Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 Dinâmica populacional de Dinâmica populacional de Dinâmica populacional de Dinâmica populacional de Characidium lauroi Characidium lauroi Characidium lauroi Characidium lauroi e e e e C. alipioiC. alipioiC. alipioiC. alipioi (Teleostei, (Teleostei, (Teleostei, (Teleostei, Crenuchidae) na microbacia do Ribeirão Grande, serra da Crenuchidae) na microbacia do Ribeirão Grande, serra da Crenuchidae) na microbacia do Ribeirão Grande, serra da Crenuchidae) na microbacia do Ribeirão Grande, serra da Mantiqueira Mantiqueira Mantiqueira Mantiqueira OOOOrientalrientalrientalriental, Estado de São Paulo, Estado de São Paulo, Estado de São Paulo, Estado de São Paulo Francisco Manoel de Souza Braga1*, Ursulla Pereira Souza2 e Alberto Luciano Carmassi2 1Departamento de Zoologia, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista, Cx. Postal 199, 13506-900, Rio Claro, São Paulo, Brasil. 2Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo, Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: fmsbraga@rc.unesp.br RESUMO. Em riachos de pequena ordem, o alto e variável fluxo de água oferece tanto vantagens como desvantagens para o ciclo de vida de peixes. Mesmo espécies próximas que vivem em habitats semelhantes podem apresentar diferenças em seus padrões de ciclo de vida. Com base na distribuição de tamanho de ovócitos, C. lauroi foi classificada no tipo de desova parcelada, e C. alipioi no tipo de desova total. A fecundidade absoluta de C. lauroi variou de 1.313 a 2.925 ovócitos; em C. alipioi, a fecundidade absoluta variou de 2.213 a 25.550 ovócitos. A prova não-paramétrica de correlação de Spearman mostrou haver significância entre a relação gonadossomática e a fecundidade para ambas as espécies. Os parâmetros de crescimento, a taxa de mortalidade natural e a taxa de sobrevivência para fêmeas de C. lauroi foram: K = 0,68 ano-1, Loo = 8,7 cm, tmax = 4,4 anos, M = 1,62 ano-1, S = 19,79%, e para machos: K = 0,78 ano-1, Loo = 6,9 cm, tmax = 3,8 anos, M = 1,89 ano-1, S = 15,11%. Os parâmetros de crescimento, a taxa de mortalidade natural e a taxa de sobrevivência para fêmeas de C. alipioi foram: K = 0,90 ano-1, Loo = 12,2 cm, tmax = 3,3 anos, M = 1,81 ano-1, S = 16,37%, e para machos: K = 0,76 ano-1, Loo = 10,1 cm, tmax = 3,9 anos, M = 1,71 ano-1, S = 18,10%. Palavras-chave: fecundidade, desova, crescimento, mortalidade, Characidium lauroi, Characidium alipioi. ABSTRACT. Population dynamics of Characidium lauroi and C. alipioi (Teleostei, Crenuchidae) in the Ribeirão Grande microbasin, eastern Serra da Mantiqueira, São Paulo State. In low-order streams, the high and variable water flow rates offer both advantages and disadvantages to the life cycle of fishes. Even closely related species living in similar habitats can show differences in life history patterns. Based on oocyte-size distributions, C. lauroi was classified into the fractional spawning type, and C. alipioi into the total spawning type. The absolute fecundity of C. lauroi ranged from 1,313 to 2,925 oocytes; in C. alipioi the absolute fecundity ranged from 2,213 to 25,550 oocytes. The nonparametric Spearman correlation test showed statistical significance between the gonadosomatic index and fecundity for both species. The growth parameters, natural mortality rate and survival rate for females of C. lauroi were: K = 0.68 yr-1, Loo = 8.7 cm, tmax = 4.4 years, M = 1.62 yr-1, S = 19.79%, and for males: K = 0.78 yr-1, Loo = 6.9 cm, tmax = 3.8 years, M = 1.89 yr-1, S = 15.11%. The growth parameters, natural mortality rate and survival rate for females of C. alipioi were: K = 0.90 yr-1, Loo= 12.2 cm, tmax = 3.3 years, M = 1.81 yr-1, S = 16.37%, and for males: K = 0.76 yr-1, Loo = 10.1 cm, tmax = 3.9 years, M = 1.71 yr-1, S = 18.10%. Key words: fecundity, spawning, growth, mortality, Characidium lauroi, Characidium alipioi. IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução O espaço geográfico formado pelas vertentes da serra da Mantiqueira oriental, voltadas para o Vale do Paraíba, ainda preserva áreas da vegetação nativa da porção interiorana da Mata Atlântica. O relevo tem passado, desde o fim do Pleistoceno até o início do Holoceno, por uma ação modeladora nas encostas, formando cristas que delimitam vales (Modenesi-Gauttieri et al., 2002), por onde descem inúmeros riachos que seguem ao encontro do rio Paraíba do Sul. Esses riachos formam sistemas delimitados pelas cristas das encostas, constituindo microbacias, das quais a do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo, é uma delas (Braga, 2004; Braga e Andrade, 2005). Os riachos que formam a microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo (22o47’08’’ S, 45o28’17’’ W), 282 Braga et al. Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 principalmente na encosta, são estreitos, torrentosos e caracteristicamente oligotróficos. Embora sendo ambientes oligotróficos e frágeis, por estarem em íntima dependência com a cobertura florestal e serem limitados, sustentam várias espécies de peixes que se alimentam de perifiton e de organismos bentônicos, como larvas e ninfas de insetos (Andrade, 2004). Braga e Andrade (2005) relacionaram 37 espécies de peixes na microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo, sendo que, destas, 20 desenvolvem adaptações a esses ambientes (Braga, 2004). Characidium lauroi e C. alipioi são as espécies mais abundantes, distribuindo-se de maneira parapátrica neste sistema; C. lauroi encontra-se em riachos da encosta até o pediplano, e C. alipioi do pediplano até a planície do Vale do Paraíba, Estado de São Paulo (Braga e Andrade, 2005). São espécies de pequeno porte, estando bem adaptadas a esse ambiente (Braga, 2004). A dinâmica de uma população de peixe resume- se em nascimento, crescimento e morte: a reprodução compensa a perda por mortalidade e o crescimento controla as taxas de reprodução e mortalidade na população (Nikolsky, 1969). Toda espécie está adaptada a certa taxa de mortalidade, espécies de ciclo de vida curto maturam precocemente e estão adaptadas a uma alta e variável taxa de mortalidade. Ainda são poucos os estudos sobre populações de peixes em riachos no Brasil, que contemplem certo número de espécies e abordem aspectos dinâmicos como a interação entre reprodução, crescimento e mortalidade. Embora existam modelos matemáticos e estudos experimentais de modelagem, eles necessitam de parâmetros difíceis de serem obtidos para populações de peixes tropicais (Mazzoni e Iglesias-Rios, 2002). Neste trabalho, procurou-se estabelecer a dinâmica populacional de Characidium lauroi e C. alipioi na microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo, analisando os parâmetros de fecundidade, crescimento e mortalidade. Material e métodosMaterial e métodosMaterial e métodosMaterial e métodos Os peixes foram coletados em riachos da microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo, segundo a metodologia descrita em Braga e Andrade (2005). Os exemplares coletados foram fixados em formol a 10% e levados para o laboratório. No laboratório, os peixes foram transferidos para álcool a 70%, sendo as espécies Characidium lauroi e C. alipioi separadas das outras. De cada exemplar, foi obtido o comprimento total em centímetros, o peso total em gramas, sexo, e estádio de maturidade gonadal, definido segundo Vazzoler (1996). As fêmeas no estádio C (maduro) tinham os ovários retirados, pesados e inicialmente mantidos em álcool a 70% para depois serem transferidos para a solução dissociadora de Gilson. Depois de mantidos por algumas semanas em solução de Gilson, os ovócitos foram dissociados do epitélio ovariano por agitação dos frascos, lavados em álcool a 70% por cinco vezes, para retirada da solução de Gilson, limpos, com a retirada do epitélio ovariano e estocados em álcool a 70%. Os procedimentos seguintes foram o de homogeneizar cada massa de ovócito em um frasco com volume conhecido de álcool a 70% e feita uma amostra da suspensão (ovócito e álcool) com uma pipeta Stempel de volume fixo (= 2 mL). A suspensão foi despejada em uma placa com fundo reticulado para fazer a contagem de todos os ovócitos. Este procedimento foi repetido mais duas vezes para obter o valor mediano nas três contagens. Adicionalmente, foi medido um total de 100 ovócitos, considerando-se o maior comprimento da célula. O procedimento completo foi conduzido em estereomicroscópio com aumento de 16 vezes e utilizando-se uma ocular micrométrica de aumento de 10 vezes. As medidas foram obtidas em unidades de divisão da ocular micrométrica (1 d.o.m. = 61,2 µm). Dos ovários processados, foi obtida, para cada espécie, uma distribuição de freqüência dos diâmetros de ovócitos. A estimativa da fecundidade absoluta de cada indivíduo foi feita segundo Vazzoler (1996) e modificado, a partir do método volumétrico, segundo a expressão: F = (S x N) s-1, sendo F a fecundidade absoluta; S, o volume de álcool utilizado na suspensão de ovócitos; N, o número total de ovócitos na amostra pipetada; e s, o volume da pipeta (s = 2 mL). A estimativa da fecundidade relativa procedeu-se dividindo o valor da fecundidade absoluta pelo comprimento total do peixe. A fecundidade populacional foi estimada, correlacionando a fecundidade absoluta de cada fêmea com o seu respectivo comprimento total (Vazzoler, 1982), utilizando-se da equação alométrica y = axb, sendo y a fecundidade, x o comprimento total, a e b constantes estimadas pelo método dos mínimos quadrados, após transformação logarítmica dos dados. Como a fecundidade em peixes pode variar bastante para um mesmo comprimento, diminuindo o valor da correlação, calculou-se uma regressão funcional ou geométrica (Ricker, 1975 e 1979). Dos peixes cujos ovários foram processados, foi obtida a relação gonadossomática por meio da Dinâmica populacional de Characidium spp. 283 Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 expressão RGS = (Po/Pt) x 100, sendo Po o peso do ovário e Pt o peso do peixe (Vazzoler, 1996). Aplicou-se uma correlação de classes de Spearman para verificar a correspondência entre a fecundidade e a relação gonadossomática (Siegel, 1975). A estimativa dos parâmetros de crescimento, taxa de crescimento K e comprimento assintótico Loo, foi obtida por meio do programa FISAT (FAO- ICLARM Stock Assessment Tools), onde está inserida a rotina ELEFAN (Electronic lengths Frequency analysis), que permite a estimativa desses parâmetros por meio de dados de freqüências de comprimentos (Gayanillo et al., 1994). Esses parâmetros foram estimados para as duas espécies, considerando-se sexos separados, mediante a reestruturação das freqüências de comprimento e o ajuste de uma curva de crescimento que melhor se adeqüe às coortes (Sparre e Venema, 1997). A estimativa da taxa instantânea de mortalidade natural (M) foi obtida, utilizando-se dos parâmetros da taxa de crescimento (K), do comprimento assintótico (Loo) e da temperatura média da água (T) no período registrada nas áreas de ocorrência das duas espécies (Braga e Andrade, 2005), segundo a fórmula empírica descrita em Pauly (1983): Log10M = – 0,0066 – 0,279 * log10Loo + log10K + + 0,4634 * log10T Conhecendo-se M estimou-se Z, a taxa instantânea de mortalidade total, em que Z = M + F, e sendo F = 0, Z = M. A taxa de sobrevivência foi estimada por S = e-Z (Ricker, 1975). A longevidade em anos das espécies foi estimada por tmax = 3 K -1 (Pauly, 1983). ResultadosResultadosResultadosResultados Foram analisados sete ovários maduros de Characidium lauroi, indicando a existência de mais de um grupo de ovócitos em desenvolvimento, estando o grupo mais desenvolvido com moda em 734,4 µm. A amplitude de variação dos ovócitos vitelogênicos foi de 183,6 µm a 918 µm (Figura 1A). A existência de mais de um grupo de ovócitos vitelogênicos em desenvolvimento indica desova parcelada para a espécie. A Tabela 1 apresenta os valores das fecundidades absolutas e relativas para Characidium lauroi e os valores da relação gonadossomática. A fecundidade absoluta variou de 1.313 a 2.925 ovócitos, e a fecundidade relativa de 226 a 464 ovócitos por centímetro de comprimento total. A correlação entre a fecundidade absoluta e o comprimento do peixe não foi significativa (r = 0,39; p > 0,05). Verificou-se uma tendência de aumento da relação gonadossomática com a fecundidade (rs = 0,68; p < 0,01). Foram analisados nove ovários de Characidium alipioi, sendo que, neste caso, houve somente uma moda de ovócitos vitelogênicos em desenvolvimento, situada em 612 µm. A amplitude de variação dos ovócitos vitelogênicos foi de 244,8 µm a 918 µm (Figura 1B). A existência de um único grupo de ovócitos vitelogênicos em desenvolvimento indica uma desova total para esta espécie. 0 5 10 15 20 25 30 183,6 244,8 306 367,2 428,4 489,6 550,8 612 673,2 734,4 795,6856,8 918 diâmetro das classes de ovócitos % A 0 5 10 15 20 25 30 183,6 244,8 306 367,2 428,4 489,6 550,8 612 673,2 734,4 795,6856,8 918 diâmetro das classes de ovócitos % B Figura 1. Distribuições das freqüências relativas das classes de diâmetros de ovócitos em Characidium lauroi (A) e C. alipioi (B) da microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo. Tabela 1. Variação individual nos valores de comprimento total (CT), relação gonadossomática (RGS%), fecundidade absoluta (F1) e fecundidade relativa (F2) de Characidium lauroi. Peixe CT (cm) RGS F1 F2 1 5,8 4,90 1.313 226 2 5,8 15,81 1.463 252 3 5,8 18,30 1.763 304 4 5,8 16,40 2.438 420 5 6,3 21,50 2.925 464 6 6,4 15,25 1.688 264 7 6,7 21,50 2.925 437 Os valores das fecundidades absolutas e relativas estimados ocorreram para nove fêmeas de Characidium alipioi, a fecundidade da população e os valores da relação gonadossomática são mostrados na Tabela 2. A fecundidade absoluta variou de 2.213 a 25.550 ovócitos, sendo bem superior à de C. lauroi; a fecundidade relativa variou de 273 a 2.581 ovócitos por centímetro de comprimento total. A fecundidade da população de C. alipioi neste período reprodutivo está representada pela equação alométrica y = axb ou F = 0,000048CT 8,85 (r = 0,78; p < 0,05), obtida da regressão funcional ajustada. Houve correlação entre a relação gonadossomática com a fecundidade (rγ = 0,67; p < 0,05). 284 Braga et al. Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 Tabela 2. Variação individual nos valores de comprimento total (CT), relação gonadossomática (RGS%), fecundidade absoluta (F1), fecundidade relativa (F2) e fecundidade da população (F3) de Characidium alipioi. Peixe CT (cm) RGS F1 F2 F3 1 8,1 8,05 2.213 273 2 8,1 31,07 10.800 1.333 3 8,2 16,02 7.275 887 F1= 0,000048CT8,85 4 8,7 29,17 17.700 2.034 (p < 0,05) 5 9,1 31,83 21.000 2.308 6 9,1 12,12 5.363 589 7 9,8 25,95 19.050 1.944 8 9,9 24,40 25.550 2.581 9 10,1 31,60 24.300 2.406 A fecundidade absoluta e a relação gonadossomática de Characidium alipioi foram superiores às de C. lauroi. O lote de ovócitos vitelogênicos mais desenvolvidos em ovários de C. lauroi apresentou moda em 734,4 µm, sendo este valor superior ao da moda única que aparece em ovários de C. alipioi, que foi de 612 µm. Os valores dos parâmetros de crescimento, mortalidade, sobrevivência e idade máxima de Characidium lauroi e C. alipioi, para machos e fêmeas, estão apresentados na Tabela 3, bem como os valores médios de ajuste (RN), que mostra as melhores combinações entre os parâmetros K e L∞ realizadas pelo programa FISAT. Ambas as espécies apresentaram valores altos para a taxa de crescimento (K), pequeno porte (L∞), poucos grupos etários, indicando curta duração de vida (tmax), elevada taxa de mortalidade natural (M) e baixa taxa de sobrevivência (S). Tabela 3. Valores do índice de ajuste (RN), da taxa de crescimento (K), do comprimento assintótico (L∞), da taxa instantânea de mortalidade natural (M), da idade máxima (tmax) e da taxa de sobrevivência (S) para machos e fêmeas de Characidium lauroi e C. alipioi. Espécie RN K ano-1 L∞ (cm) M ano-1 tmax (anos) S (%) C. lauroi fêmea 0,207 0,68 8,7 1,62 4,4 19,79 C. lauroi macho 0,281 0,78 6,9 1,89 3,8 15,11 C. alipioi fêmea 0,169 0,90 12,2 1,81 3,3 16,37 C. alipioi macho 0,386 0,76 10,1 1,71 3,9 18,10 DiscussãoDiscussãoDiscussãoDiscussão O sucesso de uma população ou espécie de peixe depende do desenvolvimento de estratégias e táticas reprodutivas, e fazem com que ela se adeqüe ao ambiente em que vive, produzindo descendentes (Vazzoler, 1992). Pelo fato de o ambiente ser altamente dinâmico, passando por modificações sazonais e temporais, as espécies têm que se adaptar a essas modificações e minimizar ou excluir possíveis interfaces competitivas que venham a surgir. A ictiofauna de riachos de encosta na serra da Mantiqueira oriental e a da região de ecótono encosta-pediplano do Vale do Paraíba passaram por influências climáticas e de relevo que se iniciaram por volta de 15 mil anos atrás, no Pleistoceno terminal, moldando as suas atuais características (Braga, 2004; Braga e Andrade, 2005). Das espécies que constituem esta ictiofauna, Characidium lauroi e C. alipioi são as mais abundantes, tendo uma distribuição espacial parapátrica e sendo morfologicamente distintas quanto a suas estruturas populacionais em comprimento, sendo C. alipioi maior que C. lauroi e as fêmeas maiores do que os machos em ambas as espécies (Braga, 2005a). Por ser de porte menor, Characidium lauroi habita trechos de riachos mais estreitos e torrentosos, localizados na encosta. São ambientes caracteristicamente oligotróficos e limitados espacialmente, e a base da fonte alimentar de origem autóctone (Braga, 2005b); a postura de óvulos efetuada em lotes minimiza a competição intraespecífica por alimento entre as larvas. Por outro lado, como os óvulos são maiores, o que proporciona uma maior reserva de vitelo a ser utilizada pela larva logo após a eclosão, a fecundidade é diminuída pelo fato de ovócitos maiores ocuparem mais espaço no lume ovariano. Em peixes, uma das maneiras de diminuir a competição intraespecífica pelas larvas e de reduzir a fecundidade, é o aumento do tamanho dos ovócitos (Nikolsky, 1963 e 1969). A espécie Characidium alipioi substitui C. lauroi do pediplano em direção à planície do Vale do Paraíba, e também apresenta estrutura populacional em comprimento distinta, sendo de maior porte (Braga, 2005a). Há evidências de ser uma espécie de desova total por apresentar uma única moda de ovócitos vitelogênicos em ovários maduros. A maior fecundidade apresentada por esta espécie em relação a C. lauroi está no fato de que, além de atingir comprimentos maiores e habitar trechos mais largos de riachos e com isso ter a possibilidade de dispersar mais larvas no espaço, apresenta ovócitos menores, podendo aumentar o seu número no ovário. Winemiller e Rose (1993) citam como sendo uma estratégia do ciclo de vida o investimento em um grande número de ovócitos menores, quando os recursos disponíveis se encontram espalhados em uma área espacial maior. Dentre as estratégias reprodutivas apresentadas pelos peixes ósseos, uma das mais significativas relaciona-se com o tamanho dos ovócitos. Segundo Wootton (1992), comparativamente, peixes de água doce tendem a ter ovócitos com diâmetros maiores do que nas espécies marinhas, produzindo larvas Dinâmica populacional de Characidium spp. 285 Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 maiores que, ao eclodirem, têm maiores recursos para se adaptarem ao ambiente na fase de alimentação endógena, visto o plâncton de água doce ocorrer em menor densidade. Estudando a fecundidade e o tipo de desova de Moenkhausia intermedia, Braga e Gennari Filho (1991) indicaram que a espécie apresenta desova parcelada e que os diâmetros dos ovócitos maduros eliminados na primeira e segunda desova são distintos, sendo menores na segunda desova; as larvas, na segunda, desova terão um tempo de desenvolvimento menor, pois eclodiram mais para o fim do período reprodutivo. Segundo Bagenal (1971), a variação sazonal no tamanho de ovócitos de peixes de água doce, em ambientes lóticos e lênticos, associa-se com a disponibilidade de alimento que a larva terá. Braga (1997) discutiu o fato de espécies de peixes de água doce serem menos fecundas e terem ovócitos maiores do que espécies correlacionadas que habitam o ambiente marinho, pois a fecundidade expressa a abundância da espécie e, na água doce, o espaço torna-se mais limitado, suportando populações com biomassas menores. Ovos grandes favorecem a eclosão de larvas maiores, mais aptas para explorar o ambiente. Essa adaptação compensa a redução na fecundidade, sendo uma tática que leva à estratégia K (Wootton, 1992). Conforme demonstrado por Mazzoni e Iglesias-Rios (2002), a fecundidade e o tamanho dos ovócitos em Geophagus brasiliensis variaram significativamente em diferentes ambientes habitados pela espécie, o que pode ser uma adaptação da espécie aos habitats. Peixes de porte pequeno, em ambientes de riachos torrentosos ou ambientes lênticos, com áreas marginais recobertas por macrófitas aquáticas, podem apresentar fecundidade baixa. Rondineli (2007), estudando a fecundidade de Characidium cf. zebra em três pontos distintos do rio Passa Cinco, Estado de São Paulo, estimou-a em 1.398, 1.653 e 753 ovócitos. Cappi (2006) estimou a fecundidade de Hyphessobrycon eques, Serrapinus heterodon e S. notomelas em 529, 183 e 196 ovócitos, respectivamente, em área lêntica do Ribeirão Claro, Estado de São Paulo. A fecundidade, quando correlacionada com o comprimento ou peso do peixe, passa a representar a fecundidade da população em um determinado período reprodutivo (Vazzoler e Rossi-Wongtschowski, 1976). Esta correlação pode apresentar uma tendência de curva de função potência (Wootton, 1992), cujo ajuste foi utilizado por Rondineli (2007) e por Cappi (2006), ou linear (Nikolsky, 1969), cujo ajuste foi utilizado por Vazzoler e Rossi-Wongtschowsky (1976). Por outro lado, numa correlação entre a fecundidade com o comprimento ou o peso do peixe, em que a tendência dos pontos seja curvilínea ou retilínea, é válido o emprego da equação alométrica aos dados. A fecundidade em peixes é uma característica biológica bastante variável, podendo variar com as condições ambientais, temporais e em função do comprimento ou peso do peixe. Peixes com o mesmo comprimento ou peso podem apresentar fecundidades distintas, fazendo com que o diagrama de dispersão dos dados apresente pontos bem espalhados. Neste caso, é conveniente o uso de uma regressão funcional, a qual melhor se ajusta aos dados (Gennari Filho e Braga, 1996). A dinâmica do desenvolvimento de gônadas de peixes pode ser bem acompanhada pela análise temporal da relação gonadossomática. West (1990) ressaltou a importância da avaliação desta relação, juntamente com a análise da medida do diâmetro de ovócitos e da variação sazonal dos estádios de maturação gonadal, na determinação do período reprodutivo. O pico de uma atividade reprodutiva pode ser indicado pela relação gonadossomática, enquanto que a análise dos estádios gonadais indica o período reprodutivo (June, 1953). A relação gonadossomática expressa não só o desenvolvimento da gônada como também se relaciona com a fecundidade, pois o aumento de ovócitos dentro dos ovários contribuirá, de maneira significativa, com o valor da relação gonadossomática. Braga e Gennari Filho (1991) encontraram alta correlação entre a relação gonadossomática e a fecundidade em fêmeas de Moenkhausis intermedia. As espécies Characidium lauroi e C. alipioi apresentam as gônadas dispostas de uma maneira diferente em relação à maioria dos demais peixes ósseos. Braga (2004) indicou que, nessas espécies, os ovários e os testículos não estão pareados, mas formando uma estrutura única, organizando melhor a disposição anatômica na cavidade visceral. Além disso, a relação gonadossomática de ovários e testículos, nessas espécies, é bem superior a de outros peixes em períodos reprodutivos (Braga, 2006). As adaptações desenvolvidas pela presença de somente um ovário foram em ter uma fecundidade relativamente baixa e aumentar o diâmetro dos ovócitos, armazenando mais vitelo. O tamanho dos indivíduos é outra estratégia que pode ser associada com a reprodução (Vazzoler, 1996), pois peixes que maturam cedo entram mais rapidamente no ciclo reprodutivo. O comprimento total médio da primeira maturação gonadal foi estimado em 4,2 centímetros para machos e em 5,1 centímetros para fêmeas de Characidium lauroi, e em 6,2 e 5,8 centímetros para machos e fêmeas de C. 286 Braga et al. Acta Sci. Biol. Sci. Maringá, v. 29, n. 3, p. 281-287, 2007 alipioi, respectivamente (Braga, 2006). Winemiller e Rose (1992) consideram peixes de pequeno porte como tendo uma estratégia oportunista, maturação precoce, período reprodutivo longo, crescimento larval rápido, alta taxa de aumento populacional, alta densidade e alta taxa de mortalidade. Castro (1999) atribuiu padrão comum a dominância de espécies de pequeno porte em peixes de riachos. Observa-se que, pelos resultados fornecidos sobre a progressão das coortes de comprimento, quando aplicada a rotina Elefan do programa Fisat (Gayanillo et al., 1994), em Characidium lauroi, os nascimentos ocorrem de outubro a dezembro. O período reprodutivo sugerido para esta espécie, conforme o desenvolvimento dos estádios gonadais, foi concordante (Braga, 2006). As três coortes etárias definidas para machos e as quatro de fêmeas concordam com as idades máximas estimadas em menos de quatro anos para os machos e mais de quatro anos para as fêmeas (Tabela 3). O método mostrou que os nascimentos ocorrem por volta de janeiro e que existem três coortes etárias, tanto para machos como para fêmeas quando aplicado às progressões das coortes de comprimento de Characidium alipioi. Também, neste caso, o período reprodutivo apresentado concorda com o descrito pelo desenvolvimento dos estádios gonadais (Braga, 2006). A existência de três coortes etárias evidenciadas pelo método concorda com a idade máxima de menos de quatro anos atingida por esta espécie. A estrutura em comprimento nas populações de Characidium lauroi e C. alipioi mostrou que C. lauroi cresce menos do que C. alipioi e que, em ambas as espécies, as fêmeas são maiores do que os machos (Braga, 2005a). Por ser espécies de curto período de vida, a taxa de crescimento é alta, têm taxa de mortalidade natural elevada e conseqüente taxa de sobrevivência baixa. Tais características, associadas com a fecundidade e tipo de desova, definem as adaptações ao ambiente que essas espécies desenvolvem. A essas adaptações acrescentam-se outras de cunho morfológico como, por exemplo, a redução de gônadas, comuns também para outras espécies pertencentes a outras famílias que residem no mesmo ambiente (Braga, 2004). ConConConConclusãoclusãoclusãoclusão As espécies Characidium lauroi e C. alipioi estão adaptadas ao ambiente de riacho em que vivem na microbacia do Ribeirão Grande, Estado de São Paulo. Characidium lauroi, por habitar trechos mais altos, mais estreitos e torrentosos, apresenta mais de uma desova, sendo os ovócitos eliminados em lotes. Esses ovócitos são grandes, com muito vitelo e em número reduzido, o que possibilita as larvas, ao eclodirem nas sucessivas desovas, melhor utilização dos recursos do sistema. Por outro lado, C. alipioi, que habita trechos mais largos, tem uma desova total, eliminando um único lote de ovócitos. Esses ovócitos são menores e em maior número, pois as larvas, ao eclodirem, encontrarão espaço maior para habitar e maior área de alimentação. Os parâmetros de crescimento e de mortalidade estimados para as espécies indicam que são de crescimento rápido, porte pequeno, ciclo curto de vida, taxa de mortalidade natural elevada e taxa de sobrevivência baixa. Estas características, associadas às de fecundidade e desova, proporcionam às espécies melhor adequação ao habitat em que vivem. AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentos Externamos os nossos agradecimentos à Cemasi/Votorantim Celulose e Papel-Florestal, pelo suporte dado ao desenvolvimento deste trabalho; ao CNPq e à Fapesp, pelo auxílio financeiro concedido para a execução e a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para o seu desenvolvimento. ReferênciasReferênciasReferênciasReferências ANDRADE, P.M. Distribuição, dieta e ecomorfologia das espécies de peixes no sistema do Ribeirão Grande, no município de Pindamonhangaba, SP. 2004. Tese (Doutorado em Zoologia)–Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004. BAGENAL, T.B. 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