Mestrado Profissional em Artes PROFARTES PATRÍCIA SILVA RODRIGUES A paisagem sonora da sala de aula: escuta e criação, desenvolvimento da compreensão musical e da consciência sobre ecologia acústica. SÃO PAULO 2016 PATRÍCIA SILVA RODRIGUES A paisagem sonora da sala de aula: escuta e criação, desenvolvimento da compreensão musical e da consciência sobre ecologia acústica. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Artes – Prof-Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes, área de concentração Ensino de Música, sob a orientação da Profa. Dra. Luiza Helena da Silva Christov. A presente pesquisa foi financiada pela CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, MEC. SÃO PAULO 2016 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP R696p Rodrigues, Patrícia Silva, 1984- A paisagem sonora da sala de aula : escuta e criação, desenvolvimento da compreensão musical e da consciência sobre ecologia acústica / Patrícia Silva Rodrigues. - São Paulo, 2016. 76 f.: il. + 1 CD. Orientadora: Profa. Dra. Luiza Helena da Silva Christov. Dissertação (Mestrado Profissional Prof-Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Paisagem sonora. 2. Música – Instrução e estudo. 3. Música contemporânea. I. Christov, Luiza Helena da Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.7 Dissertação defendida e aprovada, em 12 de julho de 2016, pela banca examinadora constituída pelos professores ____________________________ Luiza Helena da Silva Christov ____________________________ Rita Luciana Berti Bredariolli ____________________________ Prof. Dr. Erick Orloski SÃO PAULO 12 de julho de 2016 Dedicatória Dedico este trabalho aos professores e artistas que conheci neste Programa de Mestrado, os quais, apesar de todos os obstáculos, trabalham para proporcionar a seus alunos experiências artísticas significativas. Esses são os verdadeiros mestres, em todos os sentidos. Agradecimentos Agradeço àqueles que com seu exemplo e paciência me ensinaram a buscar mais leveza naquilo que faço, a acreditar: Eliane, Luiza, Matheus e amigos do Mestrado Profissional, meus exemplos de professores e artistas. RESUMO O presente trabalho apresenta e discute uma proposta pedagógica, cujo objetivo foi desenvolver escuta e a criação de Paisagens Sonoras para favorecer o desenvolvimento da compreensão musical e também da consciência a respeito de ambientes acústicos. Tal proposta foi realizada junto a alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, na rede municipal de São Caetano do Sul, onde a autora da pesquisa trabalha como professora de música. Essa proposta pedagógica foi descrita e analisada para a dissertação de mestrado que a autora desenvolveu como trabalho final do Programa ProfArtes, mestrado profissional do Instituto de Artes da Unesp. As perguntas norteadoras da proposta pedagógica e da reflexão dessa dissertação são: propor aos alunos um projeto de criação de uma peça, para a qual eles deverão ouvir atentamente, catalogar, classificar, experimentar, gravar sons, elaborar ritmos, melodias, com diálogos durante o processo, os levaria a alguma conclusão relevante sobre o ambiente sonoro que os cerca? E seria possível ensinar música a partir desta proposta? Para tentar respondê-las, buscamos como auxílio ferramentas da música contemporânea e ideias de autores nos quais esta pesquisa se fundamentou, como Murray Schafer e John Paynter. Entretanto, no decorrer das experiências vividas muitas considerações emergiram e influenciaram o objetivo e a trajetória metodológica escolhida, como está registrado nas narrativas das aulas e nas reflexões da dissertação. Palavras-chave: Paisagem Sonora. Música. Música Contemporânea. ABSTRACT This paper presents and discusses a pedagogical proposal, from which the objective was to develop the listening and creation of Soundscapes to favor the development of musical understanding and also awareness about the acoustic environment. The proposal was realized with students from the 5th year of elementary school in the city of São Caetano do Sul, where the author of the research works as a music teacher. This pedagogical proposal was descript and analised for the Master dissertation that the author has developed as final work of the Prof-Artes Program, Professional Master of Instituto de Artes of Unesp. The guiding questions of this pedagogical proposal and this dissertation are: offer students a music creation project, for which they should listen carefully to catalog, to classify, to experiment, to record sounds, to elaborate rhythms and melodies, with debates during the process, would lead to some relevant conclusions about the sonorous environment that surrounds them? And it would be possible to teach music from this proposal? To try to answer them, we seek aid on the Contemporary Music and in the ideas from the authors that this research was based, as Murray Schafer and John Paynter. However, in the course of the experiences, many considerations emerged and influenced the objective and the chosen methodological trajectory, as it is registered in the narratives of the classes and in the reflections of the dissertation. Keywords: Soundscape. Music. Contemporary Music. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................... 09 O QUE DIZEM ALGUNS AUTORES .......................................................... 19 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ............................................................. 45 A PAISAGEM SONORA DA SALA DE AULA .......................................... 50 Primeiras experiências .......................................................................... 50 Uma nova escuta da paisagem sonora da sala de aula ....................... 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 74 9 INTRODUÇÃO A cada dia, gradualmente a Educação Musical vem incorporando a Música Contemporânea e suas ferramentas composicionais às práticas pedagógicas como meio de aproximar-se do contexto musical atual, bem como para despertar e desenvolver diversas habilidades, musicais ou não, nos indivíduos. É importante esclarecer a que tipo de música, ou prática musical, referimo-nos como Música Contemporânea. Usaremos então o que Leila Vertamatti coloca em seu livro: “O termo Música Contemporânea dá margem a várias interpretações, podendo-se incluir nele o repertório de música popular, uma vez que contemporâneo significa do nosso tempo; sob esse rótulo, portanto, convivem as mais variadas tendências estéticas. Neste livro, o emprego do termo está em consonância com o uso que dele faz Guy Reibel, ou seja, como designativo de obras do período da história da música em que o sistema tonal é ampliado, gerando a prática de novas técnicas composicionais, mudanças na maneira de execução instrumental e uso da voz, interesse por materiais musicais extra-ocidentais, pelo ruído e pela ênfase dada ao aspecto timbrístico, entre outros. Essas técnicas permitiram uma abordagem diferente do fenômeno sonoro e das formas de organiza-lo, gerando, muitas vezes, uma grafia musical adaptável a essas produções, uma vez que a notação tradicional já não era suficientemente ampla para dar conta de todas as nuanças sonoras em uso no período.” (VERTAMATTI, 2008, p. 16, notas) Ao mencionarmos a Música Contemporânea, estamos direcionados às ideias descritas acima. O uso de novas práticas composicionais, e acrescentaria também interpretativas, o interesse e uso de materiais não tonais, a busca por novas sonoridades vocais e instrumentais, a ênfase nos timbres, bem como a elaboração de uma grafia musical adaptável às criações musicais, são para este trabalho, algumas das principais possibilidades de uso na Educação Musical. Exemplos de iniciativas para a incorporação da Música Contemporânea à Educação Musical são os trabalhos de Álvaro Henrique Borges. Em sua dissertação de mestrado (2008), o autor discorre sobre as possibilidades para o ensino e aprendizagem da Música Contemporânea, e em sua tese (2014) propõe um repertório inicial, denominado “Ciclo Pedagógico” para alguns anos do ensino fundamental. O objetivo de seu trabalho de doutorado foi introduzir professores de música de escolas regulares às técnicas composicionais contemporâneas e treina-los, para que começassem a trabalhar também a 10 Música Contemporânea em suas aulas. Ainda assim, o autor relata um receio inicial por parte dos professores por estarem pouco familiarizados com a Música Contemporânea, mas que mesmo assim mostraram-se empenhados em conhecer e aprender sobre. Como musicista e educadora musical, em escola regular, percebo grande dificuldade de compreensão da importância da Música Contemporânea por parte dos discentes e dos demais docentes. Os primeiros por serem, em sua maioria, mais familiarizados com a música propagada pela mídia do que qualquer outra. Os últimos, talvez por desconhecimento das novas discussões a respeito do que precisa ser o ensino de música hoje. Porém, penso que tanto as metodologias pedagógicas mais antigas quanto as mais atuais oferecem diferentes, porém válidos, recursos pedagógicos, e que a música midiática pode auxiliar também na Educação Musical. Esse pensamento parte de minha experiência musical ao longo da vida. Iniciei meus estudos musicais aos 10 anos, quando ganhei uma flauta doce e aprendi as músicas que vinham com o instrumento. Meses depois iniciei meus estudos musicais em uma tradicional banda de minha cidade natal, Dores de Campos, Minas Gerais, a Lira Nossa Senhora das Dores, fundada em 1º de janeiro de 1875. Aos 12 anos comecei a aprender clarinete nesta mesma instituição. Estes estudos iniciais e a experiência musical que tive na banda foram o impulso para que eu escolhesse a música como profissão e buscasse uma graduação. Anos mais tarde optei por cursar a Licenciatura em Música, quando também me habilitei em Clarinete, na Universidade Federal de São João Del Rei, MG. Na universidade, vivenciei músicas de todas as épocas, inclusive contemporânea. A partir de então, um novo mundo se abriu, pois descobri e me encantei tanto com a teoria quanto com as possibilidades de criar, interpretar, analisar e buscar o refinamento técnico. Minhas primeiras experiências pedagógicas vieram quando comecei a dar aulas de clarinete na Casa de Música de Ouro Branco, onde trabalhei por dois anos e meio até me mudar para São Paulo. Mudei-me com o intuito de continuar a estudar e trabalhar, sabendo das inúmeras opções disponíveis na grande metrópole. Assim, no Instituto Federal de São Paulo iniciei minha experiência com a Educação Básica, onde trabalhei por dois anos como substituta. No IFSP há cursos técnicos integrados ao Ensino Médio e o Instituto oferece ao menos duas linguagens artísticas, Música e Artes Visuais. Trabalhei com turmas de cerca de 20 alunos que estavam no 4º ano, ou seja, com idades em torno de 17 ou 18 anos. Foi um novo desafio, pois, além da inexperiência, deparei-me com a realidade educacional da falta de espaço e de materiais para as aulas de música, com a diversidade de alunos, e seus conhecimentos, e com 11 o fato de que na formação do educador musical pesquisa-se e discute-se quase unicamente materiais para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Mesmo assim, adaptando atividades e conteúdos, o trabalho foi enriquecedor e gratificante, pois obtive o reconhecimento dos alunos, o que para mim é prova de que eles vivenciaram algo significativo com a aula de música. Em 2014 comecei a trabalhar para a Prefeitura de São Caetano do Sul, no Ensino Fundamental I, quando vieram mais desafios, pois se tratava de outro público, bem diferente dos alunos do Ensino Médio. Em São Caetano algumas das escolas municipais já são de período integral e nelas são ofertadas oficinas com professores especialistas em diversas áreas, sempre no turno da tarde. Além de Música, Teatro, Dança e Artes Visuais, também há oficinas de Inglês, Espanhol/Italiano, Expressão Corporal, Prática Esportiva e Robótica. Em toda a rede municipal há 07 escolas de período integral para Ensino Fundamental, mas apenas a que trabalho oferece ensino de tempo integral para Fundamental I e Fundamental II. Para o Fundamental I há duas aulas de Música de 50 minutos por semana e no Fundamental II apenas uma. Existe um currículo integrado, elaborado de acordo com cada ano escolar, o qual é constantemente analisado e discutido pela equipe de professores especialistas em cada área. Há reuniões mensais onde trocamos ideias e opiniões, tiramos dúvidas, discutimos conteúdos e atividades e também questões pertinentes. O formato do currículo abrange os principais conteúdos e habilidades dentro do ensino de Música, como criar, apreciar, interpretar. E possui certa flexibilidade, permitindo que o professor tenha liberdade para desenvolver atividades, inclusive com Música Contemporânea. Assim garante-se que o trabalho em cada escola seja o melhor possível, articulado e com as contribuições dos professores. A estrutura física das escolas da rede municipal de São Caetano é muito semelhante, em poucas há uma sala para as aulas de Música e as que existem não são ideais. Ocorre também a insuficiência de instrumentos para os alunos. Na escola em que leciono, no que diz respeito ao material básico, necessário ao ensino musical, há um teclado e poucos instrumentos musicais, já sucateados pelo uso. Nem sempre é possível à escola adquirir instrumentos de qualidade e em quantidade satisfatórias com a urgência em que se faz necessária. 12 Solicita-se então às famílias que adquiram flauta doce para os alunos. Muitas não adquirem, outras adquirem instrumentos de qualidade sonora inferior. Uma das soluções, para a falta de instrumentos, por exemplo, é propor a confecção deste, os quais, para que tenham um mínimo de qualidade sonora e resistência, precisam seguir critérios no uso de determinados materiais e na montagem dos mesmos. Em contrapartida, nas escolas de São Caetano há recursos que em muitas outras redes de ensino não estão disponíveis, como lousas digitais e computador para cada sala, o que é um recurso multimídia de grande ajuda para todos os professores. No caso da escola em que leciono, atualmente são oito turmas no Ensino Fundamental I e sete turmas no Ensino Fundamental II. Ministro oficinas para as turmas de 2º, 3º, 4º, 5º anos e também para o 7º ano. As turmas têm em média 30 alunos cada. Não há muito espaço externo e as aulas de esportes e de dança tem preferência no uso desses poucos locais. Por isso, as aulas de música acontecem dentro da sala de aula, cheia de mesas e cadeiras, geralmente enfileiradas e alinhadas, com pouquíssimo espaço entre elas, devido ao número de alunos. A estratégia muitas vezes usada nas aulas de música é encostar as carteiras nos cantos da sala, mas mesmo assim, ao fazer roda, por exemplo, é sempre muito apertado. Há pouca ventilação e, somado ao fato de estarem na escola desde as 7:30 da manhã, os alunos ficam bastante inquietos, cansados de estar em um mesmo ambiente por horas. Mesmo no horário de almoço, após comerem, eles precisam optar entre fazer oficinas extras ou ficar dentro da sala de aula, pois, os alunos do Fundamental II também precisam almoçar. Considero uma rotina desgastante, não há um período livre, de descanso para a mente, para relaxarem, ou repousar. As estratégias tomadas pela escola são uma tentativa de manter certa ordem e controle sobre uma grande quantidade de crianças e adolescentes em um espaço muito restrito. À falta de espaço soma-se o pouco número de funcionários para oferecer, à diversidade de alunos, com necessidades, anseios e comportamentos variados, um atendimento mais individualizado. Esse contexto leva à necessidade de criar tais esquemas de controle para evitar acidentes e conflitos. Porém, esses esquemas não dão conta da diversidade e os procedimentos tornam a rotina massante para alunos, funcionários e professores. 13 Assim, cansados com as horas de estudo pela manhã, mal satisfeitos com a hora de lazer e descanso controlados, estão os alunos que encontro quando chego à tarde para mostrar-lhes as coisas incríveis que a Música nos oferece. São muitas crianças cheias de interesse e vontade de conhecer, aprender, partilhar conhecimento. E estes mesmos alunos estão também cansados e em conflito com outros colegas que, por sua vez, não estão interessados. Devemos lembrar que muitos deles chegam à escola com problemas os mais diversos, sejam cognitivos, físicos, afetivos, psicológicos. Foram mencionados os fatores acima com o intuito de elencar aspectos que contribuem para a composição do ambiente escolar e de sua paisagem sonora. Este é o contexto com o qual me deparei, sem prévia experiência com crianças, enquanto conhecia o livro A Afinação do Mundo (2011), de Murray Schafer. Naquele momento, estava mergulhada nas reflexões deste compositor acerca das transformações ocorridas na paisagem sonora mundial e suas ideias de projetos acústicos que objetivavam recuperar um pouco da qualidade de vida nas grandes cidades. Imaginei então que poderia elaborar e realizar um trabalho de conscientização com os alunos para despertar a percepção destes sobre a paisagem sonora, ou o ambiente acústico, escolar. Dessa forma, o presente projeto surgiu de uma inquietação desta autora quando, dentro da sala de aula, observava e refletia sobre as características acústicas do ambiente escolar, ao mesmo tempo em que conhecia um pouco mais sobre as ideias de Murray Schafer no seu livro A Afinação do Mundo. A princípio, o objetivo geral deste trabalho seria analisar como uma proposta pedagógica com atividades que usam a escuta e a criação de paisagens sonoras pode favorecer o desenvolvimento da compreensão musical e também da consciência a respeito do ambiente acústico, mesmo que em âmbito escolar ou comunitário apenas. E as perguntas centrais desta pesquisa seriam: propor aos alunos um projeto de criação de uma peça, para a qual eles deverão ouvir atentamente, catalogar, classificar, experimentar, gravar sons, elaborar ritmos, melodias, com diálogos durante o processo, os levaria a alguma conclusão relevante sobre o ambiente sonoro que os cerca? E seria possível ensinar música a partir desta proposta? No entanto, à medida que a pesquisa se desenrolava e com as experiências iniciais em classe, percebi que a conscientização a respeito do ambiente acústico levaria um tempo muito maior do que se dispunha neste mestrado. Em verdade, a consciência, em qualquer situação, modifica-se conforme as experiências vividas pelo indivíduo ao longo da vida 14 “A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais. Se os homens, como seres que atuam, continuam aderindo a um mundo “feito”, ver-se-ão submersos numa nova obscuridade. A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil.” (FREIRE, 1970, p. 16) Portanto, este trabalho configurou-se como uma narrativa da experiência vivida e um convite à reflexão, apoiada por autores que trabalharam e ainda trabalham pela educação sonora, pela criatividade e pela contemporaneidade na Educação Musical. A escolha por utilizar em minhas aulas, e neste projeto, técnicas e ideias trazidas pela Música Contemporânea deve-se, então, ao contato com as ideias de Murray Schafer e também John Paynter, e ainda por acreditar que as práticas musicais desta corrente representam uma abertura à liberdade de improvisação e criação por parte dos alunos, levando-os a encontrar caminhos para sua expressividade e musicalidade. As ideias destes dois compositores complementam-se com as de Guy Reibel: “Acredita Reibel que a Música Contemporânea é um campo favorável para práticas criativas de grande interesse para amadores e crianças, pois pode ser abordada sem que o conhecimento técnico seja obrigatório por parte dos praticantes. A base da pedagogia conduzida por esse autor é o jogo. A intenção de sua proposta não é o aprendizado de teorias abstratas, mas a formação crítica e pessoal do indivíduo em relação à música, a partir da invenção e da escuta, de tal forma que seja possível “descrever” a percepção sem empregar noções teóricas.” (VERTAMATTI, 2008, p.54) É mister lembrar, no entanto, que por abrir maior espaço pra a expressão individual e dar liberdade de invenção aos alunos, as práticas não são atividades superficiais, sem fundamentos, muito menos um passa tempo. As práticas sugeridas por esses autores seguem referências e são direcionadas a fim de que haja um desenvolvimento de conhecimento efetivo, consciente, por parte de quem cria. As propostas de escuta, criação, interpretação, improvisação e grafia devem seguir um fio condutor, que estruture as ideias musicais. John Painter afirma que “as formas livres podem parecer uma desculpa para a falta de disciplina musical; mas não é assim. A liberdade tem sua própria disciplina - um fato que, certamente, se pode ensinar com eficácia mediante projetos de composição em aula nos quais 15 tem que se definir novas convenções (ou regras de jogo).” (PAYNTER, 2010, p. 161) Desta forma, acredito na viabilidade do uso dos recursos da Música Contemporânea para despertar o interesse e promover o desenvolvimento das pessoas. E dentre as características desta corrente musical, talvez a principal seja a de que ela trabalha também com instrumentos não tradicionais e materiais não convencionais, objetos do cotidiano, facilitando assim o trabalho do professor que lida com poucos recursos, bem como por seu caráter exploratório, baseado na criação, e questionador, que nos leva a observar o som que nós mesmos produzimos. Há ainda o fato de que a Música Contemporânea acompanha e utiliza as mais recentes tecnologias, buscando formas de se adaptar e aprimorar técnicas, configurando um meio de atrair o interesse dos estudantes. Compositores como John Paynter e Murray Schafer, desenvolveram trabalhos que bem exemplificam esse caráter da composição contemporânea, sem esquecer, todavia, da estética em sua música. Na presente pesquisa, foram abordados procedimentos relacionados a um conceito já bastante conhecido entre os educadores musicais, que envolve exercícios de escuta e criação musical de Paisagens Sonoras. Foi o músico canadense Murray Schafer quem cunhou o termo Soundscape (paisagem sonora), a partir de Landscape (paisagem). Uma paisagem descreve os elementos visuais de determinado ambiente. Paisagem Sonora descreve os elementos sonoros, quaisquer detalhes possíveis de serem ouvidos, ou não, em determinado espaço físico, ou seja, tudo o que nosso ouvido é capaz de perceber em um espaço de tempo, ou ainda, os sons inerentes a determinado local. Preocupado com o crescente aumento da produção sonora, e consequente redução da qualidade de vida, especialmente nos centros urbanos, Schafer desenvolveu um projeto, em âmbito global, reunindo resultados de pesquisas em diversos países do mundo, a respeito da transformação da paisagem sonora mundial ao longo dos tempos, com dados históricos, literários, científicos e relatos locais. Nesse trabalho, denominado Projeto Paisagem Sonora Mundial, o objetivo foi “realizar um intensivo estudo interdisciplinar a respeito de ambientes acústicos contrastantes e seus efeitos ao homem; sugerir maneiras de modificar e melhorar ambientes acústicos, educar estudantes, pesquisadores e público em geral, em ecologia acústica e preparar relatos que servissem como guias a futuros estudos” (SCHAFER, apud FONTERRADA, 2004, p. 41) 16 Os resultados deste projeto originaram o livro A Afinação do Mundo. No livro Schafer coloca sua inquietação com relação às transformações da paisagem sonora mundial, segundo ele agravados desde a Revolução Industrial, bem como apresenta os dados coletados em seu projeto. No mesmo livro, Schafer apresenta e discute conceitos como Ecologia Acústica, Paisagem Sonora, Objeto Sonoro, Limpeza de ouvidos; Ruído, Ambiente acústico/sonoro, Poluição Sonora. No ensino musical atual é comum o uso de atividades relacionadas à audição e à criação de paisagens sonoras como recurso pedagógico, bem como são inúmeras as pesquisas sobre o assunto, com variados objetivos de estudo, em trabalhos acadêmicos. Um exemplo é a pesquisa de Fátima Carneiro dos Santos (2006), no qual ela utiliza a gravação de sons da cidade, feita por alunos do ensino fundamental, para a criação de paisagens sonoras. O objetivo do trabalho de Santos é o questionamento e a ampliação da ideia de música pelos alunos. Nós, educadores musicais, nos preocupamos em permitir que os alunos façam música, pratiquem música, manifestem-se musicalmente. Mas atualmente talvez seja o momento de provocar também, ou dar maior ênfase, à importância da prevenção do som, tanto quanto da sua produção, conforme discute Murray Schafer em A afinação do mundo. Ao conhecer os trabalhos de Schafer identifiquei-me com suas inquietações a respeito da crescente poluição sonora, e também penso que a Educação Musical pode fazer algo para melhorar a qualidade de vida no aspecto ecológico. A opinião de Fonterrada resume com bastante clareza o meu entendimento sobre as propostas de Schafer: “são especialmente adequadas ao Brasil e a outros países em desenvolvimento, pois não enfatizam os procedimentos usuais de ensino musical, habitualmente centrados no instrumento e que, por esse mesmo motivo, fazem-se dispendiosos e fora do alcance da maior parte da população. As propostas de Schafer, ao privilegiar o uso do ouvido e da voz, a exploração de materiais do próprio ambiente, a valorização da paisagem sonora e o extenso uso das faculdades criativas, tiram a música do pedestal em que foi colocada pela civilização ocidental e a recolocam no centro, ao alcance de todos.” (FONTERRADA, 2004, p.56) 17 E ela afirma ainda que “o trabalho de Murray Schafer seria mais bem classificado como um trabalho de educação sonora do que propriamente de Educação Musical, termo já comprometido com procedimentos, escolas e métodos de ensino.” (ibdem, p. 56) Assim, as propostas de Schafer serviriam, dentro da Educação Musical, como um trabalho de educação sonora, buscando uma mudança de consciência a respeito da importância de cuidar da paisagem sonora que nos cerca. Schafer demonstra sua preocupação e nos leva a pensar na gravidade da questão da poluição sonora, mesmo 40 anos atrás. Ademais, essas atividades propiciam a participação ativa, através da criação artística a partir de sons comuns, caminhando para uma percepção auditiva mais elaborada, pois levam à observação atenta de todos os sons, ruídos e silêncio, presentes em ambientes cotidianos. Além de trabalhar aspectos e parâmetros musicais e não musicais, como percepção, composição, manipulação de sons e suas características, espacialidade, teatralidade e tecnologias, a escuta e criação de paisagens sonoras permite que a questão da poluição sonora seja abordada por outro ângulo, ao invés de apontar a produção de sons unicamente como um problema a ser combatido a todo custo, mas sim com soluções positivas, como a busca de sons “saudáveis, bonitos e adequados à sociedade” (Fonterrada, 2004, p. 43). Atividades como as propostas por Schafer podem ser importantes para modificar o comportamento auditivo, ou a intenção da escuta, das pessoas, levando-as a observar crítica e criativamente a quantidade e a qualidade de sons produzida pela comunidade em que se inserem. Schafer lembra que as medidas de todas as coisas já criadas usam como parâmetro o homem, o corpo humano. Por exemplo, um arquiteto projeta os espaços de uma construção baseando-se nas dimensões do corpo humano. Assim, os sons de um ambiente têm que ser estabelecidos com base na voz humana. Se os sons de determinado lugar sobrepõem a voz humana, então o ambiente acústico ali não é saudável. Entretanto, cabe lembrar que, na discussão a respeito de poluição sonora, os conceitos de som, música e ruído, são relativos, variando de comunidade para comunidade, de época para época. Mas o importante é realizar uma escuta crítica e constante a respeito dos sons à nossa volta e, se houver possibilidade de prevenir, ou trabalhá-los, qualitativa e quantitativamente, buscar meios para fazê-lo. 18 Nosso trabalho apresentará essa introdução, três capítulos e as considerações finais. O primeiro capítulo traz fundamentação teórica, discutindo autores que dialogam com as propostas aqui apresentadas. O segundo capítulo apresenta nossa trajetória metodológica, justificando minhas escolhas e os instrumentos utilizados nesta pesquisa. O terceiro capítulo constitui as narrativas sobre a concepção do projeto, a elaboração e realização das propostas, as reflexões e novas ações tomadas durante o processo de pesquisa. Por fim, nas considerações finais retomo os objetivos iniciais, comparando os resultados obtidos e posicionando minhas novas concepções após esta experiência. 19 O QUE DIZEM ALGUNS AUTORES O principal autor e, poderia dizer talvez, o que inspirou minha pesquisa é Murray Schafer. Conheci seu trabalho durante a licenciatura, com o livro O ouvido pensante, onde o compositor apresenta suas experiências docentes, em projetos que levaram compositores para dentro das salas de aula, no Canadá. Talvez o fato de ser um compositor contemporâneo, com uma grande intuição a respeito do que é viver e fazer música, suas aulas e projetos são exemplos de formas práticas e atuais de proporcionar o desenvolvimento da compreensão musical e sonora. Somente na adolescência Schafer começou a estudar em uma instituição especializada em música, The Royal Conservatory of Music, em Toronto, onde obteve o único diploma que possui: licenciatura em música (FONTERRADA, 2003, p. 32). A despeito disso, ele desenvolveu ao longo da vida ideias e projetos que servem à Educação Musical como caminhos para o trabalho com a Música Contemporânea, e também tem forte relação com as questões de ecologia acústica e com as discussões a respeito do conceito de música, sempre em constante transformação. Sua preocupação a respeito da paisagem sonora que nos cerca e com o efeito desta na qualidade de vida do ser humano levou-o a elaborar propostas para que o ensino de música sirva como um meio para a conscientização sonora dos indivíduos. “A tarefa do educador musical é, agora, estudar e compreender teoricamente o que está acontecendo em toda parte, ao longo das fronteiras da paisagem sonora do mundo.” (SCHAFER, 2011b, p. 176) Em O ouvido pensante Schafer narra muitas das aulas que ministrou para diversos níveis de ensino, propondo suas ideias de abertura dos ouvidos, no sentido de buscar novas formas de ouvir e fazer música a partir dos sons à nossa volta. Neste livro, o compositor apresenta seu ponto de vista com relação ao ensino tradicional de música, focado no treinamento auditivo e no desenvolvimento técnico-instrumental, ou no currículo previamente elaborado, e considera que tais moldes não atendem às necessidades estéticas, sociais e ecológicas, tanto da época em que escrevera o livro como ainda hoje: “A aula de música é sempre uma comunidade em microcosmo, e cada tipo de organização social deve equilibrar as outras. Nela deve haver um lugar, no currículo, 20 para a expressão individual; porém. currículos organizados previamente não concedem oportunidade para isso, pelo fato de seu objetivo ser o treinamento de virtuoses, e, nesse, geralmente falha.” (SCHAFER, 2011b, p. 268) As discussões a respeito de currículo para aulas de artes são sempre complexas, pois, como o próprio Shafer afirma, para haver expressão individual é necessária uma grande flexibilidade, tanto por parte do currículo, quanto por parte do professor. E este é um desafio, não apenas para mim, mas para muitos professores de artes, pois nós mesmos e, aparentemente as pessoas em geral, estamos habituados ao currículo, aos métodos, ao controle e à disciplina. Na maior parte do tempo os alunos não sabem bem o que fazer quando têm maior liberdade para criar, para questionar, para criticar, como será visto nas narrativas de algumas etapas da pesquisa. As atitudes dos discentes, em geral, mostram que estes esperam orientações diretas, regras, revelando o hábito de esperar por modelos prontos de atividades, o que não condiz com a busca artística de expressão individual. Shafer afirma estar convencido de que podemos esperar, no futuro, “pelo enfraquecimento do papel do professor como figura autoritária e ponto de convergência da aula.” (SCHAFER, 2011b, p. 289) Assim, o ato do professor se colocar nas mãos da classe, com os ouvidos abertos, de levar esses alunos a lidarem com a emancipação criativa dentro da aula de música é um trabalho que se mostrou desafiador para mim, e muitas das propostas de Schafer serviram como exemplo para a preparação das aulas deste projeto. Ao refletir sobre suas experiências docentes, Schafer aponta questões importantes para o crescimento do professor e da sua forma de ensino, e consequentemente para os alunos, como a constante observação de suas ações e os resultados das mesmas. “Todo professor deve se permitir ensinar diferentemente ou ao menos imprimir, no que ensina, sua personalidade.” (ibdem, p. 272) “O professor pode criar uma situação com uma pergunta ou colocar um problema; depois disso, seu papel de professor termina.” (ibdem, p. 274) Acredito haver ainda muito o que percorrer em meu caminho, na busca daquilo que considero essencial nas aulas de música: proporcionar experiências significativas, onde a classe tenha curiosidade e autonomia para criar, descobrir, fazer sua própria música, com crítica e consciência, a ponto de levar à minha própria extinção, como professora, conforme disse Schafer. Tais experiências dependem tanto do educador, como dos alunos, mas também da escola, da comunidade, da estrutura material e curricular. Dentro daquilo que diz respeito à docência, conforto-me ao compreender que o próprio Schafer revelou sentir-se desconfortável no início, ao entregar à classe as rédeas do próprio aprendizado. Tal dificuldade talvez exista porque não 21 é somente o professor quem estará aprendendo a se desapegar de um sistema tão arraigado, mas também os alunos. “O que é ensinado provavelmente importa menos que o espírito com que é comunicado e recebido.” (ibdem, p. 270) Com relação ao fazer criativo na música, o compositor critica o ensino com ênfase dada à teoria, à técnica e ao trabalho da memória. Ele afirma que enquanto nas artes visuais os trabalhos autoexpressivos dos alunos são encorajados e expostos, na música valorizam-se as apresentações sociais de fim de ano, com canções já existentes e simplesmente memorizadas. Observando o ensino em qualquer das linguagens artísticas a que tive oportunidade de testemunhar até então, e baseando-me nas situações vivenciadas como professora, atrevo-me a dizer que no ensino de qualquer dessas linguagens, dentro da atual estrutura curricular, há pouco espaço para trabalhos verdadeiramente originais, sem que esteja sendo feita uma releitura ou um trabalho com temática comemorativa. Reserva-se pouco espaço de tempo para as aulas de música e o professor precisa trabalhar neste tempo o currículo, pensando nas propostas artísticas em que acredita, além de atender às tradicionais demandas dos eventos escolares. Há ainda um pensamento de veneração de grandes obras do passado, de modelos estéticos de outros tempos, os quais foram de fato importantes, e o conhecimento e entendimento das transformações que provocaram no seu tempo são essenciais, mas muitas vezes tomam todo o espaço nos currículos, restringindo o trabalho criativo e a experiência pessoal. Ao mesmo tempo, Schafer, no seu livro Voices of Tyranny, Temples of Silence (1993), critica o descarte de músicas, ou seja, a atual produção musical comercial, pouco durável, e defende uma “estabilização” do repertório. Ele aponta o fato de que em algumas culturas o mais velho não significa sem utilidade, mas sim retém poder e tradições culturais. O compositor critica até mesmo os ecologistas, que ao invés de caminhar e cantarolar a própria música, dirigem enquanto ouvem a música tocada por outros. Schafer refere-se aqui ao ato de reaproveitar, reciclar, reutilizar, como ele mesmo fez, no ciclo Patria, por exemplo, com músicas suas, que ele aproveitou na obra, ou as adaptou. “Há comida demais em algumas partes do Mundo? Sim. Há música demais em algumas partes do Mundo? Provavelmente. A contração do repertório pode ser tão difícil de ajustar quanto empreender uma dieta de emagrecimento, mas isto pode um dia tornar-se uma necessidade para a saúde.” (SCHAFER, 1993, p. 149). 22 John Paynter (2010), falando sobre a herança e tradição musicais, afirma que ficar totalmente presos a elas só nos impede de viver o sentido de aventura que o novo, a inovação, a criação original, nos proporciona. Ele ressalta que precisamos conhecer bem a música anterior a nós por toda história e conhecimento que esta carrega consigo, mas precisamos sair do comum, do tradicional e nos aventurar por caminhos muitas vezes não aceitos pela tradição. Assim, pautadas na reflexão sobre o hoje, sobre o contexto atual, sobre o ambiente acústico e a partir dos materiais sonoros disponíveis, é que Schafer edifica suas aulas. Ao começar com uma pergunta ou colocando um problema que permita tantas soluções quanto o número de alunos na classe, ele provoca a concentração e a reflexão. Outra atitude por muito tempo considerada anárquica, e a qual o autor também menciona, por exemplo, é levar os alunos a uma sala cheia de instrumentos de percussão e deixar que conheçam os instrumentos. Depois ele faz perguntas às quais, se os alunos não conseguirem responder, ele deixa mais uma vez que busquem as respostas, por si mesmos, no contato direto com os materiais. No que diz respeito à Música Contemporânea Schafer dialoga com George Self, John Cage, John Paynter, entre outros, na ideia de que a Educação Musical precisa usar as linguagens e ferramentas contemporâneas. As propostas, não métodos, destes compositores para a introdução de práticas contemporâneas nas escolas, embora apresentadas nos anos 60 e 70, ainda hoje são estranhas à maioria das pessoas. Enquanto nas ciências e nas demais linguagens artísticas são trabalhadas as mais recentes descobertas ou novas produções, na aula de música preocupa-se somente com o ensino tradicional ou, quando muito, com a valorização da cultura popular. Não há aqui a intenção de negar a importância destes conteúdos na Educação Musical, mas apenas ressaltar a importância de se empregar novos meios e ferramentas para o desenvolvimento da compreensão musical, tais como a escuta ativa, a experimentação, a improvisação e a invenção, como proposto pelos compositores acima mencionados. Dialogando com Wagner e Dalcroze, Schafer fala também sobre retomar a integração entre as artes, ou o Teatro Total, ou como ele prefere, o Teatro de Confluência 1 , e 1 “Idealmente, o que estamos procurando é um novo teatro no qual todas as artes possam se encontrar, cortejar e fazer amor. O amor implica troca de experiências, mas não pode nunca significar a negação das personalidades individuais. Eu o chamo ‘Teatro de Confluência’ porque confluência sugere um fluir junto, não forçado, mas inevitável - como os tributários de um rio. Escolhendo esse título descritivo, estou rejeitando muitos outros que poderiam, talvez, ser considerados muito próximos ao que tenho em mente. Um desses 23 no caso do ensino, ao menos nos primeiros anos escolares, sugere a colocação de uma disciplina abrangente, a qual “poderia incluir todas e, por sua vez, nenhuma das artes tradicionais” (SCHAFER, 2011b, p. 279), onde vida e arte seriam sinônimas, para somente depois haver um aprofundamento das acuidades sensoriais específicas, sem, no entanto, deixarem de se inter-relacionarem. “Todo professor precisa levar em conta suas idiossincrasias. Sinto que ninguém pode aprender nada sobre o real funcionamento da música se ficar sentado, mudo, sem entregar-se a ela. Como músico prático, considero que uma pessoa só consiga aprender a respeito de som produzindo som; a respeito de música, fazendo música. Todas as nossas investigações sonoras devem ser testadas empiricamente, através dos sons produzidos por nós mesmos e do exame desses resultados. É óbvio que não se pode reunir sempre uma orquestra sinfônica numa sala de aula para sentir as sensações desejadas; precisamos contar com o que está disponível. Os sons produzidos podem ser sem refinamento, forma ou graça, mas eles são nossos. É feito um contato real com o som musical, e isso é mais vital para nós do que o mais perfeito e completo programa de audição que se possa imaginar. As habilidades de improvisação e criatividade, atrofiadas por anos sem uso, são redescobertas, e os alunos aprendem algo muito prático sobre dimensões e formas dos objetos musicais.” (ibdem, 2011b, p. 56) Em seu trajeto como compositor Shafer alcança a confluência de todas as artes, chegando mesmo a buscar a unidade entre arte, natureza e vida, como nos antigos rituais, através de sua obra Patria. Esta obra é a apresentação de tudo o que o compositor acredita como arte e filosofia de vida, é uma obra que está em constante construção, sendo colocada por Fonterrada (2004) como inacabada, pois, os episódios continuam a ser criados e produzidos. “Este deve ser o primeiro propósito da Arte. Promover mudanças em nossas condições existenciais. Este é o primeiro propósito. Modificar-nos. É um objetivo nobre, divino. E existe desde muito tempo atrás, antes que a palavra “arte” fosse cunhada para descrever o último tremor transformativo acessível ao homem civilizado.” (SCHAFER, apud FONTERRADA, 2004, p. 321) No ciclo Patria, Schafer elabora um trabalho de grandes proporções, envolvendo profissionais e amadores de diversos setores artísticos, técnicos e tecnológicos, em colaboração para um projeto artístico-filosófico, retomando a função primordial da arte, conforme ele mesmo acredita ser o principal papel desta na sociedade. Na referida obra Schafer busca resgatar mitos de diversas culturas, com o objetivo de provocar o público, que termos é o Teatro total, outro é Teatro Absoluto e o terceiro é o Gesamkunstwerke de Wagner.” (Schafer, apud Fonterrada, 2004, p. 77) 24 nem sempre fica apenas como espectador, a repensar os modos de vida que a sociedade contemporânea vive. No Ciclo Patria Schafer recorre à narrativa, à representação e à vivência de um mito de transformação, vividos pelo Lobo e por Ariadne. Todos os personagens, todos os elementos referidos na obra, até mesmo a escolha dos instrumentos e técnicas composicionais possuem fundamentos em diversas culturas. “A intenção de Schafer é dar às pessoas que acorrem à suas performances oportunidades para redescobrirem o sagrado, isto é, o poder transformativo da arte.” (FONTERRADA, 2004, p. 324) Para conhecer esta obra, bem como aspectos da vida e obras de Murray Shafer, recorri ao livro O Lobo no Labirinto, de Marisa Fonterrada, 2004. Este livro trata-se de “um estudo analítico e interpretativo da obra Patria, do compositor canadense Murray Schafer. Patria vem sendo elaborada há trinta anos e, com ela, o autor desenvolve sua proposta de recuperação do antigo poder da arte, enfraquecida, segundo ele, pelas características inerentes à civilização contemporânea.” (ibdem, 2004, p. 17) Fonterrada reúne neste livro uma grande quantidade de informações sobre Murray Schafer, desde sua biografia, suas produções bibliográficas até suas composições. No primeiro capítulo, a autora apresenta a “biobibliografia” de Schafer, sua trajetória de vida, sua produção literária e musical. Seus primeiros estudos da Paisagem Sonora foram realizados quando era docente na Universidade de Simon Fraser, em Vancouver, e ele “conta que no curso de comunicação da universidade era organizado de tal modo que os enfoques a respeito de som e ruído eram abordados de um ponto de vista negativo: um advogado, por exemplo, era convidado a falar sobre as leis de contenção de ruído, ou um médico dava uma palestra acerca dos danos causados à saúde pela excessiva exposição ao ruído.” (FONTERRADA, 2004, p. 41) No capítulo 2, a autora fala sobre o Projeto Lobo. Um evento que começou com Schafer e alguns amigos e foi ganhando mais adeptos. A autora inclusive tornou-se membro do projeto e segundo ela “a participação no projeto significa uma interrupção temporária de suas atividades rotineiras; é uma espécie de ‘escapada’ rumo a um ideal, que ocorre durante dez dias por ano.” (ibdem, p. 88) Nos capítulos 3 e 4, Fonterrada analisa o Prólogo, os episódios e o Epílogo de Patria. As análises são complexas, refletindo a profundidade das mensagens que o compositor 25 insere em toda esta obra. As técnicas de composição, a confluência de todas as artes, os fundamentos filosóficos e religiosos presentes em cada detalhe, a simbologia de cada personagem e de cada acontecimento, em todos os episódios, mostram o enorme trabalho realizado por Schafer e por todos os que participaram das montagens, bem como os obstáculos e dificuldades enfrentados para a realização de uma obra de tamanha complexidade. No capítulo 5, Fonterrada apresenta, compara e relaciona a simbologia, as ideologias, filosofias, mitologias, teorias e religiões que fundamentam todo o ciclo Patria, corroborando a ideia de Schafer de devolver à arte seu mais importante propósito: transformar-nos, modificar-nos. Segundo Fonterrada, “é possível afirmar que Patria persegue um triplo ideal: realizar-se, a um só tempo, como obra artística, iniciática e simbólica; o primeiro deles, na atuação plena do Teatro de Confluência e na afirmação desse “novo” gênero, graças às suas próprias qualidades estruturais, estéticas e simbólicas; o segundo, ao tornar plausível em plena virada do século, um percurso iniciático semelhante àquele vislumbrado nas culturas arcaicas e na tradição hermética, mas que, na verdade, ainda hoje é capaz de coexistir com a contemporaneidade, marcando sua presença em atos concretos, ou no imaginário dos que têm acesso a tal trabalho; o terceiro ideal é a realização de Patria como metáfora para o caminho de individuação, tal como é proposto pela psicologia analítica de Jung.” (FONTERRADA, 2004, p. 370) O livro de Fonterrada nos mostra como a vida e as obras de Schafer, de um modo geral, giram em torno das questões relacionadas a uma preocupação com a harmonia entre homem e natureza e com o resgate do papel ritualístico da arte, transformador, harmonizador, provocador da consciência. O que é apresentado nesse livro corrobora as ideias que o próprio compositor nos apresenta em suas publicações, estudadas nesta pesquisa. As suas propostas apontam a Educação Musical como caminho para o resgate da arte como vida e também como transformadora da consciência a respeito de ecologia. Como Fonterrada afirma, “podemos dizer que Patria - ou o Teatro de Confluência -, pelo encadeamento de seus episódios e das relações que as diferentes partes mantêm com o todo, consiste numa representação do universo manifestado e, sendo assim, em conformidade com a tradição milenar, teria o poder de provocar reações nas pessoas, objetos e meio ambiente, podendo, mesmo, modificar o curso dos acontecimentos. É essa a intenção de Schafer, muitas vezes explicitada, e cuja possibilidade é atestada nos episódios do ciclo e confirmada pela continuidade do Projeto Lobo, que dá seu testemunho por sua ação, com vistas a um devir harmonioso e viável, em que arte e vida se integram plenamente.” (ibdem, 2004, p. 371) 26 Schafer “acredita mais na qualidade da audição, na relação equilibrada entre homem e ambiente e no estímulo à capacidade criativa, do que em teorias da aprendizagem musical e métodos pedagógicos.” (ibdem, 2004, p. 49). E ele considera que o desequilíbrio da paisagem sonora veio com a Revolução Industrial, afirmando que a elaboração e a conservação de um universo sonoro saudável e equilibrado seja responsabilidade do homem, mudando assim a proposta da Educação Musical, a qual seria dirigida não apenas a estudantes de música, mas também à sociedade em geral. “Qualquer pessoa interessada em música deve ter consciência disso [dos problemas da poluição sonora]. Se ficarmos todos surdos, simplesmente não haverá mais música. Uma das definições de ruído é que ele é o som que aprendemos a ignorar. E, como nós o temos ignorado por tanto tempo, ele agora foge completamente ao nosso controle.” (SCHAFER, 2011b, p. 277) Em seu livro A afinação do mundo (2011), Schafer apresenta reflexões acerca de resultados obtidos em suas pesquisas sobre a paisagem sonora mundial, mostrando o quanto esta paisagem tem se transformado desde tempos remotos. Sua extensa pesquisa buscou informações literárias, históricas, artísticas visuais, em registros os mais diversos possíveis para captar as características acústicas de períodos em que não havia a possibilidade, ou nem mesmo a preocupação, de um registro sistemático dessa paisagem sonora, quanto menos de registros em áudio. Com este livro, Schafer pretendeu reunir todas as suas pesquisas em ecologia acústica que pudessem servir de orientação a futuros pesquisadores. “O livro é o mais completo estudo existente a respeito da paisagem sonora e enfatiza seu caráter interdisciplinar”. (FONTERRADA, 2004, p. 42) “Meu objetivo era mostrar de que modo a paisagem sonora havia evoluído no decorrer da história e de que modo as mudanças por que passou podem ter afetado nosso comportamento. Queria também que as pessoas percebessem que a paisagem sonora é dinâmica, transformável e, assim, possível de ser aperfeiçoada.”(SCHAFER, 2011a, p. 11) Poderíamos dizer que não apenas a paisagem sonora afeta nosso comportamento, mas o inverso também é bastante provável. Assim, como Schafer propõe, podemos tomar atitudes para que a paisagem sonora se transforme de forma positiva. “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das de concerto” (John Cage, apud SCHAFER, 2011a, p. 19) Este é o conceito que Schafer, em seu 27 livro, considera o mais abrangente, afirmando que as definições mais restritas são hoje as menos aceitáveis. “A paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma determinada paisagem.” (SCHAFER, 2011a, p 23) No entanto, Schafer alerta para a dificuldade de se descrever uma paisagem sonora com a mesma precisão que se faz com uma fotografia, por exemplo. As pessoas geralmente tem mais facilidade em interpretar mapas, diagramas e plantas arquitetônicas do que ler partituras, ou gráficos de sons. Schafer fala de sons fundamentais. Assim como na música tonal existe uma nota fundamental, a qual caracteriza o campo harmônico, servindo de âncora, ou som básico, existem os sons que representam determinado lugar, sem os quais aquele ambiente não teria as mesmas características, nem seu significado especial. Segundo Schafer, são esses sons básicos que nos permitem conhecer o caráter das pessoas que vivem em determinado ambiente acústico. “Os sons fundamentais não precisam ser ouvidos conscientemente; eles são entreouvidos mas não podem ser examinados, já que se tornam hábitos auditivos, a despeito deles mesmos.” (ibdem, p. 26) Complementando, Schafer fala sobre figura e fundo. “A figura é vista, enquanto o fundo só existe para dar à figura seu contorno e sua massa. Mas a figura não pode existir sem o fundo; subtraia-se o fundo, e a figura se tornará sem forma, inexistente. Assim, ainda que os sons fundamentais nem sempre possam ser ouvidos conscientemente, o fato de eles estarem ubiquamente ali sugere a possibilidade de uma influência profunda e penetrante em nosso comportamento e estados de espírito.” (SCHAFER, 2011a, p. 26) Schafer confronta, nas partes I e II do livro, a paisagem natural, hi-fi 2 (alta fidelidade), e a paisagem sonora pós-industrial, lo-fi 3 (baixa fidelidade). Para o compositor, os 2 “Um sistema hi-fi é aquele que possui uma razão sinal/ruído favorável. A paisagem sonora hi-fi é aquela em que os sons separados podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em geral o campo é mais hi-fi que a cidade, a noite mais que o dia, os tempos antigos mais que os modernos.” (Schafer, 2011a, p. 71) 3 “Em uma paisagem sonora ló-fi, os sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma população de sons superdensa. O som translúcido - passos na neve, um sino de igreja cruzando o vale ou a fuga precipitada de um animal no cerrado - é mascarado pela ampla faixa de ruído. Perde-se a perspectiva.” (ibdem) 28 problemas de poluição sonora vieram com o advento da eletricidade, o crescimento das cidades e principalmente com a industrialização. Ele usa o termo esquizofonia para referir-se aos modos de gravar e reproduzir sons com tanta facilidade que gera um crescimento da paisagem sonora lo-fi e “cria uma paisagem sonora sintética na qual os sons naturais estão se tornando cada vez mais não naturais, enquanto seus substitutos feitos à máquina são os responsáveis pelos sinais operativos que dirigem a vida moderna.” (SCHAFER, 2011a, p. 135) O rádio, ou a forma com que este começou a ser utilizado, é o principal alvo de críticas de Schafer, pois o rádio amplia os sons e os multiplica, em cada casa, em cada estabelecimento, comparado pelo compositor ao espelho. As formas de radiodifusão, os programas e propagandas, refletem a agitação, e velocidade da vida moderna. Assim como Schafer critica a forma indiscriminada com que o rádio é, ou era, usado, a crítica que fazemos é semelhante no que diz respeito aos mais atuais meios de produção e reprodução sonora. Hoje, talvez o rádio não tenha mais o lugar principal na condição de aparelho esquizofônico. Com o crescimento do acesso à internet e, mais ainda, a celulares e aparelhos portáteis, cada vez menores e mais equipados, com fones de ouvidos e aplicativos, os indivíduos vêm se isolando cada um em sua paisagem sonora pessoal. Na parte III, Schafer fala das diversas formas de análise musical, ou sonora, como os vários tipos de notação, a classificação dos sons como meio de comparar, analisar. Discute ainda as mudanças na percepção auditiva dos indivíduos ao longo da história e em sociedades diferentes, bem com a evolução dos sons, usando o termo morfologia para referir-se “às formas sonoras que se modificam no tempo e no espaço.” Schafer menciona ainda o simbolismo que diversos objetos sonoros carregam. E com relação a ruído, ele apresenta aspectos numéricos, legais, apontando diversos conceitos de ruído em diferentes culturas, sob pontos de vista negativos ou positivos. Na parte VI, Em direção ao projeto acústico, Schafer fala sobre ecologia acústica e projeto acústico, afirmando que somos todos, ao mesmo tempo, público, executantes e compositores da grande orquestra que seria a paisagem sonora mundial. Segundo o compositor, a anatomia humana deveria ser nosso modelo e referência para os parâmetros sonoros, ou seja, assim como o arquiteto planeja os espaços de acordo com as dimensões do corpo humano, assim o projetista acústico deveria projetar os sons de determinado ambiente, ou os “jardins sonoros”, como Schafer discute mais à frente, usando como parâmetro a voz 29 humana. Um ambiente no qual os sons encobrem a voz humana deveriam ser considerados insalubres, do mesmo modo em que se pensa em ergonomia para utensílios e móveis. Schafer também fala sobre a limpeza de ouvidos, um exercício que ele recomenda para promover uma audição mais atenta e profunda, antes do treinamento auditivo. “Muitos exercícios podem ser imaginados para ajudar a limpar os ouvidos, mas os mais importantes, a princípio, são os que ensinam o ouvinte a respeitar o silêncio.” (SCHAFER, 2011a, p. 291) Para ele, o projetista acústico precisa aprender a ouvir. No entanto, “a contemplação do silêncio absoluto tem se tornado negativa e aterradora para o homem ocidental.” (ibdem, p. 355) Segundo Schafer, o homem teme a solidão e a morte, e para este o silêncio representa esses dois estados. Mas o compositor afirma que para a reconquista do silêncio positivo o indivíduo precisa reaprender a contemplar, ver o silêncio como “tela de fundo sobre a qual se esboçam nossas ações, sem o que permaneceriam incompreensíveis ou não poderiam sequer existir.” (ibdem, p. 357) Da mesma forma, o educador musical deve ouvir e mostrar aos seus alunos que o silêncio precede a “clariaudiência” 4 . “Hoje, em virtude das incursões sonoras, estamos começando a perder a compreensão da palavra concentração.” (SCHAFER, 2011a, p. 357) E este é outro desafio para a aula de música: ensinar a “silenciar o barulho da mente: tal é a primeira tarefa - depois, tudo o mais virá a seu tempo.” (ibdem, p. 358) Diversos termos relacionados aos trabalhos e propostas com paisagem sonora serão mencionados ao longo desta pesquisa e é importante que sejam esclarecidos os seus significados. As definições destes foram tomadas do glossário 5 que Schafer apresenta ao final do livro A Afinação do Mundo (2011a). Assim, consideramos mais interessante transcrevê- los, em parte ou na íntegra, uma vez que nossas propostas são baseadas nas ideias deste livro. São eles: Paisagem sonora: “O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente.” (p.366) 4 “Clariaudiência: Literalmente, audição clara. O modo como emprego esse termo não é nem um pouco místico; ele simplesmente se refere à excepcional habilidade auditiva, tendo em vista particularmente o som ambiental. A capacidade auditiva pode ser treinada, para se chegar ao estado de clariaudiência por meio de exercícios de LIMPEZA DE OUVIDOS.” (Schafer, 2011a, p. 363) 5 A partir da página 363 do livro A Afinação do Mundo, 2011a. 30 Objeto Sonoro: “Pierre Schaeffer, inventor desse termo (l’object sonore), o descreve como um “objeto acústico para a percepção humana e não um objeto matemático ou eletroacústico para síntese”. O objeto sonoro é, então, definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente de uma PAISAGEM SONORA e é analisável pelas características de seu envoltório. Embora possa ser referencial (isto é, um sino, um tambor etc.), o objeto sonoro deve ser considerado basicamente como uma formação sonora fenomenológica, independentemente de suas qualidades de referência como evento sonoro. Comparar EVENTO SONORO. ” (p.366) Evento sonoro: “Definição de evento no dicionário: “Alguma coisa que ocorre em certo lugar durante um determinado intervalo de tempo”. Isso sugere que o evento não pode ser abstraído do continuum espaço-temporal que está na definição. O evento sonoro, como o OBJETOS SONOROS, é definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente da PAISAGEM SONORA. Difere do objeto sonoro na medida em que o último é um objeto acústico abstrato para estudo, enquanto o evento sonoro é um objeto acústico para estudo simbólico, semântico ou estrutural e é aqui um ponto de referência não abstrato relacionado com um todo de maior magnitude do que ele próprio. ” (p.364) Ecologia acústica: “Ecologia é o estudo da relação entre os organismos vivos e seu ambiente. A ecologia acústica é, assim, o estudo dos efeitos do ambiente acústico, ou PAISAGEM SONORA, sobre as respostas físicas ou características comportamentais das criaturas que nele vivem. Seu principal objetivo é dirigir a atenção aos desequilíbrios que podem ter efeitos insalubres ou hostis. ” (p.364) Limpeza de ouvidos: “um programa sistemático para treinar os ouvidos a escutarem de maneira mais discriminada os sons, em especial os do ambiente. 6 ” (p.365) Ruído: “Existe uma variedade de significados e nuanças de significados, os mais importantes são os seguintes: 1 Som não desejado. The English Oxford Dictionary contém referências a ruído como um som não desejado já em 1225. 2 Som não musical. O físico do século XIX Hermann Helmholtz empregava o termo ruído para descrever o som composto por vibrações não periódicas (o farfalhar das folhas) em comparação com os sons musicais, que consistem em vibrações periódicas. Ruído ainda é utilizado, nesse sentido, em expressões como ‘ruído branco’ ou ruído gaussiano’. 3 Qualquer som forte. No uso geral de hoje, a palavra ruído refere-se particularmente aos sons de intensidade forte. Nesse sentido, uma lei que trate da redução do ruído proíbe certos sons fortes ou estabelece limites permissíveis numa escala de decibéis. 4 Distúrbio em qualquer sistema de sinais. Em eletrônica e engenharia, ruído significa qualquer perturbação que não faça parte do sinal, como a estática em telefone ou o chuvisco na tela de televisão. A mais satisfatória definição de ruído para uso geral é ainda a de ‘som não desejado’. Isso torna ruído um termo subjetivo. O que para uma pessoa é música pode ser ruído para outra. Mas mantém aberta a possibilidade de haver, em determinada sociedade, mais concordâncias do que discordâncias a respeito de que sons se constituem em interrupções não desejadas. “(p.367) 6 Uma série de exercícios para limpeza de ouvidos é dada por Schafer em seu livro Limpeza de Ouvidos, o qual passou a ser um dos capítulos de O Ouvido Pensante (Editora UNESP, 2011) 31 Além de seguir as ideias de Murray Schafer, muitas das atividades propostas neste projeto foram encontradas ou inspiradas no livro de Leila Rosa Gonçalves Vertamatti, Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: um estudo de repertório inserido em uma nova estética (2008). No livro, Vertamatti apresenta o percurso de um trabalho de Música Contemporânea com o Coro CantorIA, do Instituto de Artes da Unesp. Além de levar-nos a uma maior compreensão dos percursos de uma proposta educacional, o trabalho de Vertamatti também serviu para embasar diversos conceitos, como, por exemplo, o de Música Contemporânea, visto que este termo pode gerar equívocos, uma vez que contemporâneo significa algo como “do nosso tempo”, e assim, poderia abranger qualquer produção musical atual, seja popular, erudita ou de outros gêneros, mas para nossa pesquisa, é a música caracterizada por determinada forma de compor que começou ainda antes do século XXI. “O termo Música Contemporânea dá margem a várias interpretações, podendo-se incluir nele o repertório de música popular, uma vez que contemporâneo significa do nosso tempo; sob esse rótulo, portanto, convivem as mais variadas tendências estéticas. Neste livro, o emprego do termo está em consonância com o uso que dele faz Guy Reibel, ou seja, como designativo de obras do período da história da música em que o sistema tonal é ampliado, gerando a prática de novas técnicas composicionais, mudanças na maneira de execução instrumental e uso da voz, interesse por materiais musicais extra-ocidentais, pelo ruído e pela ênfase dada ao aspecto timbrístico, entre outros. Essas técnicas permitiram uma abordagem diferente do fenômeno sonoro e das formas de organiza-lo, gerando, muitas vezes, uma grafia musical adaptável a essas produções, uma vez que a notação tradicional já não era suficientemente ampla para dar conta de todas as nuanças sonoras em uso no período.” (VERTAMATTI, 2008, p. 16) Com relação a linguagem, corpo e vivência, a autora enfatiza a ampla relação entre estes três elementos na música, onde a experiência corporal é essencial para o desenvolvimento de uma compreensão sistemática. “a ideia de que o corpo é essencial na construção do conhecimento e que a prática é a via pela qual as experiências do ser humano podem ser ampliadas. Além disso, linguagem supõe comunicação e, para que ela ocorra, é necessário que as pessoas envolvidas no processo compartilhem os mesmos códigos e convenções. O fato de a linguagem, segundo Merleau-Ponty (1971-75) e Gadamer (1977), ser vista, não em seus aspectos gramaticais e sintáticos, mas em seu uso pelo falante, dá sustentação à presente reflexão, que também prioriza a experiência do grupo e coloca no corpo a responsabilidade primeira no processo de aprendizagem da música.” (ibdem, 2008, p. 17) 32 Vertamatti ainda menciona o fato de que para haver comunicação, a linguagem (no caso a música) precisa ser dominada por quem envia e por quem recebe a mensagem, além de haver uma marca cultural, social e psicológica no modo de comunicar e se expressar. Na primeira parte de seu livro, Vertamatti apresenta os fundamentos de sua pesquisa e aponta, em um dos capítulos, as mudanças ocorridas na linguagem musical desde o século XX e, em consequência disto, na Educação Musical. A autora destaca três nomes para apontar os reflexos da estética contemporânea na Educação Musical. O primeiro deles é Guy Reibel, educador e pesquisador em eletroacústica, na França. “Acredita Reibel que a Música Contemporânea é um campo favorável para práticas criativas de grande interesse para amadores e crianças, pois pode ser abordada sem que o conhecimento técnico seja obrigatório por parte dos praticantes. A base da pedagogia conduzida por esse autor é o jogo. A intenção de sua proposta não é o aprendizado de teorias abstratas, mas a formação crítica e pessoal do indivíduo em relação à música, a partir da invenção e da escuta, de tal forma que seja possível “descrever” a percepção sem empregar noções teóricas.” (VERTAMATTI, 2008, p.54) Este autor critica o ensino tradicional de música na sociedade ocidental, onde a cognição antecede a prática, o que muitos educadores do século XX já lutavam para mudar, como Dalcroze, Orff, Kodály. Da mesma forma, para Reibel, a vivência corporal, o jogo, a invenção, associados ao pensamento, desenvolve a parte viva da linguagem musical. Segundo ele, a dificuldade dos músicos contemporâneos terem sua música aceita pelo público deve-se ao distanciamento entre o ensino e a composição, um problema de comunicação, o qual pode ser resolvido unindo pedagogia e criação. O segundo nome citado por Vertamatti é John Paynter, e sua ideia de que a música pertence a todos e que é possuidora de elementos básicos (sons), os quais podem ser transformados em ideias musicais (linguagem). Este autor também serviu como fundamentação para a presente pesquisa, especialmente seu livro Sonido y Estructura (2010), que será apresentado mais adiante. E por último, Vertamatti cita Murray Schafer e as ideias por ele apresentadas, do qual os principais trabalhos foram discutidos anteriormente. Ela enfatiza as ideias em comum destes três autores, com relação ao incentivo à criação, expressão individual, uso da 33 composição e técnicas contemporâneas como forma de promover a experiência artística, desenvolver a compreensão musical e ampliar a consciência sonora. A autora apresenta, em seguida, o grupo CantorIA, com o qual desenvolveu sua pesquisa e trabalho sobre a inserção de Música Contemporânea no repertório infanto-juvenil. Assim, Vertamatti narra em seguida suas primeiras experiências, os percalços e as etapas que se seguiram no trabalho com o coro. Em determinado momento, percebendo que o trabalho não estava sendo proveitoso com a obra Der Nordwind, de Arne Mellnäs, pois havia muitos elementos desconhecidos pelo grupo, gerando cansaço e desmotivação, a autora decidiu abandonar momentaneamente a peça e buscar uma proposta que possibilitasse uma vivência mais gradual das técnicas contemporâneas. Dessa forma, foram escolhidas peças em que aparecessem menos elementos e assim pudessem ser trabalhados paulatinamente com as crianças e jovens. Muitas das atividades e exercícios utilizadas no processo de desenvolvimento de nosso projeto foram tomados das vivências, apresentadas neste livro, com o grupo CantorIA. Uma dessas vivências foi o trabalho de imitação como iniciação ao processo criativo. Durante os trabalhos com Música Contemporânea dentro do grupo CantorIA, comparou-se desenhos (partituras) feitos pelas crianças antes e depois da leitura de obras contemporâneas. Constatou-se que os últimos (feitos após a leitura da obra) eram mais elaborados do que os anteriores: “Esse dado leva a crer que a criança cria com base em um modelo que lhe é apresentado. Posteriormente, esse modelo será modificado, transformado até que outro seja criado. A imitação, dessa maneira, torna-se importante no processo educativo.” (VERTAMATTI, 2008, p. 161) Esta foi uma das atividades realizadas em classe, em minha pesquisa, para iniciar a experiência com a grafia, a partir dos próprios nomes, bem como para estimular a imaginação e promover o uso da voz em suas mais variadas possibilidades de criação. Após um intenso trabalho, com peças cuidadosamente escolhidas, Vertamatti tece considerações a respeito do percurso de seu projeto e afirma que “o grupo CantorIA sentiu dificuldade em responder às propostas iniciais, por desconhecer os códigos contidos na obra a eles apresentada.” (ibdem, 2008, p. 199) Tais considerações serviram de orientação para 34 antever possíveis percalços também nesta pesquisa, pois, levou-nos a compreender que se nossa proposta não está funcionando muito bem, é possível tentar um outro caminho, ou dar passos mais curtos, porém mais seguros. A autora menciona também o uso de “chaves de escuta”, termo atribuído a Reibel. De acordo com Vertamatti, seriam estratégias para familiarização de elementos composicionais contemporâneos, possibilitando o trabalho de ampliação e aperfeiçoamento nesses elementos. “Sendo mínima, ou nenhuma, a prática de repertório contemporâneo, não há como o ouvinte ou o estudante de música procurar em suas experiências anteriores elementos que possam dar sentido a essa música [contemporânea]. Isso provoca um distanciamento entre ele e a música. É necessário fornecer, por meio da prática, experiências que viabilizem a compreensão da música do século passado e do século presente.” (VERTAMATTI, 2008, p. 199) Vertamatti fala dos resultados positivos após as experiências com as várias obras, refletindo na maior facilidade de retomar a peça abandonada no início. E que “a experiência realizada interferiu na maneira de escuta de cada um dos cantores, auxiliou na compreensão musical das obras praticadas e, certamente, de obras futuras.” (Vertamatti, 2008, p. 199) Porém, após quase um ano trabalhando com Música Contemporânea, o grupo afirmou sentir falta das tradicionais músicas tonais e também da música popular. Este fato mostra a enorme influência da familiaridade, desde muito cedo inculcada, seja pela vivência, seja pelos hábitos familiares, da sociedade, ou por influência das mídias populares. Por fim, consideramos importante a colocação de Vertamatti sobre a importância do laço existente entre o grupo e a autora, pois isso facilitou o desenvolvimento do trabalho. “Não foi a imposição o veículo de condução do processo, mas a exposição das ideias, das propostas e de sua importância tanto para a autora quanto para o crescimento do grupo.” (VERTAMATTI, 2008, p. 200). Esta relação de sinceridade é algo essencial na colaboração entre professor e alunos. Quando o professor deixa claro que suas propostas tem um objetivo relevante para o desenvolvimento da classe, os alunos sentem-se corresponsáveis e empenham-se pelo sucesso do processo. 35 Assim como me baseei, para elaboração de atividades nesta pesquisa, no trabalho de Vertamatti, também busquei fundamentação nas propostas de John Paynter, no livro Sonido y Estructura (2010), já mencionado anteriormente. Paynter defende o fomento da criatividade no cerne de todas as disciplinas do currículo. Para este autor a criatividade se desenvolve em um contexto de imaginação, originalidade e invenção, apoiada na preferência e nas decisões, sendo então um meio para conhecer de forma independente e inovadora, diferentemente do conhecimento apresentado conforme ditado pelas normas. Ele defende também uma educação que proporcione experiências diversas no currículo, abarcando conhecimentos básicos e emocionais, pois assim, segundo Paynter, o indivíduo é capaz de reagir com sensibilidade e imaginação. “As artes não têm o monopólio da criatividade, mas sim representam manifestamente uma visão inovadora do mundo. Seus processos de pensar e fazer realçam os elementos de risco e de desafio que, provavelmente, serão importantes para as futuras gerações.” (PAYNTER, 2010, p. 12) 7 O fazer artístico seria então um meio para desenvolver novas percepções de si e do mundo, corroborando as ideias de Schafer sobre a relação entre o comportamento do indivíduo e do ambiente acústico e vice-versa. Outra ideia defendida por Paynter é que não há música dissociada da “inteligência” do sentimento. O trecho abaixo mostra sua colocação a este respeito e sobre o que deveria ser a aula de música “Toda experiência musical consciente tem a ver com aventuras dos sentimentos, da imaginação e da invenção. Essas características são compartilhadas pela composição, a interpretação e a escuta, e é de se supor que merecem um lugar de destaque na Educação Musical. Inevitavelmente, o fundamental da música é que o acesso à mesma seja sensorial e subjetivo. A informação relacionada à música pode nos servir de apoio, mas, por si só, separada da ‘inteligência do sentimento’, pouco tem a ver com a arte e com a realidade da experiência musical.” (PAYNTER, 2010, p. 14) O autor questiona a necessidade de tratar ou explicar a música como um discurso realista e descritivo e critica sua associação com histórias e cenas visuais. Segundo ele, as 7 As citações são da edição em espanhol da obra, e foram traduzidas pela autora deste trabalho. 36 notas de programa, ou as ideias pictóricas, ou ainda, todo tipo de informação acessória sobre a música, usada para facilitar a compreensão musical, estão nos levando ao sentido oposto. Para ele, o que faz, por exemplo, a televisão, sempre associando música e imagem, não é um caminho que conduz à escuta criativa. “O fato de que falta à música o poder descritivo do tipo que se associa com as palavras e com as imagens visuais não é uma fraqueza, mas seu forte.” (PAYNTER, 2010, p. 19) Ou seja, para Paynter, deve-se abrir caminho direto com as relações sonoras e sua evolução na passagem musico temporal. Sobre escuta criativa, Paynter afirma que a apreciação e a composição se complementam e ambas desenvolvem a técnica e a inventividade, o pensar e o fazer. Assim, nas aulas de música as atividades devem variar entre essas duas categorias além da interpretação. “A educação do olho artístico ou do ouvido musical começa quando começamos a explorar os meios de expressão, encontrando-nos com as criações e as apresentações de outros e aprendendo a desfrutar delas, as quais por sua vez nos inspiram mais em nossas próprias tentativas.” (PAYNTER, 2010, p. 20) A composição é uma aventura que nos leva a muitas direções inesperadas. Paynter diz apresentar em seu livro uma visão de Educação Musical e não um método de ensinar música. Para ele os métodos são a antítese da mente criativa, do mesmo modo que Shafer também considera que em currículos previamente elaborados não há muito espaço para a criação espontânea. “Estamos cercados de sons de todos os tipos que estão esperando que os convertamos em música.” (PAYNTER, 2010, p. 44) Sonido y Estructura (2010) é um livro que apresenta 16 projetos musicais, envolvendo escuta criativa, improvisação, composição, apreciação. A cada projeto, Paynter apresenta reflexões acerca do ensino. Nestas reflexões ele aponta caminhos possíveis, ou esperados, para cada um dos trabalhos descritos, deixando sempre claro que estes trabalhos não precisam ser realizados exatamente da mesma forma como estão propostos. Por isso mesmo, este material mostrou-se muito interessante para nossa pesquisa, pois dele surgiram muitas ideias para o desenvolvimento de atividades em classe. Alguns dos projetos são visivelmente voltados a um público com um conhecimento técnico e musical mais específico, 37 ou seja, que leia partituras e toquem instrumentos tradicionais, mas ainda assim, as ideias para este contexto são cheias de inventividade, improvisação e criação. No caso do contexto desta pesquisa, sabe-se que o público são alunos em escola regular e, portanto, não há especialização em instrumentos e a leitura tradicional é um processo um pouco mais gradual, sendo esta uma das razões de se buscar as propostas da Música Contemporânea: a possibilidade de proporcionar experiências musicais com os recursos disponíveis. As atividades idealizadas, adaptadas, ou integralmente aproveitadas em nosso projeto serão descritas e comentadas no capítulo “A Paisagem Sonora da Sala de Aula”. Das reflexões de Paynter acerca do ensino, trazemos aqui aquelas consideradas mais relevantes para o presente trabalho. Um ponto importante que o autor coloca é sobre até que ponto nosso juízo, a escolha entre bonito ou feio, é influenciado pela familiaridade: “A composição é antes de tudo um processo de seleção e rejeição; um processo de comprovação das características mais marcantes dos materiais que temos a nossa disposição e, depois, de eleição do melhor.” (PAYNTER, 2010, p. 47) Em um projeto de composição, em que os alunos darão nome às suas criações, Paynter preocupa-se em deixar claro que a composição (e seu título) não deve necessariamente ser programática. Não tem que ser uma história ou jogo de adivinhações em que todo evento musical está relacionado com algo do mundo real. “A música não funciona assim.” (PAYNTER, 2010, p. 48) John Paynter faz uma boa comparação com a linguagem falada, a partir de uma atividade em que os alunos devem criar música, colocando suas próprias melodias, com poemas: “É possível que algumas melodias sejam raras, mas haverá coisas nelas que soaram familiares. Isto se explica pelo fato de que todos temos ouvido uma quantidade enorme de músicas que acompanha este tipo simples de rima; e quase sem nos darmos conta disso, temos em nossa cabeça um grande número de frases; algo assim como um livro de ideias e padrões musicais que podem se juntar de diferentes maneiras. A semelhança entre isto e a forma em que utilizamos o idioma falado é assombrosa. Para comunicarmos com outras pessoas, não temos que inventar uma gramática para fazer as palavras soarem juntas: basta com que recorramos ao estoque de expressões 38 já prontas e, sem ter que pensar, sabemos que tais palavras podem se juntar de diferentes formas para que tenham sentido.” (PAYNTER, 2010, p. 77) Pode-se pensar, e de fato é o que ocorre nas aulas de música, que muitas vezes, o tempo é curto e o grande número de alunos torna as experiências não tão profundas quanto o professor espera, mas mesmo que a experiência de criar seja mínima, ela já nos permite entender o que os compositores fazem com os materiais musicais. É como Paynter ilustra: “É pouco provável que a discussão destes temas seja conclusiva, mas pelo fato de semear perguntas acerca da linguagem musical, do estilo, a expressão, e a comunicação pode ajudar a demonstrar por que na música não pode haver nunca um único caminho ‘correto’. Qualquer coisa é possível para aqueles que estão dispostos a abrir os ouvidos para escutar. Ademais, é um desafio ao que podemos responder com nossa própria inventividade ao fazer mais música por nossa conta. Pode ser que nossa produção não esteja à altura do que produzem os profissionais quanto a originalidade, imaginação e competência, mas talvez nos aproxime mais da maneira em que estes, por sua vez, inventam e usam as ideias musicais Existe um refrão índio que diz: ‘O homem que morde uma semente de mostarda sabe mais sobre seu sabor do que o homem que tenha visto um carregamento inteiro (de mostarda) em cima de um elefante’. Portanto, seja para ampliar o vocabulário familiar, seja para inventar com mais audácia novas formas de fazer a música, o importante é o ato de fazer. De toda forma, logo terão que tomar decisões sobre o que deve acontecer e quando; ou seja, como fazer com que ideias musicais cresçam e tornem-se estruturas musicais.” (PAYNTER, 2010, p. 82) Como Paynter afirma, em relação a ampliar o vocabulário familiar, trata-se do que Vertamatti menciona ao falar das chaves de escuta. Esse caminho gradativo é que ao final deixará sua marca na expressividade, na compreensão musical e percepção dos alunos. E a respeito de começar pela improvisação, Paynter discute a improvisação por si só, sem uma norma geral, deixando que a criação seja realmente livre e possua um enfoque pessoal. Fala que em classe muitas vezes não é possível realizar isso face à estrutura tradicional de ensino. Para ele, a prática da improvisação seria então uma forma de proporcionar o contato dos alunos com os materiais musicais ao mesmo tempo em que estimula o desenvolvimento da liberdade de colocar suas opiniões e gostos na criação, mesmo que seguindo normas para estruturar este trabalho. A improvisação prepara para a composição. Se pensarmos em ensinar improvisação, estaremos apenas falando de improvisação. Improvisar é um aprendizado prático em sua essência. 39 “Nós estamos interessados antes de tudo nas primeiras fases do ensino da composição: em verificar o que se pode alcançar com os materiais musicais e por que e como algumas estruturas musicais parecem ter mais êxito do que outras. Isto não é o mesmo que tentar ensinar improvisação. A composição tem que ser, por vez, um processo de análise e de síntese que não pode evitar ‘o estabelecimento de normas gerais’ para cada nova obra. Só começaremos a aprender a manejar as estruturas da maneira que requer a composição quando tivermos aprendido a fazer semelhantes generalizações. Na medida do possível, os estudantes deverão descobrir os processos estruturais por eles mesmos e fazer suas próprias generalizações trabalhando com os sons. O debate que se mantém depois de tais descobrimentos, como atividade de acompanhamento, pode contribuir para focar a técnica; mas o primeiro passo consiste em que os estudantes façam música.” (PAYNTER, 2010, p. 86) Para o autor, ao improvisar o indivíduo começa a avaliar as próprias ideias e esta pode ser a primeira fase no desenvolvimento da composição. “De fato, para todos os músicos há um ciclo contínuo de improvisação, composição/interpretação, ensaio, e execução, e cada um dos elementos do ciclo se alimenta de alguma forma dos outros.” (PAYNTER, 2010, p. 87) Paynter mostra um pensamento que se assemelha ao de Swanwick e sua proposta de estruturação do ensino musical através do modelo C(L)A(S)P. Neste modelo, Swanwick (2003) apresenta as modalidades Composição (C), Apreciação (A) e Performance (P), ou interpretação musical, como as principais atividades no processo de desenvolvimento musical, as quais, porém, são auxiliadas por Literature (L), ou aquisição de conhecimento teórico e, por fim Skils aquisition (S), que seria a técnica instrumental. Para este autor, todas as modalidades se complementam e se apoiam no processo de desenvolvimento da compreensão musical. Porém, da mesma forma que Paynter, ou Schafer, Swanick não espera que seu modelo seja um programa de ensino fechado, mas que “deve envolver discussão, experimentação, ensaio, reprodução, e repetição” (COSTA, 2010, p. 74) Assim procuramos utilizar o modelo C(L)A(S)P como base estruturante das aulas, bem como deste projeto. Paynter afirma, ainda, ser um equívoco pensar que a música tem o propósito de descrever, representar ou criar uma imagem daquilo que foi o estímulo inicial do compositor. “Tais coisas estão fora do alcance da música. O poder da música segue outros rumos muito diferentes.” (PAYNTER, 2010, p. 87) Embora ele admita a importância dos estímulos literário e visual para a composição, considera que “a teoria muito generalizada segundo a qual a música de alguma forma representa ideias visuais e verbais entorpece a Educação Musical ao desviar a atenção para questões não musicais.” (ibdem, p. 99) O desafio do professor de música é saber como, e quando começar a desvincular o fazer musical destas referências verbais e visuais. 40 Segundo Paynter, compor é “saber relacionar em uma estrutura única e funcional todos os elementos”. Esta é a habilidade do compositor. E acreditamos que através de atividades simples e graduais, que estimulem essas relações estruturais e formais, o aluno aos poucos pode desenvolvê-la. “Devemos fomentar a inventividade (o ver as coisas com outros olhos) e a imaginação (o apresenta-las de outras maneiras); ou seja, a habilidade artística da qual surge o artifício - a ilusão - da arte, diante de uma simples cópia da natureza. Isso requer disciplina e perseverança.” (PAYNTER p. 113) Paynter, em relação à herança e tradição musicais, afirma que ficar totalmente presos a elas só nos impede de viver o sentido de aventura que o novo, a inovação, a criação original, nos proporciona. Ele ressalta que precisamos conhecer bem a música anterior a nós por toda história e conhecimento que esta carrega consigo, mas precisamos sair do comum, do tradicional e nos aventurar por caminhos muitas vezes não aceitos pela tradição. O autor trata também da importância das limitações no projeto para manter-se o rumo do processo de composição. “Sem semelhantes controles, resultaria difícil conseguir uma música coerente, já que careceria de sentido de direção e existiria o perigo de ter vagado sem meta por uma espécie de deserto musical.” (PAYNTER, 2010, p. 116) Sobre conhecer novas músicas, novos gêneros, o autor afirma que a experimentação de estilos novos não necessariamente mudará os gostos do indivíduo, mas dará a ele novas percepções da realidade. Esta afirmação também nos remete a Vertamatti (2008) quando, em suas considerações finais, ela afirma que as crianças e jovens sentiram falta do repertório que cantavam (músicas tonais em sua maioria), ou seja, ampliaram seu conhecimento, ganharam novas percepções, mas não negaram nem mudaram seus gostos musicais antigos. Porém, para escutar uma obra nova, ou um estilo desconhecido é preciso “aceitá- la em sua totalidade”, sem pré-julgamentos. Muitas opiniões estão “embasadas em associações extramusicais, no gosto por determinados intérpretes, e nas opiniões críticas de segunda mão. Se a Educação Musical não faz nada, deve azer-nos a todos conscientes da amplitude das possibilidades artísticas, e do fato de 41 que devemos ter ouvido a música de verdade antes de emitir qualquer juízo sobre.” (PAYNTER, 2010, p. 118) O potencial de crescimento e aprendizagem em qualquer área está no desafio que o novo e incerto apresentam. O lugar comum, ou a comodidade do conhecido pouco tem a provocar em nossa mente. Paynter critica o comodismo de fazer o que já é conhecido e amplamente aceito, pois tornam-se “simples formas, carentes de conteúdo artístico.” (ibdem, p. 161) Assim, a abertura para a Música Contemporânea nas aulas de música permite esta saída do comum para a exploração livre dos recursos de improvisação e composição. No entanto Paynter toma o cuidado de esclarecer a questão da liberdade nessas atividades: “As formas livres podem parecer uma desculpa para a falta de disciplina musical; mas não é assim. A liberdade tem sua própria disciplina - um fato que, certamente, se pode ensinar com eficácia mediante projetos de composição em aula nos quais tem que se definir novas convenções (ou regras de jogo); e também mediante as execuções de partituras de forma aberta nas quais, primeiro, os executantes devem colocar-se de acordo em como interpretar os signos e determinar o significado dos mesmos.” (PAYNTER, 2010, p. 161) Da mesma forma, Paynter reafirma a importância da escuta criativa, ou seja, a escuta que nos leva a criar enquanto ouvimos, a sentir, a pensar. “Debussy disse: ‘Não existe nenhuma teoria; você só tem que escutar’.” (PAYNTER, 2010, p. 200) Para Paynter, tão importante quanto criar a própria música é também escutar a de outros, aprender com elas, imaginar como e porque o compositor a fez daquela forma, quais foram as escolhas e qual é o resultado em nossa percepção. “enquanto escutamos, habitamos um mundo de tempo especial; um mundo no qual os pontos de referência são sons. Os sons são interessantes, talvez emocionantes e às vezes assombrosos. Mas tão importante quanto o que escutamos é quando o escutamos. A habilidade única do compositor consiste em poder julgar com precisão quando deverão ocorrer as coisas na passagem temporal. Isso não se pode calcular; não se pode estabelecer normas a respeito. Só seus ouvidos podem dizer se está bom. Todo compositor deve adquirir prática em fazer semelhantes juízos auditivos acerca das ideias musicais, mas é também útil escutar a música de outras pessoas e tentar imaginarmos como chegaram a suas decisões.”(PAYNTER, 2010, p. 200) 42 Esta afirmação de Paynter condiz com nossa ideia de que o ouvir, seja o ambiente acústico ao nosso redor, sejam as músicas de compositores famosos ou a dos nossos colegas de classe, é fundamental para o desenvolvimento da composição e, consequentemente, da compreensão e do fazer musicais. Ele afirma ainda que “a análise auditiva ajuda a educar a escuta criativa, que está no centro de toda experiência musical.” (ibdem, p. 201) Está tudo na música, ou seja, compor, ouvir, analisar, interpretar, em qualquer atividade musical estão intrínsecas diversas habilidades. E “à sua maneira, a composição é uma atividade irremediavelmente analítica, já que supõe juntar ideias e fragmentos de ideias, voltar a separa-los, comparar uma possibilidade com outra, eleger esta opção e descartar a outra: uma espécie de análise do futuro, prever o que acontecerá caso tudo ‘saia bem’.” (PAYNTER, 2010, p. 206) Certamente, o que consideramos aqui como análise musical deve ser adaptado à faixa etária e ao público ao qual nos direcionamos. Sobre o possível questionamento da real necessidade de se analisar uma obra, Paynter diz: “Mas a observação de tais relações pode nos ensinar muito sobre o comportamento da estrutura e sobre o que há na música que seja suscetível de nos dar prazer.” (ibdem, p. 207) E ainda, sobre analisar obras de outros compositores: “Isto é algo que todos que tem alguma relação com a composição devemos fazer. Devemos conhecer muita música, e devemos conhecê-la em profundidade. E devemos manter a mente aberta, posto que as possibilidades de fazer novas formas musicais são praticamente infinitas.” (PAYNTER, 2010, p. 207) Dentre os trabalhos acadêmicos pesquisados, destaco a tese de Álvaro Henrique Borges (2014), que pesquisou a proposta do uso de Música Contemporânea na Educação Musical. Nossa pesquisa se identifica bastante com este trabalho porque a proposta é também o uso de Música Contemporânea, utilizando as três principais modalidades do fazer musical: Apreciação, Composição e Interpretação, não deixando de lado as modalidades: Conhecimento Teórico e Aquisição de Habilidades técnicas/musicais em instrumentos. O trabalho de Borges corrobora a ideia de que a composição é uma das principais atividades para desenvolver a compreensão musical. O autor menciona um aspecto relevante sobre a inserção da Música Contemporânea na Educação Musical: 43 “Sobretudo, mais importante do que a mudança na linguagem, podemos sublinhar uma mudança de postura diante do acontecimento musical. Saliente-se que, admitindo-se este tipo de postura, nada precisaria ser descartado, não se negaria o tradicional, nem se rechaçariam outros repertórios. Por certo, assumir-se-ia uma escuta redimensionada do que já está codificado, ao passo que, em contraparte, abrir-se-ia um amplo universo para, inclusive, pela criação musical, ser-se educativo, buscando o desenvolvimento de uma escuta renovada.” (BORGES, 2014, p. 85) Embora os objetivos com minha pesquisa sejam um pouco diferentes (a discussão a respeito da consciência auditiva, questões de Ecologia Acústica e educação sonora e musical), no trabalho de Borges aparecem inúmeros autores que também foram, e são, muito importantes para as discussões a respeito dos conceitos de música, ruído, música concreta, paisagem sonora, escuta reduzida, dentre outros. O Ciclo Pedagógico que o autor propõe apresenta atividades muito interessantes, as quais também podem ser utilizadas com o objetivo de desenvolver a escuta crítica dos sons. Além disso, os passos metodológicos e a metodologia de ensino por ele proposta condizem com o caminho que nossa proposta pretende trilhar, sendo que o autor realiza uma Pesquisa Participante e nossa pesquisa se inspirou na Pesquisa-ação. Outra tese, que também apresenta uma proposta relacionada à escuta e à composição de paisagens sonoras, é de Fátima Carneiro dos Santos (2006), onde a autora apresenta uma pesquisa com o intuito de rever o conceito de música, tendo como ação a escuta, a gravação e a montagem de paisagens sonoras, em estúdio, dos sons da rua por alunos do Ensino Fundamental. Trabalho esse que mostra outra forma de se trabalhar a paisagem sonora dentro do ensino de música e, portanto, corrobora ideias da presente pesquisa, divergindo basicamente no objetivo, anteriormente mencionado. Santos, em sua discussão sobre o trabalho de ecologia acústica na Educação Musical aponta os questionamentos da compositora Hildegard Westerkamp, para a qual “se nós – especialistas em escutar e produzir sons – não estivermos envolvidos e preocupados com o ambiente acústico, quem estará? Se alguns biólogos olham o mundo sob diversas perspectivas ecológicas por que, então, compositores e músicos não aproveitam sua vocação para usar seu conhecimento especial para a educação da escuta do mundo sob uma perspectiva ecológica?” (WESTERKAMP, 2002, apud SANTOS, 2006, p.14) Rubem Alves, em A educação dos sentidos e mais (2014), também apresenta poeticamente a importância do ato de ouvir, dialogando, inclusive, com Schafer no que diz respeito ao “aprendizado do ouvir” não estar em nossos currículos e no fato de que a música 44 pode estar em todos os lugares, citando também John Cage e sua polêmica obra 4’33’’. Esta obra musical provocou e ainda provoca controvérsias a respeito se ela pode ser chamado de música, ou não, pois ao colocar um músico diante de um piano sem tocar uma nota sequer, portando-se como se estivesse em meio a uma performance musical, porém composta de sons do ambiente, interno e externo, Cage provocou nossa intenção de escuta. Ele nos surpreendeu com uma nova proposta de apreciação dos sons, direcionou nossa atenção, assim como se faz na atitude de escutar uma paisagem sonora e tentar criar música com seus sons característicos. 45 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA Ao buscar uma abordagem metodológica que atendesse às particularidades e ao objetivo geral desta pesquisa, comecei a entender que não bastaria escolher uma única metodologia, pois o trabalho se tornaria engessado, fechado. Portanto, seria necessário conhecer algumas abordagens e compreender suas técnicas para que os procedimentos que melhor se adequassem à pesquisa pudessem ser utilizados. A princípio, entendeu-se que o eixo metodológico principal seria o de uma pesquisa-ação, ou de uma pesquisa participante. Como estas duas abordagens muito se assemelham, gerando, por vezes, confusões, é importante considerar algumas características. Assim, a pesquisa-ação é definida por Thiollent como uma “pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão