UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS – CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM FRANCINNE GONZALEZ ANDRIONI PRÁTICAS EDUCATIVAS DOCENTES E O ALUNO SUPERDOTADO: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DA FORMAÇÃO CONTINUADA EM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO BAURU 2022 FRANCINNE GONZALEZ ANDRIONI PRÁTICAS EDUCATIVAS DOCENTES E O ALUNO SUPERDOTADO: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DA FORMAÇÃO CONTINUADA EM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Programa de Pós-Graduação de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, da Faculdade de Ciências, Campus de Bauru. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carina Alexandra Rondini. BAURU 2022 Andrioni, Francinne Gonzalez. Práticas educativas docentes e o aluno superdotado: possíveis contribuições da formação continuada em altas habilidades/superdotação / Francinne Gonzalez Andrioni. – Bauru, 2022, Total de folhas: 155 Orientadora: Carina Alexandra Rondini. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências, Bauru, 2022. 1. Altas Habilidades/Superdotação. 2. Formação Docente. 3. Habilidades Sociais. 4. Práticas Educativas. FRANCINNE GONZALEZ ANDRIONI PRÁTICAS EDUCATIVAS DOCENTES E O ALUNO SUPERDOTADO: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DA FORMAÇÃO CONTINUADA EM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Programa de Pós-Graduação de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, da Faculdade de Ciências, Campus de Bauru. Comissão Examinadora Prof.ª Dr.ª Carina Alexandra Rondini UNESP – Campus de São José do Rio Preto Orientadora Prof.ª Dr.ª Alessandra Turini Bolsoni Silva UNESP – Campus de Bauru Prof.ª Dr.ª Tatiana de Cassia Nakano Primi PUC - Campinas Bauru 25 de fevereiro de 2022 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família, pela dedicação, ensinamentos e suporte. Também pela disposição em me escutar falar horas a fio sobre os construtos desta Dissertação. Agradeço aos amigos e colegas da vida e do programa, pelas interações que tornaram o caminho menos solitário e mais prazeroso. Agradeço à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Carina Alexandra Rondini, pela oportunidade de crescimento, sob sua tutela, em mais áreas da minha vida do que eu poderia imaginar. Pelo seu empenho em caminhar junto, mesmo quando “estar junto” não era possível. Agradeço aos membros da banca avaliadora, pela disponibilidade e contribuição com minha pesquisa. E, por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, pelo atendimento sempre prestativo, neste processo, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), pelo apoio para a realização deste trabalho. O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. (ROSA, 2001, p. 39) RESUMO O professor, como um dos principais representantes do contexto escolar, é apontado frequentemente na literatura pelo seu convívio diário com os alunos, aquele que possibilitaria a identificação de comportamentos atípicos e intervenções adequadas ao ambiente educacional. Contudo, para a inclusão do aluno superdotado, no ensino regular, como garantido pela legislação, sinaliza-se a formação continuada em altas habilidades/superdotação como necessária para a atuação docente, vistas as fragilidades na difusão de conhecimento desse campo, nas formações iniciais. Pensando nisso, o objetivo desta pesquisa foi analisar os possíveis impactos da formação continuada em altas habilidades/superdotação, na prática educativa de professores do ensino regular. Para tal finalidade, esta Dissertação foi organizada em três estudos, distintos, porém, complementares. Os dois primeiros se referem à fundamentação teórica, enquanto o terceiro apresentou a pesquisa empírica. O primeiro estudo teve como propósito expor o fenômeno das altas habilidades/superdotação, com foco na inclusão escolar do aluno superdotado, delimitada à Educação Básica. Foi evidenciada a relevância da formação docente continuada para a identificação e atendimento do superdotado, assim como se pôde ponderar sobre a relação entre o professor da sala de aula regular e o aluno superdotado. O segundo estudo explorou a importância de práticas educativas habilidosas na relação professor-aluno, tendo como referencial o campo teórico-prático das habilidades sociais, no contexto escolar. As habilidades sociais educativas têm como fim promover os processos de ensino e aprendizagem e colaborar na interação entre professores e alunos, podendo auxiliar, por exemplo, no manejo de problemas de comportamento e mediar a interação social. Assim, apresentaram-se as possíveis contribuições das habilidades sociais educativas, assim como uma amostra de estudos nacionais empíricos, com fins de exemplificação, orientação e reflexão. Efetuada a contextualização dos construtos, a partir da literatura, o terceiro estudo consistiu em uma pesquisa de campo em conformidade com a temática posta no objetivo geral desta Dissertação, com base em um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa-quantitativa. Participaram da pesquisa quatro professoras atuantes no ensino regular e com formação continuada em educação especial/altas habilidades/superdotação, ofertada pelo Programa REDEFOR. Para a coleta e análise dos dados, utilizou-se um roteiro semiestruturado de entrevista para levantamento dos dados, com questões voltadas à formação docente, atuação profissional, altas habilidades/superdotação e habilidades sociais educativas, enquanto os dados encontrados foram analisados conforme o método do Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados indicaram uma contribuição parcial da formação continuada em altas habilidades/superdotação, na habilidade em refletir e sensibilizar-se com o campo das altas habilidades/superdotação, todavia, as professoras especialistas alegaram que por conta da demanda excessiva de alunos em sala de aula, falta de recursos e profissionais especializados nas escolas, elas não puderam aplicar os conhecimentos estudados em seu ambiente de trabalho. Complementar a isso, destaca-se a ínfima presença dos alunos superdotados identificados nas escolas e a inexistência de salas de atendimento especializado ao superdotado. No que corresponde às práticas educativas, considera-se que as habilidades sociais educativas poderiam colaborar, em grande proporção, com a atuação docente, tendo em vista as demandas envolvendo os alunos superdotados descritas pelas professoras, como indisciplina, aspectos sociais, bullying realizado pelos colegas, entre outras. Palavras-chave: Altas Habilidades/Superdotação. Formação Docente. Habilidades Sociais. Práticas Educativas. ABSTRACT The teacher, as one of the main representatives of the school context, is frequently mentioned in the literature for its daily interaction with students, which would make it possible to identify atypical behaviors and appropriate interventions for the educational environment. However, for the inclusion of gifted students, as guaranteed by legislation in regular education, continuing education in High Abilities/Giftedness is indicated as necessary for teaching activities, given the weaknesses in the dissemination of knowledge in this field in training initials. With that in mind, the objective of this research was to analyze the possible impacts of continuing education in High Abilities/Giftedness skills in the educational practice of regular school teachers. For this purpose, this dissertation was organized into three studies, distinct, but complementary. The first two studies refer to the theoretical foundation, while the third study presented the empirical research of this dissertation. The first study aimed to expose the phenomenon of High Abilities/Giftedness with a focus on the school inclusion of gifted students, limited to Basic Education. It was evidenced on the relevance of continuing teacher education for the identification and care of the gifted, as well as pondering on the relationship between the teacher in the regular classroom and the gifted student. The second study explored the importance of skillful educational practices in the teacher- student relationship, having as a reference the theoretical-practical field of social skills, in the school context. Educational social skills are intended to promote teaching and learning processes and collaborate in the interaction between teachers and students, and can help, for example, in the management of behavior problems and mediate social interaction. To this end, the possible contributions of educational social skills were presented, as well as a sample of empirical national studies, with the purpose of exemplification, guidance and reflection. After contextualizing the constructs from the literature, the third study consisted of field research in accordance with the theme set out in the general objective of this dissertation, based on an exploratory descriptive study with a qualitative-quantitative approach. Four teachers working in regular education and with continuing education in special education/High Abilities/Giftedness, offered by Program REDEFOR, participated in the research. For data collection and analysis, a semi-structured interview script was used to collect data with questions focused on teacher training, professional performance, High Abilities/Giftedness and educational social skills, while the data found were analyzed according to the Subject Discourse Collective method. The results indicated the partial contribution of continuing education in giftedness/high ability in the ability to reflect and to sensitize of the field of High Abilities/Giftedness, however, the specialist teachers claimed that due to the excessive demand of students in the classroom, lack of resources and specialized professionals in schools, they could not apply the knowledge studied in their work environment. In addition to this, there is a small presence of gifted and talented/high- ability students identified in schools and the lack of specialized service rooms for gifted people. Regarding educational practices, it is considered that the educational social skills could collaborate, in large proportion, with the teaching performance, in view of the demands involving gifted students described by the teachers, such as indiscipline, social aspects, bullying carried out by colleagues, among others. Keywords: High Abilities/Giftedness. Teacher Training. Social skills. Educational Practices. LISTA DE FIGURAS ESTUDO I Figura 1 – Modelo dos Três Anéis, proposto por Renzulli ESTUDO II Figura 1 – Relação entre Desempenho, Habilidade e Competência Social Figura 2 – Os três eixos da HSE e suas ramificações Figura 3 – Classes e Subclasses de Habilidades Sociais Educativas ESTUDO III Figura 1 – Analogia entre “deficiência” e “educação especial” LISTA DE QUADROS ESTUDO I Quadro 1 – Características do aluno superdotado acadêmico e do produtivo-criativo Quadro 2 – Estimativa da quantidade de indivíduos superdotados na população brasileira (2019) Quadro 3 – Instrumentos para rastreio das Altas Habilidades/Superdotação Quadro 4 – Os quatro saberes docentes, segundo Tardif ESTUDO II Quadro 1 – Conceitos gerais referentes às classes do SHSE Quadro 2 – Estudos Empíricos Nacionais sobre Habilidades Sociais Educativas (n=8) ESTUDO III Quadro 1 - Breve descrição das participantes (n = 4, São Paulo/SP) Quadro 2 – O que você entende ou já ouviu falar sobre Habilidades Sociais Educativas? Quadro 3 – Que práticas educativas você consideraria como habilidosas na relação professor-aluno? E não habilidosas? Quadro 4 – Em sua opinião, o que é uma escola inclusiva? Quadro 5 - O que é Educação Especial? Qual é seu público-alvo? Quadro 6 – O que você entende por altas habilidades/superdotação e quais poderiam ser os comportamentos típicos de um aluno superdotado? Quadro 7 – Percepção do Professor sobre o Aluno Superdotado em Sala de Aula Quadro 8 – Problemas de Comportamento de Alunos (em geral) e Superdotados Quadro 9 – Possibilidades e/ou Sugestões para o Atendimento ao Aluno Superdotado LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS ABSDRS – Associação Brasileira para Superdotados – Seção Rio Grande do Sul (RS) AC - Ancoragem AEE – Atendimento Educacional Especializado AH/SD – Altas Habilidades/Superdotação ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem BAI – Inventário Beck de Ansiedade BDI – Inventário Beck de Depressão BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CBCL – Child Behavior Checklist CEP – Comitê de Ética em Pesquisa CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DSC – Discurso do Sujeito Coletivo ECH – Expressões-chave HS – Habilidades Sociais HSE – Habilidades Sociais Educativas IC – Ideias Centrais IHS – Inventário de Habilidades Sociais IHSE – Prof – Inventário de Habilidades Sociais Educativas – Professores IHSE – PU-Aluno – Inventário de HSE para Professores Universitários – versão Aluno IHSE – PU-Prof – Inventário de HSE para Professores Universitários – versão Professor ISB – Inventário da Síndrome de Burnout LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional NAAH/S – Núcleo de Atividade de Altas Habilidades/Superdotação NEaD – Núcleo de Educação à Distância NEE – Necessidades Educacionais Especiais NICHD - National Institute of Child Health and Human Development PHSE – Programa de Habilidades Sociais Educativas PHS&E – Programa de Habilidades Sociais e Educativas PRODIP – Programa de Desenvolvimento Interpessoal Profissional QRSH-Pr - Questionário de Respostas Socialmente Habilidosas – versão para professores REDEFOR – Programa Rede São Paulo de Formação Docente RE-HSE-P – Roteiro de Entrevista de Habilidades Sociais Educativas de Pais RE-HSE-Pr – Roteiro de Entrevista de Habilidades Sociais Educativas de Professores RIHS – Grupo de Pesquisa “Relações Interpessoais e Habilidades Sociais” RS – Representação Social SAPE - Serviço de Apoio Pedagógico Especializado SCIELO – Scientific Eletronic Library Online SDQ-Pr - Questionário de Capacidades e Dificuldades SHSE – Sistema de Habilidades Sociais Educativas SP – São Paulo SSRS – Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica para Crianças SSRS-BR – Sistema de Avaliação do Repertório Social STEM – Science, Technology, Engineering and Mathematics TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade TEA - Transtorno do Espectro Autista THS – Treino em Habilidades Sociais TRF – Teachers Report Form/Formulário de Relatório do Professor UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UMinho – Universidade do Minho UNESP – Universidade Estadual Paulista SUMÁRIO UM CAMINHO EM FORMAÇÃO ............................................................................ 16 Referências .............................................................................................................. 22 ESTUDO I: FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA E A INCLUSÃO DO ALUNO SUPERDOTADO NO ENSINO REGULAR: ENCONTROS E DESENCONTROS ... 25 Interfaces na Inclusão do Aluno Superdotado no Ensino Regular ............................ 25 A Formação Inicial Docente no Campo das Altas Habilidades/Superdotação: avanços e fragilidades ............................................................................................. 36 Resgatando Saberes: a contribuição da formação docente continuada .................... 43 Considerações Finais .............................................................................................. 52 Referências .............................................................................................................. 54 ESTUDO II: HABILIDADES SOCIAIS EDUCATIVAS: CONTRIBUIÇÕES DO CAMPO TEÓRICO-PRÁTICO DAS HABILIDADES SOCIAIS PARA O PROFESSOR .............................................................................................................. 63 Habilidades Sociais: um conceito complexo? .......................................................... 63 Contexto Escolar: desenvolvimento e formação humana ......................................... 68 Explorando o Conceito de Habilidades Sociais Educativas ..................................... 74 Amostra de Estudos Empíricos referentes às Habilidades Sociais Educativas .......... 83 Considerações Finais .............................................................................................. 92 Referências .............................................................................................................. 94 ESTUDO III: PERCURSOS DA FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA EM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO NA PRÁTICA EDUCATIVA: ALCANCES E DESAFIOS ...................................................................................... 102 Introdução ............................................................................................................. 102 Pressupostos Metodológicos .................................................................................. 104 Delineamento da Pesquisa ................................................................................. 105 Descrição do Curso ........................................................................................... 105 Casuística .......................................................................................................... 106 Instrumento de coleta de dados .......................................................................... 107 Materiais e Recursos.......................................................................................... 107 Procedimentos de Coleta dos Dados .................................................................. 108 Procedimentos de Análise dos Dados ................................................................. 108 Aspectos Éticos .................................................................................................. 109 Resultados e Discussões ........................................................................................ 110 Trabalho Docente: identidade e atuação profissional ........................................ 110 Formação Docente Continuada em Altas Habilidades/Superdotação: conceitos 114 Formação Docente Continuada em Altas Habilidades/Superdotação: práticas educativas .......................................................................................................... 120 Considerações Finais ................................................................ 135_Toc101237938 Referências ............................................................................................................ 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UM CAMINHO SOBRE FORMAÇÃO ............... 143 APÊNDICES ............................................................................................................ 146 Apêndice A – Roteiro Semiestruturado de Entrevista ............................................. 147 Apêndice B: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ....................... 149 ANEXOS .................................................................................................................. 152 Anexo A: Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa .................... 153 16 UM CAMINHO EM FORMAÇÃO Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (ROSA, 2001, p. 327). Pensar na minha trajetória até a atualidade aparenta ser um dos trabalhos mais árduos deste processo. Criada para acreditar que a educação muda o mundo, eu me empenhei em, sempre que possível, aproveitar ao máximo das oportunidades que a vida acadêmica me fornecia, desde pequena – sejam estas experiências com professores, colegas de classe, fugas da escola ou mesmo conversas aleatórias com a “tia da limpeza”. Após ser indagada sobre o futuro, optei por trabalhar com gente como a gente: escolhi me graduar em Psicologia. E qual não foi minha surpresa, ao entender na teoria o que eu tinha vivenciado na prática: o poder da escola nas nossas escolhas! Lembro-me hoje de cada contribuição que tive destes profissionais da educação:  a “tia” que me ensinou o árduo trabalho de cuidar de uma instituição fora das vistas da suposta clientela e, com isso, aprendi a zelar pelo trabalho do outro;  a professora que mediava conflitos de forma imparcial;  o professor que incentivava nossos interesses e nos motivava a continuar os estudos fora da sala de aula;  o professor que puxava a orelha e nos levava a querer ultrapassar os limites postos. E, com outros mil exemplos, entendi que a escola forma gente, para além de conhecimentos teóricos e práticos, mas também éticos e morais. Sem perceber, fui me aproximando da área da Educação. Após concluir minha graduação, em 2019, tive a oportunidade de ingressar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus Bauru. Dentro desse panorama, fui levada a querer cooperar com o contexto escolar da Educação Básica e os desafios que a atualidade impunha a este, com destaque para a figura do professor. Encaminhei meus estudos para o campo teórico-prático das habilidades sociais, acreditando que o mesmo pode contribuir para a prática educativa do professor, além de ser apontado como fator de proteção no desenvolvimento infantil (CARDOSO; COELHO; MARTINS, 2017; DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2017b). Delimitando esse 17 campo, destaco as Habilidades Sociais Educativas (HSE), as quais são compreendidas como habilidades sociais organizadas em função de papéis sociais – neste caso, do professor, tendo como finalidade promover os processos de ensino e aprendizagem e colaborar com as interações entre os professores e alunos (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2017a; COGNETTI; BOLSONI-SILVA, 2019). De forma geral, os comportamentos apontados pela HSE no repertório comportamental do professor são [...] planejar, estruturar e apresentar atividade interativa; conduzir atividade interativa; avaliar atividade e desempenhos específicos; cultivar afetividade e participação dos alunos, demonstrar apoio, bom humor, atender a pedidos para conversa em particular, incentivar e mediar a participação de outros nas atividades com os alunos. (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2017a, p. 71). Por conceber a escola como uma instituição educativa que forma o ser humano em sua complexidade, reitero a importância de trabalhar com habilidades sociais, no contexto escolar (SOUZA; SOARES; FREITAS, 2018; PASCHE et al., 2019), promovendo igualmente as habilidades sociais educativas no comportamento dos docentes (QUITERIO; NUNES, 2017; PONTI, 2020). Para além dos estudos que indicam os resultados positivos desse campo, no contexto escolar, trago a proposta da atual Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2017), como documento de caráter normativo que destaca como competência para a Educação Básica a importância das habilidades práticas, cognitivas e também socioemocionais – rompendo, assim, com as perspectivas que privilegiam uma dimensão em prol da outra. A legislação voltada para o contexto escolar também enfatiza a importância da Educação Inclusiva, visto que a Educação é um direito de todos, conforme a Constituição Federal (BRASIL, 1988). A demanda referente à inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais, dentro de escolas regulares, tem ganhado espaço para debates e intervenções, através de medidas tomadas por políticas públicas na elaboração de documentos norteadores para essa área, como a Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994), as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996/2017), entre outros. Dentro da Educação Especial, evidenciam-se, para este trabalho, como público- alvo os alunos com altas habilidades/superdotação (AH/SD). A literatura informa que 18 esses alunos compõem uma amostra de 3 a 5% da população, apesar da dificuldade no reconhecimento e promoção de suas habilidades, no contexto escolar (SANTOS; MATURANA, 2019; AMARAL; CORDEIRO; COSTA, 2018; SOUZA, 2005; MARLAND, 1972). A definição mais conhecida para as AH/SD foi desenvolvida por Renzulli (2014), um estudioso amplamente reconhecido na área. Nessa definição, Renzulli indica três traços para a identificação do indivíduo com comportamento superdotado: habilidades acima da média, comprometimento com a tarefa e criatividade. Esses traços foram organizados e explicados no Modelo dos Três Anéis, no qual Renzulli afirma que o indivíduo superdotado manifestaria ou teria a capacidade de desenvolver tais aspectos, de forma interativa (RENZULLI, 2014). Segundo o Ministério da Educação, o indivíduo com AH/SD é caracterizado pelo desempenho notável e alta potencialidade, apresentando as características isoladas ou combinadas, a seguir: “[...] intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade.” (BRASIL, 2009, p. 17). A Resolução n° 4, de 02 de outubro de 2009, que institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade de Educação Especial, afirma, no Art. 1°, que os alunos que apresentam altas habilidades/superdotação, assim como alunos com deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento, devem ser matriculados em “[...] classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado.” (BRASIL, 2009, p. 17). Como um dos principais representantes do âmbito escolar, atribui-se ao professor a capacidade de reconhecer os alunos com AH/SD e promover a adaptação coerente dos conteúdos (SANTOS; COUTINHO, 2020), supondo que o docente teria meios de detectar esses alunos, por conta da convivência diária, na sala de aula regular. No entanto, a literatura vem apontando a dificuldade da identificação desses alunos e, consequentemente, suas necessidades educacionais especiais deixam de ser atendidas (BAHIENSE; ROSSETTI, 2014; RECH; NEGRINI, 2019; WECHSLER; SUAREZ, 2016). Segundo Rondini (2019), o trabalho do professor com o aluno com AH/SD demanda do docente mais motivação, comprometimento e formação específica, do que recursos materiais. Logo, destaca-se a necessidade do investimento teórico e prático na formação inicial e continuada do professor com esse público-alvo, em face da 19 importância de reconhecer as particularidades do aluno superdotado para a efetivação de uma escola inclusiva e práticas educativas coerentes, na interação professor-aluno (WENZEL; DANTAS, 2019). Corroborando a importância de tratar sobre as práticas educativas, há a necessidade de repensar não apenas a inclusão dessa amostra em situações que fomentem o desenvolvimento puramente cognitivo, mas também em aspectos que favoreçam um desempenho integral (PISKE, 2013), visto que os alunos superdotados podem apresentar determinadas características, como sensibilidade exacerbada, perfeccionismo, excesso de autocrítica, senso de justiça, entre outras (CHAGAS- FERREIRA et al., 2019). Voltadas para o trabalho do professor com o aluno superdotado, as formações docentes iniciais vêm sendo apontadas como despreparadas para atuação desse profissional, que relatam a inexistência de uma formação adequada para lidarem com alunos superdotados (BAHIENSE; ROSSETTI, 2014) e abordagem superficial das AH/SD, nessas formações (WECHSLER; SUAREZ, 2016). Em outras palavras, competiria ao profissional da Educação recorrer à formação continuada, para aperfeiçoar seus saberes e práticas ou ter o contato inicial com a temática das AH/SD, já que a oferta da formação docente continuada possibilitaria a apropriação dos conhecimentos necessários da temática e oportunizaria o aprimoramento da prática educativa, efetivando a inclusão do aluno superdotado (ANJOS, 2018). Nesse sentido, Anjos (2018) pontua sobre a promoção de conhecimentos científicos para professores em serviço, com o intuito de transformar práticas docentes. Para tanto, o autor realizou um estudo investigando as práticas docentes que poderiam ser concretizadas no contexto educacional, após a implementação de um curso de formação continuada voltada à AH/SD. Para coleta de dados, 96 professores da Educação Básica participaram da pesquisa, ao responder a um questionário on-line sobre suas práticas e ações efetivas nas escolas. Foram apontados alguns resultados positivos com a formação continuada, como a sensibilização e a reflexão sobre suas vivências docentes para a inclusão desses alunos; contudo, também foi destacada a permanente incipiência do atendimento a esses alunos, na realidade. Corroborando tais dados, Amaral (2021) objetivou analisar a formação de profissionais da Educação para trabalhar com alunos superdotados, tanto para identificação como para o processo de ensino e aprendizagem. A fim de coletar os 20 dados, foram aplicados questionários aos participantes de um curso com quatro encontros, em São José dos Pinhais, abordando temáticas envolvendo as AH/SD. Foi percebido o esclarecimento de crenças sobre a superdotação, assim como a necessidade de considerar metodologias que auxiliem na integração desses conhecimentos, no contexto educacional, para o professor ter a possibilidade de efetivar uma prática docente que oferte o atendimento devido aos alunos superdotados. Portanto, conceber a formação docente continuada como solução provisória não é suficiente: faz-se necessário compreender em que medida essas formações podem estar influenciando as práticas educativas dos professores (ANDRÉ; PASSOS, 2019). Focalizando esses apontamentos, as perguntas norteadoras para esta pesquisa foram: i) a formação continuada direcionada ao campo das AH/SD pode influenciar a prática educativa do professor, em sala de aula regular? e ii) Os professores que realizaram formação continuada em AH/SD apresentam mais domínio, no campo das AH/SD, para identificar e atender os alunos superdotados? Respondendo a esses problemas de pesquisa, de forma hipotética, acredita-se que há disseminação de conteúdos básicos na formação continuada em AH/SD, no entanto, os impactos para a atuação dos professores do ensino regular são baixos ou nulos. Em consequência, o objetivo geral desta investigação foi analisar os possíveis impactos da formação continuada em AH/SD, na prática educativa de professores do ensino regular. São seus objetivos específicos: i) Compreender os impactos da formação continuada em AH/SD para a atuação do professor com os alunos superdotados, ii) Identificar práticas educativas habilidosas ou não, na relação do professor com o aluno superdotado e iii) Apontar possíveis contribuições do campo teórico-prático das habilidades sociais educativas, na relação do professor com o aluno superdotado. Buscando cumprir esses objetivos, esta Dissertação foi dividida em três estudos distintos, porém, complementares. Os dois primeiros se referem à fundamentação teórica, ou seja, são estudos bibliográficos. Por sua vez, o terceiro estudo apresenta a pesquisa empírica da Dissertação. Por ter a finalidade de contextualizar a temática abordada, optou-se, nos Estudos I e II, por não delimitar a bibliografia por período de publicação. Dentre os materiais bibliográficos utilizados neste trabalho, destacam-se livros, artigos científicos, teses, dissertações, leis, documentos normativos, entre outros formatos disponíveis no banco de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), Catálogo de Teses e Dissertação no portal da CAPES - 21 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e portais de revistas científicas que trabalhassem com a temática estudada. A seguir, explicitam-se as finalidades de cada estudo. O Estudo I, “Formação Docente Continuada e a Inclusão do Aluno Superdotado no Ensino Regular: encontros e desencontros”, teve como objetivo abordar alguns aspectos sobre o fenômeno das altas habilidades/superdotação, delimitado a Educação Básica, ao percorrer alguns pontos da relação entre o professor da sala de aula regular e o aluno superdotado, evidenciando a relevância da formação docente continuada para inclusão desses alunos. Para fomentar este estudo, recorreu-se a autores como Tardif, Imbernón, Renzulli, Perrenoud, Alencar, além da busca nos bancos de dados aludidos, com os descritores “altas habilidades/superdotação”, “educação especial”, “formação docente”, “formação docente continuada”, “sala de aula regular”, “aluno superdotado” e “educação inclusiva”. O Estudo II, “Habilidades Sociais Educativas: contribuições do campo teórico- prático das habilidades sociais para o professor”, buscou refletir sobre a relevância do repertório do professor voltado para as habilidades sociais educativas, destacando também o campo das habilidades sociais, no contexto escolar, e as práticas educativas do professor. A literatura-base contou com nomes como de Del Prette e Del Prette, Bolsoni-Silva – além do material encontrado através dos descritores “habilidades sociais”, “contexto escolar”, “práticas educativas”, “habilidades sociais educativas”, “educação básica” e “formação docente”. Por último, o Estudo III, “Percursos da Formação Docente Continuada em Altas Habilidades/Superdotação na Prática Educativa: alcances e desafios”, teve como objetivo analisar os possíveis impactos da formação continuada em AH/SD na prática educativa de professores do ensino regular. Essa parte da Dissertação foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sendo compreendido como um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa. Foram participantes (n = 4) professoras provenientes de escolas públicas do ensino regular do município de São Paulo/SP, com formação continuada em AH/SD, pelo curso “Especialização em Educação Especial/Altas Habilidades/Superdotação”, ofertado pelo Programa Rede São Paulo de Formação Docente (REDEFOR). O instrumento usado para coletar os dados foi um roteiro semiestruturado de entrevista, o qual teve como finalidade levantar dados das participantes relacionados à sua formação 22 e atuação profissional, além de questões quanto à temática da Educação Especial, dirigida para altas habilidades/superdotação e habilidades sociais educativas. Para análise dos dados, foi utilizado o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), desenvolvido por Lefèvre e Lefèvre (2006, 2014), a fim de discorrer sobre os dados da entrevista, almejando explorar os objetivos propostos inicialmente, nesta Dissertação. O texto finaliza com minhas considerações finais sobre essa jornada, quer acadêmica, quer pessoal. Disserto sobre as expectativas desse caminho em formação, os impasses e resultados encontrados e sugestões para novos estudos. REFERÊNCIAS AMARAL, M. R. C. Ampliando o olhar sobre altas habilidades/superdotação: formação para profissionais da educação. 2021. 101f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação e Novas Tecnologias) – Centro Universitário Internacional UNINTER, Curitiba, 2021. AMARAL, D. de F. C.; CORDEIRO, T. M. F. M.; COSTA, E. A. da S. Um novo olhar para as altas habilidades/superdotação no município de São José dos Pinhais – PR. Revista Expressão Católica, [S.l.], v. 7, n. 1, p. 62-68, jan./jun. 2018. 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Visando abordar alguns pontos sobre o fenômeno das altas habilidades/superdotação, delimitado ao ensino regular na Educação Básica, este estudo tem como objetivo apresentar os aspectos da relação entre o aluno superdotado e o professor, na sala de aula regular, destacando a importância da formação docente continuada para a inclusão desse perfil de aluno. Para isso, o texto está organizado em três subseções, sendo estas: “Interfaces na inclusão do aluno superdotado no ensino regular”, “A formação inicial docente no campo das altas habilidades/superdotação: avanços e fragilidades” e “Resgatando saberes: a contribuição da formação docente continuada”. INTERFACES NA INCLUSÃO DO ALUNO SUPERDOTADO NO ENSINO REGULAR Refletir sobre a educação e suas diversidades demanda grande discussão, envolvendo os aspectos da inclusão escolar. A Educação Inclusiva, por ser um tema transversal, visto que perpassa todas as modalidades e níveis de ensino (BRASIL, 2008), deve ser pensada com prioridade na Educação Básica, a qual abrange a Educação Infantil, o Ensino Fundamental I e II e o Ensino Médio. Compreende-se por Educação Inclusiva o ato de ofertar a possibilidade de todos terem acesso à Educação, além de acolhê-los em suas diferenças (OLIVEIRA, 2018). Os profissionais da Educação comprometidos nessa perspectiva atuam com a finalidade de tornar o contexto escolar um ambiente mais receptivo, garantindo a acessibilidade de todos, e humanizado, destacando que todos somos diferentes em algum aspecto (SÁ, 2017). Dentro dessa perspectiva inclusiva, destaca-se a Educação Especial, que tem como público-alvo alunos com deficiência, alunos com transtornos globais do 26 desenvolvimento e alunos com altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2009). Contudo, a literatura aponta que, apesar dos alunos com altas habilidades/superdotação (AH/SD) estarem incluídos nas normativas da Educação Especial, estes, por vezes, não são considerados como público-alvo (RECH; NEGRINI, 2019; REIS; CONTER, 2020), ou seja, são quase excluídos do processo de inclusão. Segundo a Resolução n° 4, de 2 de outubro de 2009, a qual institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, os alunos com altas habilidades/superdotação são definidos como aqueles “[...] que apresentam um potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou combinadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade.” (BRASIL, 2009, p. 17). Cada um dos aspectos acima mencionados revela sua particularidade e pode ser compreendido por meio das seguintes características: i) intelectual: raciocínio ágil, memória e observação elevada etc.; ii) liderança: sensibilidade interpessoal, habilidade para resolver situações sociais complexas, tendência a agir de forma cooperativa etc.; iii) psicomotora: desempenho elevado em atividades físicas, agilidade, resistência, controle e coordenação motora fina e grossa etc.; iv) artes: desempenho elevado no âmbito artístico – literatura, artes plásticas, musicais etc. e; v) criatividade: referente ao raciocínio criativo ou produtivo, podendo apresentar pensamento original, ideias inovadoras etc. (VIRGOLIM, 2007). O conceito das AH/SD também pode ser entendido através do Modelo dos Três Anéis, proposto por Renzulli, psicólogo e pesquisador norte-americano, o qual é um grande nome mundial na área das altas habilidades/superdotação (SÁ, 2017). As altas habilidades/superdotação, na concepção do autor, devem ser compreendidas conforme a cultura vigente, tendo em vista a combinação de habilidades, personalidades e condições ambientais valorizadas daquele contexto (RENZULLI, 2016). Conforme Renzulli, o comportamento do superdotado é percebido por meio da interação de três traços básicos: habilidade acima da média, comprometimento com a tarefa e criatividade (RENZULLI, 2014), conforme indicado na Figura 1. 27 Figura 1 – Modelo dos Três Anéis, proposto por Renzulli Fonte: Renzulli (2014, p. 544). A habilidade acima da média refere-se ao potencial ou desempenho elevado do indivíduo, podendo ser manifestada tanto em habilidades gerais (inteligência geral) como específicas (domínios ou áreas, como, por exemplo, matemática, fotografia, balé, culinária, música etc.). O comprometimento com a tarefa é atinente à motivação e concentração nas atividades relacionadas à sua superdotação, considerando, para sua definição, certos sinônimos, como “[...] perseverança, persistência, trabalho árduo, prática dedicada, autoconfiança, crença na própria habilidade de desenvolver um trabalho importante e ação aplicada à área de interesse.” (RENZULLI, 2016, p. 241). E, por fim, a criatividade, como último traço, remete às expressões de comportamento que sugiram pensamento original e inovador (RENZULLI, 2016). Renzulli (2004) destaca que o indivíduo deve demonstrar capacidade de desenvolver esses traços e, não necessariamente, manifestar todos eles, pois a intersecção dos três círculos representando os três traços, como demonstrado na Figura 1, indica uma relação dinâmica e interativa entre eles. Nessa perspectiva, a superdotação não pode ser vista como um fenômeno estático ou pré-determinado, mas é fundamental que haja interação entre os traços, para que se revele um elevado nível de produtividade, conforme observam Antipoff e Campos (2010). 28 A literatura concebe esse perfil de aluno como um grupo heterogêneo, ou seja, dentro do seu nicho, os alunos com AH/SD apresentam singularidades nas formas de aprendizado, habilidades, motivações e criatividade (REIS; REMOLI; CAPELLINI, 2016). Os traços do comportamento superdotado são despertados com o surgimento de algum desafio inesperado, caso o ambiente seja adequado (REIS; CONTER, 2020). Logo, faz-se importante diferenciar a compreensão entre potencial e desempenho, no âmbito das AH/SD. Enquanto o indivíduo superdotado apresenta, de forma inata, o potencial superior em algum domínio das habilidades humanas, competiria ao ambiente no qual ele vive ser favorável para que esse potencial aflore, culminando no seu desempenho elevado, nomeado como “comportamento superdotado” (RENZULLI, 2016). Renzulli também distingue dois tipos de AH/SD: o acadêmico ou escolar e o produtivo-criativo (RENZULLI, 2004). Dentre esses dois tipos, a superdotação acadêmica pode ser mais facilmente identificada pela sua associação com o alto desempenho escolar e o currículo escolar tradicional, representado nas formas de reconhecimento pelos profissionais da Educação, como as avaliações com foco no desempenho cognitivo, notas escolares, classificações do professor, entre outros (RENZULLI, 2004; ANJOS, 2018). Esse perfil de aluno poderia ser, por exemplo, aquele que gosta muito de leitura, desempenha bem atividades voltadas a disciplinas do currículo regular, aprende com rapidez e facilidade, não gosta de repetição, se sente enfadado com o processo de espera de seus pares para terminar atividades as quais ele já finalizou, e pode, igualmente, ter desempenho regular ou abaixo do esperado, em determinadas atividades, como desenho, teatro, música, pintura etc., as quais seriam mais esperadas para o aluno com o perfil do tipo produtivo-criativo. Por sua vez, a superdotação produtivo-criativa abrange o desenvolvimento de ideias, produtos, expressões artísticas originais, ou seja, esse tipo é caracterizado como produtor de conhecimento e utiliza suas habilidades para campos que apontem desafios investigativos e relevância pessoal (RENZULLI, 2004, 2016). Portanto, o aluno do tipo produtivo-criativo se torna um desafio para a escola, porque exibe características divergentes de um modelo rígido de sala de aula e seus interesses, geralmente, não são considerados no currículo da Educação Básica, logo, “[...] por serem inventivos, muitas vezes são classificados como alunos indisciplinados, 29 hiperativos ou com dificuldade de aprendizagem.” (OLIVEIRA, 2018, p. 55). Anjos (2018) enfatiza que o aluno do tipo produtivo-criativo tem seu foco especialmente voltado para os traços de comprometimento com a atividade e criatividade, enquanto o tipo acadêmico pode estar mais relacionado ao traço da habilidade acima da média. Assim sendo, as estratégias educacionais com esses alunos variam, conforme seu perfil. No Quadro 1, distingue-se uma amostra das características que configuram o tipo acadêmico e o produtivo-criativo. Essas características foram divididas em características gerais e características socioemocionais. Compreenderam-se por características gerais os traços que seriam comuns ao superdotado, como, por exemplo, a inteligência, criatividade e envolvimento com suas atividades de interesse, enquanto as características socioemocionais configuraram aspectos emocionais, afetivos e sociais relacionados tanto com questões individuais, como autoconceito, quanto com interações com outras pessoas e contextos, como o escolar. Quadro 1 – Características do aluno superdotado acadêmico e do produtivo-criativo Acadêmico Produtivo-criativo Características gerais Apresenta boas notas, boa memória, grande vocabulário e longos períodos de concentração; consumidor de conhecimento; perseverante; gosta de livros técnicos e lê por prazer; em geral, agrada aos professores; gosta da escola, de fazer perguntas e apresenta ótimo raciocínio verbal e/ou numérico; precisa de pouca repetição do conteúdo escolar, visto que aprende com rapidez. Não necessariamente apresenta QI (quociente de inteligência) superior; é criativo, original, inventivo, sensível aos detalhes e produtor de conhecimento; gosta de brincar com as ideias, procurando novas formas de fazer as coisas e construir novas estruturas; não gosta de rotina e não liga para as convenções; demonstra diversidade de interesses; pensa por analogias e gosta de fantasiar; usa o humor e encontra ordem no caos. Características socioemocionais Busca novas aprendizagens e necessita saber sempre mais; pode estabelecer metas muito altas para si mesmo e sofrer por medo de não atingi-las; grande intensidade emocional e intenso perfeccionismo; demonstra perseverança nas atividades motivadoras a ele e grande necessidade de estimulação mental. Demonstra senso agudo de justiça, autoconsciência, sensibilidade/empatia, capacidade de reflexão e preocupação moral em idades precoces; investe quantidade significativa de energia emocional naquilo que faz; precisa de adultos para apoiar a persistência em suas tarefas e sensíveis aos seus intensos sentimentos de frustração, paixão, entusiasmo, raiva e desespero; apresenta imaginação vívida e perceptividade (insight), além de frequentemente questionar autoridades e regras. Fonte: Virgolim (2007, p. 43) Ao explorar essas características em nichos supostamente contrastantes, destaca- se quão heterogêneo e, portanto, complexo, o perfil de um aluno superdotado pode ser. 30 Problematiza-se, todavia, de que modo o aluno superdotado, como personagem do contexto escolar, tem sido percebido e atendido em suas necessidades educacionais. Anteriormente, apontaram-se as características cognitivas como mais identificadas no contexto escolar, à vista disto, a divisão do Quadro 1 teve como intuito realçar as diferentes características entre os dois tipos de superdotação e citar separadamente os aspectos socioemocionais, visto que tais aspectos desvelam divergências nas pesquisas e menor atenção, comparados as características cognitivas e necessidades educacionais do superdotado (ALENCAR, 2007; CAPELLINI; ARANTES-BRERO; OLIVEIRA, 2020). Essa predileção, na literatura, das características cognitivas em face dos aspectos socioemocionais pode impactar o oferecimento de serviços e programas desses últimos, conforme asseverado por Chagas- Ferreira (2016), ao citar que, dentre os programas, atendimentos e serviços direcionados ao superdotado, o foco central de oferta está voltado para as características cognitivas, com pouca atenção para outros aspectos do desenvolvimento, como, por exemplo, as habilidades sociais. É importante ressaltar que, apesar de essas características, do Quadro 1, serem frequentes no comportamento do superdotado, sua presença não é regra, tendo em vista que a superdotação é compreendida como um fenômeno multidimensional e que, assim sendo, recebe influências dos âmbitos afetivo, social, cognitivo, cultural, entre outros (OUROFINO; GUIMARÃES, 2007). Nesse aspecto, o aluno superdotado também é influenciado pelo contexto educacional, o qual não favorece ou enxerga suas potencialidades, posto que seu desenvolvimento requer serviços educacionais especializados, que, em geral, não são ofertados no sistema regular de ensino (RENZULLI, 2014). E, quando não acolhido ou não compreendido em suas necessidades educacionais especiais, esse aluno pode evidenciar frustração, apatia e ressentimento pela falta de desafios na sala de aula (OUROFINO; GUIMARÃES, 2007), assim como desmotivação em relação ao contexto escolar (SABATELLA; CUPERTINO, 2007). Problematizar a percepção do perfil do aluno superdotado e a oferta de serviços educacionais especiais para esse público, nas diferentes áreas do desenvolvimento, reverbera até mesmo na reflexão sobre o próprio termo, o qual, até o momento atual, gera divergências conceituais na literatura. Inicialmente, o público das AH/SD era considerado/visto como “gênio” ou “precoce”, termos associados a testes de inteligência 31 (REIS; REMOLI; CAPELLINI, 2016). Outras nomenclaturas também são adotadas, por vezes, como “[...] talentoso, com altas habilidades, superdotado, com altas habilidades/superdotação, com altas habilidades ou superdotação, dotado, bem dotado, mais dotado, com potencial superior, intelectualmente superdotado, excepcional.” (JOB, 2020, p. 60; cf. GUENTHER; RONDINI, 2012). Algumas destas podem não contemplar o público com clareza, dando margem aos mitos que rondam a temática, como, por exemplo, nomear o comportamento superdotado de apenas “talentoso” ou adicionar o prefixo “super”, segundo se faz em “superdotado”, e fomentar o entendimento de superioridade, ou seja, aquele que é bom em tudo. Apesar dessas divergências, atualmente, o termo utilizado pela comunidade científica se manteve como “altas habilidades/superdotação”, semelhante ao emprego que faz a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), ainda que, nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o termo usado seja “altas habilidades ou superdotação” (BRASIL, 1996/2017). Cabe assinalar a invisibilidade desse público marcada também pela falta de unanimidade, ao nomeá-lo, pressupondo a dificuldade de referir-se aos alunos com AH/SD como uma premissa básica. Segundo o Relatório de Marland (1972), a estimativa “conservadora” da quantidade do público superdotado no mundo é de 3 a 5% da população. Com a finalidade de traduzir e delimitar essa informação para a realidade brasileira, tem-se o Quadro 2. Quadro 2 – Estimativa da quantidade de indivíduos superdotados na população brasileira (2019) Perfil Número de indivíduos Estimativa da quantidade de indivíduos superdotados, segundo o Relatório de Marland (3 a 5% da população) População total do país 210.147.125 de 6.304.414 a 10.507.356 Alunos da Educação Básica 47. 874.246 de 1.436.227 a 2.393.712 Fonte: IBGE (2020); INEP (2020) Em 2020, o Censo Escolar (INEP) informou a matrícula de 48.133 alunos superdotados na sala de aula regular referente ao ano de 2019, podendo-se inferir que, comparado à estimativa que o Quadro 2 apresenta, o número de alunos superdotados identificados está muito aquém do esperado. À vista disso, pode-se questionar: onde 32 estão os alunos superdotados e por que eles não estão sendo reconhecidos, no contexto escolar? Dentre os diversos fatores que possam estar afetando as fragilidades do contexto educacional perante esse público, tem sido apontada pela literatura a falta de conhecimento e preparo do professor, no campo das altas habilidades/superdotação (MAIA-PINTO; FLEITH, 2002; SILVA, 2018; RONDINI, 2019). Assim como, a necessidade de ampliarem a existência de centros de atendimento especializado, nacionais, almejando a oferta do suporte as famílias e profissionais, como educadores e equipes pedagógicas, em contato com o superdotado (ALVES, 2020). A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008, p. 5) reforça que “[...] o movimento mundial pela inclusão é uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação.” Para que isso ocorra, presume-se que o professor, como figura de referência para seus alunos, esteja apto a exercer a prática educativa condizente com os processos de desenvolvimento de cada faixa etária, garantindo o ensino dos conteúdos fundamentais para a formação do aluno (RECH; NEGRINI, 2019). No caso do aluno superdotado, a Resolução CNE/CBE n° 2, de 11 de setembro de 2001, que institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001, p. 2, grifos meus), assegura: Art. 8 As escolas da rede regular de ensino devem prever e prover na organização de suas classes comuns: I - professores das classes comuns e da educação especial capacitados e especializados, respectivamente, para o atendimento às necessidades educacionais dos alunos [...]. Observa-se, nessas diretrizes, a demanda da organização escolar para suprir as necessidades dos alunos, sendo papel da escola se organizar e garantir esse atendimento. Contudo, a demanda remete-se à responsabilidade de um sujeito indeterminado, sem maiores orientações de aplicação, por meio de protocolos vigentes. Discutindo essa problemática, Rondini, Martins e Medeiros (2021) realizaram um resgate histórico das diretrizes legais que aludem ao atendimento educacional para o aluno superdotado. As autoras evidenciaram a necessidade de transformar esses documentos legais em práticas, nas instituições de ensino, tendo em vista que, apesar do incentivo às práticas inclusivas, o enunciado deixa em aberto sua ocorrência, o que pode impactar na 33 descontinuidade da oferta de serviços ao aluno superdotado, a depender da instrução e/ou formação dos profissionais da Educação, em cada unidade das instituições públicas de ensino. Concordando com esse posicionamento, Wenzel e Dantas (2019) afirmaram que, delimitados os termos da legislação, os alunos com AH/SD estariam amparados; no entanto, as condições, na prática, não estão conforme exposto nos documentos, sendo ressaltado como justificativa direta a falta de informação aos profissionais da Educação. Percebe-se, portanto, que mesmo com o incentivo da legislação, a realidade nas salas de aula regular aparenta ser outra. Os professores, ao tratar dos alunos superdotados, por falta de conhecimento da temática, crenças equivocadas e/ou contexto não potencializador para o desenvolvimento do educando, podem estar considerando erroneamente o comportamento destes, em sala de aula. Por diversos fatores, o aluno superdotado pode estar se comportando de maneira que dificulte o seu reconhecimento, por parte do docente, como, por exemplo, ocultando seu potencial com o objetivo de se equiparar ao nível de seus colegas de sala, evitando assim o sentimento de exclusão social (SILVA, 2018; REIS; CONTER, 2020) ou manifestando rendimento abaixo do seu potencial, por conta de “[...] aulas monótonas, repetição de conteúdo, ritmo lento de pares, falta de expectativa do professor em relação ao estudante” (RONDINI, 2019, p. 85); por estar com receio ou já estar sofrendo bullying, por se destacar em alguma atividade proposta pelo professor (REIS; CONTER, 2020); ou, finalmente, por apresentar indisciplina e/ou tédio em sala de aula, já que as atividades não apresentam desafios (JOB, 2020), entre outros fatores. Um exemplo de caso que indica a importância do olhar sensível dos professores para as singularidades do aluno superdotado pode ser constatado na história de Anderson Ferreira Lemes, mais conhecido por Alemão Art – seu nome artístico. Alemão Art, superdotado criativo-produtivo e disléxico, era o típico aluno-problema para a maioria de seus professores, os quais não conseguiam perceber as AH/SD, por dois motivos: a dificuldade em notar comportamentos da superdotação que se desviem dos aspectos cognitivos – tipo acadêmico ou escolar (RENZULLI, 2004) – e porque Alemão Art apresentava uma dupla condição, representada pela habilidade superior em uma área (Artes Plásticas) e o déficit (deficiência ou dificuldade de aprendizagem), em outra – no caso dele, a dislexia, que mascarava sua habilidade excepcional em Artes Plásticas. Seu potencial foi percebido pelo professor de Artes, o qual, para além da área 34 de domínio análoga ao talento demonstrado, esteve sensível às singularidades de Alemão Art (RONDINI, 2020). Nessa perspectiva, além de reconhecer o comportamento superdotado e pensar em estratégias educacionais diversificadas, dentro ou fora da sala de aula regular, o professor também estaria em contato com os aspectos socioemocionais do aluno superdotado, seja na relação professor-aluno, seja mediando a interação do aluno com alguma variável do contexto escolar. A literatura aponta que lidar com as questões emocionais e sociais, no campo das AH/SD, tem sido um grande desafio, tanto para a escola como para a família (CAPELLINI; ARANTES-BRERO; OLIVEIRA, 2020). Com destaque para a relação professor-aluno, Novaes (1979) reflete sobre as vivências de desafios e conflitos que o professor experimenta, em contato com as AH/SD, já que esse aluno poderia apresentar comportamentos típicos, como ser curioso, instável, exigente, agressivo e, quando inseguro, se sentiria inferiorizado e perseguido. Logo, trabalhar com esses alunos exigiria um manejo acurado nas práticas educativas e não apenas um conhecimento teórico sobre a temática. Ainda conforme a autora, para lidar com esses alunos, o professor deveria rever suas relações interpessoais e ter uma boa compreensão do desenvolvimento infantil, como um todo – nas áreas cognitiva, emocional e social. Não há, todavia, a pretensão de dispor do discurso para o fracasso escolar, de forma dualista (professor-aluno), nem de depositar a culpa em algum indivíduo, entendendo que o processo se dá através de uma construção histórico-cultural. Logo, a proposta é de apontar a existência dessas fragilidades, para serem vistas e solucionadas. Para elucidar essa temática, Correia (2016) efetuou um estudo, com o objetivo de discutir a percepção do professor com respeito aos alunos identificados com AH/SD. Para isso, foram entrevistados sete professores, tendo como critério que estes tivessem, em suas salas de aula, alunos com altas habilidades/superdotação e possuíssem experiência mínima de três anos de atuação. Dentre os resultados encontrados, apontam- se: i) a presença de preconceitos relacionados a esses alunos, atribuídos por meio dos mitos encontrados na sociedade, no que tange às AH/SD; ii) o receio de receber o aluno superdotado em sua sala de aula, sentindo-se incapazes de serem professores desse público, ao comparar os domínios de conhecimento entre professor e aluno superdotado; iii) a oferta de ensino homogêneo a todos os alunos, justificando que, no oferecimento de um ensino diferencial ao superdotado, os professores estariam 35 excluindo os demais alunos e, por fim, iv) o desinteresse pelo processo de inclusão do aluno superdotado. Já o estudo de Wechsler e Suarez (2016) considerou a percepção de 170 graduandos em cursos de Licenciatura e Pedagogia sobre altas habilidades/superdotação. Foram realçadas a confusão sobre a definição do termo de superdotação e a insegurança de como proceder com alunos superdotados, visto que, durante a graduação, a abordagem da temática foi superficial ou não mencionada, apesar de acreditarem ser o papel da escola atender o aluno superdotado. Além do atendimento educacional, o contexto escolar também pode ser um grande aliado na identificação do público-alvo da Educação Especial, tendo como foco, os alunos superdotados. Para auxiliar no processo de reconhecimento dos alunos com AH/SD, Silva (2018) destaca instrumentos nacionais que podem ser utilizados e respondidos pelos professores, como questionários, listas, escalas, desenvolvidos por diversos estudos, segundo se observa no Quadro 3. Quadro 3 – Instrumentos para rastreio das Altas Habilidades/Superdotação Instrumentos Autores Autonomeação e nomeação por colegas, desenvolvido para ser usado como triagem para o processo de identificação Renzulli e Reis (1997) Lista-Base de Indicadores de Superdotação - Parâmetros para Observação de Alunos em Sala de Aula Delou (2001) Lista de Observação em sala de aula Guenther (2006) Ficha Complementar de Características Artísticas e Esportivas ABSDRS1 (2001) Ficha Complementar de Características Artísticas e Esportivas (FCCAE) Pérez (2009) Escala para Avaliação das Características Comportamentais de Alunos com Habilidades Superiores – Revisada Renzulli et al. (2013) Lista de Verificação de Indicadores de Altas Habilidades/Superdotação para Educação Infantil (LIVIAHSD-EI), para professor regente ou professor de disciplina (LIVIAHSD), para professor de educação artística (LIVIAHSD-AA) e para professor de Educação Física (LIVIAHSD-ACC) – estes três últimos para o Ensino Fundamental, Médio e Superior Pérez e Freitas (2016) Questionário de Identificação de Indicadores de AH/SD para os Responsáveis de alunos da Educação Infantil (QIIAHSD-R-EI), para professores da Educação Infantil (QIIAHSD- Pr-EI), para alunos do ensino fundamental e médio (QIIAHSD-A), para responsáveis dos alunos do ensino fundamental e médio (QIIAHSD-R), para professores do ensino fundamental, médio e superior (QIIAHSD-Pr) e para adultos (QIIAHSD-Adultos) Pérez e Freitas (2016) Questionário Complementar de Características Artísticas e Esportivas (QCCAE) Pérez e Freitas (2016) TIAH/S: Triagem de Indicadores de Altas Habilidades/Superdotação Nakano (2021) Fonte: Elaborado pela autora, a partir dos dados informados no estudo de Silva (2018, p. 37) e Nakano 1 A sigla ABSDRS faz referência à Associação Brasileira para Superdotados – Seção Rio Grande do Sul (RS). 36 (2021). Por conseguinte, evidencia-se que, para além dos possíveis indicadores do comportamento superdotado que o professor pode reconhecer, em sala de aula, através de sua relação diária, há também diversos instrumentos que poderiam auxiliá-lo nessa trajetória. Todavia, o fato de existirem vários instrumentos (validados ou não para o contexto brasileiro) não constitui a solução do problema da invisibilidade do aluno superdotado e de seu atendimento, pois, para ser detectado um indício de alteração, nesse cenário, seria necessário que os professores tivessem conhecimento de tais instrumentos, de seu uso e análise, além de posterior entendimento de como traduzir os resultados de tais instrumentos em atividades/serviços educacionais especializados. Validando o exposto, Virgolim (2007) comenta a relevância de treinar apropriadamente o professor para a identificação precisa desses alunos, através da explicação dos pormenores envolvidos nos processos de identificação, finalidades dos programas ofertados e procedimentos empregados. Tendo isso em mente, indica-se a necessidade de desmistificar o campo das AH/SD, principalmente entre os profissionais da Educação, visando a ofertar ao aluno um ambiente saudável, no qual seja possível o desenvolvimento da sua educação, conforme o potencial de cada um (REIS; CONTER, 2020). As autoras também apontaram o benefício da identificação desse público, com a finalidade de abordar aspectos socioemocionais e os possíveis impactos negativos, como o bullying, o qual pode atrapalhar suas atividades escolares. Logo, argumenta-se sobre a necessidade do conhecimento atinente às AH/SD entre os professores, problematizando-se o espaço de debate de um tema transversal no currículo da formação docente. A FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE NO CAMPO DAS ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO: AVANÇOS E FRAGILIDADES Abordar a formação docente é uma proposta complexa e desafiadora, que envolve o atravessamento de conceitos e opiniões divergentes, como o que se entende por formação docente, quais são as competências do professor e o que se concebe por educação, entre muitas outras indagações. 37 Muito se discute sobre os desafios do sistema educacional diante das expectativas e exigências postas sobre este, sobretudo na figura do professor (TARDIF, 2001). A educação e a profissão docente são atravessadas pela evolução acelerada da sociedade, por meio de mudanças empregadas pela comunidade social, no conhecimento científico e na cultura (IMBERNÓN, 2011). Ao compreender a escola em suas multiplicidades, é essencial destacar os aspectos sociais, culturais e históricos sobre os quais esta se assenta. Ou seja, é inviável fragmentar as práticas educativas do professor, como se este trabalhasse sozinho no sistema educacional, sem receber influências do seu contexto. As práticas educativas são mediadas por diversos agentes, como família, escola, grupos em comum, meios de comunicação, organizações religiosas, entre outros (COLL; SOLÉ, 2004). Contudo, é característica da escolarização a educação planejada e o fato de o professor trabalhar sobre e com a formação humana (TARDIF; LESSARD, 2008). Ao se tratar de práticas educativas, faz-se necessário descrever o que se entende por educação. Libâneo (2010, p. 26) aponta a multiplicidade da educação, através do seguinte trecho: Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. Compreendendo a dinâmica intensa entre o processo de ensino e aprendizagem, em ambientes formais ou informais, a educação é tida como conjunto de atividades e processos interventivos voltados ao desenvolvimento humano, determinada por um contexto de relações sociais (LIBÂNEO, 2010). Corroborando o aspecto formativo da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) postula, no Art. 1 que: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” (BRASIL, 1996/2017, p. 8). Verifica-se, pois, que a educação tem seus objetivos voltados para a formação humana, através de práticas educativas que auxiliem o professor em sua tarefa fundamental de ensinar e aprender (IMBERNÓN, 2016). Freire (1996) assevera que, apesar das expectativas postas na educação, referente à transformação da sociedade, esta 38 deve estar ciente de que não é uma força imbatível e com capacidade de mudar tudo, no entanto, ela também não é uma simples reprodutora de ideologias. Ou seja, os educadores são indivíduos que podem pensar com criticidade e demonstrar a possibilidade da mudança. Ainda citando Freire (1996), reconhece-se a necessidade de que os profissionais da educação compreendam o processo educativo, através de uma formação permanente, porque sua prática se direciona a mudanças; desse modo, o trabalho docente é um trabalho de inconclusão e uma tarefa político-pedagógica, ainda mais no cenário atual, repleto de mudanças rápidas e diversas. Posto isso, a formação dos profissionais da educação é um dos principais desafios, na atualidade, para os sistemas educacionais, já que ela influi diretamente na efetividade da educação para uma sala de aula cada vez mais diversificada (RODRIGUES, 2017). Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no Art. 62 (BRASIL, 1996/2017, p. 46), a “[...] formação docente para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação [...]”, fornecendo conhecimentos básicos para a gestão da sala de aula, pela capacidade de mesclar teoria e prática (CORREIA, 2016). Relacionadas ao trabalho docente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior (BRASIL, 2015) ressaltam, no Art. 2, a docência como atividade educativa e processos educativos intencionais, os quais envolvem conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos. Para não correr o risco de reduzir o fenômeno educativo às práticas predominantemente cognitivas, salienta-se a necessidade de o professor ensinar também habilidades sociais e pessoais, além das ditas acadêmicas (CARRARA, 2004), o que corrobora o apontado por Capellini, Arantes-Brero e Oliveira (2020), quanto às características socioemocionais de alunos superdotados, no contexto escolar, destacando a importância do olhar sensível do professor ao aluno e os impactos das dimensões afetivas e sociais para o desenvolvimento desse aluno. Referente às competências do docente, Perrenoud (2000, p. 14) arrola 10 categorias: 1) organizar e dirigir situações de aprendizagem; 2) administrar a progressão das aprendizagens; 3) conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; 4) envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho; 5) trabalhar em equipe; 6) participar da administração da escola; 7) 39 informar e envolver os pais; 8) utilizar novas tecnologias; 9) enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão e; 10) administrar sua própria formação contínua. Apesar de esboçar aqui um referencial direcionado às competências do professor, vale ressaltar que essas características são mutáveis, contextuais e não consensuais. A título de mencionar outras definições referentes ao trabalho docente, destacam-se os apontamentos de Tardif e Lessard (2008) e Zabala (1998). Tardif e Lessard indicam como principal tarefa do professor “[...] o ensino, vigilância, atividades de recuperação e participação na organização de atividades estudantis” (TARDIF; LESSARD, 2008, p. 158, grifo meu), enquanto Zabala (1998, p. 92-93) assinala como funções do docente, voltadas para relações interativas que facilitem a aprendizagem, determinadas características, como planejar e permitir adaptações conforme as necessidades dos alunos, auxiliar na busca de sentido para o que está realizando, dispor de metas para os alunos, assegurar um ambiente de respeito recíproco e promoção de autoestima, entre outras. O objetivo de trazer esses conceitos de diferentes figuras teóricas foi problematizar a figura controversa do professor idealizado na literatura. Destacando, inicialmente, o trecho apresentado por Tardif e Lessard (2008, p. 158), há a menção do termo “vigilância” referente às principais tarefas do professor, o que pode promover a reflexão de para onde estão sendo encaminhadas as expectativas do trabalho docente e qual seria a função da “vigilância”, no contexto escolar. Complementar ao exposto, Imbernón (2016, p. 119) pontua sobre o professor idealizado pela literatura e legislação quase como um “superprofessor”, que medeia a aprendizagem, é especialista e autônomo, apresenta pensamento crítico e atende à diversidade, soluciona conflitos, trabalha com a comunidade, entre outros múltiplos aspectos. Essas expectativas sobre o profissional da educação e os alcances da formação docente inicial estão longe de ser realidade, nas escolas. A literatura aponta que, no que tange ao professor iniciante, sua prática educativa tem sido pautada mais nas experiências do trabalho, reprodução de como foi ensinado (em geral, em um formato instrutivo), tecnicismo sem fundamento e recomendações de professores mais “experientes” (TARDIF, 2014). Esses dados indicam a possibilidade de que as 40 competências creditadas ao docente pela literatura e legislação não são compatíveis com sua formação docente inicial. Para lidar com os desafios encontrados na prática e as expectativas referentes à sua competência profissional, os docentes acabam utilizando saberes formulados na prática, chamados de saberes experienciais. O conceito de saberes do docente foi proposto por Tardif (2014), compreendendo-os através de uma prática integral e plural que o professor possa ter adquirido, nas diversas modalidades de formação; em outras palavras, o conceito de saberes docentes não se resume apenas à transmissão de conhecimentos. Os saberes docentes foram classificados em quatro categorias: disciplinares, curriculares, profissionais e experienciais, resumidas e apresentadas no Quadro 4. Quadro 4 – Os quatro saberes docentes, segundo Tardif. Profissionais Transmitidos pelas instituições formativas de professores (ciências da educação e saberes pedagógicos) Disciplinares Selecionados pela instituição universitária, em forma de disciplinas das faculdades e cursos diversos. Curriculares Modelos da cultura clássica, correspondendo aos discursos, conteúdos, métodos e objetivos. Identificados através dos programas escolares que os professores são orientados a aplicar. Experienciais ou Práticos Oriundos da própria prática desses professores, baseados no trabalho cotidiano. Fonte: Tardif (2014, p. 36-39) Como pode ser observado no Quadro 4, os saberes são compostos por categorias derivadas de fontes diversas. Tardif alude ao perfil do professor que transita entre esses saberes, no seguinte trecho: [...] o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (2014, p. 39). A prática educativa deve ser compreendida como atividade orientada para suas finalidades, permeada de sentido e significado, que mobilizem os saberes docentes para determinado fim (SAMPAIO, 2016). Logo, a atuação do professor pressupõe uma formação docente coerente, a qual garanta uma prática baseada em teorias e tecnologias de ensino efetivas para sua realidade. A formação docente inicial deveria promover aptidão para o docente atuar frente à promoção da aprendizagem e desenvolvimento dos indivíduos, nas diversas etapas do 41 desenvolvimento e modalidades da Educação Básica, além de denotar consciência e respeito para aspectos da diversidade – sejam estes étnico-raciais, de gêneros, necessidades educacionais especiais, diversidade sexual, classes sociais, entre outros (BRASIL, 2015). Tendo em conta que o professor é uma das figuras mais importantes para uma inclusão saudável do aluno superdotado e para que aquele possa identificar e formular uma atuação educativa condizente com a demanda deste, é importante que o professor se sinta capacitado de recursos teóricos e práticos, considerando que esse conhecimento se efetue na formação docente. No entanto, destaca-se a dificuldade de abordar a temática das altas habilidades/superdotação, na formação inicial, ficando a cargo do profissional buscar conhecimento através da formação continuada por escolha própria ou por necessidade, ao encontrar tais alunos, em sala de aula (OLIVEIRA, 2018). Esses dados divergem do previsto na Resolução CNE/CP n°1/2002 (BRASIL, 2002), que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica e determina que as instituições de ensino superior devem abordar, no currículo da formação do professor, conhecimentos voltados para a diversidade, ao aluno com necessidades educacionais especiais. Contudo, a literatura nacional vem apontando, por meio de alguns estudos, a inexistência da temática das AH/SD nos currículos da educação superior, ou uma existência superficial e por vezes temporária – mediante o interesse do professor universitário em questão. A seguir, estão expostos alguns desses estudos. Rondini (2019) investigou o conhecimento das AH/SD entre alunos de licenciaturas em Pedagogia e Psicologia, de uma universidade pública do Estado de São Paulo, que passaram por um curso referente à temática pesquisada. Para isso, foi aplicado, em 49 alunos um questionário com questões fechadas, no início do curso. Dentre os resultados encontrados, evidenciam-se: i) a presença de idealizações sobre o perfil de alunos com AH/SD; ii) a identificação com predominância nas habilidades acadêmicas (intelectuais); iii) 61,2% da amostra apontaram que os educadores não teriam facilidade em perceber um aluno como habilidade intelectual acima da média; enquanto iv) 57,1% afirmaram que a superdotação é um fenômeno raro. O estudo de Souza e Rangni (2019), com a finalidade de verificar e analisar o conhecimento de 118 graduandos em Pedagogia, em relação à temática de dotação e 42 talento, efetuou uma pesquisa em três Institutos de Ensino Superior – uma universidade federal, uma universidade estadual e uma faculdade particular. Foram identificadas semelhanças na formação proposta pelos três Institutos, no referente à temática pesquisada, sendo destacada pela maioria dos graduandos a insuficiência do conhecimento passado (mesmo nas disciplinas relativas à Educação Especial) e o sentimento de despreparo para atender os alunos superdotados, com uma representatividade de 78% dos graduandos, nessa última afirmativa. Tais resultados culminam na conclusão da não efetivação das propostas das políticas e práticas para uma educação inclusiva. Rech e Negrini (2019) buscaram problematizar a formação de professores para atuar na educação inclusiva, tendo como foco os alunos superdotados. No estudo, foram entrevistados 12 professores dos anos finais do Ensino Fundamental de uma escola pública estadual do Rio Grande do Sul. Os resultados indicaram uma formação docente inicial e/ou continuada fragilizada, considerando o sentimento de despreparo para planejar práticas educativas inclusivas dos professores. Martins, Chacon e Almeida (2020) realizaram um estudo comparativo entre a formação de professores brasileiros e portugueses, em duas universidades públicas, buscando investigar o conhecimento de alunos sobre as AH/SD. Para tanto, entrevistaram-se seis alunos graduados ou cursando o último período – sendo três da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Brasil, Campus de Marília) e três da Universidade do Minho (UMinho/Portugal, Campus de Gualtar). Nos resultados, ao destacar os dados em AH/SD nas grades curriculares e conhecimentos adquiridos pelos alunos, os autores apontam que: i) a temática estava presente em ambas as universidades, como componente curricular; ii) havia um docente envolvido em AH/SD, em cada universidade; iii) delimitado à graduação, apenas no Brasil, o docente ministrava disciplinas e projetos de extensão voltados para a formação inicial, tendo em vista que o docente de Portugal orientava pesquisas em nível de pós-graduação stricto sensu (mestrado, doutorado e pós-doutorado); iv) no ensino das AH/SD para os graduandos, no Brasil, o docente aborda a temática de forma transversal, em todas as disciplinas ministradas, enquanto o docente de Portugal a aborda superficialmente, privilegiando aspectos das deficiências. Wechsler e Suarez (2016) corroboram o exposto, ao asseverarem que os alunos universitários de Pedagogia e licenciaturas (Letras, Educação Artística e História) não 43 estão preparados para reconhecer e atuar com alunos superdotados, frisando que os cursos de formação, por vezes, oferecem uma única disciplina referente à Educação Especial, de forma reduzida (um capítulo ou uma semana de palestras), sendo necessário ampliar os espaços de reflexão e aperfeiçoamento dos professores. Essa amostra de estudos sugere a predominância da discussão da problemática ressaltada nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, com uma menção superficial e não tão específica em outras regiões, como Nordeste, Norte e Centro-Oeste, ao assinalarem conceitos mais amplos, como “Educação Especial” e/ou “Educação Inclusiva”, destacando os seguintes trabalhos como exemplo amostral: Kranz e Gomes (2016), Costa (2020) e Darub, Soares e Santos (2020). Com os apontamentos dos estudos anteriores sobre a insuficiência da menção das AH/SD em formações docentes iniciais, no Sul e Sudeste, ou a falta de pesquisas que discutam essa problemática, de forma aprofundada, em outras regiões brasileiras, faz-se jus à consideração dessa questão como um problema nacional e não apenas local. Esses elementos fomentam a discussão sobre o alcance da diversidade e da inclusão em sala de aula regular, nos cursos de formação docente. Perrenoud (2002) reforça a necessidade de os currículos da formação docente inicial serem repensados, propondo formações que não apenas misturem vagas reflexões sobre conceitos abstratos, mas tragam coerência e saberes transversais, como, por exemplo, diversidade das culturas na sala de aula, gestão de classe, ensino especializado e integração de crianças com necessidades educacionais diferentes (incluindo os superdotados), entre outros aspectos. Em suma, é importante reconhecer os avanços da legislação como garantia dos direitos da educação do superdotado, todavia, faz-se necessário expandirmos esses ideais para a realidade escolar, tendo em vista que a formação docente continuada pode auxiliar na disseminação de informações confiáveis, desfazer crenças equivocadas e gerar reflexões sobre a prática educativa para a diversidade (ANTIPOFF; CAMPOS, 2010; RECH; NEGRINI, 2019). RESGATANDO SABERES: A CONTRIBUIÇÃO DA FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA Pela falta de aprofundamento ou menção das altas habilidades/superdotação, na formação inicial, a formação docente continuada se encarrega da abordagem desses 44 conteúdos. Segundo Soares e Chacon (2016), a formação continuada deveria oferecer conhecimento conceitual, teórico e prático que possam ser utilizados pela escola. Os autores ainda comentam sobre a necessidade do investimento nessa formação, para o melhor preparo do professor, no processo de inclusão, pensando nos aspectos de identificação, práticas educativas e recursos disponíveis. A formação continuada, no Brasil, é compreendida em uma variedade de estruturas, desde os cursos formais e posteriores à formação inicial a atividades que contribuam para o desenvolvimento profissional, como aula de trabalho pedagógico coletivo (ATPC), congressos, reuniões pedagógicas, contribuições na troca cotidiana com os colegas e/ou gestores, entre outras (GATTI, 2008). A Resolução n° 2, de 1° de julho de 2015, a qual define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para formação continuada (BRASIL, 2015), focaliza, no Art. 16 e no Art. 17, as características da formação continuada e instrui sobre suas modalidades, como registrado a seguir: Art. 16. A formação continuada compreende dimensões coletivas, organizacionais e profissionais, bem como o repensar do processo pedagógico, dos saberes e valores, e envolve atividades de extensão, grupos de estudos, reuniões pedagógicas, cursos, programas e ações para além da formação mínima exigida ao exercício do magistério na educação básica, tendo como principal finalidade a reflexão sobre a prática educacional e a busca de aperfeiçoamento técnico, pedagógico, ético e político do profissional docente. (p. 13). Art. 17. [...] atividades formativas e cursos de atualização, extensão, aperfeiçoamento, especialização, mestrado e doutorado que agreguem novos saberes e práticas, articulados às políticas e gestão da educação, à área de atuação do profissional e às instituições de educação básica, em suas diferentes etapas e modalidades da educação. (p. 14). Nesse âmbito, a formação continuada no contexto escolar é um processo formativo, ligado aos desafios com que o contexto escolar se depara e mobilizando os profissionais da educação em busca de fundamentação e propostas de aperfeiçoamento que visam à aprendizagem dos alunos (ANDRÉ; PASSOS, 2019). E, apesar de essa formação ser apontada como um meio para lidar com as lacunas da formação docente inicial, a formação continuada não deve ser limitada a essa definição (FRANCO, 2019; SOARES, 2019). Propondo uma contextualização entre a formação docente continuada e o atendimento aos alunos superdotados, verifica-se que a história é marcada por 45 desencontros. Ressaltada com escassez, no Brasil, a pesquisa científica no campo das AH/SD delimita seu olhar para a educação dos indivíduos superdotados, desde 1920/1930 (BAHIENSE; ROSSETTI, 2014). Relacionado ao atendimento voltado aos superdotados, destaca-se o nome de Helena Antipoff, considerada pioneira da educação especial no Brasil e também envolvida em iniciativas brasileiras direcionadas para a assistência ao superdotado (NOVAES, 1979). Ela nomeou os alunos que apresentassem potencialidades superiores de “bem-dotados” e, no início de 1945, passou a reunir pequenos grupos desses alunos, para estudar literatura, teatro e música (ALENCAR, 1993). Todavia, a formação docente, no âmbito da Educação Especial, passa a tomar forma em meados de 1960/1970, com sua integração aos cursos de Pedagogia e a criação de habilitações específicas vinculadas a alguma deficiência (GARCIA, 2013). Atrelada a esse contexto, a formação continuada, na década de 1970, era compreendida através da proposição “forme-se onde puder e como puder” (IMBERNÓN, 2010, p. 16). O autor ainda cita que foi nessa época que grande parte dos países latinos passou a analisar a formação continuada e a participação dos professores nesses programas formativos. A década de 60 também é marco para as AH/SD, as quais passam indiretamente a serem vistas pela política educacional brasileira, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, com uma singela menção sobre o direito à educação conferida aos “excepcionais” (PÉREZ; FREITAS, 2009). Em 1971, ocorreu o Primeiro Seminário Nacional sobre o Superdotado, na Universidade de Brasília. Nele, ressaltaram-se algumas ações a serem empreendidas no Brasil, como identificar precocemente o superdotado, organizar programas educacionais especiais para este e preparar o pessoal que realizaria o atendimento ao público das AH/SD (ALENCAR, 1993). No final da década de 1980 e início da década de 1990, a Educação Especial toma força, através da garantia da educação ao público com necessidades educacionais especiais, de forma preferencial na rede regular de ensino, a partir da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988), do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), da Declaração Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990), da Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994a), da Política Nacional de Educação Especial 46 (BRASIL, 1994b) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996/2017). Apesar de a legislação assegurar a inclusão dos alunos público-alvo da Educação Especial na sala de aula regular, faz-se importante enfatizar como exemplo e crítica à Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994b). Esse documento é apontado como precursor em explicitar o aluno superdotado como “Pessoa Portadora de Necessidades Especiais” (PÉREZ; FREITAS, 2009). No entanto, ele também delimitava a “inclusão” ao conceito de integração. Ou seja, eram integrados na sala de aula regular aqueles que apresentassem condições de acompanhar o ritmo dos alunos “normais”, destacando o documento que a integração era um processo dinâmico, com vistas de legitimar a “[...] interação nos grupos sociais.” (BRASIL, 1994b, p. 18). Os impactos dessa perspectiva que iguala os conceitos de “inclusão” e “integração” ainda são presentes na atualidade, por relatos que resumem a inclusão da Educação Especial com fins na interação social, sem levar em conta práticas educativas que promovam a potencialidade singular de cada aluno. Nesse contexto histórico, caracterizado por garantias e conceitos complexos e/ou “ambíguos” para a Educação Especial, a formação continuada do professor, em 1980, introduzia um paradigma tecnicista atrelado às competências necessárias para o alcance das propostas postas ao sistema educacional. Com a chegada dos anos 2000, novos conceitos são incluídos na formação docente, como construção coletiva (agentes educativos e comunidade), redes de formação, prática reflexiva, busca de novas alternativas, entre outros (IMBERNÓN, 2010). A partir de 2000, considera-se um contexto de ganhos também para o público das AH/SD, por conta das Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), da inclusão do aluno superdotado em todas as etapas e modalidades da educação, por meio da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) e também da implantação dos Núcleos de atividades de altas habilidades/superdotação (NAAH/S), em 2005 (PÉREZ; FREITAS, 2009). Corroborando esse pensamento para uma educação inclusiva, Franco (2017, p. 965) explicita: A condição pedagógica preconiza a inclusão e o acolhimento de todos os alunos, independentemente de suas especificidades físicas, intelectuais, sociais, afetivas. Afinal, somos todos únicos, portanto, sempre diferentes entre nós. Como nascemos todos inacabados estamos continuamente 47 caminhando em movimentos de vida e formação, em permanente processo de incorporação de novos acolhimentos e de novas inclusões. Em outras palavras, a educação é tida como um espaço que contempla por si só a inclusão, visto que, em algum aspecto, todos somos diferentes, portanto singulares, para além do públi