo a análise de Carlos (1987), torna as relações sociais cada vez mais complexas, obscuras e difíceis de serem decifradas, naturalizando essas relações. Baseada nos pressupostos de Marx e Benjamin, Seabra (1988) classifica essas relações sociais do trabalho como relações sociais fetichizadas, midiatizadas5 pelos mecanismos do capital e da mercadoria, características inerentes a modernidade, o tempo do capital. O espaço, principalmente o da cidade que é o lócus do capital, materializa e, ao mesmo tempo, especializa essas relações. Moraes (1987), ao analisar o processo de urbanização, vai ao encontro a essa ideia e destaca que ele é, inicialmente, uma transformação social profunda estabelecida no bojo das relações sociais. Não há dúvida de que os edifícios, as ruas, as praças e todo o universo material de uma cidade, apresenta-se a primeira vista, como provas empíricas de um gigantesco processo de fixação do homem ao solo. Entretanto, o significado real da urbanização contemporânea transcende em muito aquilo que nos é oferecido pela observação do seu aspecto físico. Além do fato de que a cidade capitalista representa para o capital, objeto e meio da realização do lucro de toda ordem (condição geral de reprodução da produção), o que transforma em gigantesca massa de capitais privados e capital social geral, ela expressa também uma verdadeira revolução em suas antigas funções de concentradora e dispersora de fluxos. (MORAES e COSTA, 1987, p.91). Sob a perspectiva lefebvriana, a cidade se contrói, em última instância, sob as relações não produtoras de mais-valia, embora valorizadas pelo capital, como espaço de reprodução. Essa contradição é fundamental para a definição de espaço urbano. Nesse sentido, a metrópole ao mesmo tempo que é a síntese e maximização desse processo de urbanização, revela em suas formas materiais e sociais as suas entranhas: o processo dialético, contraditório por meio do qual o espaço urbano é produzido. Revela-se assim as características do capital, conforme Seabra afirma: A metrópole contemporânea é a síntese mais complexa da conexão espaço-tempo. Constitui-se num objeto privilegiado exatamente porque, nela, o tempo tem um fundamento social resultante do processo de divisão do trabalho e da generalização da economia de trocas. Na metrópole contemporânea à lógica (sistêmica) e a dialética 5 Entende-se aqui que a mídia capitalista pode alcançar seu êxito por diferentes veículos de comunicação: rádio, televisão, redes sociais, anúncios, cartazes, outdoors etc. 39 (movimento/conflito) reúnem os elementos que qualificam o presente e que indicam o movimento da formação, o qual pode ser compreendido através de certas linhas (evolutivas) mais ou menos consistentes que demarcam a especificidade de processos urbanos particulares. (SEABRA, 2011, p. 53). A metrópole torna-se o espaço privilegiado do capital, imagem e semelhança desse modo de produção (GODOY, 2019). Nascimento (2017), ao investigar os agentes produtores do espaço urbano destaca a articulação entre o Estado e o Mercado Imobiliário. Sposito (2013) destaca o Estado como produtor do espaço em suas três esferas de poder formal: o federal, o estadual e o municipal. Essa última para a referida análise tem maior peso, uma vez que ele permite, através da propriedade privada da terra, o parcelamento do solo e sua regulamentação6. O Estado, em sua esfera municipal, determina as configurações espaciais do lugar. Carlos (2013), ao analisar o mercado imobiliário como agente produtor do espaço, o classifica como setor específico do capital especializado na mercantilização do espaço, esse, por sua vez, transformado em mercadoria no modo de produção capitalista através do direito à propriedade privada da terra. Os mecanismos do capital imobiliário em se apropriar, parcelar e reconfigurar o espaço urbano, cria, ao mesmo tempo, processos de valorização desse espaço: A propriedade, ao longo do processo de constituição capitalista, participa do processo de valorização do capital como necessidade de expansão de sua base produtiva e como implicação de fragmentos da cidade produzidos pela lógica do mercado imobiliário que faz do solo urbano um momento do processo de valorização do capital. Esses fragmentos se articulam e se fundam na produção de um espaço homogêneo dado pela sua condição de intercambialidade. Dessa forma, a produção capitalista, ao incorporar o solo urbano como mercadoria, transforma-o em valor de troca; nesta condição o espaço torna-se produtivo e, dessa forma, redefine a produção da cidade. (CARLOS, 2013, p.104). Maricato (2009) analisa a ação quase sempre conjunta da atuação desses dois agentes produtores do espaço urbano e a busca incessante pelo processo de valorização do espaço. O estado, ao determinar e legitimar os usos do espaço urbano e, sobretudo 6 O Estado brasileiro através de suas esferas federais, estaduais e municipais permite e dispõe regras para o parcelamento do solo urbano através da Lei 6766/79, art. 1º e 2°, configurando ao poder municipal seu principal agente regulador: “Art. 1o. O parcelamento do solo para fins urbanos será regido por esta Lei. Art. 2o. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes. Com destaque para o § 2º: Considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes". 40 nas metrópoles, cria condições para a fluidez do capital e incorporação de valor ao solo, seja através de obras de circulação (ruas, avenidas, transportes), seja a criação de áreas voltadas ao lazer (parques, teatros etc.). O capital imobiliário articula suas ações com o Estado afim de promover uma valorização do espaço e, ao mesmo tempo, reprodução do modo de produção. Desta forma, a atuação do Estado e do mercado imobiliário tendem a produzir mecanismos que visam a reprodução ampliada do capital nas esferas da produção, circulação e consumo. Sanfelici (2009) traz exemplos das formas que a articulação entre Estado e mercado imobiliário aparecem. Dentre elas destaca-se: programas de créditos imobiliários, incentivos fiscais, programas de remodelação urbana também chamados ideologicamente de “revitalização”, dentre outras práticas. Espaços criados para o lazer, tempo do ócio, também são cooptados pelo capital afim de promover a sua reprodução, conforme destaca Carlos (1999). Na sociedade de consumo, espaços criados para o lazer pelo Estado são vendidos por meio do capital imobiliário, com o objetivo de tirar renda da terra. Assim, além de reproduzir o espaço segundo os interesses do capital em gerar valorização, é necessário também criar mecanismos e anseios sociais que objetivem, através de práticas sociais, a adesão da população a esses espaços do consumo, a fim de garantir a reprodução ampliada do capital, conforme destacam Carlos (1999), Lefebvre (2004) e Nascimento, Ismael, Rosalin e Gomes (2020). o lazer na sociedade moderna também muda o sentido, de atividade espontânea, busca do original como parte do cotidiano, passa a ser cooptada pelo desenvolvimento da sociedade de consumo que tudo o que toca transforma em mercadoria. (CARLOS, 1999, p.25). Nesse mesmo sentido de análise, o capital transforma não só o espaço em mercadoria, como garante através da reprodução das relações sociais, os mecanismos que solidifiquem e garantem a reprodução do capital. Conforme nomeia Carlos (1999), a indústria do turismo surge como grande exemplo dessa reprodução ampliada do capital a partir da cooptação das horas de não trabalho, do ócio. Os espaços privilegiados, valorizados da cidade e da metrópole são transformados em espetáculos a fim de garantir a objetivação do capital: a sua reprodução. A indústria do turismo transforma tudo o que toca em artificial, cria um mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço se transforma em cenário para o espetáculo para uma multidão amorfa mediante a criação de uma serie de atividades que conduzem a 41 passividade, produzindo apenas a ilusão da evasão, e, desse modo, o real é metamorfoseado, transfigurado, para seduzir e fascinar. Aqui o sujeito se entrega as manipulações desfrutando a própria alienação e a dos outros. (CARLOS, 1999, p. 26). Esses mecanismos criados para a reprodução do espaço físico e das relações sociais visando a reprodução do capital é o que Benjamin irá debruçar suas análises em sua obra “Passagens”. Através dos conceitos de fetichismo da mercadoria e de fantasmagoria, o autor irá identificar no espaço da metrópole parisiense as maiores expressões desses conceitos. Mecanismos esses que visam sempre a perpetuação do modo de produção através da reprodução e valorização do espaço7. Moraes e Costa (1987), destacam que ao produzir e valorizar o espaço, o capital cria, ao mesmo tempo condições para sua própria destruição e reconstrução. É o que os autores irão denominar afirmação-negação capitalista do espaço, evidenciando as contradições desse modo de produção. Ao apropriá-lo, dominá-lo, reproduzi-lo e destruí- lo para reconstruí-lo posteriormente, promove a própria negação, ao mesmo sentido que cria oportunidades para a perpetuação do processo de valorização do espaço e, consequentemente, do valor. A metrópole capitalista, nesse sentido, aparece como expressão maior dessa relação dialética entre capital e espaço. Podemos afirmar que o processo capitalista de valorização do espaço é, fundamentalmente, um movimento permanente de afirmação-negação. Sua dialética expressa-se na afirmação que a sociedade capitalista faz de seu espaço, ao dominá-lo, utilizando-se dele, expandindo-se e nele reproduzindo-se nele, mas simultaneamente na negação desse espaço por essa mesma sociedade, ao destruí-lo e reconstruí-lo sucessivamente, ao fragmentá-lo e torná-lo desigual, ao servi-lo dele como móvel de opressão impregnando-o plenamente de suas próprias contradições. (MORAES E COSTA, 1987, p.135). No bojo desse processo dialético da relação capital espaço de afirmação-negação, Rodrigues (1999), ao analisar o turismo como fração capitalista, afirma que o mesmo processo acontecerá nos lugares voltados a essa prática capital-social. Tanto o próprio espaço físico quanto seu conteúdo subjetivo e pautado nas relações sociais constitutivas, se tornam mercadorias, e assim, são produzidas, comercializadas, destruídas e reconstruídas conforme as necessidades de reprodução e valorização do capital. 7 Essa relação entre fantasmagoria e metrópole será melhor analisada na seção 2.3 42 2.3 - Metrópole e Fantasmagoria Como já visto até aqui na seção anterior (2.2 - Valorização do Espaço na Metrópole Capitalista), a metrópole se torna o espaço à imagem e semelhança do capital, expressão maximizada desse modo de produção. Como tal, carrega consigo suas características, seja no seu processo de valorização do valor por meio do processo de valorização do e no espaço. A valorização do espaço está baseada na propriedade privada da terra, ao torná- la mercadoria e meio de produção. A valorização no espaço, ocorre no momento em que são realizadas bem feitorias na superfície agregando valor por meio do trabalho. (GODOY, 2019). De forma dialética, o espaço se torna a autonegação do processo de valorização do valor, a partir do momento que apresenta trabalho incrustado ao solo e ao mesmo tempo possui barreiras espaciais na esfera da circulação do capital. Tem-se a síntese da dialética na metrópole, o espaço em constante metamorfose em construção, desconstrução e reconstrução para atender aos anseios do capital. (SEABRA, 2011). As intervenções urbanísticas se tornam meios pelo qual o capital encontra mecanismos para valorizar o espaço e, assim, reproduzir seu modo de produção. Ao mesmo passo que reproduz condições para a reprodução, reproduz também de forma dialética o espaço urbano. Reprodução essa que vai para além da materialidade física encontrada, ela tem seu cerne no bojo das relações sociais de produção. (LEFEBVRE, 2004). Os ideários urbanistas surgem como formas que reproduzem o espaço urbano na forma de atender as necessidades